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Nós, hoje, não somos guerreiros gregos ansiosos por saquear Troia.
Achamos que a guerra do Iraque foi uma resposta descabida a um ato de
terrorismo, e a destruição de Troia por causa do rapto de uma mulher
dificilmente nos convenceria. Para piorar, Agamêmnon e Aquiles, com seus
gostos por escravas sexuais, mais parecem membros do Estado Islâmico.
Mas bem. Voltemos ao discurso de Ulisses, que fala do que tem sido a
nossa experiência brasileira diária: se um guerreiro questiona o rei, quem é
guerreiro, quem é rei? Foi Agamêmnon quem se rebaixou primeiro? Quem
tem legitimidade? Difícil saber. Só que, nessa confusão, quem começa a
confundir-se são os papéis sociais. Aquiles não cumpre sua obrigação.
Quem a descumpriu primeiro? Alguém tem um dever maior do que o
outro?
O espectador descompassado
Vamos tentar pensar no descompasso que isso traz para a alma. É difícil
lembrar de alguma literatura política que não pressuponha ou
almeje alguma harmonia entre o indivíduo e o Estado, entre indivíduo
privado e autoridades. Claro, você pode fingir que é o super-homem
nietzscheano e tirar de si toda a força para viver por si, mas nós, reles
mortais, precisamos dar alguma credibilidade ao Estado. No momento em
que ele perde essa credibilidade, no momento em que Agamêmnon não dá
o exemplo e governa apenas porque sim, sentimos que é legítimo
antagonizá-lo, enxergando-o como rival, alguém no mesmo nível, quando
não abaixo.
Porém, o efeito mais grave, por ser irresistível, é aquele que levou o leitor a
me acompanhar até este ponto, que na verdade é a origem do discurso de
Ulisses: a gravidade de certas transgressões dá vontade de colocar o
sistema inteiro em xeque. Neste momento, a paixão só consegue querer
saber dos últimos detalhes sórdidos, e a razão parece querer ir até os
fundamentos. Só que não é possível acompanhar a política como se fosse
uma novela de podridões e manter o respeito pelas instituições, assim
como colocar as instituições racionalmente em suspenso lhes garante uma
legitimidade no máximo provisória. A paralisia vem desses dois lados.