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INTRODUÇÃO AO MÉTODO DE JOHN CARPENTER

por Lucas Baptista

Halloween (1978) se inicia com o ponto de vista de alguém que não conhecemos. De imediato,
somos jogados num abismo sem intencionalidade. A câmera atravessa o espaço, a música traduz
o pulso e o tom do evento; a introdução ao crime trabalha a atmosfera sem qualquer justificativa
exceto um olhar predatório. Podemos especular sobre a causa primária, mas a experiência segue
envolta em uma escuridão que não pode ser desfeita pela análise direta. A revelação do assassino
é parcial: a expressão no rosto e a maneira de segurar a faca demonstram que ele também
desconhece a razão de seus atos.

Este movimento formula uma hipótese a ser investigada: tudo o que ocorre ao corpo no cinema é
público, mas os eventos internos, a menos que desdobrados em discurso, permanecem secretos.
Michael Myers é a manifestação dramática deste problema. O terror de sua personalidade é o
terror do ego como mero recipiente de fenômenos. Ao buscar qualquer substancialidade em suas
ações, encontramos algo como um ponto geométrico, sem dimensões, autossuficiente, imerso na
pura atualidade, além do tempo, em simplicidade total. Aquele gesto, compacto e sinistro, foi o
único de sua vida; retornando como um eco das profundezas, ele parece condenado à sua
repetição.

Há uma lenda grega tardia e significativa, de acordo com a qual o homem que primeiro declarou
o mistério do número irracional foi morto por Pitágoras e seus seguidores. O incomensurável
devia ser escondido por não se adequar à visão sólida e ordenada da realidade. Transposta a lenda
para o universo do filme, o significado permanece. Myers é o mistério que escapa à comunidade,
e mesmo à identidade humana. Anos após o ocorrido, os moradores levam suas vidas em perfeita
banalidade, reconhecendo o local do crime com uma alternância de sarcasmo e superstição. Não
lhes ocorre que o mal possa retornar, mas a casa, palco da atuação original, é mantida como um
monumento insólito, espécie de duplo arquitetônico do personagem.

Borges conta sobre aquele que se propôs a tarefa de desenhar o mundo apenas para descobrir que
o labirinto de linhas traçava a imagem de seu próprio rosto. Não é de outro modo que uma máscara
branca e fantasmagórica projeta sua fisionomia nas ruas e calçadas de Haddonfield,
esquadrinhadas com avanços retilíneos enquanto gestos impassíveis se refletem na precisão
estrutural, na inevitabilidade do encadeamento, na repetição dos motivos musicais. Myers traça o
labirinto; Myers é o minotauro em seu centro. Talvez o minotauro seja capaz de construir a prisão
na qual se encerra. Talvez sua existência dependa da estrutura labiríntica. Talvez ele distorça uma
ordem estabelecida, ou seja fruto de uma desordem primitiva. Talvez seja causa, talvez efeito. O
filme não oferece resposta: em vez disso, nos dá uma série de casos que adensam o problema.

Laurie e Tommy andam pela calçada até a casa dos Myers. O comentário sobre o local
assombrado não basta para espantar Laurie; ela vai até a porta e esconde a chave sob o tapete.
Corta para dentro da casa: uma sombra se destaca na escuridão, observando Laurie através de um
vidro rachado. Corta para a calçada: Laurie e Tommy se despedem; ele sai pelo lado esquerdo;
ela caminha ao fundo, reforçando a perspectiva e criando um vácuo no lado direito. Conta-se um,
dois segundos, e Myers aparece, preenchendo o quadro. O que antes parecia coberto por uma
neutralidade exemplar se revela marcado pelo olhar focado do assassino. Daqui em diante, ainda
que a presença não esteja implicada, cada plano sugere o mesmo contorno ameaçador, atingindo
o ápice quando a respiração reverbera nos espaços vazios. A lógica e a objetividade da encenação
são utilizadas como ferramentas para apontar seus limites, minando suas premissas: o ponto de
onde parte o olhar, o plano no qual se projeta, o que existe em torno deles. Ao final, permanecemos
no escuro.

Halloween é um dos centros de irradiação na obra de John Carpenter. Outros de seus filmes
gravitam em torno do mesmo tema: a possessão de um corpo. A possessão é, estritamente, a perda
do controle, e o corpo é o primeiro nível desta perda, o menor elemento passível de controle. Isso
ocorre por meio de um espírito, uma força descomunal ou um organismo alienígena. Resulta então
uma batalha que envolve tanto aqueles que temem ser possuídos como aqueles cuja possessão é
a fonte da violência.

