Você está na página 1de 4

Em Crítica da Vítima (traduzido por Pedro Fonseca para a Editora Âyiné), o

professor Daniele Giglioli quer nos conduzir por um campo minado.


Discutir a vítima é discutir um dos poucos verdadeiros tabus da nossa
sociedade.

O problema que interessa a Giglioli está no coração das discussões políticas


contemporâneas. A formulação que o professor da Universidade de
Bergamo apresenta é aguda em sua simplicidade: como pode a vítima,
impotente por definição, ter sido transformada em fonte de poder?

Detalhe de “O sacrifício de Isaac” de Caravaggio.

Numa entrevista dada ao canal da editora no YouTube, Giglioli cita o caso


dos eleitores de Trump, que teriam votado nele por representar as
“verdadeiras” vítimas. No entanto, isso nada difere, estruturalmente, de
todas as outras eleições: qual candidato não recebeu poder justamente
para representar as vítimas? Daí o mais comum argumento retórico de
hoje: elas são vítimas falsas, nós é que somos as verdadeiras vítimas;
façamos algo, porque já somos vítimas, ou porque não queremos vir a ser
vítimas.

Em outro vídeo, Giglioli localiza o problema nos últimos vinte ou trinta anos,
embora ele mesmo examine, no livro, textos anteriores a essa faixa de
tempo, como os de Pasolini. Por outro lado, René Girard, um dos autores
com que Giglioli dialoga, colocaria esse reposicionamento da vítima numa
escala de milhares de anos. Para Girard, o assassinato da vítima humana
inocente (da falta de que é acusada) estaria no centro da cultura humana.
Um rito arcaico seria a reencenação de um assassinato coletivo espontâneo
com vistas a produzir o mesmo efeito catártico, isto é, de expulsão da
violência.

Os mitos desmistificados

Ainda segundo Girard, os mitos, que teriam surgido depois dos ritos, seriam
narrativas daquelas agressões primeiras, mas contadas desde o ponto de
vista de agressores sinceramente equivocados, sinceramente capazes de
deslocar sua violência para fora de si. Por exemplo: podemos imaginar que
Semele foi “possuída por Zeus” e fulminada por Hera, ou estuprada e
morta; podemos dizer que a lenda do nosso boto cor-de-rosa amazônico é
uma bela peça de folclore, ou atentar para a parte da história que diz que
nas noites de Lua cheia o boto vira um homem que “possui” as mulheres,
isto é, estupra-as.

Estruturalmente, não há diferença entre dizer que foi Zeus, que foi o boto,
ou que se abusou de uma mulher por “ser um homem de outra época” – e
aqui enxergamos a força da interpretação girardiana, que pode unir mitos
ancestrais e situações contemporâneas e até cotidianas.

É esse tipo de atitude que, segundo Girard, sustenta a ordem arcaica e que
ainda enxergamos em nacionalismos políticos, por exemplo. Aquilo que
parece tosco aos olhos contemporâneos é a óbvia transferência
simplificadora de culpas. Um francês poderia, por exemplo, afirmar que o
problema são os imigrantes, sem atentar para o fato de que décadas antes
o ex-ministro Alain Peyrefitte se perguntava, em Le Mal Français, o que é que
tinha feito a França capitular diante da Alemanha.
Essa nossa capacidade de desmistificar os mitos em todas as suas variantes
seria, para Girard, uma decorrência da tradição judaico-cristã,
principalmente dos Evangelhos. Estes seriam como que paródias dos mitos,
repetindo a mesma história fundamental, mas desde o ponto de vista da
vítima agredida: ao lê-los, sabemos que Cristo é inocente.

A vítima no centro, mas inocente

Se as ordens arcaicas foram constituídas sobre vítimas consideradas


culpadas, as modernas – e é este o paradoxo que interessa particularmente
a Giglioli – também querem se construir sobre as vítimas. Não, porém, por
elas serem culpadas, mas por serem inocentes. Essa inocência, por sua vez,
torna-se um escudo identitário a partir do qual postulam-se a verdade e a
inatacabilidade. Afinal, todos conhecemos casos em que o questionamento
da vítima é entendido como hostilidade a ela, quando não sua
culpabilização. Lembremos de Cristo: “odiaram-me sem motivo”, ou
“odiaram-me gratuitamente” (João 15, 25).
Aqui é que se deve recordar que estamos num campo minado. Quando
nossa disposição não é mais debater de frente, mas desconstruir o discurso
alheio, tudo o que dizemos pode e será usado contra nós sem que ninguém
leia nossos direitos. Toda advertência é necessária: criticar não é culpar,
não é opor-se; criticar não é nem sequer uma posição intermediária entre a
rejeição categórica e a aceitação incondicional, mas tentar compreender e
aceitar o que pode haver de ambíguo.

Se esta resenha mantém o suspense e também um tom genérico, Giglioli


não se exime de discutir casos concretos, e talvez venha a deixar
desconfortáveis alguns leitores, que podem sentir-se indevidamente
encurralados por um dilema: qual deve ser o mais potente, o espírito crítico
ou a narrativa da vítima?

Para não deixarmos outra questão fundamental, ainda vale observar que a
atividade crítica não pode fundar a estabilidade social. Em contraposição a
ela, a narrativa da vítima torna-se a opção… conservadora.

Literatura argentina: vanguarda da vítima

Giglioli não parece estar interessado, ao menos não neste livro, nos casos
latino-americanos. É pena. A obra considerada fundadora da literatura
argentina é a biografia do caudilho Facundo Quiroga escrita por Domingo
Faustino Sarmiento, que veio a ser presidente da Argentina ao final do
século XIX. Sarmiento abre o texto sacando o super-trunfo retórico que é
colocar-se na posição de vítima: conta que foi linchado por mazorqueros e
por isso exilou-se no Chile, de onde passa a publicar em jornal um longo
ataque ao presidente argentino Rosas: são os capítulos que, coligidos,
formarão Facundo, ou Civilização e Barbárie. Em seguida, após descrições de
usos e costumes, temos as narrativas das barbaridades cometidas por
Facundo e por Rosas.
Claro que em nenhum momento se espera que o leitor simpatize com os
violentos. Porém, se o liberal Sarmiento sabe criticar muito bem a tirania
nas vertentes metódica (Rosas) e caótica (Facundo) e narrar como ninguém
as truculências que deram origem à Argentina, por que esse mesmo
espírito crítico não poderia voltar-se para o narrador? É o próprio
Sarmiento quem diz que a “barbárie” opõe-se à “civilização” num esquema
de retribuições.

Produtividade
O ensaio de Giglioli, com toda sua densidade, descreve portanto uma série
de paradoxos produtivos. No caso argentino, entre a narrativa da vítima e a
percepção aguda da violência, produz-se uma literatura nacional. Se fazer a
crítica da vítima certamente não é acusá-la, criticar também não é
necessariamente resolver ou esgotar um problema. A visão de Girard tem a
elegância das grandes soluções. Por outro lado, o exame de Giglioli nos leva
de um olho do furacão a outro. Sendo possível conter os ânimos, valeria um
grande debate, e não só do leitor consigo mesmo. Talvez até a pergunta
seja: somos capazes de iniciar esse debate – e de sobreviver a ele?

Você também pode gostar