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SOBRE O CONCEITO DE CIÊNCIA

Article · March 1997

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Maria de Jesus Martins Fonseca


Polytechnic Institute of Viseu
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SOBRE O CONCEITO DE CIÊNCIA*
MARIA DE JESUS FONSECA

In: MILLENIUM, Revista do Instituto Politécnico de Viseu, N.º 6 - Março de 1997

http://www.ipv.pt/millenium/arq6_1.htm

APRESENTAÇÃO

A comunicação que ora se apresenta surge no âmbito da iniciativa " VIVA A CIÊNCIA" - 1994,
promovida pela Secretaria de Estado da Ciência e Tecnologia e já em 2ª edição.

São objectivos deste projecto a divulgação da ciência e da tecnologia tornando "visível a importância da
ciência e da tecnologia numa sociedade que já se habituou aos seus benefícios, mas que ainda teme e se
interroga sobre os seus efeitos futuros."(1) Nesse sentido, pretende-se que esta semana constitua, a nível
nacional, uma oportunidade privilegiada de diálogo entre cientistas e cidadãos, aproximando a ciência do
público, satisfazendo a legítima curiosidade deste, e permitindo ao cientista desenvolver a arte de
comunicar e difundir ciência.(2)

É neste contexto que se enquadra a participação desta instituição de ensino superior - Instituto
Politécnico de Viseu - através, neste caso, da sua Escola Superior de Educação, que, precisamente por
ser uma instituição de ensino superior, deve não apenas divulgar/comunicar ciência mas também produzir
ciência. Assim, deve, entre outras coisas, "promover a divulgação de conhecimentos culturais, científicos
e técnicos que constituem património da humanidade e comunicar o saber através do ensino, de
publicações ou de outras formas de comunicação" (3) bem como realizar investigação científica(4), o que
são atribuições claras do ensino superior que a lei explicitamente tematiza.

Querendo associar-se à promoção das actividades do "Viva a ciência", incumbiu-me o departamento de


Ciências da Educação de realizar esta comunicação sob o tema muito geral "Educação e Ciência", que
eu poderia desenvolver livremente.

Pessoalmente, gostaria de acrescentar que, em consonância com os objectivos já citados, esta é


efectivamente uma oportunidade de diálogo e reflexão conjunta do cientista com o destinatário da ciência,
a possibilidade de aproximar a ciência e o público em geral - aproximação esta tão necessária dados os
muitos desenvolvimentos da ciência num muito curto espaço de tempo bem como, em consequência
disso, a progressiva especialização do conhecimento científico( 5) e a sua linguagem mais ou menos
hermética para o homem comum.

Esta é também uma das raras ocasiões que se apresenta ao homem de ciência( 6) para exercitar "a arte de
comunicar ciência" já que, habitualmente, o homem de ciência fala mais para os seus pares e para a
comunidade científica do que para o público em geral.

No sentido de tornar mais próximo do cidadão o longínquo e afastado discurso dos cientistas tentarei ser o
mais simples possível sem, contudo, cair no simplismo e o mais clara possível sem perder igualmente o
rigor que se exige na comunicação da ciência.
SOBRE O CONCEITO DE CIÊNCIA

"Sorrio.

Concepção do Universo a cheirar a bafio."

José Gomes Ferreira

1. - INTRODUÇÃO

Entre os objectivos deste "Viva a Ciência", a nosso ver o mais importante, porque todos os outros só se
realizam através deste e se este for realizado, consta a necessidade de dialogar e comunicar ciência e,
assim, promover a aproximação desta com o cidadão comum, pressupondo que quem estabelece o diálogo
possui "arte de comunicar", neste caso, ciência.(7)

Dialogar, comunicar ciência, tornar próximo o que é distante. De facto, a ciência está distante do homem
comum. Distante pelos seus muitos progressos, distante pela sua linguagem mais ou menos hermética
apenas acessível e inteligível àqueles que nela foram iniciados, e, enfim, distante pela sua
complexificação e especialização progressiva. (8)

E, no entanto, nada mais difícil que isto: falar da ciência, transformá-la em objecto do nosso discurso,
dizer o que ela é. Glosando Santo Agostinho, se não me perguntam o que ela é, eu sei-o, mas se mo
perguntam, de repente, já não sei.(9)

Nada mais complexo, portanto, que falar de e/ou da ciência. Basta atender ao seu percurso histórico e às
vicissitudes desse percurso. Nesse percurso aparecem diferentes concepções do que seja a ciência e é
patente a variabilidade do conceito, não só por razões que têm a ver com o próprio desenvolvimento da
ciência mas também por determinações epocais.

