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CONSCIÊNCIAS’05

OS 40 ANOS DA REVISTA INSÓLITO


COLÓQUIO “OS 40 ANOS DA REVISTA INSÓLITO”

CONSCIÊNCIAS’05
OS 40 ANOS DA REVISTA INSÓLITO

PORTO 2016
FICHA TÉCNICA

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CONSCIÊNCIAS’05 - OS 40 ANOS DA REVISTA INSÓLITO


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universiDaDe FernanDo pessoa • CARLOS FERNANDES DA SILVA, Doutor
em psicologia, proFessor cateDrático, universiDaDe De aveiro • CARLOS
FIOLhAIS, Doutor em Física, universiDaDe De coimbra • FRANCISCO CAR-
RApIçO, Doutor em biologia ambiental, FaculDaDe De ciências Da uni-
versiDaDe De lisboa • JOãO pAULO V. b. CAmpOS, Doutor em biomecânica,
FaculDaDe De Desporto, universiDaDe Do porto • JOSé FERREIRA DA SILVA,
Doutor em Física, universiDaDe Do porto • mANUEL DOmINGOS, Doutor
em neuropsicologia, centro Hospitalar psiquiátrico De lisboa • mÁRIO
SImõES, Doutor em psiquiatra, FaculDaDe De meDicina, universiDaDe De
lisboa • pAULO GALLI mACEDO, Doutor em astroFísica, centro De astro-
Física Da universiDaDe Do porto • TERESA TOLDy, Doutora em teologia,
universiDaDe FernanDo pessoa.

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CONSCIÊNCIAS’05
OS 40 ANOS DA REVISTA INSÓLITO
ínDice

comunicações

013 A fundação do CEAFI


José garriDo

019 Os 40 anos do Insólito


manuel barrote Dias

021 portugal no último quartel do século XX: os herdeiros de Nicolau de Cusa


raul berenguel

027 Ovnilogia: ética e estética


onoFre varela

035 Realismo Fantástico ou Irrealismo Quotidiano?


José soares martins

037 Os “Outros” na icção cientíica portuguesa


álvaro Holstein

053 memórias de uma revista pioneira


José sottomayor

vária

059 Um globo de luz em Coimbra, em 1162


a. e. maia Do amaral

063 A comunicação na interpretação fenomenológica da singularidade


João JerÓnimo macHaDinHa maia

075 A ressurgência do mito


carlos reis
COLÓQUIO

ENTRADA LIVRE
28.NOV.2015
SALÃO NOBRE
UNIVERSIDADE
FERNANDO PESSOA
COmUNICAçõES
issn 1645-6566 / consciências ‘05 - 2016 / pp. 13-18

A FUNDAÇÃO DO CEAFI
JOSÉ GARRIDO1

Ao caminharmos a passos largos para a 2ª década do século XXI, constatamos que as ge-
rações nascidas no período que decorreu entre a II Guerra Mundial e os anos 70 do século
passado, tiveram um papel charneira no contributo para o salto quântico do conhecimen-
to, do desenvolvimento tecnológico e da espiritualidade, que muitos de nós actualmente
usufrui e professa.

Rebelando-se contra um passado assente em pilares cimentados por conceitos fossilizados,


que pouco ou nada contribuíram para a nossa evolução cultural e intelectual, estas gerações
inconformistas, despertaram a consciência de muitos milhões de seres humanos ávidos de
conhecimento que, osmoticamente, assimilaram uma nova forma de pensar e de agir.

Sendo grupos de pessoas, irrequietas mas salutares, com uma criatividade alicerçada em
brincadeiras de rua, participando sistematicamente em discussões com familiares e ami-
gos, interrogando e contestando arquétipos que lhes pareciam sem nexo e que lhes eram
obrigatoriamente ministrados, aliados ao proveito obtido com a implementação da mas-
siicação de viagens para diversos locais do planeta, absorvendo experiencias no contacto
com a pluralidade de povos que nele habitam, abriram caminho a novas perspectivas de
futuro, essenciais ao desenvolvimento de novos conceitos, motivos mais do que suicien-
tes, para uma visão diferente do mundo, associando-a ao desenvolvimento intelectual, a
conceitos tecnológicos inovadores e a uma evolução da consciência e da espiritualidade.

1 Fundador do CEAFI
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Ao invés da actual geração-obesa do deus dinheiro, foi o resultado dessa irreverência que
levou-nos, por exemplo, à criação do transístor; ao evento da descida do homem na Lua;
ao despertar da consciência de quem somos; a interrogarmo-nos sobre quais as nossas
origens como seres racionais, e qual o caminho que pretendemos que seja percorrido pela
humanidade no futuro.

E foi este contexto, estando reunidas um conjunto de premissas necessárias e suicientes,


que motivou a fundação do CEAFI por um grupo restrito de 6 jovens portugueses irreve-
rentes, cujos objectivos eram bem precisos: a investigação das nossas origens como espé-
cie; o estudo do universo que nos rodeia; e a perspectiva de termos sido ou de virmos a ser
colonizados por entidades exógenas ao planeta Terra, consciencializando simultaneamen-
te as pessoas que algo mais existe, para além do universo tridimensional que nos rodeia e
com o qual interagimos diariamente.

FIGURA 01

Apesar da constatação de uma sistemática censura ou desprezo assentes em conceitos


pré-formatados que controlavam e porventura ainda controlam a comunicação social,
quer pelo próprio sistema político então vigente, quer por agentes directos da ciência dita
“oicial”, que na sua exagerada prudência tudo negavam e ainda negam, apresentando
conclusões, muitas vezes coerentes e válidas mas que em outras ocasiões, eram e mantêm-
se inconcebivelmente disparatadas, ignorando um manancial de evidências.

Foram estas as razões que levaram à criação do CEAFI.

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FIGURA 02

A decisão da fundação a partir de 1 de Janeiro de 1973 resultou de várias reuniões efectua-


das no ano anterior, num período da história de Portugal em que era muito difícil, quase
impossível, a interacção de grupos e de pessoas, mesmo que os objectivos fossem altruís-
ticos ou de cariz meramente cientíico ou paracientíico.

FIGURA 03

Apesar disso, e laborando numa quase numa semiclandestinidade, o CEAFI foi-se ediican-
do, impondo-se lentamente, acabando por dar-se a conhecer na imprensa e televisão.

FIGURA 04

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Na ausência de sede própria, convém relembrar que foi no sótão da casa de um dos funda-
dores, em Rio Tinto, que os elementos do CEAFI se reuniam e faziam observações astronó-
micas. E não raras vezes, por suspeição de práticas de “actos subversivos” ou por denúncia,
este local foi “visitado” por agentes da PIDE / DGS.

FIGURA 05

O número crescente do registo de observações de fenómenos atmosféricos observados


em Portugal, presumivelmente não identiicados, apoiados por alguns documentos foto-
gráicos, assim como o crescente entusiasmo sobre os objectivos a que o CEAFI se tinha
proposto, determinou a sua expansão com a entrada valiosa de novos elementos.

FIGURA 06

Num crescendo rápido, o agrupamento viu-se na necessidade de proceder à organização


de colóquios e de conferências, com apresentações de temas diversiicados, porque assim
o publico o exigia.

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FIGURA 06

Foi um marco importante na história de Portugal, o primeiro desses colóquios que teve lu-
gar em Novembro de 1974, no Liceu Nacional de Alexandre Herculano, no Porto, precursor
de todos os que se seguiram até à presente data.

FIGURA 07

E é notável o facto de, já nesse colóquio realizado em 1974, o CEAFI foi a primeira organi-
zação, a nível mundial, a aventar a hipótese de que o satélite do planeta Júpiter, Europa,
poderia albergar vida extraterrestre.

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FIGURA 08

Porque assim o público o exigia, mais um passo foi dado em 1975, com a publicação em
Junho desse ano, do primeiro número do órgão oicial de informação do CEAFI, a revista
INSÓLITO que abordava temas subordinados aos objectivos para que tinha sido criado o
Centro de Estudos Astronómicos e de Fenómenos Insólitos.

FIGURA 09

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issn 1645-6566 / consciências ‘05 - 2016 / pp. 19-20

OS 40 ANOS DO INSÓLITO
MANUEL BARROTE DIAS1

Foram muitas as razões que levaram aqueles jovens (nós) a criar o CEAFI em plena pe-
numbra marcelista. Claro que foi, sem dúvida, essa penumbra que sucedeu à escuridão
salazarista, que permitiu alavancar veleidades atá aí submersas e mantidas inertes, mas
também a nossa irreverência, o nosso inconformismo, e, sem dúvida alguma, a forma como
olhávamos o que e quem nos rodeava foi a pedra de toque nessa aventura.

Para além de uma ânsia enorme de saber e procurar explicações que o conformismo esta-
belecido não era capaz, ou não queria dar, também fomos movidos por uma necessidade
de partilhar de fornecer aquilo que íamos descobrindo, colocando-o ao alcance de todos
os que, sentíamos nós, tinham uma igual necessidade de uma explicação franca, olhos nos
olhos e não a camada de poeira que sistematicamente teimavam em atirar-nos.

Importa dizer, também, que naquela época as motivações ou os motivos de diversão e de


distração da juventude não eram tão diversiicadas como são hoje. A internet, os smart-
fones, as consolas de jogos, a televisão por cabo, não faziam parte do panorama de dis-
ponibilidades ao alcance dos jovens e, por isso, todos nós nos empenhávamos com mais
concentração nos objectivos a que nos propúnhamos.

Temos noção de que fomos pioneiros militantes pois sem os meios que hoje existem a
nossa tarefa era construída à custa dos nossos esforços. Sem editores de texto criámos
relatórios e inquéritos de observação, catálogo de tipos de OVNI’s e tudo com uma simples
máquina de escrever e o primeiro número do INSÓLITO, totalmente editado por nós com
auxílio de um duplicador a Stencil da marca “Gestetner”! As nossas palestras, conferências,
colóquios, encontros por todo o país, e reuniões internacionais, tudo isto foi desenvolvi-
do com um perfeito espírito de missão em que, para além de pretendermos possuir um
melhor conhecimento do Universo, desmistiicar e divulgar eram, sem dúvida nenhuma,
pontos inalienáveis dos nossos objectivos.

Claro que o INSÓLITO foi um marco importante para o CEAFI, e para os jovens que o com-
punham, veriicando-se que o número de jovens que se interessavam pela temática ia au-
mentando, engrossando as ileiras do agrupamento. Simultaneamente, com a entrada de
sangue novo, os iniciadores começaram a ter outras responsabilidades, sociais, laborais, fa-
miliares, etc. que começaram a criar alguns constrangimentos importantes e limitadores da
sua atividade no grupo e o tempo de que podiam dispor para apoiar tão directamente as

1 Membro fundador do CEAFI

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iniciativas fundamentais para a sua atividade. Assim, o alheamento de alguns elementos foi
evidente o que levou a que os mais aptos, ou melhor aqueles cuja actividade lhes permitia
continuaram paulatinamente na senda do estudo e divulgação da fenomenologia iniciada
por nós, a formar novos grupos, novas publicações. Muito mais ações foram entretanto de-
senvolvidas, quer graças ao número e entusiasmo dos que de novo se juntaram, bem como
todas as ferramentas a que entretanto puderam recorrer, uma das quais indubitavelmente
a internet, que permitiu a globalização da informação e a rapidez com que se pode trocar
informações quase permitindo o contacto imediato no caso de avistamentos.

40 anos de INSÓLITO é sem dúvida uma distância (temporal) relativamente curta, mas
uma diferença abismal no que toca a conceitos, tecnologias, ferramentas e comunicação.
À época, foi necessário e urgente fazer alguma coisa para parar e até inverter as tendên-
cias estabelecidas. Foi imperioso criar uma consciencialização geral, já que eramos todos
responsáveis na construção de uma sociedade mais justa, humana, fraterna, solidária e exi-
gente na procura do conhecimento que nos era sistematicamente sonegado. Acordamos
na altura pois a situação era urgentíssima e já estávamos demasiado atrasados!

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issn 1645-6566 / consciências ‘05 - 2016 / pp. 21-26

PORTUGAL NO ÚLTIMO QUARTEL


DO SÉCULO XX: OS HERDEIROS DE
NICOLAU DE CUSA
RAUL BERENGUEL1

Nicolau de Cusa, de seu nome Nicolau de Krebs, nasceu em 1401 na localidade de Cues
(Cusa), tendo sido estudante de Direito em Heidelberg e em Pádua, onde se doutorou.
Produziu, entre outras, 3 obras fundamentais: “De Docta Ignorantia”, “De Conjeturis” e “Apo-
logia Doctae Ignorantiae”. Muitos atribuem à primeira o nascimento da ilosoia moderna.
Foi nomeado cardeal em 1448 e bispo de Brixen em 1450. Viria a falecer em Todi em 1464.

É do seu pensamento que, acima dos sentidos, existem dois graus de sapiência a ratio e
o intellectus. O primeiro refere-se à capacidade de abstração das noções particulares na
observação dos conceitos universais e a fundamentação de juízos e raciocínios. O segundo
refere-se à atividade racional superior, que pode ser ter inluência da fé, tendo por objetivo
o UNO. O conceito de base implica na consciência dos limites e da relatividade da ratio,
sendo estes defeitos superados pelo intellectus.

O pensamento cusano é vasto e, em muitos aspetos, precursor das mais avançadas ideias
ilosóicas do nosso tempo. Ao seu pensamento voltaremos mais tarde.

Ao longo dos séculos, surgem sempre pensadores que marcam uma época, e que fazem nas-
cer movimentos dinâmicos, novos e revolucionários. Para o assunto que aqui comentamos, é
obrigatória a menção aos nomes de Louis Pauwels e Jacques Bergier (igura 1), com destaque
para este último. Seria em 1960, com a publicação da obra “O despertar dos Mágicos”, que
atingiria o estatuto de celebridade, e viria a criar o conceito de “Realismo Fantástico”.

FIGURA 01

1 Doutor em História de Arte; investigador-associado do CTEC.

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O livro trouxe para a rua os conceitos das sociedades secretas, dos objetos tecnologica-
mente fora da sua época, da Alquimia (tema muito querido a Bergier) e muitos outros
temas que continuam a suscitar polémica. Curiosamente, e contrariando alguns autores,
Bergier admitia a visita à Terra por parte de seres de outros planetas em épocas muito re-
motas, mas não admitia de todo, a existência dos chamados “OVNIS”. Apenas emprestou
seu nome a uma coletânea de textos entre os quais o assunto era destacado, mas pugnou
sempre pela não realidade do “fenómeno OVNI”.

De qualquer forma, e havendo pioneiros entre nós, como Hugo Rocha, apenas para citar
um, seria a época pós-revolução de Abril, que abriria, na década de 70 do século XX, a porta
à criação de diversos grupos e edição de revistas temáticas sobre o “Realismo Fantástico”.
Ora, é neste enquadramento que viria a nascer a revista “Insólito”, em 1976, e que agora
completa 40 anos da sua fundação.

Tendo por temáticas básicas a “ovnilogia”, a teoria (recuperada) de Daniken dos “deuses
astronautas” e outras temáticas polémicas, nada viria a impedir os prolongamentos dile-
tantes noutras áreas. Porém, a revista “Insólito” não se limitou às temáticas do “Realismo
Fantástico”. Foi muito para além, em assuntos “mais terrenos”. Toda a ciência polémica ou
“de ponta” era transmitida, como notícia ou desenvolvimento, aos seus leitores. O “ensi-
no”, que de “divulgativo” poderá ser apelidado, teve um grande protagonismo, podendo-
se airmar, que perto de 40% do conteúdo editorial era dedicado às ciências de fronteira.
Tudo isto numa época onde toda a ciência mais ousada era “estéril” nas academias.

A penetração da revista, considerando a sua dimensão, era grande e o “apetite” público pela
novidade e pelo maravilhoso atingia foros nunca esperados. Os colóquios assumiam mime-
tismos de congressos, como o realizado na Faculdade de Engenharia da Universidade do Por-
to (igura2, 1975), onde o exíguo (?) espaço levou a que alguns participantes se sentassem no
chão do auditório.

FIGURA 02

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A penetração mais institucional não apresentava qualquer obstáculo, como a palestra efe-
tuada no Ministério da Comunicação Nacional em 1977 (igura 3).

FIGURA 03

Os participantes da associação/revista não se limitavam ao espaço nacional. Os contatos e


parcerias internacionais desenvolviam-se. É exemplo o encontro de 1978 em Tours (igura 4).

FIGURA 04

A par destas atividades, não se descuravam as investigações em território nacional,


tendo sido este, alvo de múltiplas atividades de recolha e estudo de casos locais. Nesta
época inicia-se uma proximidade interessante entre a Academia e o estudo de assuntos
pouco ortodoxos, com a participação consultiva de importantes iguras académicas e
uma desinteressada colaboração, que mesmo com os poucos meios laboratoriais das
universidades de então, chegavam até ao coniado empréstimo de equipamentos ca-
ros, como sucedeu nas investigações sobre radioatividade residual em Tomar, no ano de
1978 (igura 5). Tratava-se de uma mentalidade muito distante da visão excessivamente
economicista prevalente na investigação cientíica atual.

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FIGURA 05

Todos estes esforços diletantes deram frutos, resultando em pioneirismos, tais como a
construção de magnetómetros (igura 6) ou a veriicação da variação do magnésio e do
cálcio nas amostras do solo na proximidade dos fenómenos testemunhados (igura 7).

FIGURA 06 FIGURA 07

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Relendo as várias edições do “Insólito” pudemos recolher, dentre muitos outros, os seguin-
tes títulos:
– “Da Teoria do Campo… à antigravitação”
– “Universos Paralelos”
– “As actas do XXVI Congresso Internacional de Astronáutica”
– “A Astrofísica”
– “Experiências biológicas no Cosmos: a Humanidade à espera de respostas”
– “Marte: que vida, que sinais?”
– “As probabilidades de um ‘contacto’”
– “Observação nocturna e isiologia da visão”
– “Ovnis, alucinações e ilusões sensoriais”
– “As origens da Alquimia”
– “O Homem e a Cibernética”
– “O Budismo tibetano”
– “Filosoia Oriental, Filosoia Universal”
– “Fenómenos insólitos no século XVIII”
– “A actualidade de Giordano Bruno”

Assim se observa o cosmopolitismo que transpirava da publicação, acompanhando um gran-


de movimento de curiosidade pelo maravilhoso, pelo misterioso e pelo novo, mas que incluía
em si, o interesse pelas questões da moderna ciência física e de outras áreas como as huma-
nidades ou mesmo a isiologia.

Com saudade vimos e recordamos aqueles que já não se encontram entre nós:
– Álvaro Curado e Melo
– Emanuel Gines de Souza Lopes
– Fina d’Armada

Observando o percurso da revista “Insólito”, a 40 anos de distância, sentimos que existe um


pensamento cusano por trás de cada página impressa. Voltando a Nicolau de Cusa, recor-
damos que os seus “diálogos” visam a libertação do pensamento dos esquemas doutriná-
rios ortodoxos. Reparemos que quatro diálogos reunidos sob o título “O Idiota”, apresentam
um homem simples que levanta questões. Em particular num deles, o “De Mente”, somos
levados a meditar sobre as fronteiras da razão e da mente, sendo indicado que a mente,
mens em latim, surge como derivação de “medir” (mensurare). Assim, a Razão deve medir e
nomear as coisas, embora de forma limitada, não alcançando a real e ininita profundidade
da existência. Diria Nicolau: “Quem pensa que sabe, realmente sabe menos do que aquele que
sabe que ignora”. E, num de seus últimos diálogos, o “De Venatione Sapientiae”, escreveria:
“Um apetite que pertence à nossa natureza nos impele não só em direção à Ciência, mas tam-
bém em direção à Sapiência, que é uma ciência que possui sabor”.

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O registo que icou lavrado nas páginas da publicação pela mão de Joaquim Fernandes,
concentra o espírito cusano de todos os colaboradores: “Alargar as fronteiras da nossa in-
quietação”

Creio que alargamos as fronteiras das nossas inquietações com a revista “Insólito”. A tal
ponto que ainda continuamos inquietos.

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issn 1645-6566 / consciências ‘05 - 2016 / pp. 27-34

OVNILOGIA: ÉTICA E ESTÉTICA


ONOFRE VARELA1

No inal da década de 1970, o ilme Encontros Imediatos do Terceiro Grau, realizado por Ste-
ven Spielberg (ilme que vi em Março de 1978 no Cinema Trindade, Porto) converteu-se no
maior êxito de bilheteira do país... quiçá do mundo... e não apenas por ser um bom espec-
táculo cinematográico com trucagens de uma fantástica beleza, mas também, ou princi-
palmente, porque abria caminho à nossa imaginação e à nossa esperança. Se calhar, até...
aos nossos medos... (mas também ao nosso eterno combate à solidão por não querermos
estar sós no universo) e, provavelmente, também, à nossa coragem por desejarmos um en-
contro real com seres alienígenas, convictos de que, deles, só teremos a receber benefícios,
pois se criaram uma técnica que lhes permite cruzar o espaço, terão, necessariamente, de
ser tecnicamente mais evoluídos do que nós, cuja evolução implicaria o mesmo grau de
desenvolvimento na moral e na ética.

E se os princípios químicos e físicos criadores da vida, se repetem noutros pontos do uni-


verso tal como evoluíram aqui, os extraterrestres também serão seres com muitas seme-
lhanças morfológicas connosco. Portanto não serão monstros nem desembarcarão na
Terra animados de intenções bélicas, como em outros ilmes de icção cientíica nos foram
apresentados como invasores, colonizadores, perseguidores e destruidores.

Na verdade, estas maldades izemos-las nós próprios, como a História regista, quando inva-
dimos territórios americanos, africanos e asiáticos. A maldade é nossa e espelhámos-la nos
alienígenas da nossa imaginação, que desenhamos fortemente bélicos, à nossa semelhan-
ça. O mesmo izemos com Deus, que criamos à nossa imagem e semelhança, e dizemos
que foi ele que nos criou à sua imagem e semelhança!... O que quer dizer que para além de
sermos maldosos, também somos vaidosos e arrogantes, ao ponto de criarmos um deus
perfeito que só pode ser cópia de nós!

Somos constantemente perseguidos pelo nosso ancestral medo colectivo aos mons-
tros, quer vivam eles nas selvas reais, quer venham das mitologias (da grega e de ou-
tras), quer sejam inventados pelos nossos navegantes ou sejam alienígenas vindos dos
conins do espaço.

Esse nosso medo icou bem expresso na reacção que os norte-americanos tiveram no dia
30 de Outubro de 1938 (fez 77 anos há cerca de um mês), quando Orson Welles, cineasta e
actor, anunciou aos microfones da rádio que Nova Jersey fora invadida por marcianos ater-

1 Designer gráico e ilustrador

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radores. Antes que o radialista tivesse tempo de informar que o programa fazia publicidade
ao romance de icção cientíica A Guerra dos Mundos, de outro Wells, Herbert George Wells
(sem E entre o L e o S, e com H em Herbert), semeou-se o pânico entre quem escutava rádio.

E pior ainda... o pânico propagou-se a quem não tendo escutado o programa radiofónico,
acreditou na versão contada por alguém que ouviu, e que era imensamente mais horrível,
porque “quem conta um conto acrescenta-lhe um ponto”. Um medo aterrador alastrou-se a
32 milhões de pessoas, convictas de que a América estava a ser invadida por monstros do
espaço, e deu-se a fuga espavorida.

