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Escrevo o título “a perplexidade” e me parece vir a sensação de que este

seria o título de um romance de Milan Kundera. São seis da manhã de


quinta-feira, 18 de maio, minhas traduções estão atrasadas, e, como o
apartamento onde moro fica na encosta de um morro, ouço os pássaros
cantando em total indiferença à delação da JBS.

O que me surpreende é que eu me sinta mais próximo desses pássaros do


que das pessoas que, paradoxalmente, espero que venham a encher as
ruas no domingo próximo para protestar.

Aliás, neste momento, nada me interessa mais do que tentar descrever


paradoxos, sem a menor intenção de resolvê-los.

O rei contra o guerreiro

Num discurso avidamente estudado por todos aqueles ligados à obra de


René Girard, Ulisses – sim, aquele Ulisses mítico – explica o que acontece
quando as estruturas sociais se dissolvem. O autor do discurso é
Shakespeare, e o leitor pode encontrá-lo na primeira cena do terceiro ato
de Troilo e Cressida, obra que, apesar de não ser das mais conhecidas, foi
chamada por René Girard de sua “Bíblia”.
A circunstância de Troilo e Cressida é a guerra de Troia, justamente o trecho
que é contado pela Ilíada. O poema de Homero, recordemos, começa com
uma crise política e militar que – não que isso seja um consolo – tem
nuances morais mais grotescas do que propina e carne podre. Agamêmnon
é o rei de todos os gregos. O exército grego está sendo atacado pelo deus
Apolo. O motivo: o próprio Agamêmnon tinha tomado a filha de Crises,
sacerdote de Apolo, como sua escrava sexual. Como teve de devolvê-la para
aplacar o deus, mandou pegar Briseida, a escrava sexual de Aquiles, o qual,
revoltado, decidiu ficar em sua tenda, sem participar da guerra, só saindo
para vingar a morte do amigo Pátroclo. A “cólera” de Aquiles, que é a
primeira palavra do texto grego da Ilíada, é essa cólera: a pirraça por lhe
terem tomado a escrava.
Um emoticon do século I a.C.

Nós, hoje, não somos guerreiros gregos ansiosos por saquear Troia.
Achamos que a guerra do Iraque foi uma resposta descabida a um ato de
terrorismo, e a destruição de Troia por causa do rapto de uma mulher
dificilmente nos convenceria. Para piorar, Agamêmnon e Aquiles, com seus
gostos por escravas sexuais, mais parecem membros do Estado Islâmico.

Mas bem. Voltemos ao discurso de Ulisses, que fala do que tem sido a
nossa experiência brasileira diária: se um guerreiro questiona o rei, quem é
guerreiro, quem é rei? Foi Agamêmnon quem se rebaixou primeiro? Quem
tem legitimidade? Difícil saber. Só que, nessa confusão, quem começa a
confundir-se são os papéis sociais. Aquiles não cumpre sua obrigação.
Quem a descumpriu primeiro? Alguém tem um dever maior do que o
outro?
O espectador descompassado

Vamos tentar pensar no descompasso que isso traz para a alma. É difícil
lembrar de alguma literatura política que não pressuponha ou
almeje alguma harmonia entre o indivíduo e o Estado, entre indivíduo
privado e autoridades. Claro, você pode fingir que é o super-homem
nietzscheano e tirar de si toda a força para viver por si, mas nós, reles
mortais, precisamos dar alguma credibilidade ao Estado. No momento em
que ele perde essa credibilidade, no momento em que Agamêmnon não dá
o exemplo e governa apenas porque sim, sentimos que é legítimo
antagonizá-lo, enxergando-o como rival, alguém no mesmo nível, quando
não abaixo.

Porém, se para nós o Estado tem a legitimidade de Agamêmnon, o


resultado é aquela sensação de que há uma mentira fundamental e
corrosiva, irradiando-se por toda parte, presente em cada ato em que o
Estado está presente, da compra de uma água à transmissão de uma
herança; e a consequência dessa sensação repetida é outra, já nomeada
por Stendhal: a sensação de ressentimento impotente. Eu, um simples
rapaz de classe média que nunca encostou num revólver, não posso matar
Agamêmnon; porém, se um Aquiles pode matá-lo, por que eu choraria?
Danem-se esses dois patifes.

Ou ainda: como não trasladar a falta de credibilidade do governo para o


próprio Estado? Para um cidadão privado, há um contágio. Se uns são
assim, se 1890 são assim, que diferença, aliás, haveria entre esses e e os
demais? E entre esses todos e aquelas pessoas que sempre declararam
querer fazer concurso público não para prestar um serviço ao público, mas
para obter estabilidade e altos salários pagos por uma maioria que não tem
estabilidade, e no mais das vezes também não tem altos salários?

Uma anedota a respeito. George Bernard Shaw teria perguntado a uma


respeitável senhora se ela dormiria com ele por um milhão de dinheiros.
Diante do “sim”, ele perguntou: “E por cem?”. Indignada, a senhora
retrucou: “O que você acha que eu sou?”. Shaw limitou-se a constatar: “O
que você é nós já sabemos, só falta saber o preço”.

Igualmente, entre delatores e delatados na Lava-Jato e concurseiros


inveterados, todos são extrativistas: só falta saber o preço. Qual a diferença
entre Agamêmnon e Aquiles?
Ir ao fundo das coisas, sem no entanto voltar à superfície

Existe uma função legítima (idealmente pequena e restrita, mas muito


firme) para o Estado, e é melhor jogar dentro de regras ruins do que abolir
as regras porque os jogadores trapaceiam sem parar. Nem há nada de mal
da maioria dos pequenos funcionários públicos: por exemplo, supor que
um professor da rede municipal seja movido por ganância e extrativismo
seria cuspir na cara de quem enfrenta crianças espiritualmente (ou até
fisicamente) abandonadas pelos pais. Claro que não é aí que vamos
encontrar Aquiles ou Agamêmnon.

Porém, o efeito mais grave, por ser irresistível, é aquele que levou o leitor a
me acompanhar até este ponto, que na verdade é a origem do discurso de
Ulisses: a gravidade de certas transgressões dá vontade de colocar o
sistema inteiro em xeque. Neste momento, a paixão só consegue querer
saber dos últimos detalhes sórdidos, e a razão parece querer ir até os
fundamentos. Só que não é possível acompanhar a política como se fosse
uma novela de podridões e manter o respeito pelas instituições, assim
como colocar as instituições racionalmente em suspenso lhes garante uma
legitimidade no máximo provisória. A paralisia vem desses dois lados.

A perplexidade, senhoras e senhores. São sete da manhã agora, não faço


ideia de porque os pássaros cantam, e só espero que seja porque tentam
tentar colocar alguma ordem na própria alma.

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