Contudo, o conceito de ciência é muito antigo. Desde sempre o homem quis conhecer, fugir ao medo do
desconhecido, saber o que as coisas são, saber quem é ele próprio, para se poder mover no mundo com
segurança e saber o que pode esperar.(10)

E historicamente o percurso repete-se: começa-se sempre por querer conhecer o mundo, lançamo-nos na
aventura do conhecimento do mundo, pergunta-se por ele, quer-se saber o que ele é. Só depois o homem
se vira para si mesmo, interrogando aquele mesmo que põe as questões.

A etimologia da palavra encontra-se no latim scientia, substantivo cuja raiz é o verbo scire, saber. Mas
este significado é hoje tão lato, e mesmo tão vago e impreciso, que não nos ajuda muito no
esclarecimento e compreensão do conceito. De facto, há muitos tipos de saber mas só um deles mereceu
ser designado de científico. É claro que, implicitamente, isto implica, desde logo, uma valorização do
conhecimento científico em detrimento dos outros tipos de saber que igualmente dizem o mesmo mundo,
evidentemente de modos diferentes e a partir de perspectivas diferentes.

2. - O conceito de "ciência": Breve panorâmica da evolução do seu sentido ao


longo da história

Para os gregos, ciência, - epistême - era conhecimento verdadeiro, universal, necessário. Conhecimento
fundamentado e, por isso também, fundamental. Epistême era só a Filosofia, única ciência que buscava os
fundamentos (e nisso residia a sua cientificidade) - autêntica arquê-o-logia no sentido etimológico da
palavra - pois a filosofia era "ciência das primeiras causas e primeiros princípios".( 11) Por isso,
igualmente, já que era nela que todo o outro saber ia buscar os seus fundamentos, a Filosofia era a Ciência
das Ciências, a única Ciência ou que merecia ser chamada como tal. A Filosofia era naturalmente uma
ciência e por isso o problema do seu estatuto de cientificidade não era sequer posto. Acrescia que era o
único saber que se procurava pelo mero desejo de saber e não pela sua utilidade - donde a única ciência
teorética, uma ciência contemplativa.

Portanto, a filosofia era a Ciência ou a ciência era a Filosofia.

No século XVII um novo conceito de ciência surge. E face a isso que agora (e doravante) se passa a
chamar ciência, a filosofia já não é sequer uma ciência! Então é que se coloca, pela primeira vez, a
questão do estatuto de cientificidade da filosofia e, a partir daí, ela é obrigada a começar por demonstrar
que também tem direito à vida e à existência, que há um lugar para ela na realidade cultural e
institucional.

Mas que novo conceito de ciência introduz o século XVII?

O advento dessa nova concepção encontrava-se em fermentação desde o século XVI: Renascimento,
Humanismo, Naturalismo, Descobrimentos, Experimentalismo preparam essa nova concepção.

Todos estes factores provocaram a crise e derrocada do mundo tal como o homem até aí o conhecia,
sobretudo os Descobrimentos pelas suas consequências mais imediatas e mais visíveis: a Terra não é
plana mas redonda, embora os nossos sentidos teimem em dizer o contrário.

Igualmente Kepler e Copérnico preparavam o advento da novo ciência: os corpos celestes movem-se e
têm órbitas; a Terra não está no centro do Universo - heliocentrismo; o universo é infinito (Giordano
Bruno).

Enfim, nada é como pensávamos.

Ruína da antiga concepção do mundo e da antiga ciência.

Num mundo perdido, o homem perdido; tudo é incerto, a dúvida instala-se e só ela é real. Exemplos bem
vivos deste estado de coisas e deste estado de espírito são Descartes, Francisco Sanches e Montaigne que
nas suas obras bem retratam e vivem esta situação.(12)

Torna-se necessária a construção de uma nova ciência que dê conta do mundo "tal como ele é".

Galileu e Descartes serão os grandes destruidores dos antigos dogmas e, ao mesmo tempo, os grandes
reconstrutores; ambos empreendem a tarefa de construção do novo conhecimento e de uma nova imagem
do mundo sendo, por isso, ambos considerados co-fundadores da ciência moderna.