Se Myers representa o abismo do ego, o terror de um indivíduo possuído, uma variação ocorre
em Christine (1983): o abismo do objeto, o terror de uma máquina possuída. A introdução do
Plymouth é caracterizada pela mesma ausência de explicações. Há um ataque repentino e a
identificação de uma vontade homicida com um objeto que não exibe nada além de uma superfície
fabricada. Não é casual que um homem seja tão implacável quanto uma máquina ou que um carro
se mostre tão determinado quanto um homem, pois é precisamente na interseção entre os dois
casos que reside o problema. O objeto é, em condições normais, um modelo de impassibilidade,
mas basta uma abertura mínima à interpretação para que a atenção seja capturada. A cena em que
a vítima avista o carro e imagina que Keith Gordon está no comando demonstra a incapacidade
dos personagens de confrontar diretamente essa questão. Necessitam dar um nome ao
desconhecido, dar alguma humanidade ao mal, como um instinto de preservação da própria
sanidade.

Em A cidade dos amaldiçoados (Village of the Damned, 1995), um conjunto de corpos é


possuído, mas coordenados e atraídos uns pelos outros como um só organismo. Novamente, não
é dada qualquer pista sobre o que estaria por trás da possessão ou o que seria a imensa sombra
que toma conta da paisagem nos planos iniciais. No lugar do ataque individual que serve de
prelúdio em Christine, há uma verdadeira orquestração de mortes, o extermínio de parte da
população local. As crianças nascem a partir deste evento, inseridas numa falha geracional que se
amplia conforme elas se mostram capazes de controlar objetos e mesmo as vontades alheias. Se
Myers e Christine já sugeriam o efeito Kuleshov encarnado, cada uma das crianças possuídas
torna evidente a relação: o mundo se dobra às suas vontades, os adultos matam uns aos outros, e
a única manifestação física é o brilho em seus olhos. O terror é multiplicado e tornado explícito;
o equilíbrio gélido e a indiferença silenciosa da vizinhança em Halloween dão lugar ao desespero
e à histeria da cidade costeira. Para que a destruição não seja completa, o protagonista deve
sacrificar-se na explosão que encerra o domínio das crianças. A comunidade, para sobreviver,
deve negar a si mesma, deve destruir seus próprios filhos.

Um dos preceitos de Carpenter é que não há como sustentar uma sociedade impermeável, e
principalmente, resistente ao mal. Uma sociedade que evita o mal está destinada a atraí-lo como
um vírus, ou a criar o mal sob a máscara do bem, sendo então devorada por seus anticorpos. Este
motivo toma a frente em A bruma assassina (The Fog, 1980), com o retorno da geração ancestral
para o acerto de contas. O movimento dos marinheiros é acompanhado pela névoa que avança
contra o vento, uma ocasião deslocada das leis naturais, além do controle do homem. Possessão
do presente pelo passado, do espaço pela densa bruma luminosa. A tentativa de encobrir a traição
é inútil; a vingança é o desdobramento tardio, mas inevitável. Os ponteiros da narrativa marcam
as etapas de sua realização, seguindo o curso independente da vontade ou do entendimento. O
acordo das instituições é desvelado, expondo a corrupção das fundações, e a violência busca a
compensação com igual intensidade, mas o alvo invertido.

Se a civilização constitui-se com a sobreposição de camadas de violência, a salvação é possível


apenas devido a um elemento externo. Na obra de Carpenter, isso é expresso mais claramente
em Starman (1984). O homem estelar é a contraparte positiva de Myers, o limite superior da
mesma escala na qual encontramos a escuridão impenetrável e destruidora. Em uma introdução
praticamente idêntica, somos colocados no ponto de vista da entidade que mais tarde ganhará
substância. O Starman é uma forma luminosa que vemos se apoderar do corpo de Jeff Bridges,
não por um assassinato, mas pela ressurreição daquele pelo qual Karen Allen ainda está
apaixonada. Toda a progressão do filme é a integração do Starman à vida na Terra e sua
contribuição à humanidade – ele acrescenta, onde Myers apenas subtrai. Também na conclusão
os dois extremos se complementam: Myers desaparece nas sombras, e sua ausência é a lembrança
de que o terror ainda vive, enquanto o Starman se despede com a promessa de que seu filho terá
os mesmos poderes regenerativos. À angústia de Laurie substitui-se o olhar encantado de Jenny
Hayden, elevado aos céus sob a pureza da luz e do vento.
II

As linhas narrativas de Assalto à 13.ª DP (Assault on Precinct 13, 1976) convergem em um


momento a aproximadamente metade de sua duração quando os criminosos iniciam o cerco à
delegacia. Trancados no lugar estão policiais, funcionários, prisioneiros e o homem que perdeu a
filha para um dos integrantes da gangue. Eles se movem com cuidado durante o ataque e aos
poucos se reúnem na região mais segura. As balas atravessam as janelas, quebram os vidros,
derrubam cortinas e lâmpadas. Uma série de fragmentos é ritmada pela montagem, passando de
um canto a outro, medindo as distâncias, descrevendo a trajetória de cada projétil. O fim da
investida permite que encaremos o resultado: arruinada e coberta de fumaça, a delegacia se
transforma em uma arena, e cada centímetro de sua extensão ganha um novo significado ao ser
invadido por forças externas.