Este medo que agitou a América não aconteceu por acaso. Aliás, não há medo algum que
se instale por acaso. O medo da guerra e dos seus maléicos resultados estava latente na
população americana (e europeia) desde o conlito global que foi a primeira guerra mun-
dial (1914-1918), na qual os soldados americanos entraram em 1917. No inal da guerra
contaram-se 10 milhões de mortos, e na década de 1930 vivia-se uma paz podre. As várias
facções do conlito de há cerca de duas décadas continuavam a ser uma ameaça.

Havia crise económica, tensão política e social em várias partes do globo, regimes totali-
tários, ideologias expansionistas, imperialismos, guerra fria entre URSS e EUA, corrida ao
armamento... tudo isto, mais a ideia de um domínio mundial por uma potência imperia-
lista hegemónica, acabou por conduzir à Segunda Grande Guerra em 1939, terminando
em 1945.

A Guerra dos Mundos, de Orson Welles, antecede este segundo conlito mundial em um
ano. E a reacção espontânea de medo e fuga pode, a meu ver, ser ligada à predisposição
das pessoas com má memória da guerra e alarmadas com a eventualidade de se conirmar
um segundo conlito e, desta vez, cósmico!... 

Provavelmente estará aqui a razão para que a transmissão radiofónica de Orson Welles ti-
vesse causado tanto pavor, a um nível que nenhum ilme de terror ou de antecipação cien-
tíica terá conseguido suscitar.

Como disse Jacques Siclier, em Cinema e Ficção Cientíica (lembrado por Lauro António na
revista Opção nº 101, de 30 de Março de 1978):

“Essa emissão de icção cientíica agitou a América, e durante 24 horas milhares de ameri-
canos julgaram, realmente, ter visto os marcianos. Outros, imaginaram-se ameaçados por
um desembarque inesperado das hostes nazis, do exército vermelho, ou, até, dos chineses
ou japoneses! De facto todos os perigos que então pairavam sobre o mundo, e de que a
América tinha tanta consciência como a Europa (se bem que estivesse menos directamen-
te ameaçada) haviam tomado forma durante aquela noite de pânico provocada pelo en-
fant-terrible que era Orson Wells. Os marcianos tinham assumido, simbolicamente, o papel
de agressores”.

28 | consciências ‘05
Embora este temor estivesse instalado na cabeça dos frágeis seres humanos, com o correr
do tempo o medo aos extraterrestres foi-se convertendo na curiosidade de um encontro
positivo com seres alienígenas, sem belicismos nem horrores, e foi tomando conta das nos-
sas consciências. Ideia, até, muito bem aceite, talvez porque, provavelmente, aquilo que
inconscientemente, nós queremos... é salvarmos-nos de nós próprios.

Para o abandono da ideia catastroista da invasão de seres do espaço, terá contribuído,


muito provavelmente, o cientista Carl Sagan com a sua divulgação cientíica serena e sem
dramas, que nos aponta soluções racionais e caminhos de encontro pacíico com prováveis
extraterrestres. Mas também Eric Von Daniken, com as suas investigações e suposições, e
a colocação de hipóteses paralelas à Ciência (de Daniken tornarei a falar mais à frente), e
essas vontades e propostas pacíicas vieram a tomar conta das esperanças de muita gente,
mormente na juventude da década de 1970.

Aqui chegados, e já sem medo da invasão dos extraterrestres-piratas, lembremos que após
a Segunda Guerra Mundial houve várias vagas de observação de Discos Voadores (termo
que, no inal da década de 1960, veio a ser substituído pela sigla OVNI - Objecto Voador
Não Identiicado).

Essas observações iniciaram-se na década de 1940 com o célebre testemunho de um ho-


mem de negócios e desportista norte-americano Kenneth Arnold, que, pilotando o seu
avião particular no dia 24 de Junho de 1947 avistou um grupo de nove engenhos com
forma de disco atravessando o céu a uma velocidade surpreendente, estimada em 2.000
Km/h. (Por acaso foi nos EUA, se fosse em Portugal, esta observação passava por balões de
S.João!...)

Com este caso, os Discos Voadores iniciavam um novo ciclo de aparições tão frequentes
que inquietaram a consciência dos observadores. Aquela suposta invasão de marcianos de
H. G. Wells, transmitida na rádio por Orson Welles, ainda não se tinha esbatido totalmente
no consciente colectivo, quando, uma década depois, uma onda de “naves espaciais” se
abate sobre os céus da América, testemunhada por Desmond Leslie e George Adamsky.

Mais uma vez os fantasmas da guerra vieram à tona. As fortes marcas deixadas pela Se-
gunda Guerra Mundial obrigavam a perguntar se aqueles engenhos voadores não seriam
de fabrico russo? E as questões então colocadas: “De onde vêm os Discos Voadores?”, “Que
querem de nós?”... não tinham resposta.

O terror anti-soviético dominava o pensamento americano, e, mais uma vez, a indústria


cinematográica transportou todos esses medos latentes para a invasão da Terra por seres
extraterrestres.

consciências ‘05 | 29
Em 1951 Edgar Ulmer realizou o ilme O Homem do Planeta X, contando a história de um
desconhecido que chega a uma vila norte-americana e prepara os habitantes para a inva-
são de seres espaciais que chegariam em breve.

Entre o terror atómico e a ameaça latente do comunismo, a América inquietava-se, e os


Discos Voadores faziam parte dessa inquietação.

George Adamsky tornava-se numa igura nacional. Deu conferências, fez viagens e foi re-
cebido pela rainha da Suécia. Nas suas saídas frequentes para uma zona de montanha,
invariavelmente fazia fotograias de discos voadores e, uma vez, fotografou um astronauta
“venusiano”. Garantiu ter entrado numa nave e ter feito uma viagem espacial. Viu a Lua,
descortinou cidades na sua superfície e enxergou os seus habitantes, os selenitas!

Sabendo nós que nem a Lua nem Vénus são planetas habitados, interrogamos-nos se Geor-
ge Adamsky mentiu, ou se se enganou na descrição da viagem que fez e baralhou os iti-
nerários!

Por outro lado, 20 anos depois das suas alegadas experiências, um cidadão inglês depa-
rou-se com a parte superior de um aquecedor a gás descoberto na arrecadação dos avós,
que tinha, exactamente, a forma do Disco Voador fotografado por Adamsky, e no qual em-
preendeu a sua surpreendente viagem astral!...

Quanto à hipótese de, em tempos remotos, termos sido visitados por seres de outros mun-
dos... é sempre uma hipótese a considerar. Porém, há quem vá mais longe e transforma a
hipótese em realidade. Foi o que fez o escritor suíço Eric Von Daniken, autor do livro Eram
os Deuses Astronautas?.

Em entrevista a uma revista alemã, perguntado sobre a intenção da visita dos extraterres-
tres, Daniken respondeu:

“Se eu me apercebesse que num carreiro de formigas havia insectos com inteligência que
queriam entrar em contacto comigo, que interesse tinha eu em pisar o carreiro e destruí
-las? O mais lógico seria esforçar-me para as entender e estabelecer uma troca de ideias.
O mesmo sentirá uma inteligência superior que nos visite... dominando uma técnica igual-
mente superior que lhe permite cruzar longas distâncias no espaço, esse astronauta terá de
ser, também, eticamente superior”.

Partilho desta premissa de Daniken, embora a sua personalidade não me agrade total-
mente, já que faz algumas airmações fáceis, sem grande rigor cientíico. E o seu passado
semeado de casos de intas ao isco e de expedientes económicos que o conduziram à
cadeia, não é o melhor cartão de recomendação para a sua credibilidade.

30 | consciências ‘05
Depois daquele programa de rádio de Orson Welles, parece que as populações passaram
a estar mais atentas à observação do céu, e talvez por isso foram referenciados casos de
Discos Voadores com muita frequência.

O fenómeno globalizou-se e rapidamente os Discos Voadores alimentaram a indústria da co-


municação.

Já na década de 1970 era raro o dia em que a imprensa não noticiasse observações OVNI
em algum ponto do planeta, a maioria das vezes sob a forma de globos de luz intensa, e
alguns casos referiam, até, observações próximas de estranhas naves pousadas no solo
que levantavam voo silenciosamente ou emitindo silvos agudos, para de imediato ga-
nharem velocidade vertiginosa e desaparecerem no espaço.

O fenómeno OVNI globalizou-se e prendeu o interesse de imensa gente, mormente a ju-


ventude, sempre ansiosa por saber, ávida pelo enigma, pelo misterioso, e sempre atraída
pelo desconhecido.

Em consequência deste interesse não havia cidade e escola que não tivesse o seu grupo de
investigação de Ovnilogia, termo rapidamente criado para servir o mercado, e que passou
a ocupar grupos associativos e escolares.

Cada grupo produzia o seu boletim informativo, de modo artesanal, sem qualquer rigor
gráico, salvo raras excepções.

Este interesse juvenil rapidamente motivou os editores, sempre atentos a uma oportuni-
dade de negócio, e a juventude interessada no fenómeno OVNI constituía um excelente
segmento de mercado a não descurar.

Não havia semana em que os escaparates dos quiosques não mostrassem novas revistas
que tratavam o tema, nem mês em que as montras das livrarias não expusessem novos
livros sobre o fenómeno OVNI e assuntos correlacionados: As inscrições da planície de Na-
zca, no Peru; o misterioso Triângulo das Bermudas, com o enigmático desaparecimento de
barcos e aviões; os segredos das pirâmides Maias; as profecias egípcias alegadamente de-
tectadas no Vale dos Reis; registos da presença de extraterrestres no Génesis bíblico (note-
se que todos estes temas foram trabalhados e divulgados por Eric Von Daniken); a própria
igura e os feitos de Jesus Cristo, os moais da Ilha de Páscoa... para além de observações de
humanóides em várias partes do mundo...

E airmou-se, até, a existência de vestígios de uma civilização extraterrestre, encontrados


na cave do emblemático arranha-céus de Nova Iorque, Empire State Building!...

consciências ‘05 | 31
Havia literatura para satisfazer todos os gostos.Se alguns autores eram desconhecidos,
também havia textos assinados por gente com crédito airmado, e de várias procedências:
Norte-americanos, ingleses, franceses, alemães, espanhóis e portugueses.

A imprensa generalista dava conta, quase diariamente, da observação de OVNI cruzando


os céus de várias partes do mundo... e em África, recordo que houve um presidente.ditador
de um país (já não recordo qual... mas em África podia ser qualquer um!...), que ao divul-
gar-se a observação de um OVNI sobre o seu país, quis saber quem deu autorização para
o OVNI voar no espaço nacional! É muito provável que tenha mandado prender alguém.

Eu próprio criei no jornal O Primeiro de Janeiro a rubrica OVNIs EXISTEM que mantive sema-
nalmente durante cerca de três anos (de Outubro de 1978 a Julho de 1981, altura em que,
proissionalmente, deixei O Primeiro de Janeiro e me mudei para a Empresa do Jornal de No-
tícias, integrado na equipa do novo jornal Notícias da Tarde), onde comentava observações
OVNI, a qual foi continuada por Fernando Fernandes. Ao mesmo tempo, Joaquim Fernan-
des noticiava e comentava, no Jornal de Notícias, os fenómenos OVNI na sua rubrica 2001.

E em Lisboa, Seomara da Veiga Ferreira e Sanches Bueno eram duas de entre outras perso-
nalidades que escreviam crónicas sobre o tema em jornais e revistas, proferiam palestras
e faziam investigação, organizados no grupo CECOP (Centro de Estudos Cosmológicos e
Parapsicológicos).

Com o correr do tempo, a ideia de contacto de terrestres com extraterrestres perdeu a


agressividade. Largamos o medo às sangrentas invasões galácticas (os sanguinários são
gente igual a nós, estão ao nosso lado sem os reconhecermos, e o perigo ameaça-nos em
nossa própria casa, dispensando tenebrosos alienígenas), e maioritariamente estamos
mais permeáveis à ideia da fraternidade entre mundos e entre civilizações (apesar da brutal
realidade que o mundo nos mostra dia-a-dia!...).

É essa a ideia exposta por Steven Spielberg no ilme Encontros Imediatos do Terceiro Grau,
que veio assinalar uma nova etapa na história dos extraterrestres no cinema. O contacto
que no ilme é estabelecido entre eles e nós, não foi provocado por nós próprios, mas sim
induzido por eles. São os extraterrestres, despidos de todas as intenções bélicas e coloniza-
doras, que sinalizam o caminho a percorrer, que escolhem os eleitos, que referem o local do
encontro e, inalmente, estendem os braços (eles e nós), não empunhando armas, mas em
fraterna comunhão na procura de uma linguagem que permita um mútuo conhecimento
num fraternal encontro não imposto pelos terrestres.

Ou seja: Não são os extraterrestres que se obrigam a aprender inglês para se entenderem
connosco! No ilme esse entendimento começa por ser telepático e leva os eleitos a per-
ceberem e a contextualizarem o convite ao encontro, o qual, depois, é facilitado por uma
linguagem universal: A música!

32 | consciências ‘05
E é com esta benigna e pacíica ideia dos nossos irmãos cósmicos, que chegamos aos nos-
sos dias... e eu chego ao im desta minha comunicação que, espero, vos tenha agradado.
Muito obrigado por me terem escutado.

FIGURA 1 FIGURA 2

consciências ‘05 | 33
issn 1645-6566 / consciências ‘05 - 2016 / pp. 35-52

REALISMO FANTÁSTICO OU
IRREALISMO QUOTIDIANO?
JOSÉ SOARES MARTINS1

Durkheim sempre falou de normas e desvios. A anomia seria uma ausência ou transgres-
são das normas dominantes, fossem elas sociais, políticas, religiosas, estéticas ou cientíi-
cas. Sherif por sua vez, ao falar da normalização apontou para a negociação e partilha ou
convergência das normas, enquanto quadros de referência determinadores do aceitável
ou reprimível. Asch, também demonstrou que um grupo ou sociedade procura punir o
desviante a im de evitar quebras ou rupturas na coesão grupal, vistas como ameaças aos
objectivos perseguidos pelo grupo. Assim, o controlo social, seria o modo de manter o
status quo e o domínio conformista da maioria sobre as minorias, tidas como desviantes.
Moscovici, por sua vez, mostrou que a inovação é o motor fundamental da sociedade e da
história. Mas essa inovação faz-se paradoxalmente à custa do desvio ou seja das minorias
activas ou nómicas, capazes de engendrar um conlicto com a maioria até à conversão
desta última, caso o Zeitgeist seja favorável. Neste sentido, a história dos homens tem sido
marcada por esta dinâmica moscoviciana: normalização; conformidade; inovação que de
certa forma nos faz lembrar a fórmula hegeliana: tese; antítese; síntese….

Claro que Pitágoras neste sentido foi um desviante ao tentar explicar o mundo e a sua natu-
reza a partir dos números inteiros e Zenão, também, quando desconiou desta solução ao
avançar com o conceito de ininitésimo tão bem ilustrado pelo paradoxo de Aquiles e a Tar-
taruga. Do mesmo modo o cristianismo foi um movimento inovador em relação ao judaís-
mo, mas a igreja católica tornou-se uma iel guardiã da verdade aceite maioritariamente,
surgindo os gnósticos como perigosos desviantes, como desviantes foram os milenaristas
ilhos de Joaquim de Fiore, os astrólogos, as feiticeiras e os refundadores do velho deus pã
quando se julgava este morto e enterrado nas margens do Egeu.

A Inquisição, em nome da norma queimou, cátaros, judeus, templários, Savonarola, Gior-


dano Bruno. Tudo em nome da verdade tornada dogmática e na norma instituída maiori-
tariamente e sustida não com a dinâmica própria da inluência social, mas com a coerção
e o poder despótico.

Durante o longo asilo dos séculos XVII e XVIII, a razão fez-se norma e a loucura foi banida
para as margens da sociedade, enclausurada nos hospícios e prisões. Ser louco signiicava

1 Doutor em Psicologia Social pela Universidade de Santiago de


Compostela. Membro do Conselho Cientíico do CTEC.

consciências ‘05 | 35
transgredir, a norma e isso era assustador, coisa de bestiário. Nesse sentido, os visionários
e loucos que se passeavam outrora pela Grécia e pela Idade Média, como caminhantes ou
navegantes das stultifera navis, foram atirados para as enxovias da desrazão. O que era
olhado como sagrado tornou-se pestilento e maldito.

O romantismo ressuscitou o mito e a irracionalidade e o sonho tornou-se de novo possível


sob a forma de romance, poesia, ilosoia, de música ou pintura. Foi o tempo de Blake, de
Rimbaud, de Baudelaire. Foi o tempo de se pôr os grandes sistemas racionais em causa,
como o de Kant ou Hegel. Foi o tempo de Schopenhauer, de Kierkegaard e Nietszche. O
que abriu caminho a uma reacção do pensamento ocidental no âmbito das ciências e da
ilosoia. O Positivismo lógico de Viena, a Fenomenologia de Husserl e a ilosoia da histó-
ria de Marx. Paralelamente de novo surgiram minorias esotéricas com Kardec, Blavatsky,
Steiner, Gurdjief ou Yeats ao lado de cientistas pouco convencionais como Lobachevsky,
Rieman, Einstein, Plank, Freud e outros.

Será deste caldo que nos anos 60 assistiremos à contracultura de Roszak, Norman Bro-
wn, Alan Watts, Marcuse, Fromm….ao situacionismo e ao realismo fantástico de Pawells e
Bergier. O mistério da vida e do homem de Gabriel Marcel, o “há mais qualquer coisa” de
Charles Hey Fort abrirão caminho à chave enferrujada da Atlântica platónica para procurar
outras dimensões do homem e do universo.

A revista Insólito aparece assim como réplica à Planete francesa e a outras publicações
que vão surgindo por toda a parte, juntamente com os livros de Charroux, de Fulcanelli,
de Sendy, de Hutin ou Sadoul. Depois de abertas as portas da percepção com Huxley e
Timothy Leary. É o tempo de todas as possibilidades desde o niezstchiano Maio de 68 até á
primavera de Praga, passando pelo 25 de Abril…..Parecia que os tempos do Espírito Santo
de Fiore eram possíveis….

Agora em pleno reluxo materialista, em que o que conta é uma visão liberalíssima da
economia e das inanças. Agora em que os merceeiros de Bruxelas nos fazem crer que
Keynes é um perigosos esquerdista desviante e pouco normativo…..vamos aguentado a
austeridade, os migrantes sem solução à vista e os ataques demenciais do islão daeshia-
no. A Europa está em crise, a civilização ocidental está em crise. Será que Marcuse, Orwell
ou Spengler tinham razão? Estaremos nós às portas do ultimo homem nietzschiano? Ou
de um apocalipse irremediável? Talvez a leitura outrora refrescante de Pawells e Bergier
nos aponte direcções inesperadas, embora eu pessoalmente não acredite nisso, nem na
repetição da história, como diria o velho Marx, permanecendo no entanto um desviante
não nihlista até ao im.

36 | consciências ‘05
issn 1645-6566 / consciências ‘05 - 2016 / pp. 33-48

OS OUTROS NA FICÇÃO CIENTÍFICA


PORTUGUESA
ÁLVARO DE SOUSA HOLSTEIN1

COLÓQUIO “OS 40 ANOS DA REVISTA INSÓLITO”, CTEC


UNIVERSIDADE FERNANDO pESSOA, NOV. 2015

1 Escritor e publicista; especialista em literatura de icção cientíica.

consciências ‘05 | 37
Quando falam do “Outro” as associações são quase imediatas e direccionadas para o cine-
ma, a televisão ou a banda desenhada, assumindo especial relevância ilmes como “ET”,
“Encontros Imediatos do 3º Grau”, “Star Wars”, “Man in Black”, “Alien”, “Guerra dos Mundos”,
“Star Trek”, “Stargate”, “Avatar”, “Marte Ataca!” ou “Dune”,

38 | consciências ‘05
séries como “Espaço 1999” já com uma futura série programada “Espaço 2099”, “Babylon
5”ou “Falling Skies”.

Se os “inquiridos” forem fans de icção cientíica as referências são fatalmente outras e se


tiverem mais de quarenta e cinco anos, são distintas de novo. Para estes, ilmes como “A
Viagem à Lua”, “O Dia em que a Terra Parou”, “O Dia das Tríides”, “O Planeta Selvagem”, cul-
minando com “Solaris”, são as escolhas incontornáveis.

Já se a opção incidir numa escolha “mais popular” teremos de optar pelos ilmes com os
assustadores BEM’s (Bug-Eyed Monsters): “Killers from Space”, “Invasion of the Saucer-Men”,
“This Island Earth” e “It came… without warning”,

consciências ‘05 | 39
inicialmente popularizados nos “pulp magazines” como “Astounding Stories”, “Weird Tales”
e “Planet Stories”.

E claro que os outros “monstros”, ainda que menos monstros porque humanóides, como o
já acima referido “O dia em que a Terra parou”, “O Homem do Planeta X” ou “Devil Girl from
Mars”, não poderão icar de fora.

Já na BD é de realçar obras como “Valérian e Laureline” de Mezieres ou “O Incal” e “Arzach”


de Moebius.

40 | consciências ‘05
Na verdade a exuberância e variedade dos Outros é de tal modo apelativa que se com-
preende que sejam estes aqueles que são referidos quando se fala de “extraterrestres”.

Por cá já o Almanaque Bertrand de 1909 nos apresentava os vários tipos de Marcianos.

Mas o mais importante e que está na base de tudo é a literatura. Aqui são de destacar as
obras de:

Philip José Farmer (Os Amantes - A primeira obra que narra sexo entre um terrestre e uma
alienígena),

consciências ‘05 | 41
Robert Silverberg (Majipoor Chronicles – colectânea de contos sobre Majipoor, planeta
muito maior que a Terra onde vivem Humanos, Ghayrogs, Skandars, Vroons, Liimen, Hjorts
e muitas outras raças alienígenas),

Kim Stanley Robinson (Galileo’s Dream - vida alienígena é descoberta por baixo dos gelos
de uma das luas de Júpiter, Europa),

42 | consciências ‘05
Ray Bardbury (Crónicas Marcianas – a colonização de Marte e conlitos com os aborígenes
marcianos),

Frederick Pohl (Gateway – Sobre os Heechee, uma raça de viajantes estelares super avança-
da e que desapareceu milhões de anos antes do aparecimento do Homem,

consciências ‘05 | 43
Frank Herbert (Dune – Impérios Galácticos em conlito e mundos extraterrenos)

e Cliford D. Simak (Estação de Transito – uma gare intergaláctica. Um estudo sobre a soli-
dão).

Já a icção cientíica portuguesa é pouco dada a encontros imediatos e estes surgem sobre-
tudo na literatura, até porque o cinema e a banda desenhada nacionais são particularmen-
te falhos no que respeita à icção cientíica e mais ainda aos “Outros”.

44 | consciências ‘05
Mesmo assim seres alienígenas surgem nas obras “O Construtor de Planetas e outras histó-
rias” e “A Morte da Terra” de Alves Morgado, “Um Homem de Outro Mundo” de Reis Ventura
(passado em Angola), “A lenda” e “O desaio” de João Aniceto, “Três Lágrimas Paralelas” de
Artur Portela, “Mensageiro do Espaço” de Luís de Mesquita, “Universal, limitada” de Isabel
Cristina Pires, “Não lhes faremos a vontade” de Romeu de Melo, “Canopus 98” de Carlos
Moutinho e “Casos de Direito Galáctico. O mundo inquietante de Josela (fragmentos) de
Mário-Henrique Leiria.

consciências ‘05 | 45
Vamos assim falar daqueles que consideramos como os exemplos mais relevantes e sur-
preendentes, ou seja: “Não lhes faremos a vontade” de Romeu de Melo, “Canopus 98” de
Carlos Moutinho e “Casos de Direito Galáctico. O mundo inquietante de Josela (fragmen-
tos)” de Mário-Henrique Leiria.