E se, pelos vistos, até agora mais não fizemos senão enganarmo-nos, doravante não queremos mais
enganar-nos. Por isso, o melhor é recomeçar tudo de novo, do zero e como se fosse a primeira vez,
fazendo tábua rasa de tudo o que até agora pensavamos saber.

Ora para que não mais consideremos como verdadeiro o que, na realidade, é falso, torna-se crucial a
questão do método.

É do método que dependerá o sucesso ou fracasso da tarefa que empreendemos, é do método que
dependerá a verdade ou falsidade do conhecimento, e, por isso, o método tem de permitir distinguir o
verdadeiro do falso.

Daí os muitos tratados de método que nesta altura se escrevem, dos quais vale a pena destacar o Novum
Organum de F. Bacon e o Discurso do Método de Descartes(13). Note-se que estes tratados são, ao
mesmo tempo, tratados de lógica, contudo de uma nova lógica. Uma nova ciência exige uma nova lógica,
um Novum Organum. Mas é visível que a função da lógica continua a ser a mesma que Aristóteles lhe
atribuira: a de Organum, a de ser órgão ao serviço da constituição da ciência e, portanto, de ser
propedêutica à ciência.

A nova ciência constitui-se, portanto, sobretudo graças à utilização de um novo método, de uma nova
lógica metodológica. Método novo que, afastando todos os elementos potencialmente subjectivos e pondo
entre parêntesis o sujeito, onde radica a fonte de toda a variabilidade, atenderá apenas aos aspectos
constantes e às regularidades do fenómeno. Dito de outro modo, método novo que se centrará na busca da
objectividade fenoménica.

Como se consegue a objectividade? Reduzindo-se o fenómeno, precisamente, ao que não varia. E o


objecto a observar e estudar pode ser objectivado porque pode ser medido, quantificado, matematizado.
Todo o objecto que não possa ser objectivado é irrelevante e não é objecto de ciência. A natureza está
escrita em caracteres matemáticos, afirma, por isso, Galileu. Logo, quem não souber matemática não tem
acesso à natureza(14). É aqui que começa o fosso que separa ciência e homem comum. Fosso que se irá
agravando à medida que a ciência progride.

É precisamente aqui e agora que, pela primeira vez, surge o ideal da quantificação, segundo o qual nada
pode ser cientificamente cognoscível se não for mensurável. Mas a matemática, ou melhor, a
matematização de todo o real não é só o ideal de todo o conhecimento que se queira científico, como é
também a garantia do rigor e da objectividade da ciência - observadores distintos chegam aos mesmos
dados/medições. A objectividade garante, assim, ao mesmo tempo, a universalidade do conhecimento
científico(15). Em última análise, o método, com o seu recurso à matemática, é que constitui o
conhecimento, não o sujeito a seu bel-prazer, daí a garantia da objectividade desse conhecimento.

Ao mesmo tempo, porque se buscam as regularidades habituais dos fenómenos, que são condição da sua
repetibilidade - o mundo tem uma ordem e essa ordem é sempre a mesma, há determinismo, crê-se no
determinismo (as mesmas causas, nas mesmas circunstâncias, provocam os mesmos efeitos) - e é possível
a previsão.

A busca da regularidade fenoménica é a busca das relações necessárias entre os fenómenos, isto é, é a
busca das causas (Princípio da causalidade). Mas a busca da regularidade fenoménica, se é a busca das
relações necessárias, é, ao mesmo tempo, a busca das relações constantes entre os fenómenos: é a procura
da legalidade. Por isso, a nova ciência é explicativa - explica como os fenómenos são, como acontecem, e
o seu conhecimento expressa-se na formulação de leis causais ou explicativas.É aqui também que assenta
a hipótese do mecanicismo, do mundo como uma máquina ou um mecanismo, já que a natureza funciona
como a máquina - sempre da mesma maneira.

A ordem e estabilidade do mundo, o carácter previsível dos fenómenos, são condição de possibilidade de
qualquer intervenção sobre o real, de qualquer transformação tecnológica do real e de domínio da
natureza. Por isso, conhecer é poder e o poder exprime-se, precisamente, no domínio.

De dentro da razão científica surge a razão técnica.

A este propósito, algumas observações se nos oferecem e merecem ser ditas:

1ª observação - Ciência e ética, até aqui desligadas e intencionalmente separadas, de costas voltadas,
cruzam-se agora e, inevitavelmente, a ciência não pode ser, de todo, alheia à ética.