Uma segunda hipótese é posicionada no centro do filme: se o espaço, condição física para os
corpos, possui leis particulares que moldam as ações de inúmeras e inesperadas maneiras, o
instinto territorial não é menos essencial ao homem contemporâneo do que aos hominídeos que
povoaram o planeta milhões de anos atrás. Um território é uma área defendida como exclusiva, e
onde, quanto maior o controle, maior a energia – energia que pode ser econômica ou sexual,
comunitária ou agressiva. A delegacia é um exemplar territorial, e à delimitação do espaço e ao
isolamento dos elementos se segue um gradual aumento da pressão no sistema através de
interações consecutivas. Quanto mais se avança na escalada de violência, mais as razões para o
conflito são dissolvidas numa espécie de mecanismo evolutivo. Os agentes envolvidos fazem algo
não por escolha, mas porque devem fazê-lo: independente de suas vontades individuais, os
homens, ao serem capturados em cruzamento territorial, definem-se por comportamentos tão
padronizados quanto uma configuração de nervos.

O juramento de vingança é o gesto inaugural entre os invasores. Marca a identidade grupal, bem
como a declaração de causa e efeito moral: parte do grupo foi derrubada, logo os responsáveis
devem também ser derrubados. As ações tornam-se ritualísticas, com sinais e ameaças
prefigurando o ataque, e uma organização que ultrapassa o contexto de uma guerrilha urbana. Não
se trata mais de vingança ou de simples ódio generalizado pela polícia; a reverberação do
juramento no espaço da cidade é como a de um grito no campo de batalha. Os quatro líderes
desaparecem na turba, os rostos são cobertos pelas sombras e o número de integrantes é
multiplicado indefinidamente, como uma grande reação em cadeia, estabelecendo um imenso
conjunto unido por um propósito rudimentar. Eventos instáveis na escala individual se tornam
estáveis na escala coletiva.

O território não é uma qualidade do espaço particular da delegacia: é o resultado da coexistência


de invasores e defensores. Os personagens se unem por razões diversas, mas a ocasião impõe uma
escala de valores cujos extremos são aqueles que buscam se destacar e aqueles que cedem ao nexo
de exigências territoriais. Entre os resistentes, simpatias são imediatamente declaradas ou
negadas, e entre os invasores é significativo que a única exibição de individualidade seja a
crueldade gratuita que resulta na morte da criança e mais tarde na troca de tiros. O mecanismo
evolutivo é implacável; as demonstrações de individualismo encontram primeiro o desprezo e em
seguida a morte. A escala determina tão absolutamente os valores que a diferença entre agentes
da lei e criminosos é posta como irrelevante. A única diferença que importa é entre aqueles que
defendem e aqueles que atacam o território.

Quando os sobreviventes encontram-se presos no corredor, exibem brevemente o reconhecimento


dos três pontos que sustentaram a operação. Qualquer um deles não teria sobrevivido sem os
outros. O equilíbrio dos agentes essenciais é como a depuração de um polígono irregular em um
triângulo regular; terminado o conflito, os pontos retornam ao seu caráter disperso. É apenas sob
o microscópio narrativo, e apenas no perímetro tensionado do território que a imagem do triângulo
pode ser revelada.

Assalto à 13.ª DP é paradigmático na obra de Carpenter como representação de um segundo tema:


a dominação de um espaço. O espaço é o segundo elemento passível de controle, e os caminhos
nessa representação incluem também os do primeiro nível. Aqueles que foram possuídos
participam na dominação, tornando a coordenação dos corpos uma etapa fundamental.
Em Assalto à 13.ª DP, toda a batalha se dá no plano físico, com total ausência do caráter
fantástico; é sobre essa estrutura, portanto, sobre esse mínimo denominador que os outros filmes
devem necessariamente construir. Carpenter parece admitir que, se no universo os corpos se
confrontam na razão direta de suas necessidades territoriais, toda uma série de problemas tornam-
se claros e podem ser tratados de maneira econômica.

O tema pode ser representado do ponto de vista dos resistentes, mas também da perspectiva dos
invasores. Se Assalto à 13.ª DP inaugura o primeiro tipo, a inversão está em Fuga de Nova
York (Escape from New York, 1981) e Fuga de Los Angeles (Escape from L.A., 1996). Nos dois
casos, Snake Plissken deve invadir espaços cercados, altamente guardados, repletos de armadilhas
e com estruturas labirínticas. A própria caracterização das cidades indica o modo como os
comportamentos são adequados a forças comuns. Cada uma delas possui exatamente a mesma
hierarquia, a mesma fauna criminosa, os mesmos impulsos territoriais e a mesma obsessão com
bodes expiatórios. A arena, perversão do palco, está no centro de ambos os filmes porque a vitória
do invasor deve primeiro ocorrer em uma batalha aos olhos de todos – deve primeiro ser uma
imposição simbólica de sua presença no espaço. A figura de Snake Plissken é também responsável
por expor a correspondência entre a lei e o crime, entre aqueles que dominam espaços em
diferentes contextos. Plissken expõe tal correspondência apenas porque se situa fora dela. A
independência do personagem está diretamente ligada à sua habilidade de atravessar os espaços
e compreender que em todos eles as regras permanecem as mesmas: as regras da dominação.