Ou seja a relexão ilosóica, o surpreendente e a visão humorística.

Romeu de Melo é um autor que surge nos anos 50. Licenciado em Economia, pela UP, foi
o primeiro escritor português que se dedicou, na sua faceta iccionista, em exclusivo à
icção cientíica. O seu primeiro romance “AK – A Tese e o Axioma” foi publicado em 1959,
aqui no Porto.

Carlos Moutinho, um médico apaixonado pelo género, de quem apenas conhecemos uma
obra, mas que é uma peça fundamental da moderna icção cientíica nacional.

Mário-Henrique Leiria que é um dos nomes mais importantes do surrealismo português. Pu-
blicou, para além da obra de que vamos falar: “Contos do Gin-Tonic e “Novos Contos do Gin-
Tonic”, entre outros.

Vamos então começar por falar de “Não lhes Faremos a Vontade”, publicado em 1970, de
Romeu de Melo. Uma colectânea composta por sete contos, acontecendo em quatro deles
o encontro de humanos com seres alienígenas.

Em “O Encontro” apresenta-nos uma sociedade extraterrena com um sistema ecológico


próprio que é contactada por uma expedição terrestre.

46 | consciências ‘05
Governada por um organismo simbiótico, uma espécie de Deus deste paraíso perdido que
controla todo o planeta e os que o rodeiam até ao mais ínimo pormenor, podendo a qual-
quer momento obviar qualquer factor que pudesse afectar a harmonia do sistema, mas
que aspira a ascender a um estado superior, ao mesmo estado em que se encontram os «se-
nhores Bazans», essa espécie de «seres invisíveis que tinham alcançado a suprema serenidade
e lançavam as bases de novos universos nascentes… a partir do nada.» [pag. 86]

Ele era o produto inal de uma grande raça que vivera em colónias que se vieram a fundir
e originar supra-indivíduos que absorviam as experiências dos seres individuais a partir desta
condensação psicovital.[ibidem]

Com a fusão viera o esquecimento, aquilo que o decano dos Ser, Bual, designava como
Alquimia do Buraco que implicava «a perda da memória histórica, para que se destruíssem as
grandes Inibições e os Seres pudessem iniciar a sua nova vida cósmica unicamente a partir da
Razão e da Imaginação.» [pag. 87]

Mas este paraíso perdido, onde entre outros viviam os Grus que «podiam passar perfeita-
mente por seres terrestres, de estatura vagamente superior à humana e construção humanóide,
apesar da sua cabeça cónica implantada num tronco desprovido de pescoço, e donde irradia-
vam quatro membros anteriores e posteriores. O corpo era desprovido de pêlos, o que dava à
sua nudez um ar casto e pacíico que levava a aceitá-los sem reservas» [pag. 90/91], e que são
uma espécie que vive… sem guerras ou fricções entre si ou o meio ambiente e se mostra
particularmente afável em relação aos homens; vai ser abalada por um conlito provocado
pelos membros da expedição terrestre que resolvem destruir o Ser guiados pela sua atroz
lógica que lhes diz que uma espécie tão poderosa só pode ser esclavagista ou escravizada.
Para eles qualquer outra solução é impensável. Só que o ser nada lhes permite e acaba por
lhes demonstrar que existem outras vias. Descobrindo ao fazê-lo que os humanos são um
elo da sua cadeia evolutiva e que é já um Bazan.

Terminando o conto com o Ser a dizer aos humanos: «Apercebo agora que os Senhores Bazans
seremos nós, pois descobri qual o vírus inibidor que me legaste, homens: o receio. Salvou-me
deste vírus outro, agora benéico, que foi o mesmo que vos trouxe junto de mim: a esperança»
que comporta em si duas componentes, a intelectual e a ética em plena harmonia.

Nos outros três contos: “O Estranho Caso de José Olímpio”, “Já Sabíamos Tudo” e “A Partida”
que tem em comum a chegada de alienígenas à Terra, ele apresenta-nos vários tipos de
membros de raças extraterrestres.

De realçar o facto de dois destes contos terem sido publicados no Canadá e na Bélgica.

No primeiro são seres que nunca se mostram e que vem à terra para ajudar a Humanidade.

consciências ‘05 | 47
No segundo são autóctones de Alfa Centauri que «podiam ser (segundo eles) considerados
uns homens esquisitos e com altura um pouco abaixo da média» [pag. 113], membros «de
uma brigada de esclarecimento, com o im de desenvolver a sociabilidade entre os seres huma-
nos e para-humanos espalhados pela Galáxia» [pag. 114] que acabam por se ir embora sem
ajudar os humanos porque Já Sabíamos Tudo.

Finalmente no terceiro em que um andróide siriano vem jogar uma partida de poker com
um humano para decidir o futuro do Homem como espécie. Culminando o conto com um
empate, deixando assim de novo o futuro da Humanidade em aberto.

Da total coniança no Homem de Romeu de Melo passamos a Carlos Moutinho e à sua


colectânea Canopus 98, publicada na década de 60, em que a inabalável fé no bom senso
humano não tem lugar.

Composto por quinze contos, só em quatro deles se efectua o contacto com alienígenas,
mas destes apenas falaremos de três.

Em “Ilogismos” uma expedição terrestre aterra num planeta onde vive uma espécie inte-
ligente que lembra os caranguejos terrestres, diferindo destes porque «as pinças mandi-
bulares estavam cobertas de pelo lanudo e áspero. Eram bastante mais pequenos, de casca
inconcebivelmente rugosa e descolorida.» [pag.64]

Esta raça de que Crox, um dos seus membros, nos serve de narrador é uma espécie inteli-
gente que viu o seu planeta passar por um imenso cataclismo e que após várias gerações
de árduo labor conseguiu criar um novo-ecossistema em função dos recursos existentes.

48 | consciências ‘05
Estratiicada em várias camadas-funcionais (coordenadores lógicos, caçadores de cascas
de quelónios, propagadores da Raça, Vigilantes-do-Templo e Produtores-de-Leis) esta cul-
tura de pseudo-crustáceos vivia sobretudo para os momentos “de êxtase da respiração”
que se efectuavam nos Templos, onde se banhavam num tanque onde Ela (uma alga que
oxigenava a água) lhes concedia o dom da vida, adquirindo esta função básica um cunho
religioso, designado “acto de cumprimentos dos Ritos”.

Tudo decorria assim sem grandes percalços até à chegada da expedição dos humanos que
julgaram estar na presença de um planeta desabitado.

Ao depararem com uma raça alienígena que lhes pareceu não inteligente, resolveram per-
segui-la. Surgiram-lhe, então, construções que «vistas de perto semelhavam miniaturas de
templos gregos, construídos por crianças. As colunas e paredes eram formadas do que, à pri-
meira vista lhes pareceram pequenas conchas de crustáceos amalgamadas com lama. A cú-
pula era algo como uma concha de tartaruga fendida de largos cortes transversais.» [pag. 65]

Indiferentes a esta manifestação de beleza no meio das imensas planuras desérticas «abri-
ram-nas à coronhada de desintegradores porque lhes convinha estudar aquela forma de ar-
quitectura duma civilização extinta.» [ibidem]

Mais uma vez o Homem opta por destruir em vez de compreender o belo.

Como resultado o povo de Crox revolta-se, lutando numa tentativa de suster o ataque hu-
mano, transformando-se num povo de heréticos, porque para eles a Heresia é toda a forma
de violência física ou mental contra qualquer ser vivo.

Mas pensa Crox: «quem poderia não empregar a violência quando havia seres vivos que lhes
destruíam Ideais e família, Razão de respirar e meio de vida? Seres que, sem provocação, lhes
destruíam a Fonte da Vida!» [pag. 68]

Após terem destruído várias cidades os humanos resolveram regressar à Terra para anun-
ciarem a descoberta de um novo planeta a colonizar, deixando para trás, como se fossem
desprovidos de consciência, os escombros de uma civilização alienígena.

Já no seu conto “O Fim da Odisseia” deparamos com um ser altamente evoluído, membro
de uma raça que há muito se dedica ao estudo e conquista do Universo, um Ptl, alienígena
«com um metro de comprimento, corpo revestido de quitina purpúrea, seis membros de insecto
e uma forte ilosoia ao serviço da exploração (e colonização). Reforçada por um desintegra-
dor» [pags. 76/77] que chega ao nosso planeta numa nave biológica.

Mas este ser aparentemente invencível vê-se derrotado e posteriormente escravizado por
um campónio do Bouro (região no norte de Portugal, onde subsistem, ainda hoje, imensas
histórias de almas-penadas, lobishomens e bruxas), apenas porque se deixa comover pe-

consciências ‘05 | 49
rante a Infelicidade alheia: «A comoção acabou por dominá-lo. A mão que segurava o desinte-
grador tremia espasmodicamente.» [pag.81]

Apercebendo-se do mal-estar do «animalejo, apertou mais irmemente o varapau … o diabo


chorava… era certo… lágrimas amarelas saíam-lhe dos olhos... … A mão que segurava o ba-
camarte tremia… era agora ou nunca… Agora!!!

O varapau girou no ar e abateu-se sobre a cabeça do estranho ser que rodopiou, largando a
arma.» [pag. 81]

……

«Na pequena quintarola do transmontano, perdida nas serras vê-se um pequeno ser verme-
lho-púrpura, amarrado com uma coleira à casota do cão. (este passou a dormir na casa dos
donos)» [pag. 82]

“Em Penso, Logo Existo”, um conto na linha de “O Encontro” de Romeu de Melo, atrás refe-
rido, surge-nos uma espécie de deus ex-machina que se fundiu com o planeta onde foi
criado dando origem a um ser simbiótico que dirigindo-se aos homens que nele aterram,
lhes diz: «… hoje eu sou planeta e robot.. Fiz-me à imagem e semelhança dos que me geraram.

……

- Atingi o meu im, mas não os ins gerais. Por mim não posso avançar mais; tenho limites por-
que tinha ins determinados – analisar.

- A conclusão lógica surgiu há pouco. Para mim não é terrível, como se poderia pensar, pois não
é o meu im mas talvez o meu verdadeiro princípio, em que me integrarei mais e mais, numa
simbiose perfeita e sem falhas, em um ser que me não é superior nem inferior, mas diferente na
sua essência.

- Esse ser é o homem.

- Estou a criá-lo.» [pag. 112]

O pendor humanista e ilosóico de novo se manifesta, surgindo-nos como uma constante


nos cultores portugueses de icção cientíica destas décadas.

No princípio e no im sempre o homem como paradigma. Uma espécie que continua a


tentar os receios atávicos que lhe obscurecem o raciocínio e lhe retardam a evolução. Uma
espécie que em si contém as sementes da perfeição e da eternidade que sem Luz não
conseguem germinar.

50 | consciências ‘05
Com Mário-Henrique Leiria no seu livro “Casos de direito Galático. O mundo inquietante de
Josela (fragmentos)” encontra-mos um estilo e estrutura completamente diferentes dos an-
teriores.

Ele apresenta-nos um conjunto de contos inquietantes que são transcrições de proces-


sos legais que foram julgados em diversas instituições judiciais galácticas. Ou seja:

«Casos exemplares apresentados à análise no Curso de Direito Galático para estudantes da


federação mista (humanidades do 1º Aglomerado Estelar) na Universidade Regional de Alde-
baran 3.»

Com um humor muito particular e sempre incisivo, Leiria, cria uma plêiade de seres oriundos
de uma ininidade de planetas que se vêem a braços com intricados problemas jurídicos.

Exemplo único na literatura de icção cientíica nacional, este conjunto de contos demons-
tra um primoroso trabalho de escrita e vem pela primeira vez dar um cunho humorístico a
um género que tinha até ao momento apresentado um pendor mais analítico.

Falar-vos-emos assim de seguida do terceiro conto: “Caso 2900/002-7º B, Sector de Alpha do


Centauro (Drako contra Benevides & C.ª, Ld.ª) em que nos fala do contacto entre o «antropó-
logo Drako, bípede humanóide de 2º nível, membro da Confraria dos Planetas Cientíicos da
Republocracia de Procion» que obtém uma bolsa de estudo para fazer uma investigação

consciências ‘05 | 51
sobre a «organização socio-tribal dos povos paleológicos semi-inteligentes não federados», no
único planeta habitado de um Sistema Solar de 10 planetas, designado por Sol 3.

Ao chegar a Sol 3 aterra a sua nave «numa superfície relvada limitada por construções com
degraus sobrepostos, vagamente semelhante aos auditórios poéticos de Procion onde vários
bípedes aborígenes … …, com esgares realmente inesperados, se enfureciam contra ume esfe-
ra pequena que agrediam com os pés. Em volta, nos degraus sobrepostos, grande quantidade
do mesmo tipo bípede, ululava em conjunto.» [pag. 26]

Drako, sem o saber, tinha interferido num jogo de futebol. Ainda perplexo, por nada enten-
der daquilo que o rodeava, foi preso e submetido a um tratamento de choques eléctricos
que nenhum mal lhe fez, por os neutralizar.

Vendo a investigação inutilizada saiu com facilidade da prisão onde o tinham encarcerado
e regressou ao seu planeta.

Chocado pelo tratamento recebido resolveu processar o causador, Benevides & C.ª, Ld.ª.

Em consequência do processo, o Sistema Solar foi colocado de quarentena e os habitan-


tes de Sol 3 sem qualquer permissão de expansão para além do 10º planeta fronteiriço
do mesmo.

Leiria termina o conto com uma pergunta ao estudante de direito galáctico:

«Será a agressão uma forma de poder e domínio ou antes, como os lógico-semânticos de Pro-
cion airmam, uma característica de medo, sub-inteligência e tara mental pré-lógica?»

52 | consciências ‘05
issn 1645-6566 / consciências ‘05 - 2016 / pp. 53-56

MEMÓRIAS DE UMA REVISTA


PIONEIRA
JOSÉ SOTTOMAYOR1

O órgão informativo e formativo do C.E.A.F.I. (Centro de Estudos Astronómicos e Fenóme-


nos Insólitos), a mais importante organização nacional vocacionada ao estudo de invul-
garidades aeroespaciais, foi sem dúvida a revista “Insólito”, cujo primeiro número saiu no
dia 1 de Junho de 1975, com uma tiragem signiicativa, fez há pouco tempo precisamente
quarenta anos.

Os pioneiros, é bom referi-los, tiveram a ousadia de, um ano depois da revolução do 25 de


Abril de 74, abordarem temas tão inéditos, quantos os que, nas suas páginas, foram au-
tênticas novidades jamais sonhadas. Destinado a um público diverso e pouco esclarecido
mormente em matérias tão pouco usuais, depressa conquistou o interesse de muitos.

Joaquim Fernandes foi o seu diretor, tendo como coordenadores José Ocaña Garrido e
Manuel A. Barrote Dias. No que respeita à equipa redatorial, ela foi diversa ao longo da vida
desta revista. Naturalmente que ao longo da existência desta publicação periódica, muitos
icariam pelo caminho e outros tomando os seus lugares, aperfeiçoando e melhorando o
seu conteúdo e aspeto gráico, mas o conteúdo era deveras apaixonante.

Falava-se de tudo aquilo que a esmagadora dos portugueses jamais ouvira falar; desde
objetos voadores não identiicados (os discos voadores), aos estados alterados de cons-
ciência, às civilizações ignoradas que construíam pirâmides, aos deuses que podiam nunca
terem existido como tal, às marcas estranhas um pouco por todo o planeta, capazes de
signiicarem intervenções exteriores à nossa civilização, etc., etc..

Temas de uma audácia só possível com essa recente liberdade conseguida após “milénios”
de atroia mental e ao empenho dos seus redatores. Durante muitos anos, a revista Insóli-
to, foi considerada uma das melhores revistas da especialidade, não só em Portugal, mas
também a nível internacional.

A quarenta anos de distância, penso ser justo airmar que, do bom e do menos bom que
essa revista ofereceu, uma coisa me parece certo: ofereceu a porta de entrada para uma
outra dimensão. Uma dimensão em que começou a ser possível, com olhar crítico, enten-
der o mundo de uma forma global, longe ou fora deste canteirinho a beira-mar plantado.

1 Investigador do CEAFI: astrónomo-amador.

consciências ‘05 | 53
Abriu de facto novos horizontes, novas ideias e o ensejo de poder criticar velhos conceitos
e trôpegos pontos de vista, abrindo caminho para uma odisseia cósmica que nunca mais
haveria de parar, para muitos dos que hoje, olhando esses tempos idos, poderão airmar:
Valeu a pena esse “Insólito”!

Como tudo na vida, o Insólito terminou o seu percurso no número 41, de Janeiro/Feverei-
ro/Março de 1981. Fica a memória e a saudade desses tempos apaixonados de imensos
trabalhos gratuitos, mas tão gratiicantes. Informar, divulgar, por a descoberto alguns dos
maiores mistérios da humanidade, foi esse o seu papel e cumpriu-o na íntegra. Resta ape-
nas um agradecimento a essa vasta “equipa” que, durante todo esse tempo, deu vida àquilo
que foram e são alguns aspetos da vida de todos nós.

Obrigado “Insólito”!

Para completar este breve “memorial” parece-me vir a propósito um poema da saudosa
amiga e colega Fina d’Armada, relativo aos que procuram descobrir os mistérios do nosso
mundo e do cosmo.

INCERTO

Talvez não tenha sido tudo encontrado.


Talvez não tenha sido tudo descoberto.
Talvez não tenha sido tudo explicado,
Talvez nem tudo o que se disse esteja certo.

“A certeza do mistério é a incerteza”.


Do fenómeno a dúvida é a verdade.
Na mente, no céu, na natureza
Há vazios para além da realidade.

Talvez não tenha sido tudo remexido,


Talvez não tenha sido tudo vasculhado.
Nas entranhas do que é desconhecido,
Talvez não tenha sido tudo revelado.

A chave estará longe, em nós ou aqui bem perto


Para um mundo que incomoda, ignoto, Encoberto.

54 | consciências ‘05
pRImEIRO NúmERO DO úLTImO Nº DO “INSÓLITO”
“INSÓLITO” – 1 JUN. 1975 JAN. FEV. mARç. 1981

consciências ‘05 | 55
VÁRIA
issn 1645-6566 / consciências ‘05 - 2016 / pp. 59-62

UM GLOBO DE LUZ EM
COIMBRA, EM 11621
A. E. MAIA DO AMARAL2

Segundo os melhores cronistas, foi em Tardinhade (freg. Ganfei, conc. Valença do Minho)
que nasceu, por volta do ano de 1082, um rapaz a quem puseram o nome de Teotónio. A
sua educação começará na escola anexa à Sé de Coimbra, para onde vem quando o seu
“tio” D. Crescónio toma posse da mitra conimbrigense. Aí conhece o arcediago D. Telo, que
terá um papel muito importante não só na sua educação, como, mais tarde, ao convidá-lo
para o pequeno grupo dos fundadores do mosteiro da Santa Cruz.

A sua vida é hoje bem conhecida, já que dispomos de um relato literário, a Vita anónima,
de inais do século 12, além da lição das crónicas e dos documentos notariais da época: por
morte do seu parente D. Crescónio, Teotónio é colocado na Sé de Viseu, então sob a admi-
nistração da diocese de Coimbra. “Nomeado pelo bispo conimbrigense D. Gonçalo, veio
inalmente a ocupar, antes de julho de 1110, o cargo de prior daquela Sé” (Cruz 1984, p. 41).

As provas dadas à frente do Cabido viseense, valeram-lhe o convite para assumir a dignida-
de episcopal, que recusou: era Teotónio pessoa mais talhada para o misticismo da clausura
do que para os negócios do bispado; da leitura da sua biograia, apercebemo-nos da sua
severa religiosidade mas também de alguns dotes menos vulgares, sejam naturais ou ad-
quiridos: atribuem-lhe, além de outros, os poderes de expulsar os demónios, de perscrutar
as consciências e de curar pela imposição das mãos3.

O primeiro contacto que reconhecemos na vida de Teotónio com o que hoje chamaríamos
fenomenologia ovni data, provavelmente, de uma das peregrinações que realizou à Terra
Santa. Navegando ele no Mediterrâneo,

“de repente se escureceu o céu e uma obscura nuvem, com violência de ventos e estrondo
terrível, os deixou em trevas (...) e o que é mais admirável, subia a água do mar para cima por
manifesto canal, que os navegantes chamam cifo (...) além d’isto, se augmentava o medo da
morte com a vista de uma mui terrível e monstruosa besta, que a todos encheu de medo (...)

1 Texto que icou inédito, escrito sob pseudónimo para a revista da CNIFO, cerca de 1980.
2 Diretor-adjunto da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra.
3 Para uma extensa análise destas caraterísticas no relato do discípulo anónimo, ver Freire 1984, p. 102-105.

consciências ‘05 | 59
e não achavam algum monstro a que a pudessem comparar (...) uns diziam ser Dragão, outros
um monstro desconhecido, outros a reputaram pelo mesmo demónio”4.

Que animal poderia ser este, tão bizarro que nem os experientes marinheiros o souberam
classiicar, apesar do vastíssimo repertório de criaturas, providenciado pelas suas vivências,
pelas lendas Antigas e pela fértil imaginação medieval? O cronista diz que desta “besta” se
viam só uns “olhos” que, “como nos dizia o santo [Teotónio] eram como fachas de fogo ace-
sas” (Encarnação 1855, I:xi, 1). Tudo se teria, então, resumido a duas fortes luzes no meio de
uma turbulência marítima? A ser assim, são às centenas os modernos paralelos ovnilógicos,
enquanto, pelo contrário, não são fáceis de lhe encontrar protótipos estilísticos. A utilização
com intenções factuais de um texto como a Vita Sancti Theotonii5 será sempre problemáti-
ca. É sabido que o chamado “maravilhoso” ocupa lugar importante neste género de textos
hagiográicos, ecoando tradições literárias que remontam ao mundo clássico e aos textos
bíblicos. Em regra, trata-se de um “maravilhoso” estandartizado, decorativo, obedecendo a
propósitos ediicantes. Mas, então, qual o valor que podemos dar a estas informações que
nos chegam através das hagiograias? Geralmente, em nossa opinião, um valor meramente
cultural: por exemplo, se uma determinada fonte portuguesa do ano 1200 nos descreve o
“aparecimento prodigioso de três sois na Arábia” cinquenta anos antes, pelo menos de uma
coisa podemos estar certos: que a visão de três sois simultâneos no céu era considerado
um “prodígio” no Portugal de 1200... e será esse facto cultural que é relevante. Apesar dis-
so, e no caso presente, inclinamo-nos a pensar que possam ser factuais alguns prodígios
relatados na Vita Sancti Theotonii, sem prejuízo das limitações do género hagiográico em
que a obra se insere.

Como demonstra Geraldes Freire, o seu autor anónimo é, em numerosas outras matérias
onde temos conirmações históricas, perfeitamente iel. Teria sido um dos discípulos mais
novos de Teotónio, testemunha dos últimos anos da sua vida e talvez, mesmo, seu compa-
nheiro durante a segunda peregrinação à Terra Santa6. Além disso, escreveu pouco depois
da sua morte7 e os críticos concordam em que o seu relato “onde nada nos faz suspeitar de
contrafação ou acrescento de época mais tardia” (Freire 1984, p. 116) tem sido considerado
uma descrição testemunhal digna do maior crédito.