O poder que exercemos face à natureza, exercemo-lo bem ou mal? Como e para quê utilizamos as
aplicações técnicas? Que valores subjazem a essa utilização? Que valores fundam a nossa atitude de
domínio?

2ª observação - É curioso que entre os objectivos deste "Viva a Ciência" um deles, que aparece expresso
logo em primeiro lugar, levante este problema e toque esta temática das relações ciência e ética. Citamo-
lo na íntegra: "O objectivo será, de novo, criar uma oportunidade para tornar visível a importância da
ciência e da tecnologia numa sociedade que já se habituou aos seus benefícios, mas que ainda teme e se
interroga sobre os seus efeitos futuros." (16)
3ª observação - É sobretudo pelo desenvolvimento tecnológico, que a própria ciência tornou possível a
partir do seu próprio desenvolvimento, que o homem comum mede o êxito e o triunfo da ciência. É por
isso que a ciência se impôs como forma privilegiada de conhecimento, dominando todos os outros
discursos que também dizem e falam do real: discurso estético, discurso religioso, discurso filosófico...
que aparecem, assim, silenciados, subalternizados e desvalorizados pela omnipotência e hegemonia do
discurso científico, que, assim também, se absolutiza e dogmatiza.A ciência impõe-se como o único
discurso que só ele diz o real de forma verdadeira porque de forma eficaz. A eficácia e a
instrumentalidade passam a ser o critério de verdade e medem, igualmente, o valor de cada discurso.

E a ciência, destruidora de mitos e de dogmas, que nascera criticando e negando todas as formas de
dogmatismo, institui-se, assim, como um novo dogma, como um novo mito. Um dos mitos dos tempos
modernos.

4ª observação - Em nossa opinião, é ainda esta concepção de ciência - de ciência moderna, que, nos seus
traços gerais mais significativos, acabámos de expôr - que, claramente, se espelha neste projecto "Viva a
Ciência". O que, aliás, não admira, pois, trata-se da concepção ainda dominante.

3. - A crise da ciência e do paradigma dominante e a emergência de um novo


paradigma

Aquilo a que hoje chamamos ciência corresponde, ainda, a este modelo de racionalidade e de
inteligibilidade do real, que acabámos de explicitar nos seus traços mais paradigmáticos e cujos princípios
básicos são:

- Só é cognoscível aquilo que pode ser penetrado pelo método

- Só é cognoscível o que puder ser quantificado ou objectivado

- O que não pode ser quantificado e objectivado, ou não pode sê-lo ainda por limitações de ordem técnica
e, nesse caso, um dia sê-lo-á, ou então nunca poderá constituir objecto de ciência e isso indicia a
irrelevância desse objecto.

Não admira, portanto, que, no século XIX, quando se fundam as Ciências Humanas e Sociais, para se
constituirem como ciências e para se afirmarem e serem reconhecidas como tal, elas adoptem este modelo
de racionalidade e decalquem os procedimentos das Ciências Naturais. "A partir de então pode falar-se de
um modelo global de racionalidade científica (...). Sendo um modelo global, a nova racionalidade
científica é também um modelo totalitário, na medida em que nega o carácter racional a todas as formas
de conhecimento que se não pautarem pelos seus princípios epistemológicos e pelas suas regras
metodológicas." (17)

Contudo, o alargamento do modelo de racionalidade científica às ciências humanas e sociais seguiu, no


interior das ciências sociais, dois caminhos diversos:

- Um, dominante, que consistiu em aplicar ao estudo do homem e da sociedade todos os princípios
epistemológicos e metodológicos que presidiram ao estudo da natureza.Os fenómenos humanos e sociais,
pressupunha-se, podem e devem ser estudados como se fossem fenómenos naturais; podem ser
objectivados e medidos.

- o outro, dominado e marginalizado, reivindica para as ciências humanas e sociais uma especificidade
própria, dada a irredutibilidade do seu objecto a um fenómeno natural e, por isso, reivindica também
outro tipo de metodologias alternativas às das ciências da natureza. Metodologias qualitativas e não só
quantitativas.