Se o território é expandido a todo o espaço urbano, não há trecho que não esteja sujeito aos
conflitos. Em Os aventureiros do bairro proibido (Big Trouble in Little China, 1986), surge a
possibilidade de que a cidade, em seu funcionamento usual, seja a primeira camada de uma
estrutura territorial mais profunda. A ameaça é inicialmente vista como uma organização
criminosa, não mais que uma perturbação momentânea na superfície, mas esta logo se revela uma
consequência de algo mais poderoso e permanente. A investigação leva os personagens às regiões
subterrâneas, às câmaras e aos corredores onde devem a cada momento recorrer a disfarces e
outras táticas para avançar e derrubar obstáculos. O núcleo da fortaleza, o ponto de máxima
concentração, é onde se encontra Lo Pan, cujo desejo último é a possessão das duas mulheres.
Entre os personagens que realizam a invasão e a fuga, Jack Burton se destaca como imitação
paródica de Snake Plissken. Enquanto Snake retoma o anti-herói do western moderno, lacônico e
letal, Burton se esforça para ser um John Wayne irreverente, dedicando mais tempo a falar sobre
seus feitos do que a executar as ações necessárias – razão pela qual é derrubado no conflito final.
O individualismo ferrenho de ambos atinge a consonância no desprezo pelas instituições, ou pela
dominação tornada oficial.

A dificuldade em aceitar a recorrência das instituições, presente em toda a obra de Carpenter, é


um dos motores narrativos em Vampiros (Vampires, 1998). Jack Crow não é um simples
mercenário, indiferente ao estado das coisas: é alguém obcecado pela destruição, e cujas
habilidades parecem alinhadas a um desejo sádico e vingativo. A caçada realizada por seu grupo
é encarada como um trabalho especializado, respondendo à Igreja Católica, mas não é menos
concentrado o prazer que Crow deriva da invasão dos espaços e destruição dos corpos possuídos.
Um vampiro se esconde da luz do sol, o que significa que seu poder é restrito a metade do dia,
poder que, como nos outros filmes, é o de possuir as vítimas, propagando o estado vampírico; o
acúmulo das possessões é análogo então à dominação espacial, e o objetivo do antagonista é a
extensão de seus poderes à totalidade do dia. Quando os vampiros são revelados como tendo
origem na própria instituição da qual ele fez parte, e que assassinou sua família, o protagonista
segue com seu impulso destrutivo, mas agora um completo rebelde. Novamente, Snake Plissken
é a referência central, o zero da escala territorial.

A tensão entre o agente sob contrato e a instituição que origina a corrupção é um ponto-chave
também em Fantasmas de Marte (Ghosts of Mars, 2001). Nas fronteiras do domínio civilizatório,
o homem encontra escondido em uma caverna o sopro do que pode ser um espírito, como que à
espera de uma revelação. Mas na aridez da atmosfera marciana, um ambiente tão primitivo que
parece petrificar o tempo, os soldados reencontram a eterna guerra por território. O espírito de
Marte não se distingue da névoa de Antonio Bay: reage às ambições humanas, é violento e ansioso
por invadir os corpos, por destruí-los e colocá-los uns contra os outros. A cada império erigido
no universo, as forças ancestrais se mobilizam em torno dos mesmos motivos. As credenciais de
Ballard e Williams, como as de Bishop e Wilson, se tornam irrelevantes quando eles encenam
mais uma vez a luta dos indivíduos pela dominação espacial.

III

Na conclusão de O príncipe das sombras (Prince of Darkness, 1987), um dos sobreviventes da


batalha contra o mal acorda de um pesadelo. A mensagem enviada do futuro como um fragmento
em vídeo contém agora sua companheira falecida, que anuncia a tomada do mundo pelo
Anticristo. Ao olhar para a cama ele a encontra, deformada e monstruosa, apenas para novamente
despertar, assustado, do que se revela um segundo pesadelo. Ele então se levanta e caminha em
direção ao espelho. Encarando a própria imagem, toca seu rosto, conferindo sua consistência,
tendo certeza de que não é ele mesmo apenas uma projeção. Hesitante, aproxima a mão da
superfície. Mas antes que toque no espelho – escuridão.

Nestes segundos finais, encontramos uma terceira hipótese: a morte não é o inverso da vida, mas
o inverso do nascimento; o inverso da vida é algo mais perturbador, algo como o não-ser ou a
inexistência. A morte após uma longa doença é algo que se pode aceitar com resignação; mesmo
a morte acidental, pode-se atribuir ao destino; mas desaparecer sem nenhuma causa aparente,
desaparecer apenas com a travessia de uma fronteira, coloca a situação em uma lógica
especulativa na qual a realidade alimenta a promessa de sua contraparte simétrica. As
transformações arbitrárias da existência em inexistência trazem consigo a suposição de que o ser
e o nada se encaram eternamente. Brian Marsh encarou o outro lado, e nele perdeu suas referências
e esperanças; viu nele não um vórtice destrutivo, mas uma negação completa. Em princípio,
Catherine ainda vive, mas em uma inversão demoníaca do cosmos, parte de uma estrutura sem
conteúdo, uma matemática abissal. Uma morte pior do que a morte.