4 Encarnação 1855, I:x-xi. Para simpliicar, não faremos as citações da Vita a partir do texto latino original mas
da versão portuguesa de Joaquim da Encarnação, mais acessível e que tem a vantagem de estar subdividida em
grupos e parágrafos.
5 De seu título completo Vita beatissimi domni Theotonii primi prioris monasterii Sanctae Crucis Colimbriensis, é um
texto onzecentista cujo único manuscrito presentemente conhecido é um cópia de 1476; pertenceu à Livraria do
Mosteiro de S. Cruz, onde foi copiado, e conserva-se na Biblioteca Pública Municipal do Porto. Para a descrição do
manuscrito, das suas traduções e edições, veja-se Cruz 1984, especialmente p. 24-30.
6 É nítido que conhecia de visu a Palestina e o itinerário, que descreve pormenorizadamente.
7 O prefácio parece redigido logo em 1162, à data da morte. A referência que no texto se faz ao ofício de S. Ber-
nardo (só canonizado em 1172) não pode considerar-se um terminus post quem porque os monges de Claraval já
celebravam o seu culto, na qualidade de fundador da Ordem.

60 | consciências ‘05
É à luz destas considerações que vos passamos a apresentar a descrição do fenómeno que
esse texto nos diz ter acontecido no dia 17 ou 18 de fevereiro de 1162:

“mas, e antes que tivesse partido desta vida [s. teotónio], foi visto descer do céu até ao meio do
claustro [de s. cruz] um imenso globo pontilhado de estrelas, de celeste luz fulgurante e de tal
modo envolto por raios de luz [que eram] atirados à distância e em redor, que em todos sem
exceção provocou admiração”8.

Hoje, só podemos lamentar a pressa do cronista em dar im ao livro, privando-nos de infor-


mações mais detalhadas sobre um fenómeno tão curioso.

Contudo, a tradução portuguesa que apresentamos perde muito para o original latino, lín-
gua que, como é sabido, se cultivava em excelente nível no mosteiro de Santa Cruz. A pre-
cisão do vocabulário ali usado, permite-nos uma imagem muito mais vívida deste globo:
desde logo era “inmensus”, o que, pensando nos objetos vivos/inanimados que se conhe-
ciam na Idade Média, poderia ser qualquer coisa em torno dos 10 metros de diâmetro ou
mais. E para que pudesse ter descido no meio do claustro, não poderia ultrapassar os 40
metros. Para o globo se dizer “stellarum”, poderia ser escuro com muitos pequenos pontos
de luz? É o que adiante parece conirmar a palavra “siderius”: em português apenas pode-
mos traduzir por “celeste” (vindo do céu, relativo ao céu), mas em latim “siderius” referia-se
especiicamente ao céu noturno, com seus astros e constelações, portanto, escuro e pon-
tilhado de luzes tremeluzentes (“lumine coruscans”) ou pulsantes, ou piscantes, ou então
em lashes, conceito todavia de tal modo estranho às testemunhas, que só desta forma
“coruscans” o podiam descrever. Mas, o que ainda nos parece mais notável é a escolha de
palavras do cronista anónimo para descrever os raios de luz emitidos pelo globo: a primeira
dúvida é se, ignorando-se na Idade Média o sentido de “raio de luz” que hoje nos seria mais
familiar, o cronista não quereria falar em “raios” entendidos como linhas entre o centro e
a circunferência do dito globo? Claramente que não, pela aposição do adjetivo “jaculans”,
que signiica é emitido, lançado. Não eram, portanto, interiores estes raios, eles saiam do
globo, em cima e para os lados (“eminus et in circa”), revestindo-o completamente (“amic-
ta”). Pode tratar-se dos enigmáticos “raios de luz sólida”, lentamente emitidos e recolhidos
por objetos que hoje associamos ao fenómeno ovni?

Em memória deste fenómeno, o globo de luz tornou-se um dos atributos de Teotónio, quan-
do veio a ser canonizado como o primeiro Santo português, logo no ano seguinte de 1163.

Este “milagre” teria tido decisiva inluência na sua canonização, sobretudo se tiver sido avista-
do por um grande número de pessoas fora do Mosteiro: como se escreverá muito mais tarde:

8 “33. Sed et priusquam de seculo exiret, inmensus quidam stellarum globus visus est de celo [sic] ad medium claustri
descendisse, ita sidereo lumine coruscans, et ita eminus et in circum amicta radios suos jaculans, ut cunctos in admiratio-
nem converteret” (segundo a leitura de PMH, Script. p. 88).

consciências ‘05 | 61
[o globo] “à vista de toda a cidade, e suas vezinhanças, tornou a subir ao mais alto, até se perder
de vista”9.

Infelizmente, para este avistamento público não se indicam quaisquer fontes, podendo
tratar-se de invenção setecentista.

bIbLIOGRAFIA

CAçã, m., pseud. (1761) Vida do gloriozo padre S. Theotónio... In: Encarnação, J. Notícia dos
Santos protectores de Coimbra. Coimbra, Oicina da Academia Liturgica, p. 7-46.
CRUz, A. (1984) D. Teotónio prior de Santa Cruz : o primeiro cruzado e primeiro Santo de
Portugal. In: SANTA CRUZ DE COIMBRA DO SÉCULO XI AO SÉCULO XX : ESTUDOS... Coimbra,
s.n. (Gráica de Coimbra), p. 21-58.
ENCARNAçãO, J. (1855) Vida do admirável padre S. Theotonio ... com aditamentos. 2ª ed.
corr. Coimbra, Impr. da Universidade. Reimpr. fac-sim. Coimbra, imp. 1982.
FREIRE, J. (1984) Problemas literários da ‘Vita Sancti Theotonii’. In: SANTA CRUZ DE COIMBRA
DO SÉCULO XI AO SÉCULO XX : ESTUDOS... Coimbra, s.n. (Gráica de Coimbra), p. 85-117.

9 Caçã 1761, p. 42.

62 | consciências ‘05
issn 1645-6566 / consciências ‘05 - 2016 / pp. 63-74

A COMUNICAÇÃO NA
INTERPRETAÇÃO FENOMENOLÓGICA
DA SINGULARIDADE
JOÃO JERÓNIMO MACHADINHA MAIA1

1. INTRODUçãO

Ao longo da história da humanidade têm sido comuns os relatos da ocorrência de fenó-


menos aéreos cuja explicação escapa à racionalidade do conhecimento humano. São fe-
nómenos que nos surpreendem pela sua transversalidade histórica e cultural sendo que
as justiicações relacionadas com objetos naturais e com artefactos construídos pelo ser
humano revelam-se, em alguns casos, simplistas e desligadas de toda a complexidade dos
relatos. Não raras vezes, é mesmo relatado o contato de seres humanos com outras enti-
dades. Neste sentido, sempre tem havido a preocupação de enquadrar estes fenómenos
dentro de quadros explicativos mais estruturados. É comum associar-se a eles manifesta-
ções divinas ou, mais recentemente, do ponto de vista histórico, a intervenção de seres
extraterrestres. Claro está que se pode colocar a questão se estes quadros explicativos não
estarão desde logo associados à cultura dominante, na época e no espaço da ocorrên-
cia, e se eles próprios não reletem também as relações sociais dominantes do ponto vista
político-ideológico e do ponto de vista económico. Os meios de comunicação social e os
mass media, em geral, ao serem convocados para o relato e para a representação destes
fenómenos correm o risco de se comportarem como veículos de reprodução social se não
se distanciarem do discurso estandardizado, desconstruindo, perante a verdade dos factos,
ideias pré-concebidas que são veiculadas publicamente.

Assim, como objetivos deste artigo, começamos por tomar como exemplo paradigmático,
neste âmbito, o fenómeno das aparições de Fátima, em Portugal, e em especial a repor-
tagem jornalística do chamado “milagre do sol”. As narrativas explicativas que surgiram e
que têm vindo a surgir, relacionadas com este fenómeno, realçam do ponto de vista da
análise fenomenológica as ordens simbólicas dominantes em cada tempo. Fundamentare-
mos esta ideia com base nos trabalhos de vultos da fenomenologia, nos seus cruzamentos
entre a ilosoia, a antropologia e a sociologia. Em particular, dissecaremos os simbolismos
e as ordens discursivas que passam de forma hegemónica na comunicação de massas dos
nossos dias como forma de desvendar estereótipos e preconceitos encobertos nos pro-

1 Doutorando em Estudos Contemporâneos; Centro de Estudos


Interdisciplinares do Século XX (Universidade de Coimbra)

consciências ‘05 | 63
dutos de entretenimento e de informação. Finalmente, ao desenvolvermos a abordagem
multidisciplinar do estudo fenomenológico daquilo a que muitos convencionaram chamar
de “fenómeno O.V.N.I.”, introduzimos a necessidade da cobertura jornalística, neste tipo de
casos, se salvaguardar de vários referenciais de análise e de uma postura crítica. Isto porque
a ultrapassagem da visão socialmente e individualmente construída dos fenómenos reme-
te-nos para um espaço de incerteza e de desconhecimento com o qual teremos de lidar
com uma postura de humildade intelectual e cientíica.

2. “COmO O SOL bAILOU AO mEIO-DIA Em FÁTImA”

O fenómeno das aparições marianas, embora não seja exclusivo de Fátima, causou, no
entanto, grande repercussão a partir desta localidade portuguesa. O contato que os três
pastorinhos (Lúcia, Francisco e Jacinta) mantiveram entre o dia 13 de maio e o dia 13 de
outubro de 1917 com uma entidade, oicialmente declarada como sendo a Virgem Maria,
constituiu um dos fenómenos de maior impacte, a vários níveis, na história contemporâ-
nea da sociedade portuguesa como também no plano internacional. Não esqueçamos
que Fátima é englobada como peça-chave de toda uma narrativa messiânica de luta con-
tra o comunismo soviético levada a cabo pela Igreja Católica, em especial pelo Papa João
Paulo II, na segunda metade do século XX (Dem, 1998). Mas o santuário construído no
local das aparições também se tem revelado ao longo das décadas como local de peregri-
nação e de devoção para milhões de pessoas vindas de todo o mundo que ali cumprem as
mais variadas missões em termos de natureza e de objeto. Um dos fatores que possibilitou
a este fenómeno uma grande popularidade acompanhada de credibilidade foi precisa-
mente o facto de o último dia das aparições ter contado no local com dezenas de milhares
de testemunhas que terão presenciado o chamado “milagre do sol”. Avelino de Almeida,
jornalista e enviado especial do jornal O Século, ao local, teve a oportunidade de relatar,
na reportagem que escreveu para o seu jornal, um ambiente único naquele dia de outono
na Cova da Iria. De referir que este jornal português tinha uma matriz republicana e laica.
O jornalista, no texto que escreveu intitulado “Como o Sol bailou ao meio-dia em Fátima”,
publicado em O Século, descreve uma multidão de trinta ou quarenta mil pessoas de di-
ferentes proveniências geográicas e sociais que se aglutinava, no local das aparições, de
forma a tentar presenciar a graça divina (Almeida, 1917). Foi um dia que começara por ser
muito nublado e com uma chuva intensa, algo que depressa se alteraria. A transcrição que
se segue, do relato do fenómeno, é desde logo relevante porque chama a atenção para
a variedade de experiências observadas entre diferentes pessoas que estavam no local:

e assiste-se então a um espetáculo único e inacreditável para quem não foi testemunha d´ele.
Do cimo da estrada, onde se aglomeram os carros e se conservam muitas centenas de pessoas,
a quem escasseou valor para se meter à terra barrenta, vê-se toda a imensa multidão voltar-se
para o sol, que se mostra liberto de nuvens, no zenit. o astro lembra uma placa de prata fosca
e é possível itar-lhe o disco sem o mínimo esforço. não queima, não cega. Dir-se-hia estar-se
realizando um eclipse. mas eis que um alarido colossal se levanta, e aos espectadores que

64 | consciências ‘05
se encontram mais perto se ouve gritar: «milagre, milagre. maravilha, maravilha!» aos olhos
deslumbrados d´aquele povo, cuja atitude nos transporta aos tempos bíblicos e que, pálido
de assombro, com a cabeça descoberta, encara o azul, o sol tremeu, o sol teve nunca vistos
movimentos bruscos fóra de todas as leis cosmicas – o sol «bailou», segundo a típica expressão
dos camponeses… empoleirado no estribo do auto-omnibus de torres novas, um ancião cuja
estatura e cuja isionomia, ao mesmo tempo doce e enérgica, lembram as de paul Déroulède,
recita, voltado para o sol, em voz clamorosa, de princípio a im, o credo. pergunte quem é e
dizem-se ser o sr. João maria amado de melo ramalho da cunha de vasconcelos. vejo-o depois
dirigir-se aos que o rodeiam, e que se conservaram de chapéu na cabeça, suplicando-lhes, vee-
mentemente, que se descubram em face de tão extraordinária demonstração da existência de
Deus. cenas idênticas repetem-se n´outros pontos e uma senhora clama, banhada em alitivo
pranto e quasi n´uma sufocarão: «que lastima! ainda ha homens que não se descobrem dean-
te de tão estupendo milagre!» e, a seguir, perguntam uns aos outros se viram e o que viram. o
maior numero confessa que viu a tremura, o bailado do sol; outros, porém, declaram ter visto
o rosto risonho da propria virgem, juram que o sol girou sobre si mesmo como uma roda de
fogo de artifício, que ele baixou quasi a ponto de queimar a terra com os seus raios… Há quem
diga que o viu sucessivamente mudar de côr… (idem, pp.3/4).

Uma leitura minimamente atenta desta transcrição permite-nos perceber que, desde uma
fase inicial dos eventos, o jornalista assume que a sua visão dos acontecimentos não cor-
responde à visão de muitas das pessoas presentes no local. Avelino Ferreira, tal como a
grande maioria das testemunhas, terá conseguido olhar para o sol, que aparecia numa
forma alterada dado que em condições normais o olhar direto para aquele astro cegaria
qualquer ser humano. No entanto, o bailado do sol, nomeadamente nas suas incursões
mais ousadas, foi apenas registrado pelo jornalista através dos testemunhos de outros in-
divíduos presentes no local embora ele tivesse notado nas pessoas reações físicas e verbais
aos supostos movimentos. Ainda assim, os relatos também não foram consensuais, nesta
matéria, entre a multidão. Entre aqueles que viram “apenas” um bailado do sol e aqueles
que viram o astro-rei quase a baixar à terra, houve quem airmasse ter distinguido a apari-
ção de iguras religiosas durante o fenómeno.

Avelino Ferreira não foi a única testemunha do fenómeno que se encontrava no local com
intuitos proissionais. Almeida Garrett, professor da Faculdade de Ciências da Universidade
de Coimbra, foi também um dos que se dirigiu à Cova da Iria com o objetivo de comprovar
os relatos sobre as aparições de Fátima. Naquilo que são citações diretas do testemunho
deste académico, é possível desde logo corroborar a observação de que o sol começou por
aparecer de forma inofensiva ao olhar humano. O cientista descreveu o objeto como: “Pare-
cia um disco de matéria polida, como que cortado na madrepérola de uma concha” (Garrett
in Dem, 1998, p.18). Não deixou também de assinalar que o fenómeno tinha caraterísticas
distintas de um eclipse solar. Segundo ele, durante a observação do facto descrito, a pai-
sagem escureceu num tom violeta não deixando, no entanto, a atmosfera de continuar
transparente até ao limite do horizonte e vendo-se claramente. O tom violeta haveria ainda
de se esbater para se alterar para uma cor amarelada que se reletia nas pessoas dando a

consciências ‘05 | 65
ideia de que todos sofreriam de icterícia (idem). O Dr. Almeida Garrett termina o seu teste-
munho referindo:

todos os fenómenos que aqui descrevi foram por mim observados com calma e serenidade,
sem emoção nem inquietação. compete a outros explicá-los ou interpretá-los. para terminar,
devo declarar que nunca, nem antes nem depois de 13 de outubro, constatei fenómenos so-
lares ou atmosféricos deste género (idem, p.19).

Os elementos respeitantes à diversidade de relatos do milagre do sol não deixam de ter


paralelismos com as próprias aparições passadas com os três pastorinhos. Segundo aquilo
que é do domínio público, cada um dos pastorinhos terá tido contato com a entidade num
nível próprio de comunicação. Lúcia terá sido a única dos três a ter tido a experiência com-
pleta de interação uma vez que via, ouvia e falava com a entidade enquanto que Jacinta só
via e ouvia e Francisco só via.

O facto de tanto as aparições como o denominado milagre do sol terem variações nos rela-
tos das experiências individuais, mas, ainda assim, recorrem de forma alargada à alusão de
iguras da religião católica, credo dominante em Portugal, realça domínios de subjetivida-
de e de intersubjetividade presentes nestas experiências que, quanto a nós, como veremos
ao longo deste artigo, são motivo para profundo debate ilosóico e cientíico, implicando
as dimensões éticas do trabalho da comunicação social.

3. A FENOmENOLOGIA E AS NARRATIVAS TIpIFICADAS

Apesar dos esforços de laicização da sociedade portuguesa por parte da I República, Portu-
gal continuava ainda a ser, aquando das aparições de Fátima, um país predominantemente
rural com uma forte inluência religiosa e cultural por parte da Igreja Católica junto das po-
pulações. Neste quadro, não espanta que a ocorrência de fenómenos tão anómalos tenha
produzido de forma quase imediata, ao nível da generalidade das pessoas, a associação a
manifestações de natureza divina. Com o passar dos anos a hierarquia católica também
sedimentou à volta de Fátima uma estrutura institucional e uma narrativa de caráter reli-
gioso que levaram à consolidação deste sítio como local de peregrinação e de fé. O facto de
passados poucos anos, após as aparições, se ter entrado em Portugal num regime político
ditatorial que haveria de se fundar numa matriz ideológica nacional-católica, perdurando
durante várias décadas, fez com que no nosso país a natureza dos fenómenos de Fátima
não tivesse tido discussão possível, pelo menos no espaço público, durante vários anos.
Foi só com os primeiros anos da democracia, instaurada na revolução de 25 de abril de
1974, que começaram a aparecer estudos que traziam outras hipóteses sobre aquilo que
realmente ocorrera em 1917 na Cova da Iria.

Entre os investigadores que ganharam alguma notoriedade neste plano está a historiadora
Fina d´Armada. No seu livro de 1980 “Fátima: o que se passou em 1917”, Fina D´Armada co-

66 | consciências ‘05
loca em debate a identidade e a proveniência da entidade que aparecera aos pastorinhos
durante aqueles meses na Cova da Iria. Socorrendo-se dos depoimentos de Lúcia durante
os interrogatórios feitos aos pastorinhos e dos próprios escritos da “vidente” de Fátima, ela-
borados nos anos seguintes, a historiadora portuguesa airma que em nenhum momento
a entidade das aparições disse aos pastorinhos ser a Virgem Maria, mãe de Jesus Cristo. A
denominação utilizada pela entidade para se identiicar terá sido “Nossa Senhora do Rosá-
rio”. Aliás, Lúcia terá mesmo confessado a diiculdade em se lembrar se a entidade terá dito
“Sou a Nossa Senhora do Rosário” ou se lhe terá pedido simplesmente para construírem
naquele local uma capela em honra de Nossa Senhora do Rosário (Armada, 1980). Certo
é que quando Lúcia lhe perguntou de onde vinha ela, a entidade limitou-se apontar para
cima e a dizer “O meu lugar é o céu” (idem, p.86).

Neste quadro, Fina D´Armada destaca a controvérsia em relação a quem terá aparecido
aos pastorinhos e relaciona estes contatos e o fenómeno do milagre do sol, em termos
de similaridades existentes, com os famosos relatos de contatos entre seres humanos,
O.V.N.I.S. e entidades alienígenas de que temos ouvido falar nos nossos tempos. É uma
tese que a historiadora desenvolveu em trabalhos posteriores levados a cabo juntamente
com o também historiador português Joaquim Fernandes (Armada e Fernandes, 1982). É
verdade que as conversas decorridas entre a entidade e Lúcia, durante as aparições, são
bem mais vastas do que os excertos e comentários aqui apresentados. É incontornável que
estão cheias de mensagens religiosas e de penitência perante os perigos de punição divina
da humanidade. No entanto, como refere Auguste Meessen (2003), físico da Universida-
de Católica de Louvaina, isto coloca a questão da natureza da divindade presente. Temos
um Deus todo misericordioso que nos ama ou um Deus severo que nos castiga, fazendo
lembrar os textos do antigo testamento anteriores à cristandade? Como airma Joaquim
Fernandes (2003), a tradição mariana popular do catolicismo está sedimentada nos cultos
matriarcais neolíticos daí a importância de perceber a sua génese fenomenológica. Aliás,
nas últimas décadas, Joaquim Fernandes tem mesmo dirigido um grupo de investigação
ligado à Universidade Fernando Pessoa, no Porto, que estuda fenómenos aéreos anómalos
que vão ocorrendo no território português. Ainda assim, na produção cientíica que este
grupo tem desenvolvido (muita dela em colaboração com investigadores de instituições
internacionais prestigiadas) tem havido a preocupação de não colar de forma imediata, ao
estudo do fenómeno O.V.N.I., a conotação extraterrestre. Isto obedece a uma postura de
cautela intelectual e cientíica que percebe que a conotação extraterrestre, do fenómeno
O.V.N.I. e dos contatos com outras entidades, pode ter a mesma natureza interpretativa da
conotação religiosa. Manuel Curado (2009), docente da Universidade do Minho, ao abordar
“a ilosoia dos O.V.N.I.S.” coloca o relato dos encontros imediatos na sequência das narrati-
vas mitológicas e religiosas sendo os ET´s novas formas dos seres celestiais ou sobrenatu-
rais que contatam com os humanos. Na difusão desta nova narrativa cientíico-tecnológica
está a indústria de entretenimento de massas e as suas formas de recriar o ser humano e o
seu enquadramento no universo.

consciências ‘05 | 67
Neste sentido, Ryan Cook (2003), antropólogo da Universidade de Chicago, destaca quatro
fatores que contribuíram para o crescimento da credibilidade da ideia do contato de seres
humanos com seres de outros mundos em diversos setores da sociedade ocidental, du-
rante o último século: (1) a proliferação da alta tecnologia de informação e de transportes
que fez crescer os luxos de bens, informação e pessoas; (2) a inluência do conhecimento
cientíico e dos especialistas não só através da eicácia das descobertas cientíicas aplicadas
mas também através do apoio estatal e das comunicações, facilitando o acesso da infor-
mação a não-especialistas; (3) o crescimento de movimentos de novas religiões abertas
à inluência de tradições e conhecimentos cientíicos incluindo aqueles que incorporam
extraterrestres e O.V.N.I.S.; (4) a profusão de histórias e relatos de contatos começados em
meados do séc. XX e tornados plausíveis pela popularidade da icção cientíica, pela ex-
ploração espacial (num contexto de Guerra Fria e de ataque iminente do inimigo) e pela
emergência de investigadores tentando constituir a ovniologia como campo de estudos.

Os aspetos das aparições de Fátima e dos contatos, com supostas entidades de outra esfera
da realidade, aqui teorizados, realçam a dimensão fenomenológica em que este tipo de
fenómenos é interpretado tendo por base a subjetividade da realidade assente em cons-
truções linguísticas. Para Alfred Schutz, um dos percursores do estudo fenomenológico da
intersubjetividade, o trágico da linguagem é a impossibilidade de captar na totalidade o
mundo da experiência interior.

o mundo social é, naturalmente, bastante remoto em relação à experiência original de duração


pura. torna-se um mundo espaciotemporal preenchido por semelhantes, coisas dotadas de
nome e ações que podem ser expressas linguisticamente. Dentro da realidade permeada pela
linguagem não há acontecimento de que esta não se possa apoderar. nesse sentido, a lingua-
gem torna-se um contexto objetivo de sentido, o qual permite uma atividade interpretativa
que ocorre na própria esfera da conversão social (schutz, 1982, in correia, 2005, pp112/113).