De qualquer forma, a ideia geral é a do atraso das ciências sociais relativamente às ciências da
natureza.Ainda têm um longo caminho a percorrer até poderem ser consideradas ciências de pleno direito.
E isso é-lhes mais difícil do que foi às ciências da natureza, dada a tipicidade do seu objecto e a
dificuldade de lhe aplicar essas regras metodológicas, mas um dia lá chegarão. Daí a consideração de que
são, para já, ciências pré-paradigmáticas, para utilizar a expressão de Khun, ou que ainda não
ultrapassaram a fase descritiva. O seu estatuto de cientificidade é, pois, e por enquanto, discutido e
discutível.

É óbvio que o que acabou de ser referido a propósito das ciências sociais é válido para as chamadas
(segundo alguns impropriamente) ciências da educação. Mas nestas, até porque são mais recentes, a
situação é ainda mais trágica e a confusão maior:

- Antes de mais nada, deve falar-se de Pedagogia ou de Ciências da Educação? Parece que a expressão
"Ciências da Educação" tende, cada vez mais, a substituir o termo, mais tradicional, "Pedagogia", que cai
em desuso. Esta uma das primeiras ambiguidades da expressão.

- E qual o objecto das ciências da educação? Igualmente, parece faltar uma definição clara e precisa desse
objecto.

- Relacionados com uma certa indefinição do seu objecto, aparecem os problemas metodológicos e,
também, o facto de que o conhecimento a que essas "ciências" chegaram, não constitui ainda um corpo
sistemático, devidamente organizado e estruturado.

- E possuem as ciências da educação unidade e autonomia? Ou são ramos das ciências sociais?

É que se a Psicologia da educação, por exemplo, for um ramo da Psicologia, então ela é uma aplicação do
conhecimento psicológico à situação educativa (ciência prática ou aplicativa, quando muito, mas nunca
pura, fundamental ou teorética) e, nesse caso, nâo possui, evidentemente, autonomia, nem há unidade nas
ciências da educação.

- Nesse caso, autenticamente,estas ciências não merecem ser chamadas ciências.

- Daí também a enorme discussão e falta de consenso sobre o estatuto de cientificidade das ciências da
educação. Daí, igualmente, a falta de identidade profissional dos "especialistas" em ciências da
educação.(18)

- Daí decorre a sua desvalorização, o serem olhadas com desconfiança e a sua pouca credibilidade social.

- Igualmente, daí decorre a incompreensão e insensibilidade do poder político face à problemática


educacional em geral e face à investigação em educação em particular, sendo extremamente escassos os
recursos postos à disposição.

Mas, desde a crise dos fundamentos da matemática e do cisma da física, no início do nosso século, que se
tornam visíveis os sinais de crise no paradigma científico dominante.(19)

O surgimento das geometrias não euclidianas, da teoria dos conjuntos, do teorema de Gödel, no caso da
matemática, e, no caso da física, da teoria da relatividade, do princípio da incerteza ou relações de
incerteza e do indeterminismo, são os grandes responsáveis por essa crise.

De notar, contudo, que esta crise da ciência actual é resultado do enorme desenvolvimento da própria
ciência.

Dessa crise resulta clara a aproximação cada vez maior das ciências naturais às ciências sociais e à
filosofia e, por consequência, começa a deixar de ter sentido a separação ciências da natureza/ciências
humanas e sociais; sujeito/objecto; natureza/cultura e outros dualismos e polaridades sobejamente
conhecidos.

Dessa aproximação são sinais claros, por exemplo: o carácter probabilístico das leis naturais, a
interferência do sujeito no objecto observado, o que bem prova que o que até agora constituía a
fragilidade das ciências humanas está em vias de mudar e constitui, precisamente, a sua força e a sua
vitalidade.
Este período de crise anuncia a emergência de um novo paradigma, de uma nova concepção de ciência,
paradigma esse que alguns já designam como paradigma pós-moderno ou ciência pós-moderna.

Este paradigma traz consigo uma concepção mais lata de ciência, menos redutora, limitada e fechada que
a do paradigma ainda dominante.

O novo paradigma ocorre, claramente, sob a égide das ciências sociais. A prová-lo o facto, já realçado, de
que as ciências da natureza se têm aproximado cada vez mais, no nosso século, das ciências sociais.

E a reviravolta dá que pensar. No passado, as ciências sociais constituiram-se sob a égide das ciências
naturais, decalcando os seus modelos, hoje, pelo contrário, serão as ciências naturais a reconstituir-se sob
a égide das ciências sociais.