Se o contrário de uma pequena verdade é uma mentira – como disse Niels Bohr –, o contrário de
uma grande verdade é outra grande verdade. Religião e ciência, dando nome e corpo às tentativas
de alcançar as grandes verdades, dialogam em O príncipe das sombras com uma operação em
larga escala. A razão para o diálogo é o reconhecimento de que a ordem dos fenômenos físicos e
o sentido espiritual da realidade parecem implicados em distorções de ambos os discursos. A
unidade da existência está em jogo. Pessoas de diferentes etnias, profissionais em diferentes áreas
se reúnem assim sob um mesmo projeto, com um mesmo propósito: observar um objeto e
interpretar um texto, que é em si a integração de vários idiomas em uma única mensagem. As
diferentes perspectivas se concentram e o quadro se revela de maneira gradual, como gotas que
se precipitam em uma caverna, solidificando-se lentamente, formando uma escultura imensa e
grotesca.

Há um princípio de complementaridade presente em todo o filme. Cada fenômeno parece


determinar a ocorrência de seu próprio inverso: partícula e antipartícula, Cristo e Anticristo, os
dois lados do espelho. À simetria reflexiva se acrescenta a polarização entre centro e
circunferência. O recipiente com o líquido verde é o núcleo que se expande e contamina os corpos
mais próximos por contato, mas também atrai os mais distantes por telepatia. A turba, perversão
da comunidade, possui não um foco de identidade, mas um foco de diferença: suas energias são
direcionadas de maneira centrípeta, do coletivo para os indivíduos. A inversão das leis naturais é
representada pela conjunção entre o sol e a lua, a ebulição das formigas, o desafio da gravidade.
Os cientistas investigaram a estabilidade do mundo, fixaram em símbolos os padrões encontrados,
delinearam a partir desse conhecimento uma ordem que se imaginava racional. Nas imagens de
um sonho, os dados dessa experiência foram convertidos em uma mensagem apocalíptica. Os
cientistas descobriram, a cada dimensão, um processo fractal: a repetição da mesma fórmula em
diferentes escalas.
Estas são as regras do jogo. Sem ignorar a precisão e o planejamento, os vícios e as paixões são
colocados à vista. Frente à tomada da realidade, os cientistas devem se organizar e efetuar
novamente a síntese de razão e intuição que serviu de base à civilização: para que a história não
se torne uma escritura diabólica, devem jogar no tabuleiro proposto. As peças negras, desprovidas
de personalidade, trabalham em sincronia absoluta; as brancas devem equilibrar as diferenças para
que o plano não seja interrompido. As negras possuem as brancas, uma a uma; dominam o espaço,
diminuem os movimentos possíveis. As brancas vencem apenas devido ao sacrifício de Catherine,
de uma só vez um grande ato de sublimação e a mais terrível condenação. Deslocado para o outro
lado do espelho, o adversário não é encerrado por sua destruição, mas afirmado por sua
codependência em relação à realidade. O mal não é apenas moral: é um princípio de instabilidade
e vertigem, de incompatibilidade e redução a algo que elimina a possibilidade de sentido ou
mesmo de existência plena.
O príncipe das sombras é o filme-chave para a terceira dimensão da obra de Carpenter: a
alucinação, ou a perda do controle sobre a realidade. O acúmulo de um nível a outro é mantido.
Os corpos possuídos são os agentes, os espaços dominados são os meios, e a alucinação é o fim
desta cadeia. Não é trivial o fato de os personagens serem cientistas, pessoas no ápice da
hierarquia racional e entregues à compreensão da realidade em seus processos constituintes. O
terror envolve não apenas a ameaça da destruição, mas o questionamento de toda uma visão de
mundo.

O terror é diretamente proporcional ao conhecimento sobre os resultados possíveis. O máximo de


razão, nesse caso, não pode senão gerar o máximo de tensão. Se em O príncipe das sombras o
fator teórico predomina, adiando o embate até o último momento, O enigma de outro mundo (The
Thing, 1982) representa a possibilidade de um controle puramente físico, e que exige reações
imediatas. Em oposição ao mal ontológico, traz um organismo sem forma original cujo propósito
é a transformação incessante da matéria existente. Na dimensão física, não há o que não dependa
de partículas elementares e de suas combinações; é, portanto, a redução ao absurdo do organismo
total que coloca em xeque a posição da humanidade. O corpo torna-se a própria arena onde os
processos físicos se rendem à hegemonia involuntária da contaminação. O grupo de pesquisadores
isolados no gelo deve, além de reencontrar os princípios territoriais que permitem a sobrevivência,
atentar para as mais sutis manifestações de cada um dos homens, pois em cada reação está a prova
da identidade real ou fabricada. Não saber se ao seu lado está uma pessoa ou uma monstruosidade,
não saber se mesmo a própria identidade não foi alterada pelo contágio: é neste quadro que os
personagens devem lutar. A paranoia decorrente é uma das condenações mais cruéis da obra de
Carpenter. O fator que permitiria ao grupo manter sua integridade é precisamente aquele que é
negado pelo alienígena. A tentativa de evitar a destruição da espécie humana leva à destruição da
humanidade dos indivíduos.