Ora daqui podemos extrair que “a linguagem constrói o mundo na sua tipicalidade sendo
por isso o meio tipiicador por excelência através do qual se constrói o conhecimento so-
cialmente relevante” (Schutz, 1962, in Correia, 2005, p.115) e que supera a experiência indi-
vidual transcendente. Há assim uma clara incongruência da linguagem com experiências
que, segundo os investigadores, introduzem nas pessoas estados modiicados da cons-
ciência (Moura, 2003). É verdade que o próprio indivíduo, sujeito da experiência, assume
códigos linguísticos socialmente instituídos como forma a mediar e a comunicar a sua vi-
vência. No entanto, essa codiicação adultera e amputa aquilo que foi a idiossincrasia da
experiência.

Em termos sociais, existem, deste modo, diferentes ordens simbólicas: a ciência, a arte, a
religião, a política e a ilosoia. A cada ordem simbólica estão associadas diferentes tipiica-
ções e diferentes sistemas de relevâncias. Nesta lógica, cada grupo terá os seus signiica-
dos particulares sendo que a comunicação, à partida, só é possível entre pessoas e grupos
sociais que tenham o mesmo sistema de relevâncias (Correia, 2005). A inluência da teoria

68 | consciências ‘05
dos subuniversos de William James, em Alfred Schutz, é aqui nítida, estando aliás subja-
cente no conceito de províncias initas de sentido (Pinheiro, 2007). O tecido da realidade é
múltiplo e existem muitos corpúsculos de conhecimento que nele orbitam. A proporção
de realidade que concedemos a cada subuniverso está dependente do interesse que esse
campo tem para nós no contexto espácio-temporal especíico em que nos encontramos.
As caraterísticas de uma província inita de sentido não podem ser aplicadas ao estudo de
outra província. Temos que escolher uma das províncias de realidade.

As narrativas que caraterizam fenómenos anómalos como sendo do domínio cientíico-


tecnológico ou do domínio religioso obedecem, desta forma e olhando aos exemplos
concretos já abordados, a tipiicações resultantes de construções sociais tendo por base
constrangimentos económicos, ecológicos, das relações de força política, de distribuição
social do conhecimento e das estruturas simbólicas e do imaginário.

4. A COmUNICAçãO DE mASSAS E A CONSTRUçãO


DE UmA NOVA mITOLOGIA

Para a compreensão da interpretação atual dos fenómenos que temos vindo a discutir não
podemos deixar de analisá-los à luz das lógicas comunicativas e mediáticas da sociedade
globalizada dos dias de hoje. Os quadros interpretativos das sociedades sempre obedece-
ram às dinâmicas sociais e às lógicas de poder presentes em cada época. No mundo atual
caraterizado pela cobertura mediática, a improbabilidade de ocorrência de um aconteci-
mento tem bastantes hipóteses de projetar esse mesmo acontecimento como noticiável e
digno de notoriedade. Como expressa Adriano Duarte Rodrigues (1993), a inversão da nor-
malidade das coisas dá-se através de um acidente que reage à normal sucessão dos factos.
A racionalidade moderna e o discurso jornalístico atuam no processo de enquadramento e
regulação social do fenómeno. Deste modo, os meta-acontecimentos que irrompem na co-
bertura jornalística dão-se como acontecimentos inseridos numa ordem discursiva e numa
representação cénica regidas pelo mundo simbólico e pelo mundo da enunciação. Exis-
te um devir de discurso espetacular que faz parte do próprio carater apelativo e atrativo
imposto pela ordem mediática. Ainda assim, ocorre, muitas vezes, da parte da audiência,
uma crença acrítica numa verdade universal e anistórica derivada de uma sociedade ainda
muito marcada pelos valores positivistas e pela ideia de infabilidade do jornalista. Neste
sentido, desenvolve-se a produção de um estado de coisas e uma aceitação passiva de
uma determinada signiicação. Aos media cabe mesmo a função de organizar a experiência
fragmentada e aleatória e de lhe conferir racionalidade (idem).

O aprofundamento do estudo da teoria da comunicação de massas é importante para nos


desvendar a teia de relações comunicativas, económicas e políticas atualmente existentes
e que produzem o imaginário que invade a nossa vida quotidiana. Denis McQuail (2003)
não deixa de referir, nos seus trabalhos, lógicas de imperialismo cultural que segundo mui-
tos autores regem o mercado dos media a nível internacional. A hegemonia económica

consciências ‘05 | 69
que existe no planeta, do norte em relação ao sul, repercute-se nos produtos de infor-
mação e de entretenimento que são vendidos em grandes pacotes pelas grandes cadeias
empresariais de media e audiovisual. É verdade que em cada sociedade, em particular, a
inluência cultural externa origina diferentes fenómenos. Para além das lógicas de acul-
turação e homogeneização também se desenvolvem fenómenos de hibridização e/ou de
resistência. Muito se joga na relação dialética das forças centrípeta (que apela à coesão da
sociedade) e centrífuga (que apela à fragmentação da sociedade) que se dá no contexto
local em face da repercussão dos fenómenos de circulação de informação à escala global
(idem; Miller, 1996). Associados aos grandes blocos emergentes, também já começam a
surgir polos de inluência contra-hegemónicos, na área dos media, em relação àquilo que
tem sido o domínio da cultura norte-americana. A análise da forma como os elementos
de diferentes origens socioculturais se hibridizam em cada contexto particular poderá ser
da maior relevância para compreender a interpretação fenomenológica de experiências e
fenómenos anómalos. De qualquer forma, como expressa Walter Lippmann (1922/2003)
a propósito da construção dos estereótipos, dada a efemeridade do tempo biológico em
relação ao tempo geológico e universal, a visão humana é uma visão parcelar que está de
acordo com as conceções possíveis em cada época. As nossas opiniões são reconstruções
daquilo que os outros nos narram tendo também por base o nosso papel enquanto obser-
vadores seletivos e criativos. O estereótipo tende a produzir-se através de um processo de
concreção e diferenciação mantendo uma estabilidade de signiicado que fará o contrário
permanecer vago e mutável. Só que a verdade é mais ampla do que os nossos códigos
morais, ilosoias sociais e relações políticas até porque olhamos o passado à luz do pre-
sente. No entanto, um ataque aos estereótipos parece-nos um ataque aos pilares do nosso
universo pois eles são parte estruturante da nossa realidade. As narrativas tipiicadas, ten-
do como génese relações dominantes no campo político, económico e social, são então
difundidas nos canais de informação e de entretenimento, incluindo na arte.

Roger Silverstone (2007) adverte que através dos media somos investidos num espaço
moral que relete a forma como os outros chegam até nós e ao mesmo tempo convida a
audiência (potencial cidadão) a uma resposta moral equivalente. Dá como exemplo toda
uma retórica sobre o bem e o mal, que se difundiu na sociedade norte-americana após
os ataques terroristas do 11 de setembro, visando o outro, em particular o estrangeiro de
outra cultura e religião. Tal retórica terá tido desde logo os seus antecedentes num guião
que foi passando para a opinião pública nomeadamente através do aparelho ideológico
de Hollywood em que, por exemplo, os ilmes catástrofe e de icção cientíica (muitos deles
recorrendo a O.V.N.I.S. e ET´s) preparavam a audiência para o cenário de um grande ataque
inligido aos E.U.A. mas sequenciado da devida resposta militar. Silverstone destaca o ilme
“O Dia da Independência” em que o ataque das forças alienígenas a locais símbolos da
América em tudo faz lembrar o cenário do ataque às torres gémeas do World Trade Center
que aconteceria na realidade poucos anos depois. Tais acontecimentos revelam fenómenos
de sincronicidade dada a forma, tanto consciente como inconsciente, como a mentalidade
dominante se reproduz nas formas artísticas chegando a antecipar eventos da realidade.
Tal visão vai ao encontro da ideia de que os media, nos seus vários canais, constroem uma

70 | consciências ‘05
nova mitologia (Rodrigues, 1993) mas com objetivos de reprodução e segregação social
em concordância com a ordem dominante.

5. CONCLUINDO SObRE A AbORDAGEm JORNALíSTICA


AO FENÓmENO DA SINGULARIDADE

Citando Maurice Merleau–Ponty, a propósito das relações do ilósofo com a sociologia,

sòmente na atitude ilosóica se tornam concebíveis ou mesmo visíveis estas inversões, estas
«metamorfoses», esta proximidade e esta distância do passado e do presente, do arcaico e
do «moderno», este virar-se sobre si próprios do tempo e do espaço culturais, esta perpétua
superdeterminação dos acontecimentos humanos que faz com que, qualquer seja a singulari-
dade das condições locais ou temporais, o facto social nos apareça sempre como variante de
uma única vida de que a nossa também faz parte, e que todo o outro seja para nós um outro
nós próprios (merleau-ponty, 1962, p.168).

Esta airmação de Merleau-Ponty visa defender a abordagem da ilosoia, numa matriz


fenomenológica, na interpretação dos fenómenos sociais. Numa inluência claramente
kantiana, Merleau-Ponty airma que as signiicações da palavra são sempre ideais e como
tal a sua expressão nunca é total. A tematização do signiicado é resultado da palavra. A
construção desta tematização dá-se de forma contínua, dialética e tendo como referência o
esquema interpretativo predominante no presente. Também Bernhard Waldenfels (2011),
em “Phenomenology of the Alien”, refere que a cultura, a sociedade, o ambiente ou forma
de vida impõem limites através de proibições e de restrições ao entendimento que limitam
o nosso pensamento. Neste sentido, recuperando Alfred Schutz, muitos dos fenómenos
aqui em debate encontram semelhanças com a formação da personalidade onírica e do
mundo dos sonhos:

são recordações, retenções e reproduções de experiências volitivas que resultaram do mundo


da vida. reapareceram agora, modiicadas e reinterpretadas de acordo com o esquema de
referência predominante no tipo de sonho em questão (schutz, 1962, in pinheiro, 2007, p.118).

Mário Simões, psiquiatra da Universidade de Lisboa, no contexto de uma investigação mul-


tidisciplinar aos fenómenos de Fátima, realça que os estados modiicados da consciência,
induzidos por este tipo de experiências, se assemelham a um estado de transe em que “a
totalidade do campo visual é substituída, com superimposição, por uma única alucinação,
desaparecendo a perceção do ambiente real circundante” (Green e Leslie, 1987, in Simões,
2003, pp.56/57). Nesta lógica, há quem destaque que este tipo de experiências são pura-
mente subjetivas (Meessen, 2003). No entanto, há também quem relembre, baseando-se
em vários casos de aparições marianas e de estados modiicados da consciência, que da
parte das entidades comunicantes existe uma adaptação da mensagem aos padrões cul-
turais e aos conteúdos mentais das pessoas envolvidas na receção da mesma (Fernandes,

consciências ‘05 | 71
2003; Rodrigues, 2003). Relembrando toda a interpretação popular surgida à volta de Fá-
tima, podemos tirar a conclusão que, para além das experiências de caráter individual e
subjetivo, estes fenómenos também têm associados a si quadros interpretativos de natu-
reza coletiva e social o que aliás vai ao encontro da dinâmica continua e dialética da matriz
ilosóica fenomenológica. No entanto, o conceito de “alucinação” como explicação para os
fenómenos, visto de forma isolada, torna-se redutor. O caráter subjetivo e intersubjetivo
das experiências pessoais não implicam que os fenómenos não tenham uma substância
e uma realidade próprias. São inúmeros os exemplos que apontam a transversalidade his-
tórica e cultural dos avistamentos “O.V.N.I.S.” Em 1556 os habitantes da cidade de Bâle, na
Suíça, assistiram aos “prodígios celestes” de várias esferas a dançarem nos céus, algo que
até icou gravado em pintura (Fernandes, 1998).

O termo singularidade, que tem migrado entre a fenomenologia e a astrofísica, nesta úl-
tima área, deine qualquer ambiente físico, real ou hipotético, onde as condições são tão
extremas (em termos de massa, tamanho, curvatura e caraterísticas do tecido do espaço-
tempo) que as leis da física, em particular da mecânica quântica e da relatividade geral,
aplicadas de forma isolada, dão erro (Greene, 2011). Ora quando se retira a epiderme in-
terpretativa, fundada em construções espácio-temporais, dos fenómenos em debate, de-
paramo-nos com um espaço de desconhecimento e de incerteza dadas as limitações da
visão e da compreensão humana. Qualquer conjuntura explicativa que se possa fazer em
relação aos fenómenos da singularidade será sempre uma imagem virtual ou uma imagem
reletida na superfície do espelho (Meessen, 2003). Transpondo isto para a abordagem jor-
nalística a este tipo de fenómenos, a dimensão ética deste trabalho, como corrobora Mário
Mesquita (2000), implica, na linha dos trabalhos de Paul Ricoeur, a assunção da subjetivida-
de na investigação levando à reconstrução e explicação dos acontecimentos por parte do
jornalista. A não decomposição do mito da imparcialidade e da objetividade do jornalista
leva, por parte deste, à absorção da carapaça de constructos sociais que revestem as tipi-
icações sobre estes fenómenos. Constructos esses que estão imbuídos em narrativas de
dominação, violência e segregação de acordo com o status quo social (seja a narrativa de
matriz religiosa, política ou cientiico-tecnológica). No caso da reportagem do jornal O Sé-
culo, sobre o milagre do Sol em Fátima, parece-nos, por exemplo, que o jornalista assumiu
no relato dos eventos uma postura de cautela e de seriedade que se adequa à cobertura
deste tipo de acontecimentos. Tendo em conta que a reportagem foi escrita logo na se-
quência do ocorrido e tendo em conta a limitação dos conhecimentos cientíicos que na
época existiam sobre este tipo de fenómenos, o jornalista tem a preocupação de distinguir
as diferentes visões presentes no local, incluindo a sua, não escamoteando outras visões,
que até poderiam ir contra a matriz editorial, de caráter positivista, do seu jornal. Teve tam-
bém a preocupação de descrever as circunstâncias em que tudo se passou (número de
pessoas presentes no local, a sua proveniência, condições climáticas, etc.) de modo a evi-
denciar a complexidade das ocorrências. O jornalista, em suma, não apresenta, em absolu-
to, uma visão pré-deinida ou deinitiva daquilo que realmente se passou na Cova da Iria. A
única referência a uma possível explicação, a alusão a um eclipse, é deixada em suspenso
pela variedade de relatos que se seguem sobre os acontecimentos.

72 | consciências ‘05
Transportando isto para os nossos dias, em que muitas vezes a comunicação social, de
modo a obedecer a lógicas de mediatização, assume discursos simplistas e redutores, o
desenvolvimento de uma ação ética na reportagem dos fenómenos da singularidade terá
que desconstruir estereótipos e ideias pré-concebidas, mediante diferentes referenciais de
análise, implicando a assunção de um campo de incerteza e de imprevisibilidade no dis-
curso jornalístico. A objetividade jornalística terá que ser, desta forma, compatível com a
pluralidade e com a subjetividade dos elementos presentes de modo a não se perder em
visões parciais quanto as evidências dos factos afastam, pelo menos num primeiro mo-
mento, a obtenção de conclusões sólidas.

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74 | consciências ‘05
issn 1645-6566 / consciências ‘05 - 2016 / pp. 75-100

A RESSURGÊNCIA DO MITO
CARLOS REIS1

RESUmO

em meio a um cenário contemporâneo moldado por profundas transformações culturais e


cientíicas, convulsionado por efervescências políticas e sociais e atormentado por enfrenta-
mentos ideológico-religiosos, é cabível imaginar o ressurgimento de mitos? lembrando sua
polissemia, não estamos falando dos mitos personalísticos fugazes e transitórios, mas de mitos
autênticos, aqueles que carregam narrativas de signiicação simbólica referentes a aspectos
da condição humana. Há lugar para o “sagrado” em uma sociedade tecnicista enfeitiçada por
lendas, crendices, amuletos, simpatias, milagres, oráculos, curandeiros, bruxaria e discos voa-
dores? o que o presente artigo tenta demonstrar, à luz de um estudo entrelaçado com várias
disciplinas e tomando por empréstimo escritos de eminentes autores, é que acreditar em um
fenômeno desprovido de suporte cientíico comprovável, como é o do tema ovni, se encaixa
em um sistema de crenças psicossociocultural. em outras palavras, que estamos vivenciando a
ressurgência de um mito “pós-moderno”.

AbSTRACT (tHe resurgence oF mytH)

in a contemporary scenery molded by deep cultural and scientiic transformations, convulsed


by political and social efervescences and plagued by ideological and religious conlicts, is it
reasonable to imagine the resurgence of myths? remembering its polysemy, we are not talking
about the personalistic, leeting and transient myths, but about authentic myths, narratives of
those who carry symbolic signiicance related to aspects of the human condition. is there a
place for the “sacred” in a technicist society bewitched by legends, superstitions, amulets, mi-
racles, oracles, healers, witchcraft and lying saucers? What this article tries to demonstrate, in
the light of a study intertwined with various disciplines and borrowing from eminent authors’
writings, is that the belief in a phenomenon devoid of veriiable scientiic support, as is the uFo
case, its a system of psychosociocultural beliefs. in other words, we have been experiencing a
resurgence of “postmodern” myth.

1 Escritor e ufólogo cético brasileiro.


(carlos.reis@atitude.com.br)

consciências ‘05 | 75
INTRODUçãO

O primeiro olhar que se lança sobre a questão consiste em saber se é possível o ressurgi-
mento de um mito nos tempos atuais. Sem qualquer julgamento de natureza qualitativa
ou quantitativa sobre tais mudanças, é inegável que elas se traduzem numa nova ordem
social, ultrapassam todas as fronteiras, provocam o remodelamento na visão de mundo e
a mudança de comportamento das sociedades. O segundo olhar procura identiicar que
cenário é esse exatamente, que tipo de mito está se falando, onde e como ele se ajusta
nessa conjuntura.

Para começar, o cenário a ser descrito se constrói a partir de uma ampla análise histórico-
social do passado e se consolida na vida presente. De acordo com o pensamento do so-
ciólogo polonês Zygmunt Bauman, acompanhado pela maioria dos estudiosos, a segunda
metade do século XX marca o que ele chama de “im das utopias”, e a partir desse diagnós-
tico o quadro que se descortina é o das incertezas, do medo, da insegurança, da vulnera-
bilidade. Para entender esse panorama, desenrola-se há tempos uma consttante revisão
historiográica dos fatos em seu conjunto, na busca de uma recomposição na escrita da
biograia humana. Esse trajeto conduz naturalmente em direção a uma reforma do pensa-
mento então fragmentado, compartimentado, de modo a promover uma convergência de
conhecimentos.

Mas há outros aspectos fundamentais a serem incorporados nessa leitura, que podem ser
deinidos em duas palavras: volatilidade e voracidade, sem que tal simpliicação signiique
empobrecer essa microanálise. Ao contrário, é com base neste cenário e de posse desse
diagnóstico que inauguramos e ampliamos uma plataforma de trabalho, que denomina-
mos relexões sobre uma mitopoética, ou, dito de outra forma, a ressurgência do mito. Esse
estudo é de largo espectro, interconectado a múltiplas áreas, de longa duração e sem de-
marcações de qualquer espécie, vale dizer, atua como um periscópio panóptico.

Volatilidade, aqui, fala das ações de curto prazo, que ignoram o tempo como vetor de con-
solidação de resultados. Fala da visão de pouco alcance, ou da falta dela. Fala da ausência
de planejamentos duradouros, da informação enxuta, rápida, que se perde em meio a uma
desmedida profusão de tantas outras que saturam e se acabam no dia seguinte. Efemeri-
dade é o melhor sinônimo. Na outra ponta, voracidade trata do ritmo vertiginoso e descar-
tável do modo de vida das sociedades em geral. As agendas se atropelam, o imediatismo
compulsivo e desordenado incorporou-se como ilosoia de vida, a obsolescência, a super-
icialidade, a omissão, o simulacro e a banalidade dominando a cena, o indivíduo diluindo-
se na massa indistinta. O aspecto inquietante é que a volatilidade tornou-se irrefreável e a
voracidade, descontrolada.

Volatilidade e voracidade não são mutuamente excludentes. Juntas, elas se encarregam de


aniquilar com o ato de pensar, de reletir, ponderar, questionar. Juntas, elas alienam e en-
torpecem a consciência e não deixam espaço para a construção do sujeito e o reencontro

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consigo mesmo. O ser humano desliza sobre uma ina camada de gelo (Bauman), carregan-
do nos ombros seu próprio cadáver (Freud). Vivemos um tempo em que os horizontes se
apequenam e o futuro se dissolve num oceano de improbabilidades. Vivemos um tempo
em que as respostas se antecipam às perguntas, porque qualquer resposta será melhor que
resposta nenhuma. Vivemos, no dizer de Bauman, “tempos líquidos”. Compreender este
quadro será determinante para compreender o propósito deste artigo.

Valendo-se de expressivas considerações de alguns dos melhores pensadores, e tendo por


base nossa experiência de décadas na pesquisa do tema, elegemos o fenômeno dos discos
voadores, tão popular quanto polêmico, qualquer que seja a vertente, para dar suporte às
nossas argumentações. Trata-se, em última instância, de escolher entre crença e conheci-
mento, fé e razão. Se o conhecimento liberta, a crença aprisiona. A escolha se situa entre
o princípio do prazer e o princípio da realidade. Não se trata de dicotomia pura e simples,
pois a questão exige um tratamento analítico muito além destas páginas.

É surpreendente como o espírito humano é capaz de se locomover ao mesmo tempo por


dois caminhos tão distintos. De um lado, o intelecto, a capacidade criativa e os conheci-
mentos na vida diária direcionando seus passos para grandes conquistas (obviamente, não
se ignora a outra face da moeda). No entanto, à sombra dessa caminhada, o pensamento
místico vigora com grande força, onde subsiste a crença incondicional em fatos onde uma
explicação ao menos razoável é possível, crença essa enraizada em alguns nichos nesse
mosaico de fé: artes divinatórias, reencarnação, espiritismo, religião, fantasmas, entidades
sobrenaturais, ocultismo, vida após a morte, discos voadores e seres alienígenas.

Como explicar esse estranho poder das crenças? De que elementos psicológicos surgem
esses mistérios? A fé é uma natural predisposição psicológica, orgânica, um imperativo
biológico que está além da crítica, da razão e da relexão, induzindo a certa estagnação
intelectual. Pelo não pensar a fé se instala e se torna mais digerível. O espanto, o deslum-
bramento, o maravilhamento e a perplexidade subentendem desconhecimento de um de-
terminado fato, e essa posição produz um bloqueio da consciência, que prefere adotar a
vulnerável postura da crença no fenômeno, independente de sua origem.

Crenças religiosas, políticas, morais, mágicas ou de qualquer natureza haurem uma força
psíquica ilimitada. Enquanto a busca pela verdade ou pelo conhecimento exige trabalho
grandioso, a crença em uma certeza baseada unicamente numa convicção pessoal não
pede nenhum esforço. Mas a razão tem uma vitalidade inesgotável em busca do saber,
e se assim não fosse, ainda estaríamos acreditando em dragões cuspidores de fogo, ou
que crianças peludas (hirsutismo) são “coisa ruim”, que o “abominável homem das neves”
perambula pelas encostas geladas do Himalaia ou da Sibéria, ou que folclóricas e bizarras
criaturas se esgueiram furtivamente pelas trevas da noite atemorizando pacatos cidadãos.