Vivemos, pois, um periodo de mudança. É, por consequência, legítimo esperar que a situação e condição
actual das Ciências da Educação tenda a mudar, também ela, num futuro mais ou menos próximo.

Resta-nos a esperança, pelo menos. Sempre.

BIBLIOGRAFIA

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Estudo Piloto. Universidade de Coimbra. Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação. (Dissertação
de Mestrado não publicada e gentilmente oferecida pelo autor).

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
* Nota: Constitui este texto a versão da comunicação oral apresentada na "Semana Viva a Ciência 94"
no Instituto Politécnico de Viseu. O outro texto que já se publicou é uma versão mais alargada e
extensa sobre o mesmo tema. Outra das razões que nos levou a apresentar esta versão, mais reduzida,
de um tema já tratado tem a ver com o facto de, neste texto, se levantarem alguns problemas
relacionados com o título deste número Problemáticas das Ciências da Educação e de alguns artigos
para ele remeterem.

1 Despacho 1 / SECT / 94 de 4/1.

2 Cf. Desp. 1/SECT/94 de 4/1.

3 Lei 46/86 de 14/10 (L. B. S. E.).

4 Cf. L.B.S.E., art.º 15, ponto 2.

5 Acrescentemos que esta estranheza e distanciamento do discurso científico cada vez mais se faz
sentir no interior da própria comunidade científica pois que a especialização leva a que cada cientista
saiba muito sobre o campo científico em que incidem as suas investigações mas não saiba nada ou
quase nada do que se passa com os vizinhos do lado, tornando-o,assim, um ignorante nessas matérias.

6 Homem de ciência não significa aqui meramente o cientista, aquele que produz a ciência, mas
também todo aquele que conhece e domina um determinado campo de conhecimento.

7 Cf. o já citado Despacho 1/SECT/94.

8 Se pensarmos que aquilo que ainda hoje entendemos por ciência só surge na cultura e civilização
ocidental no século XVII, portanto há apenas 300 anos (porque a cultura e civilização oriental não
conhece, nessa altura, isso a que chamamos ciência e só passará a conhecê-la muito mais tarde e por
"importação" do ocidente e do seu modelo de racionalidade) não podemos deixar de ficar espantados
pelos múltiplos, vertiginosos e estrondosos progressos feitos pela ciência. Três séculos é muito tempo
para a história e muito tempo para a vida. Mas a história e a vida correm devagar...pelo menos até ter
surgido e se ter desenvolvido a ciência. O tempo e os progressos da história e da vida são muito lentos
se comparados com a velocidade do tempo dos progressos científicos. Igualmente não podemos deixar
de nos espantar com o facto de, em tão curto espaço de tempo (em termos de progresso científico), se
ter cavado um abismo tão grande entre a ciência e o senso-comum de tal modo que a ciência é hoje um
discurso tão distante e longínquo do homem comum.

9 Cf. Santo Agostinho, Confissões, p. 309, quando, pretendendo definir o tempo, declara ver-se neste
embaraço.

10 Cf. Aristóteles, Metafísica, p. 3: "Todos os homens têm por natureza desejo de conhecer".

O mito aparece, precisamente, como uma primeira resposta a esta necessidade de conhecimento.

11 Cf. Aristóteles, Metafísica, Livro I, p.8.

12 René Descartes, Discurso do método. Para bem conduzir a sua razão e procurar a verdade nas
ciências. Curioso e sugestivo sub-título o do Discurso . Como se, até agora, não tivessemos feito outra
coisa senão conduzir mal a nossa razão e, por isso, até agora apenas nos enganámos. Como se, até
agora, todo o conhecimento fosse absolutamente falso e fosse, por isso, necessário, doravante, procurar
a verdade e procurá-la nas ciências. Todo o conhecimento que instituímos não é certo e seguro, mas
falso, com certeza, e nada digno da nossa confiança. A atitude cartesiana é, em consequência, uma
atitude de desconfiança e de dúvida. Não aceitar como verdadeiro o que nos dizem que é verdadeiro e
só porque nos dizem que é verdadeiro, seja quem for a autoridade que assim o diz: os livros, os
professores, Aristóteles, a Escolástica... É então preciso começar tudo de novo, do ponto zero e como
se fosse a primeira vez.

A mesma atitude se encontra no Tractatus Philosophicus: Quod Nihil Scitur, do português Francisco
Sanches que, antes de Descartes, segue um percurso muito idêntico àquele que vai ser o percurso
cartesiano, e que é tão mal conhecido e tão esquecido.