A cognição dos personagens parece, nessas histórias, ser capturada em uma armadilha. Cada
tentativa de se movimentar, de se livrar do problema, gera uma reação contrária que contorce as
engrenagens e aumenta o sofrimento. Eles vivem (They Live, 1988) não é menos focado na
invasão alienígena, mas aqui é a descoberta de como esse domínio se dá na esfera social que está
no centro do conflito. Uma vez que se saiba que há um sentido previamente desconhecido e
subjacente a alguns fenômenos, não há como ignorar a possibilidade de que exista um sentido
subjacente a outros ou mesmo a todo e qualquer fenômeno. Uma vez que se descubra que ilusões
ocorrem durante estados supostamente normais, os questionamentos sobre a verdade tornam-se
inescapáveis. A partir do momento em que John Nada descobre a primeira falha, ele não tem
escolha, deve seguir até o final do sistema; e a cada passo, confirma o que desconfiava: que a
percepção está implicada no domínio político. Se todas as relações interpessoais e todos os
instrumentos tecnológicos foram envolvidos na teia de comunicação alienígena, é a revelação da
falha que coloca em xeque a sociedade. Da mesma forma que os pesquisadores no gelo, John e
Frank lutam violentamente porque não é possível explicar a alguém o nível cognitivo elementar:
deve-se ver por si mesmo. A violência mais primitiva nasce com a possibilidade do perigo social
mais extremo, encoberto pela percepção mais básica.

Se O príncipe das sombras é a Metafísica de Carpenter, se O enigma de outro mundo é sua Física
e se Eles vivem é sua Política, então À beira da loucura (In the Mouth of Madness, 1994) é sua
Poética, sua declaração sobre a força e o caráter da ficção. O que Carpenter realiza neste filme é
algo como uma torção modernista, um reforço da autonomia da obra, de seu artifício. Essa torção
é claramente articulada dentro de seu eixo temático, pois a ameaça da dominação mundial,
elevada à sua máxima reflexão, faz com que o próprio filme, como um universo narrativo, se
torne o corpo possuído pela nova realidade. Inicialmente o protagonista é revelado como uma
projeção do escritor – “eu penso, logo você existe”, diz Sutter Cane a John Trent, numa corrupção
do dito cartesiano –, mas em seguida o próprio Cane é revelado como um veículo para as forças
do mal. A posição do protagonista frente à perda da realidade equivale à transposição da própria
realidade do filme ao status de criação monstruosa. Resta a ele apenas o riso desesperado, uma
absorção completa pelas regras perversas da ficção. A consciência e o mundo, finalmente,
convergem no abismo. De acordo com certas religiões, um deus criou o universo a partir do nada;
de acordo com Sutter Cane, e para o horror de John Trent, o nada ainda é sua substância.

IV

Possessão, dominação, alucinação: sobre essa tríade foram criados os filmes de John Carpenter.
Ele foi considerado, como Jack Arnold, um cineasta de gênero, alguém disposto a negociar com
as convenções estabelecidas. Ele se considera, como Howard Hawks, um cineasta da ação, cuja
função básica é narrar através de gestos registrados com clareza. Ele deve ainda ser considerado,
como Alfred Hitchcock, um cineasta do controle, alguém cujo temperamento o torna incapaz de
não propor ao mundo um sistema. Traçar algumas dessas relações nos permite localizar a sua obra
com mais precisão em um quadro histórico.

Carpenter herdou de Veio do espaço (It Came from Outer Space, Jack Arnold, 1953) o modelo da
possessão. A paranoia, estado onipresente em sua filmografia, deriva da identidade apagada ou
substituída, e das ações reduzidas a simulacros. O reino da aparência é o primeiro a ser controlado.
Em consequência disso, o núcleo psicológico é completamente implicado na projeção e
especulação incessantes sobre a intencionalidade. Cronenberg e Romero, dois de seus
contemporâneos, desenvolveram abordagens semelhantes, mas cada um deles estendeu as
preocupações sobre outros aspectos do problema. Diferente de Cronenberg, Carpenter raramente
se interessa pela transformação em si, ou pela agonia corporal envolvida na tomada do controle
(exceção: O enigma de outro mundo); diferente de Romero, não costuma priorizar as causas e
consequências sociais do acúmulo de possessões (exceção: Eles vivem). Sua tendência é à
abstração da caracterização e do contexto, e à descrição límpida do quadro de forças decorrente.
Michael Myers e Christine são as encarnações mais rarefeitas dessa abordagem, mas há toda uma
gama de cifras dispersas em sua obra, desde personagens neutralizados ao nível do arquétipo até
a dissolução das particularidades em figuras coletivas.