Gustave Le Bom é certeiro ao airmar que “A relexão permite raciocinar convenientemente


sob a condição de que não intervenham as lógicas afetiva e mística. Desde que os assuntos

consciências ‘05 | 77
sobre os quais se quer raciocinar caem no campo da crença, a relexão perde o seu poder
crítico.”2 Para ele, está longe o dia em que o raciocínio ilosóico terá peso maior que as pul-
sões místicas. .“Os sentimentos ixos e de forma constante qualiicados de paixões consti-
tuem, também, possantes fatores de opiniões, de crenças e, por conseguinte, de conduta.”3

Não obstante o sociólogo francês ter se pronunciado em 1895, meio século antes do ad-
vento Ovni em escala global, sua voz ainda ecoa forte nos dias atuais. O melhor exemplo é
a declaração de um ex-ufólogo, atualmente vivendo da astrologia, que é uma espécie de
padrão no pensamento geral: “Os discos voadores existem! São veículos provenientes de
civilizações longevas e avançadas, tripulados por seres inteligentes que visitam a Terra há
milhares de anos com os mais diversos objetivos”4. Declarações semelhantes somam-se às
centenas, dadas por ufólogos e não ufólogos, tornadas públicas ou não. Ao segmentarmos
cada trecho dessa airmação e submetermos a um exame criterioso, será fácil constatar a
extensão do equívoco.

Veículos provenientes de civilizações longevas e avançadas. Não há, em todo o histórico das
alegadas observações dessa natureza, em todo o mundo e em todos os tempos, qualquer
indício de que sejam “veículos” e menos ainda oriundos de “civilizações longevas e avan-
çadas”. Para que houvesse um mínimo de possibilidade para o fato, seria necessário que a
vida extraterrestre, e mais ainda, a vida extraterrestre inteligente estivesse deinitivamente
comprovada. Não está e provavelmente jamais será, por razões óbvias. A sucessão organi-
zada e contínua na formação da vida começa pela química inorgânica, microrganismos e
segue por uma longa e cada vez mais intrincada cadeia evolutiva, até culminar nas formas
de vida como as vemos hoje, um percurso de centenas de milhões de anos.

A vida extraterrestre permanece no terreno da suposição e da especulação (do latim spe-


culatio – observar, reletir), pois não há nenhuma comprovação cientíica para o fato. O
espaço é permanentemente vigiado por “olhos e ouvidos” atentos ao menor sinal que in-
dique companhia para o baile cósmico. O silêncio é absoluto e parece que isso não irá mu-
dar. Nossa voz é única a entoar canções, declamar poemas e contar histórias. A descoberta
de uma forma de vida surpreendentemente incomum em num lago americano de águas
sulfurosas, revelou que a vida oferece variações impensadas para a sua adaptação em am-
biente adverso, mas isso apenas sinaliza a possibilidade de que a vida tenha proliferado
espaço afora, ainda que na esfera dos microrganismos. As condições que se criaram para o
surgimento da vida na Terra foram tantas, tão complexas e tão singulares, que a probabili-
dade de terem se repetido exatamente da mesma forma é próxima de zero.

2 LE BON, Gustave. As Opiniões e as Crenças. (La psychologie des foules). eBooksBrasil.com. p. 146-148, 2002
3 Id, p. 146.
4 Jaime Lauda, em correspondência com o autor (por e-mail), em setembro de 2009. Posteriormente, em artigo
publicado na Revista UFO, edição 159, de novembro de 2009, Por trás da análise de um mito, p. 40-41, o mesmo
ratiicou sua declaração, em outros termos.

78 | consciências ‘05
Já o problema da vida extraterrestre inteligente é mais complexo. Não há nenhuma certeza
de que, em havendo vida inteligente no cosmos, tenha ela desenvolvido uma capacidade
tecnológica suiciente para transitar pelo espaço. Baleias, golinhos, abelhas e formigas – e
poetas (no bom humor de Sagan) são consideradas espécies inteligentes, mas nenhuma
delas constrói radiotelescópios ou foguetes. A nossa concepção de inteligência é ainda
muito provinciana. Marcelo Gleiser, Professor de Filosoia Natural, Física e Astronomia do
Dartmouth College, EUA, considera a vida na Terra uma “anomalia”, e devemos concordar
com ele, até porque outros nomes de grande envergadura apostam na mesma ideia, como
Adrian Clark, David Grinspoon, Freeman Dyson e o conhecido físico Stephen Hawking, en-
tre outros.. Gleiser airma que mesmo que a vida inteligente seja possível em algum ponto
no espaço, provavelmente jamais saberemos, e devemos aprender a conviver com essa
solidão cósmica.

A defesa contrária a esse raciocínio não considera a colossal diiculdade – por parte de uma
presumida civilização nos conins da galáxia – de prospecção e localização do nosso mi-
croscópico planeta (numa escala otimista, a milésima parte de um grão de sal no Pacíico),
diante das extraordinárias distâncias entre os bilhões e bilhões de astros espalhados pelo
universo. Quanto mais distante, mais longeva e nada faz supor que o fato de ser “avançada”
como sinônimo de “inteligente” lhe permita atravessar espaços inimagináveis. Um cálculo
bastante simples mostra que para cobrir a distância entre a Terra e a estrela mais próxi-
ma, Alpha Centauri, localizada a 4,3 anos-luz (algo superior a 40 trilhões de quilômetros)
à maior velocidade permitida pela atual tecnologia espacial (cerca de 50.000 km/h), leva-
ríamos 180.000 anos. E está comprovado que não há qualquer vestígio de vida num raio
de 200 anos-luz do sistema solar. E quanto mais se teoriza sobre a tecnologia utilizada por
estas máquinas para empreender tão longas viagens, mais o enredo se aproxima da icção
cientíica, da qual a ufologia tem sido generosa hospedeira. E nem cabe ingressar no tópico
da comunicação entre aliens e sapiens, acontecimento corriqueiro na ufologia, que oscila
entre o delírio e a falácia.

Ainda que procurássemos desenvolver uma hipótese minimamente aceitável para consi-
derar a possibilidade de vida extraterrestre inteligente, sem patinar nas curvas da fantasia e
da icção, teríamos que raciocinar a partir de parâmetros não humanos, isto é, imaginar que
qualquer forma de vida que possa existir no cosmos deverá ser obrigatoriamente diferente
da nossa – para todos os efeitos, uma anomalia, um acidente cósmico, uma singularidade.
Nenhuma icção até hoje foi capaz de imaginar uma forma de vida tão extraordinariamente
diferente, pois há sempre um padrão terrestre a copiar. Se tal civilização existir de forma
diferente da que imaginamos, não temos como imaginar de forma diferente. E não há for-
ma diferente de imaginar se tomarmos os parâmetros terrestres para formular o raciocínio.
Não há dilema, é lógica, é racionalismo ilosóico.

Visitam a Terra há milhares de anos. Nosso planeta não é mais visível a partir de Júpiter –
onde, aliás, cabem mil Terras, que não é visível a partir de Netuno. O sol é apenas uma
estrela de 5ª grandeza do tipo anã-branca, e na comparação com a estrela Betelgeuse,

consciências ‘05 | 79
por exemplo, esta tem um diâmetro de 1 bilhão de quilômetros (o sol tem pouco mais de
1 milhão), é 700 vezes maior e tem um brilho 10 mil vezes mais fulgurante. Colocar a Terra
como centro das atenções de hipotéticas civilizações entra no âmbito de aspectos pura-
mente culturais e psicológicos, principalmente quando diz respeito aos mais diversos obje-
tivos citados na referida declaração. Para entender esse pensamento, é preciso retroceder
ao tempo em que se acreditava ser a Terra o centro do cosmos – o geocentrismo, conceito
posto abaixo por Copérnico e meados do século XVI, seguido por Klepler, Newton e Galileu.
Esta foi a primeira ferida narcísica de que falava Freud.

O heliocentrismo deslocou o homem de seu próprio eixo de protagonista da peça cósmi-


ca. Não bastasse essa dura realidade em seu espírito, 200 anos depois foi a vez de Darwin
abrir uma segunda ferida ao demonstrar que éramos apenas uma consequência natural
da evolução da vida no planeta, no caso, dos símios superiores, e não uma criação divina.
E um terceiro golpe seria dado justamente por Freud, ao lançar as bases cientíicas sobre o
inconsciente. O homem não era nem o centro nem o dono de si mesmo, destroçando sua
dignidade. É nessa topograia acidentada que ele começa a plantar suas angústias, suas
fraquezas, seus medos, escancarando a fragilidade mais profunda do seu ser, ratiicando
quão longe está sua maioridade no plano do universo.

A necessidade de signiicância cósmica é um dado antropológico estrutural diretamente


ligado ao terror da aniquilação pela morte. Não queremos admitir nossa solidão, nem tam-
pouco que sempre nos apoiamos em algo que nos transcende, um sistema de ideias e po-
deres no qual estamos mergulhados e que nos ampara. O homem sempre teve a ambição
de conhecer o seu destino e obter a proteção das potências sobrenaturais de que se julga
cercado. É diante desse vazio que se manifesta o último trecho analisado. Quais seriam,
portanto, os objetivos de tais visitantes?

De acordo com o pensamento em vigor na ufologia – e também fora dela, –, estes seres
estariam “preocupados” com nossa escalada armamentista e a destruição do planeta, a
ponto de emitirem um alerta: “Interrompam imediatamente todos os testes atômicos
com propósitos bélicos. O equilíbrio do universo está ameaçado. Estaremos atentos e vi-
gilantes, prontos a intervir no caso de uma catástrofe nuclear”5. Uma pesquisa realizada
nos anos 80 revelou que uma parcela signiicativa do público considerava que os extra-
terrestres eram seres protetores, guardiães estelares, irmãos cósmicos. Le Bon é enfático ao
airmar que “As crenças quiméricas permanecerão sempre geradoras das longas esperan-
ças. Elas originaram os deuses através das idades.”6 Lembramos que ele se manifestou no
inal do século XIX.

5 Suposta mensagem telepática recebida por H.V.A. em 24/4/1959, conhecido como “Caso Piatã”, na Bahia. O fato
repercutiu mundialmente, tornando-se emblemático e gerando eventos semelhantes durante décadas.
6 Ibid., p. 444

80 | consciências ‘05
Na esfera da crença, comandada pela lógica mística, as convicções se formam muito di-
versamente e a credulidade propaga desenfreada. A consciência só se liberta de seu pri-
mitivismo quando ultrapassa a barreira das crendices, das superstições, das lendas, dos
oráculos, feiticeiros e taumaturgos. Para mascarar a angústia visceral do desamparo e da
solidão no cosmo, o homem cria fantasias, sonhos, ilusões e utopias, forjando um escudo
contra uma realidade que desvela seus medos ontológicos inescrutáveis, sua indigência e
seu não lugar na ininitude do universo. Erich Fromm, ilósofo e sociólogo alemão, também
se mostra contundente quando airma:

se o homem prescinde da ilusão de um Deus protetor, se encara a sua própria solidão e insig-
niicância no universo, ele se sentirá como a criança longe da casa paterna. mas o verdadeiro
sentido do desenvolvimento humano consiste em sobrepujar esta ixação infantil.7

Nossa ignorância sobre nossa ignorância tem retardado por séculos o desenvolvimento
das ciências. O desejo de explicações é tão grande que sempre se encontra alguma res-
posta para os fenômenos menos compreensíveis. É mais cômodo admitir que Júpiter lança
raios do que se confessar ignorante em relação às causas verdadeiras. A crença é um im em
si mesma, subentende bloqueio no processo de aprendizado. O encadeamento se forma:
Sem conhecimento, não há autonomia. Sem autonomia não há identidade e sem identida-
de não há liberdade. O círculo então se fecha: sem o livre pensar não há lugar para o saber.

ANATOmIA DE UmA ILUSãO

A primeira metade do século XX chegava ao seu limiar sob o trauma de uma guerra que
devastara cidades inteiras, trazendo desesperança, medo, inquietação e dor. Os ideais de
uma vida plena de realizações se perdiam nos horizontes recortados por fumaça e escom-
bros. A partir de então, a humanidade jamais seria a mesma. Entravam em pauta algumas
das maiores transformações de sua história. As tensões acorrentadas nas profundezas da
psique libertaram-se e lançaram-se sobre o mundo,. A invasão da consciência por esses
fundos psíquicos inconscientes, os quais submergem a razão e induzem as pessoas a com-
portamentos anormais, conigura o que em psicopatologia se denomina psicose coletiva.
Essa guerra foi o marco inicial do que se convencionou chamar de “pós-modernidade” ou
im das utopias.

Nunca antes uma epidemia psíquica fora tão destrutiva, nem mesmo a guerra anterior.
Nunca antes uma epidemia liberara forças capazes de destruir a humanidade. Sobre isso,
Jung dizia que caso o indivíduo fosse capaz de agarrar-se a um último resto de consciência
ou de preservar os vínculos de relacionamento humano, poderia surgir no inconsciente,
justamente através da confusão do entendimento consciente, uma nova compensação
que possivelmente será integrada pela consciência. Segundo ele, apareceriam novos sím-

7 FROMM, Erich. psicanálise e Religião. Rio de Janeiro, Livro Ibero Americano. P. 18, 1936.

consciências ‘05 | 81
bolos de natureza coletiva que reletiriam agora forças de ordenamento, e os discos voado-
res poderiam ser os protagonistas desse espetáculo.

Em meio ao caos social delagrado pela guerra, uma série de acontecimentos começou
a chamar a atenção em todo o mundo – a observação de luzes e objetos desconhecidos
voando pelos céus. Eram os Ovnis que invadiam a vida dos homens. É notável a capacidade
do fenômeno de se metamorfosear através da história, indo desde as barcas voadoras do
século IX aos foguetes fantasmas dos anos 50 no continente europeu. Isso sugere algum
tipo de interação entre o fenômeno e o observador, o que faz pensar na possibilidade de
envolvimento de uma forma de consciência imaginativa. Esse caráter psíquico não pode
ser ignorado. Jung se ocupou durante algum tempo estudando o assunto e declarou:

o aspecto psíquico desempenha, neste fenômeno, um papel tão importante que não pode
ser deixado de lado. o levantamento dessa questão leva, como as minhas explanações tentam
demonstrar, a problemas psicológicos que tocam em possibilidades, ou impossibilidades, tão
fantásticas quanto uma observação física.8

Embora Jung tenha se manifestado com base nas informações da época, mas sem a prática
investigativa necessária, seu domínio no ofício psicanalítico lhe dava plena autoridade. Sua
palavra sempre foi muito respeitada. Dizia ele que “São modiicações na constelação das
dominantes psíquicas, dos arquétipos, dos ‘deuses’, que causam ou acompanham transfor-
mações seculares da psique coletiva”.9 De qualquer forma, o fenômeno estava instalado no
cotidiano das pessoas, e há muito habitando o inconsciente sem que o soubessem. Jung
lançou as bases de uma hipótese que ao longo do tempo se robusteceria graças ao desen-
volvimento dos estudos interdisciplinares, como tentaremos mostrar.

Num recorte mais atual, Bauman parece dar eco aos conceitos junguianos: “O medo ins-
talado, absorvido, autoalimentado, fortalecido e perpetuado no cerne do espírito acaba
provocando um efeito colateral de busca de heróis salvadores e protetores”.10 Essa fala
encontra ressonância em muitos outros autores, o que supõe as premissas apontadas por
Jung estarem corretas. A expressão “disco voador” surgiu de uma interpretação distorcida
dada por um afoito repórter de um tablóide americano. O inconsciente coletivo postulado
por Jung começava a se manifestar, e os lying saucers assumiram seu papel na ordem do
dia, para nunca mais saírem.

Essa torção se deu porque a imagem do “disco” já estava encravada no inconsciente des-
de o inal do século XIX graças às primeiras novelas sci-i, entre elas, a famosa Guerra dos
Mundos, de H. G. Wells, escrita em 1898, que impulsionou o gênero. Detalhe relevante: este
conto foi encenado em uma transmissão radiofônica em 1938, que aterrorizou a América,

8 JUNG, Carl G. Um mito moderno sobre coisas vistas no céu. Rio de Janeiro, Vozes. P. 98, 1991.
9 Id, prefácio, p. IX/
10 BAUMAN, Zygmunt. Tempos Líquidos. São Paulo. Jorge Zahar, p. 13, 2007.

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no mesmo momento que eclodia a Segunda Guerra Mundial. Estes dois fatos guardam
importantes vínculos. Em síntese, o fenômeno surgiu pela combinação de circunstâncias
históricas e sociais singulares, pulsões religiosas, fatores culturais e aspectos arquetípicos,
num processo de atualização e ritualização do pensamento mítico. A partir de então, os
discos voadores habitam o imaginário popular por conta de uma premissa equivocada que
se consolidou e se sustenta por um acúmulo interminável de erros.

Por que o fenômeno Ovni seduz tanto? De onde vem tamanho encantto? Assim como
toda crença, a sedução ou encantamento tem o ingrediente central na irracionalidade, e o
“disco voador”, com sua roupagem tecno-mística não é exceção, seduz e muito. A combina-
ção sagrado, icção, mistério e inexplicado revela seu caráter transcendente, inapreensível
aos sentidos e ao senso comum, tal como os mitos. Essa, talvez, seja uma de suas armadi-
lhas, porque possui todos os requisitos necessários para cinzelar esse modelo fascinante e
inundar o imaginário coletivo: O sagrado seduz porque liga com o transcendente; A icção
seduz pelo livre exercício do fantástico e da imaginação; O mistério seduz porque enfrenta
o medo do desconhecido; por im, o inexplicável seduz porque revela o inconsciente. A seu
modo, o fenômeno Ovni seduz porque coloca em contato com o transcendente através da
imaginação diante do desconhecido. E o faz com muita competência, estimulando o lado
mágico e imagético da coisa, e a crença nessa magia é mais social que psicológica.

Essa sedução do fenômeno Ovni tem um componente mágico. Sedução vem do latim se-
ducere, seductio, separar, por à parte, enganar através de um jogo de aparências. Porém,
a magia só terá efeito se a plateia estiver inserida no tecido social – a rede simbólica – a
qual pertence. A mágica, em Ufologia, não permite tirar Ovnis da cartola e é no luxo dessa
frustração que a ilusão se potencializa. Quanto mais a ilusão cresce, mais o “sagrado” se
consolida. É interessante observar nesses processos mentais, a busca de fragmentos da
realidade que possam injetar certeza a fatos que provêm muito mais do mundo mental
do que da realidade externa. Conexões lógicas entre os dados, argumentos que buscam
demonstrar a veracidade dos fatos, são expedientes para dar indumentária lógica e de
convencimento àquilo que não passa de delírio. A este fato, caracterizado por distúrbios
na área do pensamento, o psicanalista Wilfred Bion denominou de psicose sana. Tudo isso
pode ser resumido numa única frase do antropólogo Lévi-Strauss: ”A eicácia da magia im-
plica a crença na magia”.

Existe uma opinião coincidente entre vários autores de que a inluência exercida pela icção
cientíica no corpus da Ufologia é inquestionável, sendo um de seus principais combustí-
veis. Para o Professor de Sociologia da Universidade Paul Valéry-Montperllier III, Jean-Bruno
Renard , “O fenômeno dos discos voadores é o ponto culminante da simbiose entre os te-
mas de icção cientíica e as crenças pararreligiosas”.11 É importante ressaltar que a icção

11 BAUMAN, Zygmunt. Tempos Líquidos. São Paulo. Jorge Zahar, p. 13, 2007.
LRENARD, Jean-Bruno. Ficção e Imaginário, p. 233. Sociologia do Imaginário. Porto Alegre. Sulinas, 2007.

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cientíica jamais pode ser vista como uma modalidade de entretenimento, uma literatura
menor ou um gênero de “alienação”. Ela é provocadora, instigante, reveladora.

Para Biagio D’Angelo, Professor de Teoria Literária e Literatura Comparada, da Pontifícia


Universidade Católica, de São Paulo, a icção cientíica incorpora, em suas metáforas, as
viagens espaciais, o ideário de uma sociedade alternativa, composta por humanos ou hu-
manóides, alienígenas, andróides, robôs e máquinas, e, ainda, a biologia, considerada na
sua forma mais futurista e, portanto, possível. Muitos de seus colegas reconhecem na sci-i
uma “utopia crítica”, que mantém a chama da discussão das capacidades imaginativas da
literatura. Para a premiada escritora Doris Lessing, “A mente humana sente necessidade
de se expandir, desta vez na direção das estrelas, das galáxias e quem sabe o que mais.”12
A literatura, diz ela no prefácio a Shikasta,”seria como o resultado da “eclosão do nada”:
quando já não se espera mais nada,. Essa “eclosão” poderia ser também uma espécie de
renascimento da necessidade do mito e, ainda, da função das religiões na produção estéti-
co-literária.

Biagio acrescenta que Lessing é consciente que as literaturas sagradas do mundo, com
grande audácia, souberam interpretar o mundo e o presente dentro de uma lógica não
sempre plenamente compreensível à mente humana. Os mitos são ainda atuais, parece
concluir Doris Lessing. Eles oferecem conclusões “lógicas” ou possivelmente aceitáveis para
viver, reunindo em si os questionamentos sobre a ciência e a sociedade. O componente
utópico que opera velada ou desveladamente na icção cientíica liga-se intimamente às
narrativas milenares do apocalipse. A concepção da catástrofe é fundamentalmente a ex-
pectativa do apocalipse. O Professor em Filosoia Moderna, J. Francisco Saraiva de Souza,
da Universidade Nova de Lisboa, reforça o papel da icção cientíica – em particular no ci-
nema – ao airmar que “As forças do caos são produzidas pela própria ação humana: o caos
que ameaça destruir o homem e a natureza é, em grande medida, antropogênico.”

o cinema de icção cientíica oculta uma profunda ansiedade no que concerne à vida contem-
porânea e esta ansiedade não se refere somente à catástrofe física, à perspectiva da mutilação
e da aniquilação universal - o trauma da bomba, mas fundamentalmente ao psiquismo indi-
vidual.13

No campo da Ufologia, os relatos de “contatos” e mesmo os de alegada “psicograia extra-


terrestre” apresentam semelhanças irrefutáveis com as narrativas de icção cientíica, refor-
çadas principalmente pela abundante literatura e ilmograia do gênero sci-i. Poderíamos
enumerar dezenas de títulos literários, cinema e seriados para televisão de grande alcance
em todo o mundo, que serviram de inspiração para tais narrativas. Na obra Shikasta, de
Lessing, 1960, por exemplo, a narrativa da autora, na pele de um personagem da história,
adquire duplo valor. De um lado, enfatiza a hipótese de um apocalipse futuro, e, por outro,

12 Id. p. 7. Doris Lessing. Shikasta. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, p. IV, 1987.
13 http://cyberself-cyberphilosophy.blogspot.com.br/2009/10/iccao-cientiica-ilosoia-do-cinema.html

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reforça a necessidade de resgate histórico e psicológico dos deuses e dos mitos como ten-
tativa de resposta às angústias existenciais.

O Professor Biagio defende a ideia da necessidade que temos da icção cientíica não para
reforçar nossas utopias, mas para adentrar no discurso do inner space iction, nada mais
que uma viagem alegórica ao inner space individual. Outro aspecto relevante a se observar
é a linguagem, tanto na experiência ufológico como na icção e, por extensão, no mito e
na religião, permitindo uma análise comparativa de extremo valor. Como elementos co-
muns a todos, ainda que no emparelhamento da ufologia com a religião esses pontos se
acentuem, temos a Transcendência: “Do alto”, dos “céus”, de “outra dimensão”; Onisciência :
Sabem tudo sobre nós todo o tempo; Onipresença: Estão em toda a parte simultaneamen-
te; Plenipotência: Dotados de poderes supra-humanos, e Redenção: Proteção e salvação,
coletiva e pessoal.

