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Em outro vídeo, Giglioli localiza o problema nos últimos vinte ou trinta anos,
embora ele mesmo examine, no livro, textos anteriores a essa faixa de
tempo, como os de Pasolini. Por outro lado, René Girard, um dos autores
com que Giglioli dialoga, colocaria esse reposicionamento da vítima numa
escala de milhares de anos. Para Girard, o assassinato da vítima humana
inocente (da falta de que é acusada) estaria no centro da cultura humana.
Um rito arcaico seria a reencenação de um assassinato coletivo espontâneo
com vistas a produzir o mesmo efeito catártico, isto é, de expulsão da
violência.
Os mitos desmistificados
Ainda segundo Girard, os mitos, que teriam surgido depois dos ritos, seriam
narrativas daquelas agressões primeiras, mas contadas desde o ponto de
vista de agressores sinceramente equivocados, sinceramente capazes de
deslocar sua violência para fora de si. Por exemplo: podemos imaginar que
Semele foi “possuída por Zeus” e fulminada por Hera, ou estuprada e
morta; podemos dizer que a lenda do nosso boto cor-de-rosa amazônico é
uma bela peça de folclore, ou atentar para a parte da história que diz que
nas noites de Lua cheia o boto vira um homem que “possui” as mulheres,
isto é, estupra-as.
Estruturalmente, não há diferença entre dizer que foi Zeus, que foi o boto,
ou que se abusou de uma mulher por “ser um homem de outra época” – e
aqui enxergamos a força da interpretação girardiana, que pode unir mitos
ancestrais e situações contemporâneas e até cotidianas.
É esse tipo de atitude que, segundo Girard, sustenta a ordem arcaica e que
ainda enxergamos em nacionalismos políticos, por exemplo. Aquilo que
parece tosco aos olhos contemporâneos é a óbvia transferência
simplificadora de culpas. Um francês poderia, por exemplo, afirmar que o
problema são os imigrantes, sem atentar para o fato de que décadas antes
o ex-ministro Alain Peyrefitte se perguntava, em Le Mal Français, o que é que
tinha feito a França capitular diante da Alemanha.
Essa nossa capacidade de desmistificar os mitos em todas as suas variantes
seria, para Girard, uma decorrência da tradição judaico-cristã,
principalmente dos Evangelhos. Estes seriam como que paródias dos mitos,
repetindo a mesma história fundamental, mas desde o ponto de vista da
vítima agredida: ao lê-los, sabemos que Cristo é inocente.
Para não deixarmos outra questão fundamental, ainda vale observar que a
atividade crítica não pode fundar a estabilidade social. Em contraposição a
ela, a narrativa da vítima torna-se a opção… conservadora.
Giglioli não parece estar interessado, ao menos não neste livro, nos casos
latino-americanos. É pena. A obra considerada fundadora da literatura
argentina é a biografia do caudilho Facundo Quiroga escrita por Domingo
Faustino Sarmiento, que veio a ser presidente da Argentina ao final do
século XIX. Sarmiento abre o texto sacando o super-trunfo retórico que é
colocar-se na posição de vítima: conta que foi linchado por mazorqueros e
por isso exilou-se no Chile, de onde passa a publicar em jornal um longo
ataque ao presidente argentino Rosas: são os capítulos que, coligidos,
formarão Facundo, ou Civilização e Barbárie. Em seguida, após descrições de
usos e costumes, temos as narrativas das barbaridades cometidas por
Facundo e por Rosas.
Claro que em nenhum momento se espera que o leitor simpatize com os
violentos. Porém, se o liberal Sarmiento sabe criticar muito bem a tirania
nas vertentes metódica (Rosas) e caótica (Facundo) e narrar como ninguém
as truculências que deram origem à Argentina, por que esse mesmo
espírito crítico não poderia voltar-se para o narrador? É o próprio
Sarmiento quem diz que a “barbárie” opõe-se à “civilização” num esquema
de retribuições.
Produtividade
O ensaio de Giglioli, com toda sua densidade, descreve portanto uma série
de paradoxos produtivos. No caso argentino, entre a narrativa da vítima e a
percepção aguda da violência, produz-se uma literatura nacional. Se fazer a
crítica da vítima certamente não é acusá-la, criticar também não é
necessariamente resolver ou esgotar um problema. A visão de Girard tem a
elegância das grandes soluções. Por outro lado, o exame de Giglioli nos leva
de um olho do furacão a outro. Sendo possível conter os ânimos, valeria um
grande debate, e não só do leitor consigo mesmo. Talvez até a pergunta
seja: somos capazes de iniciar esse debate – e de sobreviver a ele?