Em Onde começa o Inferno (Rio Bravo, Howard Hawks, 1959), Carpenter encontrou o modelo
que lhe permitiu explorar a dimensão cênica. O esqueleto narrativo de Hawks é apenas um dos
aspectos tomados como ponto de partida; a moral do western e a divisão de funções sobre o
conjunto de atores também reverberam continuamente em seus filmes. Mas já em Assalto à 13.ª
DP o caráter hawksiano é atacado: tendo sido depurado, é logo atravessado por uma sensibilidade
rítmica e geométrica que não possui equivalente no cinema de Hawks. Não há em Hawks o mesmo
apreço pela mobilidade da câmera e pela independência da montagem. De modo condizente com
este desvio, Carpenter adota o CinemaScope, tornando-se um dos primeiros cineastas a possuir já
no início da carreira uma certeza sobre a razão e o alcance do formato (no mesmo período, o outro
caso é o de Michael Cimino). É por esta via que pode ser compreendida sua preferência por
espaços geometricamente simples, onde o propósito das ações parece apenas seguir uma topologia
que as precede. Se a obsessão pela violência de personagens sitiados o liga a alguém como Sam
Peckinpah (Sob o domínio do medo [Straw Dogs, 1971]), sua concepção espacial é um misto de
Fritz Lang (sobretudo na fase final) e Stanley Kubrick (O iluminado [The Shining, 1980]), com
ênfase em diagonais e perspectivas. Não basta que uma cidade exista: ela deve ser diagramática
como Haddonfield, ou filtrada pelas convenções do isolamento como Antonio Bay. Não basta que
a história aconteça num bairro: ele deve ser livrado de todas as excrescências da cidade ao redor,
seja por uma distopia, como as cidades invadidas por Snake Plissken, ou pelo abandono, como o
13.º distrito. Não basta que haja uma comunidade de cientistas, soldados ou mercenários: eles
devem ser dispostos num terreno típico, um deserto, uma estação de pesquisa ou uma igreja.
Ainda que permaneça a concretude da ação, é necessário que também o espaço seja abstraído, que
sua realidade seja posta na tela como sob um raio letal de radiação.

Um corpo que cai (Vertigo, Alfred Hitchcock, 1958) é o mais próximo de um modelo para a
alucinação carpenteriana. O interesse de Carpenter por Hitchcock é amplamente reconhecido; mas
ainda que Janela indiscreta (Rear Window, 1954), Psicose (Psycho, 1960) e Os pássaros (The
Birds, 1963) sejam importantes em sua formação, é a arquitetura psicológica de Um corpo que
cai, e a reflexão que ela impõe ao filme como objeto, que Carpenter desenvolve em algumas de
suas obras. Hitchcock elabora em Um corpo que cai algo como um experimento, a demonstração
de problemas relativos à percepção de um universo narrativo através das próprias regras deste
universo; Carpenter realiza um feito análogo, afinando seus procedimentos composicionais de tal
maneira que as decisões e os obstáculos encontrados pelos personagens têm quase sempre um
reflexo na textura e estrutura dos filmes (À beira da loucura é o filme quintessencial neste
sentido). Se Hitchcock parecia buscar, em seu período mais fértil, a solução para uma série de
problemas relativos à tradição da história de detetive, Carpenter encara alguns de seus filmes
como verdadeiras sínteses formais do que antes não havia sido mais que um aglomerado de
convenções do terror, do western e da ficção científica. À inclinação hitchcockiana, Carpenter
segue ainda com duas bifurcações. Uma delas se origina na ficção científica dos anos 1950 e é
representada mais diretamente por autores como Rod Serling (The Twilight Zone) e Nigel Kneale
(da série Quatermass), de quem ele herda o gosto pelo paradoxo e pela incompletude. A outra,
posterior, é representada por nomes como William Friedkin (O exorcista [The Exorcist, 1973]) e
Roman Polanski (Repulsa ao sexo [Repulsion, 1965]), os extremos da alucinação paranoica e
claustrofóbica. Em todos os casos é posta em xeque a concepção da realidade através de uma
ordem narrativa.
A mudança que se iniciou com a geração de Carpenter transformou os antigos gêneros a ponto de
torná-los reconhecíveis apenas por suas características mais superficiais. A distância em relação
ao período clássico é intransponível. Suas preferências estilísticas o aproximam de nomes como
Sergio Leone e Dario Argento, para quem a narração opera como uma composição musical,
organizada conscientemente ao redor de padrões rítmicos e motivos visuais. Uma consequência
dessa mudança é o reforço do aspecto combinatório inerente nos gêneros, e o isolamento de suas
raízes sociais – algo que pareceria impossível a um John Ford. Nessa vertente, o alcance
do western ou do terror não possui a mesma relação com o posicionamento histórico do cineasta,
e essa é uma questão de importância crucial para a compreensão do trabalho de Carpenter. O
gênero torna-se uma espécie de foco criativo, uma disciplina na qual se pode observar o
movimento das emoções em torno de temas específicos. Não se deve, neste caso, esperar que o
cineasta capture experiências na sociedade e narre-as no cinema, mas sim que transforme sua
imaginação num laboratório e adquira ali sua experiência, sob alta pressão e observação rigorosa.
O paradigma é intertextual – uma razão pela qual certos filmes parecem surgir não do mundo,
mas do próprio cinema. O cinema fornece as convenções, e as convenções suprem as categorias
e formas nas quais as emoções são despejadas. A convenção não trabalha contra a emoção, mas
a libera.