Seria indispensável conhecer o núcleo de formação dos deuses em geral, e o faremos de


modo bem sucinto. De todos os trabalhos dedicados ao tema, destaca-se “Os Nomes Divi-
nos – ensaio para uma teoria da concepção religiosa” (Götternamen: Versuch einer Lehre von
der religiösen Begrifsbildung, Bonn, 1896), de Hermann Usener, uma das principais fontes
de um livro que é referência na área – “Linguagem e Mito” (Perspectiva, São Paulo, 1992), de
Ernst Cassirer. A obra de Usener divide a gênese e o desenvolvimento dos deuses em três
etapas distintas. Inicialmente, temos o “deus momentâneo” – a impressão transcendente
criada pela confrontação do homem com um fenômeno singular. “Na imediatez absoluta”
– diz ele – “o fenômeno individual é endeusado sem que intervenha um só conceito gené-
rico; essa única coisa que vês diante de ti, e nenhuma outra, é deus”. É a personiicação de
momentos isolados que se revestem de forte tonalidade afetiva.

Assim, explica Cassirer, cada impressão que o homem recebe, cada desejo que nele se agi-
ta, cada esperança que o atrai e cada perigo que o ameaça pode vir afetá-lo religiosamente.
Quando a sensação momentânea do objeto colocado à nossa frente, à situação em que
nos encontramos, à ação dinâmica que nos surpreende, é outorgado o valor e o acento de
deidade, então esse deus momentâneo é criado. Cabe destacar que essas forças se cons-
telam automaticamente sempre que condições internas ou externas exijam um esforço de
adaptação a situações novas ou extraordinárias. Então surgem os deuses, individuais ou
coletivos, cuja atividade impede que o homem seja submerso pela maré de desorientação
que quase sempre acompanha essas circunstâncias.

Quando os deuses são conjugados por um inluxo externo, as forças arquetípicas se pro-
jetam no estímulo, aparecendo aos nossos sentidos como sendo um predicado do objeto
exterior, ao invés de algo que se origina dentro de nós mesmos. Ocorre, assim, uma fusão
entre sujeito e objeto, através da ponte estabelecida por essas forças como mediatrizes,
o que o antropólogo Levy-Brühl denominava participation mystique. É assim que vamos
introduzindo o objeto à nossa própria psique. Dessa forma, ele vai perdendo seu caráter

consciências ‘05 | 85
de absoluta estranheza – nós nos adaptamos a ele, e a libido (como sinônimo de energia
psíquica) de que ele se achava investido pode retornar para dentro de nós.

Esse aparente predicado do objeto é sentido como sendo uma alteridade total, dado que
reúne o que eu desconheço nele e o que eu desconheço em mim. O objeto é o Totalmente
Outro, até que eu possa incorporá-lo à minha visão do mundo. Com isso, ele também se
modiica. Essa ação é bipolar, tanto pode ocorrer em relação a objetos exteriores quanto
interiores à minha psique, contanto que não se pense em limitá-la à consciência. Na ver-
dade, o inner space – nosso espaço interior – é tão vasto e desconhecido quanto o exterior
que tanto nos fascina.

Por im, o terceiro estágio – para Usener o mais elevado, é a coniguração dos “deuses pes-
soais”, que são nomeados e, de certa forma, extrapolam seu âmbito especíico para ga-
nhar uma identidade, uma personalidade e um caráter individual. Podemos reconhecer
os “deuses momentâneos” nas observações de Ovnis e toda a ampla gama de respostas
emocionais que provocam. Os “deuses especiais” surgem quando atribuímos um predicado
aos tripulantes dos discos: conquistadores: salvadores, arautos de uma nova era. E os “deu-
ses pessoais” aos seres anônimos que se transformam neste ou naquele ufonauta especí-
ico, ganhando um nome qualquer – Karran, Cramish, Clyvven, Ptaah, Ágar, Ahura Rhanes,
Ashtar Sheran, nomes com indiscutível semelhança fonética e estrutural com os dos seres
mitológicos: Astarte, Athar, Ciyyim, Ishtar, Nechtan, Yaggdra.

O que chama a atenção, entretanto, voltando e inalizando a questão da icção, não é a mo-
derna sci-i, mas aquela que irrompeu no início do século passado, entre as décadas de 20 e
50, na qual os “alienígenas”, as “naves” e os “propósitos” desses invasores não icaram presos
nas páginas e nas películas, mas saltaram para dentro do repertório da casuística ufológica.
O sociólogo e professor de ilosoia pela Sorbonne, Bertrand Méheust, publicou, em 1978
(reeditada em 2008), Science-Fiction et Soucoupes Volantes, onde dissecou à exaustão toda
a questão da inoculação da icção cientíica na linguagem ufológica.

O estudo de Méheust mostra que as criações literárias e artísticas da icção no período


1700-1800, anteciparam as descrições das formas supostamente observadas no século
seguinte, o que pode indicar que já estavam “arquivadas” no inconsciente. O trabalho de-
monstrou também que todas as constantes do fenômeno Ovni – naves, morfologia aliení-
gena, tecnologia, efeitos físicos e psíquicos, ambientação e muito mais foram “previstas”
pela icção cientíica dos anos 20 e 30, e mesmo muito antes disso, processadas, incorpora-
das e adaptadas pela Ufologia. Em seu detalhado e volumoso trabalho, Méheust compro-
vou que o cenário simbólico vivido pelos abduzidos é idêntico, na composição, aos rituais
de iniciação e, em muitos detalhes, aos estados alterados de consciência.

É importante acrescentar que a icção também pega os antigos mitos e os reveste de uma
exterioridade tecnológica que os torna aceitáveis para a nossa época. A icção, sob qual-
quer forma de expressão, não exerce inluência apenas no plano psicológico, mas também

86 | consciências ‘05
no simbólico e no psíquico. Os crossovers entre icção cientíica e discos voadores são muito
mais frequentes do que se imagina. Assim, num primeiro vislumbre, ica evidente que o
trinômio religião-medo-imaginário se constitui a espinha dorsal do fenômeno, conferindo-
lhe um desenho poligonal.

Não é difícil observar nestes elementos iccionais a alegoria, por meio da alimentação
cientíica, das questões básicas sobre a origem de nossa existência, e das tentativas hu-
manas de alcançar uma resposta satisfatória e totalizadora. A Filosoia está presente de
corpo inteiro na estrutura da icção, assim como a História e a Mitologia. Discutem-se nela
as relações entre ciência, o pensamento humano, os questionamentos existenciais. Mark
Rowlands, em Scii=Sciilo14, cujo subtítulo já diz tudo – “A ilosoia explicada pelos ilmes
de icção cientíica”, reforça alguns pontos nessa relação science iction-ilosoia de maneira
muito inteligente, colocando de imediato a questão do confronto com algo essencialmen-
te alienígena – um robô, um cyborg, um monstro, um mutante, uma ameaça, um invasor,
enim. Nada nos impede de resumir como o Outro – objeto de extensos e valiosos estudos
psicanalíticos.

Confrontar essas criaturas é como ter um espelho voltado para nosso rosto – ele nos permite
ver e entender a nós mesmos de maneira muito mais clara. Confrontar o mundo exterior é o
mesmo que encarar o mundo interior, o real termômetro de nossa sanidade. Tal como o
mito, a religião e a icção – e aqui nos permitimos uma breve digressão – a arte também
estabelece ligações com as forças inconscientes. Aniella Jafé, discípula de Jung, estudou
o modo como a arte moderna pretende restabelecer ligação com as forças inconscientes,
mostrando quais são os símbolos religiosos subjacentes a esse movimento artístico15. A
conclusão que praticamente se impõe, portanto, é a de que, se os discos voadores não são
a única forma de expressão alternativa das forças arquetípicas da psique, não há como du-
vidar, entretanto, que a Ufologia está integrada em um multifacetado fenômeno histórico
de transformação da consciência..

Karen Armstrong, estudiosa e escritora de várias obras sobre mitologia e religião aclama-
das pela crítica, nos propõe uma bela relexão, ao mesmo tempo em que nos serve de
ponte para a próxima abordagem:

(...) os adultos humanos, porém, continuam a apreciar a exploração de possibilidades diferen-


tes, e, como crianças, seguimos criando mundos imaginários. na arte, livres dos constrangi-
mentos da razão e da lógica, concebemos e combinamos novas formas que enriquecem nossa
vida, e que nos mostram algo muito importante e profundamente “verdadeiro”, no qual acredi-
tamos. na mitologia também elaboramos uma hipótese, damos vida a ela por meio do ritual,

14 Relume Dumará, RJ, 2003. O autor apresenta sua análise através de ilmes como Blade Runner, O Exterminador
do Futuro, Matrix, Independence Day, entre outros. De forma mais modesta, izemos o mesmo em Relexões, com os
ilmes A Vila, Fim dos Tempos, Distrito 9 e Avatar. O ponto em comum entre ambas é concluir que o confronto será
sempre consigo mesmo.
15 O Simbolismo nas Artes Plásticas, , in C.G. Jung, O homem e seus Símbolos, Nova Fronteira, SP, 1964.

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agimos a partir disso, contemplamos seu efeito em nossa vida e descobrimos que atingimos
uma nova compreensão no labirinto perturbador do mundo em que vivemos. um mito, por-
tanto, é verdadeiro por ser eicaz, e não por fornecer dados factuais. contudo, se não permitir
uma nova visão do signiicado mais profundo da vida, o mito fracassa. o mito é essencialmente
um guia; ele nos diz o que fazer para vivermos de maneira completa. se não aplicarmos o mito
à nossa situação e não o tornarmos uma realidade em nossa vida, ele seguirá sendo tão incom-
preensível e remoto quanto as regras de um jogo de tabuleiro, que frequentemente parecem
confusas e cansativas até o momento em que começamos a jogar.16

O sociólogo e antropólogo Gilbert Durand dedicou-se intensamente ao estudo do imagi-


nário, escrevendo uma obra magistral – “As Estruturas antropológicas do Imaginário”, onde
airma que os mitos, crenças, sonhos e icções ordenam, com sua lógica própria, os medos,
as aspirações e os desejos modelados pelas imagens, que serão trabalhados pelas forças
subjetivas e introduzidos em uma visão mágica de mundo.

a necessidade da função fantástica reside na faculdade do imaginário de ultrapassar a tempo-


ralidade e a morte. a eufemização que ela assegura é o principal motor deste grande processo
socio-antropológico. é, por essa razão, que o mito se torna o provocador destas duas inelutá-
veis e inexpugnáveis barreiras culturais: a cronologia e o falecimento.17

O conjunto dos nossos referenciais motores, tanto para o psiquismo quanto para o com-
portamento, a ideia ou a sua concretização, passa pela matriz imaginária. Durand nos co-
loca frente a frente com nossa consciência criativa, imaginativa, dotada de um poder de
fabulação até então pouco explorada. Ele põe a nu uma série de questões que ou ingía-
mos ignorar ou, de fato, ignorávamos. Segundo seu pensamento, “A imaginação nos leva,
permanentemente, a recriar o mundo a nossa imagem, mas ampliicando-a, deformando
-a, tornando-a imaginária.”18 O professor de Etnologia da Universidade de Lyon II, François
Laplantine, airma que o homem, através do imaginário

é uma máquina de criar deuses. ao construir os deuses, o homem toma como referência uma
realidade dada que caleidoscopicamente reordena, reestrutura e recria. nesse processo, o ima-
ginário tem como referência o real, dando-lhe outros sentidos fornecidos pelo material simbó-
lico que utiliza.19

Nascemos e crescemos num universo de racionalidade no qual esses fenômenos são even-
tos estranhos, ou estrangeiros (extra, de fora), que não obedecem às leis naturais que ex-
plicam o mundo. O fantástico é a intervenção de um elemento desconhecido na dinâmica
da vida cotidiana, ao mesmo tempo em que bloqueia o julgamento, gerando hesitação e
a impressão imediata de um “absurdo”. Para Laplantine e Trindade, ao utilizar essas repre-

16 ARMSTRONG, Karen. breve história do mito. São Paulo, Cia. Das Letras, 2005, p. 14
17 DURAND. Gilbert. As Estruturas Antropológicas do Imaginário. São Paulo. Martins Fontes, p. 204, 2002.
18 Id. P. 233.
19 LAPLANTINE, François; TRINDADE, Liana. O que é Imaginário. São Paulo, Brasiliense, p. 37, 1997

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sentações simbólicas como matéria-prima, o homem elabora no processo do imaginário os
deuses consubstancializados, que tomam forma no centro de suas experiências sociais e,
partindo do real, transformam-se e estruturam uma nova realidade social.

no mundo real do cosmo imaginário, os adeptos vivem, concebem e produzem através do


culto as suas relações com os deuses e a interferência desses deuses em suas experiências
cotidianas. no plano ideológico, os adeptos podem impor, através de uma elaboração secun-
dária, determinados aspectos dessa divindade. assim, atribuem-lhes, de maneira seletiva, as
qualidades que correspondam aos valores que interessam ao grupo social dominante e que
devem ser transmitidas para os adeptos.20

Em um campo inesgotável de descobertas como o imaginário, corremos o risco de abu-


sar de citações e enveredar por um labirinto de deinições que mais podem confundir do
que esclarecer, mas são necessárias algumas considerações. O antropólogo Jacques Le Gof
analisa sob o ponto de vista de que imaginário pertence ao ramo das representações não
reprodutivas, isto é, uma representação original, criadora. Em Durand, o imaginário é o
total das imagens e das relações de imagens que constitui o capital pensado, o grande e
fundamental denominador onde se encaixam os procedimentos do pensamento humano.
Deleuze o vê como um conjunto de trocas entre uma imagem real e uma virtual. Lacan
interpreta o imaginário ilustrando com a ideia da criança que se vê no espelho: ao mesmo
tempo em que o relexo conirma a existência do “real”, sugere uma ilusão, apenas um re-
lexo. Para que a criança atinja o nível da realidade, deve deixar o modo imaginário da visão de
si e utilizar o modo simbólico. O grifo é proposital para relembrar a fala de Fromm, dita com
outras palavras. Nos parece que todas elas, na verdade, se complementam. Lacan e Fromm
conjugam o verbo amadurecer, algo muito distante para quem ainda está na primeira in-
fância como nós.

Para esse estudo, adotamos o pensamento de Durand: Um conjunto de imagens do patrimô-


nio cultural do sujeito e da sociedade. Podemos concluir airmando ser o imaginário o veí-
culo instaurador do equilíbrio dinâmico do homem em suas relações com o mundo (como
o mito), através do intercâmbio contínuo entre as pulsões biopsíquicas e as instâncias so-
cioculturais. O imaginário é a mediatriz entre o real e o ilusório, o entrelugar organizador
dos padrões imaginantes produzidos pelo homem. Convém atentar que “imaginário”, no
contexto aqui colocado, não deve ser confundido com o uso coloquial da palavra, que é
tida como sinônimo de “falso”, “inexistente”. Contudo, neste ponto da análise, sua aplicação
está associada aos veículos que o produzem: o sonho, a demência, o devaneio e o mito, que
carrega os traços das imagens primordiais e elabora um sistema imaginário desencarnado
dos mais potentes na psique humana, mais verdadeiro do que real. Um ponto interessante
é que essa “família de imagens” é produzida por vontades criativas próprias, preenchendo
uma função relativa às necessidades existenciais. Retomando Laplantine e Trindade, ainda

20 Ibid, p. 38

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que pareça repetitivo nunca é demais enfatizar e reforçar a voz uníssona apresentada por
Durand, Cassirer, Renard e Fromm:

a construção da divindade é realizada no imaginário coletivo. este imaginário caracteriza-se


por uma criação limitada e deinida pelo sistema religioso e social. À medida que são colocados
para a sociedade novos fenômenos e problemas, criam-se novos deuses ou reinterpretam-se
as divindades tradicionais. as criações de novos deuses são feitas pelas relações entre as tradi-
ções religiosas e socioculturais e a reinterpretação dessas tradições.21

Evocar Campbell se justiica pela complementaridade com a citação anterior:

os deuses reúnem a sua existência histórica passada com a reatualização mítica de sua conti-
nuidade existencial no presente, conigurando a promessa e o princípio da esperança projeta-
da no futuro terreno ou extraterreno. essa correlação dinâmica entre história e mito permeia
toda a construção dos deuses. eles são antepassados divinizados ou indivíduos que continuam
na existência terrena, atravessando a morte e o nascimento da conversão espiritual, através do
ritual de passagem.22

OS DEUSES ESTÃO MORTOS?

O leitmotiv deste artigo, lembramos, é demonstrar que o fenômeno dos discos voadores
apresenta simetria estrutural com os mitos quanto à sua linguagem, simbolismos, função
e natureza, sendo, em princípio, por analogia, um mito contemporâneo. Em relação aos
mitos, Lévi-Strauss dizia que “O problema é descobrir aquilo que é comum a todos. É um
problema, poder-se-ia dizer, de tradução, de traduzir o que está expresso numa lingua-
gem”. Isso nos remete, então, ao coração deste trabalho: traduzir o que está expresso numa
linguagem, no caso, o relato ufológico, através do estudo comparado das semelhanças estru-
turais. O arco que se estende aqui entre ambos busca atender a expectativa de Campbell:
“Até onde sei, ninguém tentou ainda conigurar em um único quadro as novas perspectivas
que abrimos nos campos do simbolismo comparado, religião, mitologia e ilosoia, utilizan-
do-se do conhecimento moderno”.23 Para ele, uma comparação honesta revela que tudo
foi erguido a partir do mesmo depósito de motivos mitológicos. Naturalmente, ele não se
referia ao fenômeno Ovni, mas seu pensamento nos parece perfeitamente adequado ao
escopo desse estudo.

O fenômeno Ovni é constituído por um feixe de eventos que afetam o sistema perceptivo
do sujeito, e transpassam tantos aspectos inconciliáveis que ica difícil obter uma etiologia
universalmente aplicável. A sua luidez resulta mais da nossa incapacidade de apreendê-lo

21 Ibid, p. 38
22 Ibid, p. 42
23 CAMPBELL, Joseph. mitologia na Vida moderna. Rio de Janeiro. Rosa dos Tempos, p/ 14,. 2002.

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do que de seu mecanismo de ação, que tem sido visto como um festival de incoerências
ou jogo de absurdos, que pulverizam os postulados da lógica. Talvez não seja mais tão
inexplicável e desconexo assim. A ortodoxia ufológica constitui um Leito de Procusto, onde
os fatos são esticados ou comprimidos de forma a se encaixarem nos estreitos limites da
“hipótese extraterrestre”.

A partir do momento em que um modelo teórico começa a agir dessa forma reducionista,
signiica que já esgotou todas as suas linhas interpretativas, transformando-se em um arca-
bouço enferrujado de uma teoria que se limita a considerar automática e indeinidamente
os fatos de acordo com categorias preconcebidas de classiicação. O intelecto humano,
condicionador e condicionado a ordenadores terrestres, encontra-se diante de algo não
terrestre, inumano – transreal, trans-humano dos mitos –, portanto indecifrável e incog-
noscível. Se o mundo transborda de observações, testemunhos muitos deles insuspeitos,
por que o fenômeno permanece insolúvel e enigmático? Teria o interesse coletivo se vol-
tado para os Ovnis como um reconhecimento intuitivo de que eles poderiam simbolizar
forças ordenadoras que se contrapunham à dissolução psíquica que grassava livre? Jung
acreditava que sim, e expôs esse pensamento em “Um Mito Moderno”. A forma de expres-
são do contatado e do abduzido é essencialmente simbólica, e o caráter soteriológico em-
butido em suas mensagens e relatos relete os temores não apenas sobre o im do planeta,
mas da vida em geral. Não vimos que o padrão é O equilíbrio do universo está ameaçado.
Estaremos atentos e vigilantes, prontos a intervir? ?

O status de divindade dado às entidades contatantes revela traços de um comportamento


primitivo. O contatado, qualquer que seja o seu nível de envolvimento, coloca-se no epi-
centro das manifestações – e a ideia de salvação da humanidade é recorrente. Sobre esse
fato, o professor e historiador português Joaquim Fernandes, da Universidade Fernando
Pessoa, de Porto, Portugal, escreveu que isso signiicava a continuidade do pensamento
mítico na sociedade tecnológica e cientíica, na cultura urbana e globalizante dos nossos
dias, que traduz uma estreita ligação a elementos arcaicos recuperados pelo cristianismo
e demais religiões. Fernandes assinala também que os ensaios de interpretação cientíica
desses fatos marcam novas etapas no reconhecimento do quadro geral do chamado “ma-
ravilhoso”, que traduz simultaneamente as características básicas até hoje inalteráveis: o
onírico, a imaginação, a fábula, lado a lado com o espanto, o medo e a angústia perante o
desconhecido.

No luxo da história esse “maravilhoso” amoldou-se às conjunturas sociais e culturais em


cada tempo. A cientiicação que caracterizou o século XX não representa sua dessacraliza-
ção, mas antes, a ressacralização. Em um livro lançado no inal de 2009, ”De Outros Mun-
dos”, Joaquim Fernandes e colaboradores, todos vinculados àquela instituição, fazem uma
larga incursão no universo das testemunhas sob o ponto de vista psicossocial, sem entrar
no mérito da existência ou não dos discos voadores, percebendo que as crenças e as repre-
sentações, individuais ou sociais, acerca de um fenômeno, interferem com as característi-
cas dos eventos observados.

consciências ‘05 | 91
Fernandes e equipe analisam o fenômeno por vários ângulos, tendo sempre como fulcro
os contatados (em qualquer nível) e sua relação com o tema. Imaginário, mídia, característi-
cas etnográicas, crenças, aspectos religiosos, folclore, construções da memória, abduções
e mitologia são alguns pontos cuidadosamente estudados. Em sua mais recente obra24, o
historiador português dá continuidade aos seus estudos, airmando ser Portugal “Um país
formatado pelos enlaces com o sobrenatural, os compromissos com o milagroso, as alian-
ças com o maravilhoso e o fantástico”. Para Fernandes, sua pátria é um país onde se revelam
episódios de uma vida coletiva, mentalmente organizada em torno de mitos, crenças e
lendas “(...) ...a sua excessiva sacro-dependência e credulidade para-religiosa e o predomí-
nio da emoção sobre a acção, que estão nos alicerces das nossas crises coletivas, como a
do presente.” A herança histórica e cultural advinda daquele país coloca o Brasil na mesma
bacia social, logo, sob a mesma lente crítica.

O mito dos discos voadores – momentaneamente visto dessa forma – pode originar-se
de uma realidade material desconhecida, mas transcende-a na medida em que incorpora
dinamismos psicológicos, forças arquetípicas e padrões culturais, forjando um novo signi-
icado para a articulação de tais elementos. Esse processo faz com que a realidade material
que serve de substrato ao mito perca toda a importância, submersa pela coniguração for-
mada. Cabe inclusive perguntar se esse mito não existiria mesmo sem qualquer referência
ao plano físico, o qual duvidosamente desempenha o papel de mero alicerce para uma
construção psicossociológica que lhe supera em importância tanto quantitativa como, so-
bretudo, qualitativamente.