Finalmente, Montaigne com o seu radical cepticismo, bem patente nos Ensaios, exemplifica e tipifica
esta mesma atitude.

13 Já salientámos o curioso sub-título do Discurso, onde se subentende que tudo o que disseram as
ciências até agora é falso. As ciências, até agora, afinal, não passaram de pseudo-ciências e não
afirmaram mais nada senão pseudo-verdades. Numa palavra, até agora, afinal, não houve ciência! E
porquê? Porque não procurámos bem a verdade, porque escolhemos o caminho errado nessa busca da
verdade. O fracasso é, portanto, atribuído ao método. Igualmente, e logo a abrir a Primeira Parte do
Discurso, o autor declara que a razão "é a cousa mais bem distribuída do mundo" e "é naturalmente
igual em todos os homens". (p. 3) De facto, todos os homens a têm e em igual "quantidade". Mas mais
importante que ter uma boa razão é saber conduzi-la bem.Só poderemos chegar à verdade se bem
conduzirmos a nossa razão. Mais, a verdade só será a mesma para todos, isto é, só será universal, se
todos conduzirmos do mesmo modo a nossa razão, ou seja, se todos usarmos o mesmo método. Eis
que a unidade do método é condição da unidade do conhecimento ou da unidade da ciência. O ideal
cartesiano da fundação de uma ciência universal é possível sob esta condição; a universalidade da
ciência possibilitada e fundada na universalidade do método. A importância capital do método fica,
assim, bem demonstrada. Não fosse ela, desde logo, demonstrada pelo próprio título da obra, já que se
considera necessário escrever e discorrer sobre o método. Acrescente-se, para melhor clarificação, que,
originalmente, o Discurso aparece como prefácio escrito pelo autor a um conjunto de três ensaios de
carácter científico intitulados Meteoros, Dióptrica e Geometria. Sendo assim, o Discurso do Método
antecede e prepara a constituição da ciência. A lógica metodológica é propedêutica à construção do
conhecimento científico.

14 Neste contexto, torna-se inteligível a afirmação de que Galileu fisicaliza a matemática e Descartes
matematiza a física.
15 Este ideal da quantificação está também, a seu modo, presente em Descartes. Desde logo, porque o
método cartesiano é, clara e confessadamente, de inspiração matemática. A este propósito, confronte-
se o texto do Discurso do Método e leiam-se as sugestivas cinco primeiras linhas da página 10. Vejam-
se, igualmente, as regras do método, todas elas decalcadas da matemática (cf. op. cit., p. 22).

Por outro lado, o ideal matemático da construção de todo o saber a partir de um número mínimo de
princípios, também se encontra presente na racionalidade cartesiana (e constituirá, aliás, ideal de todo
o racionalismo posterior). Descartes quer construir um sistema total, que explique toda a realidade, a
partir de um pequeno conjunto de princípios indubitáveis porque evidentes, de onde seja possível, por
via dedutiva, instituir todo o conhecimento da realidade. É o ideal da construção de um sistema
axiomático formal, total e absoluto, em que a partir de um mínimo de proposições racionais iniciais e
fundamentais - os princípios, em linguagem cartesiana e tradicional, ou axiomas, em linguagem actual
- seja possível deduzir todo o conhecimento. Por isso somos hoje todos ainda cartesianos e Descartes e
o seu pensamento continuam vivos e actuantes. Daí a actualidade de Descartes que, apesar de ter
vivido há três séculos, ainda hoje nos fala e ainda hoje com ele dialogamos.

16 Despacho 1/SECT/94.

17 Boaventura de Sousa Santos, Um discurso sobre as ciências, p. 10-11.

18 Cf. Albano Estrela, Pedagogia, Ciência da Educação?, p. 11-12.

Cf. também António Nóvoa, As Ciências da Educação e os processos de mudança, p. 21-22.

19 Em virtude de se tratar de um texto de uma comunicação que obedeceu a condicionalismos de


ordem temporal, não nos é possível desenvolver minimamente este tema da crise da ciência, por isso,
só nos limitamos a afirmar que tal crise existiu e foi factor decisivo e determinante na sinalização de
um novo paradigma emergente. No entanto, noutro texto, já publicado no nº 1 da revista Millenium
sob o título “Em Torno do Conceito de Ciência” (p.39-51) este aspecto foi mais desenvolvido.

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