O western é um conjunto de temas que ganham vida através de um recorte histórico e geográfico.
Como uma luz que revela parte do espectro das formas cinematográficas, a existência
do western concentra a realidade e faz com que apenas certos elementos – personagens, conflitos,
paisagens – sejam permitidos sobre a tela. Mas uma vez que o mito da fronteira selvagem ou o
tema da comunidade isolada surgem no universo cinematográfico, podem ser deslocados para
outra região do espectro, como na transposição de uma tonalidade. Esta é uma operação essencial
no cinema de Carpenter, e que precisou esperar décadas para que os gêneros atingissem uma certa
maturidade. A possessão tem origem no terror ou na ficção científica, mas é desviada e
transfigurada com frequência, aplicada em outros contextos a ponto de ser evidenciada e
contemplada em si mesma, como uma figura multifacetada. O deserto é o espaço quintessencial
do western, mas o caráter desértico é algo a ser aplicado no terror ou na ficção científica: o deserto
pode ser o lar de vampiros ou fantasmas, pode ser congelado ou coberto por uma atmosfera tóxica.
Policiais e lutadores são intercambiáveis, como o são uma delegacia e uma fortaleza. A
representação da dominação espacial é melhor compreendida pela comparação com outras
representações do mesmo tema, e não com seus equivalentes históricos. O sentido não é derivado
externamente, mas de sua posição em uma mitologia particular, no jogo de permutações do
conjunto da obra. Esse cruzamento dos elementos não suprime suas origens: coloca-os sob o
domínio de outro campo. Se o uso ocasional e superficial das convenções resulta na esterilidade,
o uso sistemático e a imersão no aspecto combinatório fazem com que o cineasta incorpore de tal
maneira a lógica subjacente que ele se torna uma extensão do espectro de possibilidades, de modo
que, de certa forma, é o cinema que fala através dele. A força dessa estratégia reside então nas
ligações traçadas com todo um complexo de ideias fílmicas. Se detalhes históricos fazem parte da
encenação, sua presença não é devido ao discurso histórico, mas a outros fatores. O cineasta de
gênero, neste caso, se atém aos pontos de contato entre sua arte e seu contexto social como um
observador ancestral deveria se ater às estrelas. Constelações não existem como um dado natural;
são, antes, construções imaginativas. Quando estrelas são agrupadas para simbolizar um leão ou
uma balança, o conjunto resultante é algo como a mecânica celeste da imaginação, os nomes e as
figuras que o espírito humano dá a si mesmo quando encara suas potencialidades e aspirações.

Se o mundo real fosse contíguo ao mundo representado na obra, a narrativa daria à realidade uma
aparência de razoabilidade e finitude redutivas; mas enquanto a narrativa não é posta à prova, sua
verdade permanece apenas a lei de um mundo estruturalmente possível. Nesse sentido, existe na
origem mesma de toda construção narrativa um jogo de hipóteses e conjecturas, e toda obra de
gênero representa uma forma de especulação altamente concentrada. Não deve surpreender que
Carpenter se dedique sistematicamente aos gêneros que mais transfiguram a realidade, ou que
estabelecem com mais clareza as regras do jogo composicional. A ênfase desse aspecto faz com
que a importância do cineasta seja proporcional, não à significação literal e histórica de seu
discurso, mas ao valor figurativo e estrutural de seus modelos. É válido aqui o argumento
aristotélico de que a poesia é mais filosófica que a história porque descreve não “o que aconteceu”,
e sim “o que acontece”, isto é, o que é passível de acontecimento segundo uma escala de
probabilidade. Pode-se sugerir leis válidas para o futuro, ou para um futuro possível; pode-se
representar o passado, ou versões contrafactuais do passado; em todo caso, a narrativa não
funciona por estímulo, mas pela revelação, prevenção e preparação do olhar para horizontes não
menos reais do que aqueles sugeridos pela análise do presente. Um conhecimento propriamente
imaginativo está no cerne dessa habilidade de Carpenter de assimilar diversos aspectos da
realidade e de representá-los no cinema. Este conhecimento, que muitas vezes sugere uma
dimensão profética, não decorre apenas de uma crítica social aguda, mas principalmente da
compreensão do papel das formas, dos gêneros e das convenções como extensões de uma arte que
nasce da realidade e a ela retorna, mas que neste processo funda uma realidade paralela,
semelhante aos sentidos, mas diferente quanto ao propósito e ao funcionamento interno. Neste
cinema, para ser verdadeiro, não basta ser realista: é preciso ser cinematográfico.

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