Dentro da perspectiva hermenêutica, a Ufologia pode ser descrita como um processo de


reatualização e ritualização do pensamento mítico, parecendo forjar uma rede holística.
Esta, consciente ou inconscientemente, integra os antigos mitos à cosmovisão sobre a qual
se apoia nossa cultura, completando-a e transformando-a. Seu objetivo, não declarado
nem reconhecido, é integrar os discos voadores às raízes do espírito humano, renovando
o contato com elas. Com a palavra, Lacan: “Quando algo vem à luz que somos forçados
a admitir como sendo novo, quando uma outra ordem da estrutura emerge, ela cria sua
própria perspectiva no passado, e então dizemos: isto jamais pode não ter estado aí, existe
desde toda eternidade”.25

É uma regra empírica cujo alcance pode ser demonstrado no campo da Ufologia. Que o
fenômeno Ovni é outra ordem de estrutura, eis algo que só agora começamos a perceber
com todas as suas implicações, e a novidade está em ser algo “velho”: isto jamais pode não
ter estado aí – disseram os ufólogos, e puseram-se a rastrear os registros históricos, míticos
e lendários, bíblia, escrituras indianas, para concluir que “somos visitados por alienígenas
desde toda eternidade”. É, literalmente, uma busca dos deuses. O sucesso dessa empreita-

24 FERNANDES, Joaquim. história prodigiosa de portugal. mitos e maravilhas. Quidnovi. Portugal, 2012
25 LACAN, Jacques, Seminário, livro 2. O Eu na Teoria de Freud e na Prática Psicanalítica, Jorge Zahar, Rio de
Janeiro, 1985,

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da ratiica a alteridade do fenômeno como fator estruturante da ordem mítico-histórica: Os
Ovnis podem realmente estar por aí há milhares de anos, mas a novidade é crer piamente
que se trata de naves espaciais tripuladas por extraterrestres.

Qual o sentido do “sagrado” aplicado aqui ao fenômeno Ovni? Vamos dar uma vista d’olhos
no sagrado, do latim sacrum, alguém ou algo à parte do mundo profano, da realidade hu-
mana. Esse “à parte, afastado, longe, do outro lado”, faz com que o mito, e na equivalência, o
fenômeno Ovni, tenham um caráter diabólico na plena acepção do termo: do grego diabal-
lein – separado, distante. Ambas as narrativas subentendem um momento marginal à exis-
tência humana; a testemunha, principalmente o “contatado”, se sente diferente em razão
da sua experiência – no seu entender, um “escolhido”, portanto destacado, desmembrado,
abduzido da existência comum.

O sagrado, ou a sacralidade, pertence ao plano de potentados além da dimensão e com-


preensão humanas, sendo, então, superiores, elevados, divinos. Ao mesmo tempo em que
venera e guarda reverente distância (diaballein) do sagrado, ele sente incontida atração
(grego syn ballein, reunir, juntar, compor) como se, em suas origens, nunca tivesse havido
essa desunião. O simbólico-diabólico estabelece a junção e a disjunção dos antípodas: sa-
grado e profano, ideal e real, interior e exterior, eternidade e initude, incredulidade e fé. O
mito é um acontecimento acrônico, polimórico, modelado pelo igurino cultural, social e
histórico em que se insere, pelo Zeitgeist – o espírito da época. “Mito é algo que nunca exis-
tiu, mas que existe desde sempre”, dizia Campbell com frequência, que Karen Armstrong
faz de outra forma: “O mito é um evento que – em certo sentido – ocorreu só uma vez, mas
que também ocorre o tempo inteiro”. É o que escreveu o escritor romano Salústio, no sécu-
lo IV: “Mitos são histórias que nunca aconteceram, mas que sempre existiram”.

Na coniguração dos mitos, um componente importante é a pulsão religiosa. Se o fato mí-


tico ocorre em um plano apartado da vida diária, “profana”, então se trata de um evento
sagrado, talvez de uma experiência religiosa. Mircea Eliade sustenta que viver os mitos re-
presenta uma experiência verdadeiramente religiosa, distinta da vida cotidiana. Essa “re-
ligiosidade” está no fato de ao se reatualizar os eventos fabulosos, exaltantes, “Assiste-se
novamente às obras criadoras dos Entes Sobrenaturais; deixa-se de existir no mundo de
todos os dias e penetra-se num mundo transigurado, auroral, impregnado da presença
dos Entes Sobrenaturais”.

A imanência e a relevância da religião na alma do mito é a chave para compreender o


signiicado e a sua representação para a vida humana. Podemos depreender que o mito
é, conclusivamente, uma experiência espiritual e religiosa. Qual o sentido dessa interpreta-
ção? Aonde isso nos leva? Segundo o padre jesuíta Fernando Bastos de Ávila26, o sentido
subjetivo da religião contém três elementos fundamentais: a) O reconhecimento da crença
natural na existência de um poder, ou poderes, que nos transcendem; b) O sentimento de

26 pequena Enciclopédia de moral e Civismo. MEC. 1978.

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dependência a esse poder; e c) entrar em qualquer forma de contato ou de relação com ele.
Os itálicos são para provocar uma relexão adicional.

O mito é parte integrante do ser e das sociedades; existe para dar sentido e direção à expe-
riência humana numa permuta simbiótica: ao ser concebido pelo homem, concebe-o; se
corrompido, corrompe-o; se interpretado, interpreta-o. Ele não contraria a realidade, vive
nela, interage, compactua, ampliica-a, em sua dinâmica própria. Para Jung, os mitos se-
riam uma das manifestações dos arquétipos ou modelos que emergem do inconsciente
coletivo da humanidade, e que constituem a base da psique. A existência do inconsciente
coletivo permite compreender a universalidade dos símbolos e dos mitos, pois estes se
revelam em todas as culturas e em todas as épocas de modo similar. Jung se perguntava se
os Ovnis eram projeções nossas ou se nós é que somos sua projeção. Os mitos dizem quem
ou o que somos e porque somos o que somos.

é inevitável que os produtos do inconsciente (coletivo), isto é, os quadros que de forma inequí-
voca acusam caráter mitológico, sejam alinhados dentro do seu contexto simbólico-histórico,
pois eles constituem a linguagem inata da psique e da sua estrutura e de forma alguma são
aquisições individuais, no que se refere à sua forma básica.27

De volta a Campbell, que baseia sua argumentação na psicologia junguiana:

quando o imaginário das visões admoestadoras emerge do inconsciente pessoal, seu sentido
pode ser interpretado por meio de associações pessoais, lembranças e relexões; quando, no
entanto, ele brota do inconsciente coletivo, os signos não podem ser decodiicados dessa ma-
neira; eles serão da ordem do mito, mais propriamente, e, em muitos casos, inclusive idêntico
ao imaginário de mitos. portanto, esses signos serão de fato representações dos arquétipos da
mitologia, em uma relação signiicativa com algum contexto da vida contemporânea e, conse-
quentemente, serão decifráveis somente em comparação com os padrões, temas e semântica
da mitologia em geral.28

A ação do mito funciona tal qual um sonho, como argumentava Freud, ao postular que os
mitos são uma expressão simbólica dos sentimentos e atitudes inconscientes de um povo,
de forma análoga ao que são os sonhos na vida do indivíduo. Ambos, mito e sonho, através
das suas linguagens, promovem o equilíbrio, independentemente de se entender ou não o
seu signiicado simbólico. É preciso compreender o desempenho do arquétipo no mito, ou
da ação arquetípica no sonho.. Os símbolos são uma criação humana tanto quanto a arte, a
religião, a linguagem, a história, baseados em nossa experiência e em nossa maneira de ver
e construir o mundo. Eliade deinia o homem como homo religiosus, e Cassirer um animal
symbolicum e não rationale.

27 JUNG, Caarl. G. Um mito moderno Sobre Coisas Vistas no Céu, Rio de Janeiro. Vozes, p, 28, 1991.
28 CAMPBELL, Joseph. mitologia na Vida moderna. Rio de Janeiro. Rosa dos Tempos, p. 262, 2002.

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O símbolo é uma forma de estruturar e harmonizar as relações do homem com o mundo,
apesar de sua conlituosa relação. Seja como for, em qualquer circunstância, o símbolo,
no mito, se reveste de um caráter sagrado, irredutível, porque “pertence” à consciência e
não a um momento ocasional transitório na história. Em Durand, “O mito já é um esboço
de racionalização, dado que utiliza o io do discurso, no qual os símbolos se resolvem em
palavras e os arquétipos em ideias”.

O mito talvez seja o constructo psicológico e cultural mais importante de nosso tempo.
Ele pertence ao mundo dos deuses, um reino mágico, forte, perfeito e perene. Essa é a sua
lavoura, é dali que nascem as histórias que contam a nossa história. É penetrando nesse
reino que compreendemos a nossa fragilidade e, simultaneamente, nossa imortalidade.
A experiência de unidade com essa dimensão divina transcende o verbo, o intelecto e o
sentir. Por um instante, o homem torna-se a própria divindade. Incapaz de apreender o ser,
e não atribuindo mais a Deus uma possível explicação para a imortalidade desejada, algo
virá em seu lugar para que o des-espero (o “não esperar”) diante da morte não o paralise.
Então, dominar a natureza – o desconhecido – e reordenar o caos do mundo e de si é o
objetivo primordial do sujeito moderno. Só assim o sentimento de desamparo frente a sua
mortalidade pode não ser visto em sua real dimensão.

Para Freud, o ser humano percorre a sua existência forjada pela precariedade. Carrega nas
costas a marca da busca, perambulando na farsa ilusória de que é capaz de dominar-se e
dominar os perigos, construindo insistentemente tentativas mágicas de proteção. Diante
dos temores da initude, e se à ciência não cabe o papel de Deus, o homem moderno opta
por negar sua frágil condição humana, não sem antes recorrer a modelos exteriores para
sustentar sua existência.

Só podemos compreender melhor a função do mito na sociedade contemporânea se


entendermos o signiicado e o valor que tinha para as sociedades ancestrais. Ele con-
templa uma força litúrgica que lhe é fundamental, um gatilho religioso vital, móvel e
imutável, que engendra uma função religante com o primitivo, o arcaico, regenerando e
equilibrando o ser em sua unidade espiritual. O mito é esse elemento de mediação entre
sujeito e mundo, para que ocorra o que Durand chama de “equlibração antropológica”
através da imaginação mitopoética, do grego mythópoiesis – criação, origem, formação
de um mito. Ele entende que o homem possui uma expressiva capacidade simbolizado-
ra, relacionada diretamente à “angústia original” – a consciência da morte, o implacável
luir das areias da ampulheta. Para captar e interpretar as imagens e símbolos paridas do
inconsciente coletivo (projeções dos arquétipos), ele sugeriu uma classiicação taxionô-
mica desses elementos imagético-simbólicos do sistema antropológico, o “atlas arqueti-
pológico” da imaginação humana.

Dessa forma, a linguagem do imaginário processará os meios de compreensão do ser


no mundo. Isto porque o mito revela facetas importantes sobre nós: o medo da morte,
do desconhecido; ao mesmo tempo o desejo ou necessidade de romper essa cortina

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invisível rumo a um novo mundo, ao renascimento. Perpetuar o mito signiica perpetuar
a espécie, a esperança, e isso se dá pela repetição, reviviicação, recriação da narrativa
mítica, que não é estática uma vez conectada permanentemente ao inconsciente – cole-
tivo ou não –, como veículo de ligação às esferas sagradas, espirituais, narrativa essa se-
guidamente “ajustada” ao meio. Para o ilósofo brasileiro Vicente Ferreira da Silva, o mito
também não é simples palavra ou narrativa literária, mas uma presença real e efetiva dos
deuses e da manifestação divina, remetendo a uma série de fatos extra-humanos, uma
referência memorizadora e histórica.

Campbell entendia que essas informações provenientes de tempos antigos têm relação
om os temas que sempre deram sustentação à vida humana, construíram civilizações e for-
maram religiões através dos séculos. Têm a ver também com os profundos problemas inte-
riores, com os profundos mistérios, com os profundos limiares da nossa travessia pela vida.
E essa vida, hoje, comporta um novo mito? Há espaço para a ressurgência de um nos mol-
des tradicionais? Teria o mesmo signiicado, ou se esvaziaria no luxo das relações sociais
fragmentárias e vazias da civilização moderna? Por que a mitologia tem tanta importância
nos dias atuais? Para muitos, a existência de deuses e mitos é irrelevante e desnecessária
para a vida moderna, mas, para Campbell, os vestígios dessas deidades se alinham ao lon-
go dos mundos de nosso sistema interior de crenças, como “cacos de cerâmica partida num
sítio arqueológico”.29

Segundo o Prof. Régis de Morais, da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, São


Paulo, os mitos contemporâneos resultam numa atitude substituinte, para manter a cons-
ciência mítica e fazer com que os vínculos com o sagrado permaneçam habitando os re-
cônditos da psique. Para o Professor de Filosoia e crítico literário Philip Wheelwright, “A
perda da consciência do mito é a mais devastadora que a humanidade poderia sofrer, pois
ela é o laço que une os homens uns aos outros e ao insondável mistério de onde surgiu a
humanidade.”30

Embora não se tenha comentado sobre os contos infantis, ou “conto de fadas”, não há como
deixar de fazer uma breve incursão, responsáveis que são, de alguma forma, pela formação
imaginativa do ser humano. Para o psicólogo e educador Bruno Bettelheim, o conto de
fadas relete um conlito interno de caráter simbólico que mostra que isso pode ser solu-
cionado, embora não seja esta sua principal função. O mitólogo e historiador das religiões,
Mircea Eliade, entende os contos de fadas e os mitos como “Modelos para o comportamen-
to humano (que), devido a este mesmo fato, dão signiicação e valor à vida».31 Com parale-
los antropológicos, Eliade e seus pares sugerem que os mitos e contos de fadas derivam ou
dão expressão simbólica a, ritos de iniciação ou de passagem, como o da morte metafórica
de um velho e inadequado “Eu” para renascer em um plano mais elevado de existência.

29 CAMPBELL, Joseph. Betty Sue Flowers (org.). O poder do mito. São Paulo. Palas Athena, 1980.
30 Wheelwright, Philip. Poetry, Myth, and Reality. In Goldberg, Gerald J. e Goldberg, Nancy M. The Modem Criticai
Spectrum. Englewood Clifs, Nova Jersey: Prentice-Hall, Inc., 1962, p. 319.
31 BETTELHEIN, Bruno. A psicanálise dos Contos de Fadas. São Paulo. Paz e Terra, p. 45, 1980.

96 | consciências ‘05
Ele sente ser esta a razão destes contos encontrarem uma necessidade sentida de modo
intenso e serem transmissores de tanto signiicado profundo.

o que parece desejável para o indivíduo é repetir na sua dimensão de vida o processo envolvi-
do historicamente na gênese do pensamento cientíico. por um longo tempo na sua história a
humanidade usou projeções emocionais - tais como os deuses - nascidas de suas esperanças
e ansiedades imaturas para explicar o homem, sua sociedade e o universo; estas explicações
davam-lhe um sentimento de segurança.32

A história perpetua os mitos a partir do momento em que os fatos ressuscitam nesse gê-
nero de imaginação bastante cativante para apropriar a consciência e obsidiar os espíritos.
As convicções da massa – crenças, alucinação religiosa, mentiras convencionais ou delírios
coletivos – possuem sempre um caráter implicitamente religioso, por se situarem numa es-
fera não racional, e por traduzirem o real que transborda da interiorização mental privada
do indivíduo. Numa proporção em larga escala, a forma mais pura da coesão sociológica
de um grupo se enraíza em uma espécie de focus imaginário. O imaginário social resulta,
nesse domínio, de uma excepcional complementaridade entre a mitologia e a psicologia,
no seio da qual a distinção entre realidade e mentira, não têm, verdadeiramente, sentido. A
mitologia é, certamente e, sobretudo, um instigante trabalho de conceitualização do mun-
do. Não cabe aprofundar essa questão no momento, mas é inquestionável a aproximação
dos contos de fadas com os mitos, sob os pontos de vista ilosóico, psicológico e simbólico,
representando conteúdos inconscientes.

Portanto, ou se enreda nas teias da crença e se abandona às ilusões e fantasias, ou se carre-


ga o pesado fardo da razão por um caminho de conhecimento e revelações. Repetindo, os
Ovnis podem realmente estar por aí há milhares de anos, mas a novidade é crer piamente
que se trata de naves espaciais tripuladas por extraterrestres. Aí está uma das mais fortes
evidências de que, com os discos voadores, estamos assistindo ao nascimento de um novo
mito, um mito “pós-moderno”. Bauman pergunta se a razão terá condições de se sustentar
por si mesma diante do preconceito e da superstição. Só o tempo dirá. O pensar é a mais
importante faculdade humana, nosso único veículo de evolução, único canal para o desen-
volvimento da espécie, e não pode ser atirado aos porões da insensatez. Somos resultado
desse prodígio, e de nenhum outro.

Conquanto alguns recomendem não assumir postura conclusiva sobre a temática, estamos
seguros de que nossa análise mostra-se muito abrangente, objetiva, ancorada pela longa
experiência, referendada pelos diálogos transdisciplinares e pelos aspectos da própria na-
tureza humana. Por essa razão, não podemos mais nos esquivar em emitir um juízo, que
não se pretende absolutamente ser autoridade soberana da verdade. Preferimos correr o
risco a nos acomodar em nome da proverbial e conveniente prudência. Isso posto, é nosso

32 Id., p. 65

consciências ‘05 | 97
ponto de vista que o homem concebeu o mito do disco voador para dar vazão às suas mais
lancinantes dores existenciais.

A civilização, desassistida pelos deuses, à mercê de suas misérias e iniquidades, sente a


proximidade da tragédia nas tramas do destino. Ela quer e precisa acreditar em sua criação
para que ela, em contrapartida, lhe dê a força necessária para assegurar sua sobrevivência
na longa aventura da vida. Não precisaria acreditar, não fosse escravo de suas crenças e
refém de seus medos, se não alimentasse esse caldeirão de inquietações em que transfor-
mou seu mundo e se não se encantasse tanto com o que imagina ver. O mito, a religião,
as crenças, a icção e os discos voadores, inter-relacionados e nessa sequência temporal,
preenchem um vazio e expõem o temor da morte, da impermanência, a amargura pela
invisibilidade e isolamento no cosmo. Rubem Alves se expressa com singelo lirismo: “Mitos
são histórias que delimitam os contornos de uma grande ausência que mora em nós”.

Em 1690, o ilósofo John Locke defendia um princípio o qual endossamos plenamente: “Um
sinal infalível de amor à verdade é não considerar nenhuma proposição como convicção
maior do que a autorizada pelas provas que a fundamentam”. Não precisamos criar misté-
rios onde não existe. O mundo já é exuberante de eventos fantásticos banhados de magia,
que encantam e revelam a beleza da vida e nos fazem sonhar em busca da sabedoria e da
verdade, um sonhar embebido na Filia Soia – “amor pelo saber, pela verdade”. E o que fa-
zemos quando medimos, analisamos, ponderamos? Pensamos de modo ordenado por amor
ao saber em busca da verdade.

A conluência daqueles campos de estudos gerou uma chave que nos permitiu identiicar,
a priori, os quatro mitos fundacionais do fenômeno Ovni: O mito da Criação, do Herói, da
Ascenção e da Queda. A partir daqui instaura-se um novo capítulo em nossos estudos, qual
seja, identiicar cada um deles dentro da experiência ufológica, naquela ordem, inclusive.
Assumimos incondicionalmente, desde sempre, como princípio fundamental da prática
investigativa e norte de conduta, o preceito de não confundir procura da verdade com
necessidade de acreditar, empenhados em estreitar e concretizar um permanente, fecundo
e cooperativo intercâmbio com os agentes do saber – bússola coniável na rota do conheci-
mento, de forma a legitimar um campo de estudo escasso de credibilidade.

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REFERÊNCIAS bIbLIOGRÁFICAS

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consciências ‘05 | 99
Foram muitas as razões que levaram aqueles jovens (nós) a criar o CEAFI em plena penumbra marcelista. Claro
que foi, sem dúvida, essa penumbra que sucedeu à escuridão salazarista, que permitiu alavancar veleidades
atá aí submersas e mantidas inertes, mas também a nossa irreverência, o nosso inconformismo, e, sem dúvida
alguma, a forma como olhávamos o que e quem nos rodeava foi a pedra de toque nessa aventura.
Para além de uma ânsia enorme de saber e procurar explicações que o conformismo estabelecido não era ca-
paz, ou não queria dar, também fomos movidos por uma necessidade de partilhar de fornecer aquilo que íamos
descobrindo, colocando-o ao alcance de todos os que, sentíamos nós, tinham uma igual necessidade de uma
explicação franca, olhos nos olhos e não a camada de poeira que sistematicamente teimavam em atirar-nos.
Importa dizer, também, que naquela época as motivações ou os motivos de diversão e de distração da juven-
tude não eram tão diversiicadas como são hoje. A internet, os smart-fones, as consolas de jogos, a televisão
por cabo, não faziam parte do panorama de disponibilidades ao alcance dos jovens e, por isso, todos nós nos
empenhávamos com mais concentração nos objectivos a que nos propúnhamos.
Temos noção de que fomos pioneiros militantes pois sem os meios que hoje existem a nossa tarefa era con-
struída à custa dos nossos esforços. Sem editores de texto criámos relatórios e inquéritos de observação,
catálogo de tipos de OVNI’s e tudo com uma simples máquina de escrever e o primeiro número do INSÓLITO,
totalmente editado por nós com auxílio de um duplicador a Stencil da marca “Gestetner”! As nossas palestras,
conferências, colóquios, encontros por todo o país, e reuniões internacionais, tudo isto foi desenvolvido com
um perfeito espírito de missão em que, para além de pretendermos possuir um melhor conhecimento do Uni-
verso, desmistiicar e divulgar eram, sem dúvida nenhuma, pontos inalienáveis dos nossos objectivos.
Claro que o INSÓLITO foi um marco importante para o CEAFI, e para os jovens que o compunham, veriican-
do-se que o número de jovens que se interessavam pela temática ia aumentando, engrossando as ileiras do
agrupamento. Simultaneamente, com a entrada de sangue novo, os iniciadores começaram a ter outras re-
sponsabilidades, sociais, laborais, familiares, etc. que começaram a criar alguns constrangimentos importantes
e limitadores da sua atividade no grupo e o tempo de que podiam dispor para apoiar tão directamente as inici-
ativas fundamentais para a sua atividade. Assim, o alheamento de alguns elementos foi evidente o que levou a
que os mais aptos, ou melhor aqueles cuja actividade lhes permitia continuaram paulatinamente na senda do
estudo e divulgação da fenomenologia iniciada por nós, a formar novos grupos, novas publicações. Muito mais
ações foram entretanto desenvolvidas, quer graças ao número e entusiasmo dos que de novo se juntaram, bem
como todas as ferramentas a que entretanto puderam recorrer, uma das quais indubitavelmente a internet,
que permitiu a globalização da informação e a rapidez com que se pode trocar informações quase permitindo
o contacto imediato no caso de avistamentos.
40 anos de INSÓLITO é sem dúvida uma distância (temporal) relativamente curta, mas uma diferença abismal
no que toca a conceitos, tecnologias, ferramentas e comunicação. À época, foi necessário e urgente fazer algu-
ma coisa para parar e até inverter as tendências estabelecidas. Foi imperioso criar uma consciencialização ger-
al, já que eramos todos responsáveis na construção de uma sociedade mais justa, humana, fraterna, solidária
e exigente na procura do conhecimento que nos era sistematicamente sonegado. Acordamos na altura pois a
situação era urgentíssima e já estávamos demasiado atrasados!

Manuel Barrote Dias


Membro fundador do CTEC

ORGANIZAÇÃO:
CTEC – Centro Transdisciplinar
de Estudos da Consciência
Universidade Fernando Pessoa

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