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No começo de O Reino, livro em que conta o período em que foi católico, o

escritor francês Emmanuel Carrère se pergunta como pôde acreditar nas


teses absurdas em que o catolicismo se baseia. Um homem nasceu de uma
virgem, e depois ainda ressuscitou. Há exatamente uma semana (escrevo
este artigo sete dias depois da Quinta-Feira Santa), muitas pessoas que
talvez concordem com Carrère afastaram-se de seu trabalho por causa
dessa crença: um tremendo efeito prático que se repete todos os anos,
cerca de quarenta dias após a primeira Lua cheia depois do começo do
outono (no hemisfério sul). Duvide-se de Cristo, mas não da folga em seu
nome.

A religião também é frequentemente usada como metáfora. Quando se diz


que tal coisa é como uma religião, quer-se dizer que alguém é inflexível em
relação a certas crenças ou práticas. Se são crenças ou práticas que aprovo,
trata-se de um devoto; se as desaprovo, sem dúvida é um fanático, talvez
esquisito, quiçá perigoso.

Fala-se ainda, e muito a sério – academicamente a sério, harvardianamente


a sério – sobre as religiões seculares, as religiões civis. Sim, é verdade que a
Revolução Francesa afirmou o Ser Supremo (aguardamos ainda
manifestações do Ser Supremo sobre a Revolução Francesa) e formalizou
ritos civis. Também é verdade que as nações mais jovens, formadas no
século XIX, quiseram criar seus ritos, uniformizando a educação, colocando
as crianças para cantar o hino todos os dias, e que todas as nações
ritualizam procedimentos meramente burocráticos, como posses de cargos,
trocas de mandato. É verdade que, principalmente com urnas eletrônicas,
esses procedimentos podem ser verdadeiramente misteriosos; mas não
era bem disso que eu estava falando.

Ou era, em certa medida. As questões com que esbarramos ao examinar o


senso comum sobre a religião são de duas ordens: como já mencionado, a
adesão a certas teses, consideradas absurdas e extraordinárias até por
seus defensores, e, como sugerido, uma organização, de multidões grandes
e pequenas, espontânea ou deliberada, em torno de certas ideias, ou de
certas pessoas.

(A parte do mistério e da urna eletrônica é mais do que uma insinuação de


fraude; ainda existe, de fato, algo de misterioso no contágio de opiniões e
de motivações que leva enormes números de pessoas a aderir a candidatos
– candidatos esses aos quais, como no Brasil, elas são constrangidas a
considerar. Algo tão misterioso que o fraudador se sente compelido a agir.)
E quando se fala de multidões ou quando se faz parte de uma multidão,
ressurgem as alusões religiosas. Não creio, ao contrário do que talvez o
leitor espere, que haja algo de equivocado nisto tudo. Penso que todas
essas comparações relacionam-se com uma intuição correta, que é aquela
que faz com que não percebamos que “religião secular” seria uma
contradição em termos, um oximoro. Não é na medida em que, por
religião, pretende-se indicar não a adesão a certas teses consideradas
absurdas, mas a própria atitude de adesão, seja a teses, a objetos abstratos
como a nação ou um ideal, adesão essa que em determinado momento
renunciaria à crítica (você acreditaria que o adepto crítico de uma religião é
verdadeiramente seu adepto?). Assim religião e mistificação se
confundiriam, e as duas dimensões dessa atitude – intelectual e volitiva –
estariam reunidas no mesmo gesto.

Porém, mesmo essa visão pode pecar por ser excessivamente moderna.

Se adotarmos a visão de René Girard, a cultura humana surgiu de um jogo


entre proibições e rituais. O objetivo das proibições era evitar a imitação, a
perda de identidade, a violência coletiva; o objetivo dos rituais era controlar
a imitação, a perda de identidade, a violência coletiva. Tente imaginar uma
crise coletiva dentro de um grupo de hominídeos de 100 a 140 membros,
todos desprovidos de linguagem, e que essa crise é resolvida porque a
violência é dirigida para um único membro. A catarse produzida é
maravilhosa, e a diferença entre nós e aqueles hominídeos é que nós
vemos apenas uma catarse, e eles veem uma ação divina. (O que não
impede que nós modernos, tenhamos outras maneiras de nos
equivocarmos quanto a esses mesmos pontos.)

A religião, segundo Girard, surgiria como uma tecnologia de controle da


violência, mas sem que o pajé fosse um grande cínico, arguto como um
desconstrucionista e manipulador como um ilusionista. Todos acreditavam
na mesma ilusão, aderindo a teses não como um católico adere aos artigos
do Credo, formulados após muitas disputas, mas aderindo a uma certa
experiência coletiva, imitada muito antes de ser formulada.

A ideia de que a religião nasce como a imitação empírica, provavelmente


anterior à linguagem, de uma crise primeva que impediu o colapso de uma
comunidade inteira, e que aliás só depois começou a ser formulada em
narrativas, ou mitos, pode ser uma chave para entendermos os problemas
apresentados na primeira parte deste texto: a religião fica voltando, como
um termo de comparação, a esferas que ninguém consideraria
propriamente religiosas. Ou até a esferas que gostariam de definir-se
pelo secularismo – que, no senso comum, é o oposto da religião, seja lá o que
sejam um e outro.

Teríamos aí também uma chave para entendermos porque se espera que a


vida secular produza efeitos que se atribuía à religião, como um sentido de
comunidade, e até de identidade comum. Porém, claro, este seria apenas o
começo do problema. Se um primitivo duvida de seu rito, se acha que as
proibições são besteira, ele pode realmente colocar em risco a sua pequena
comunidade. Por outro lado, se inventarmos uma letra parodiando o hino
nacional e a preferirmos na hora de cantá-lo na escola, o país continuará
existindo.

A vida secular parece viver nesta contradição, porque ela seria justamente
isto: não precisar crer em algo transcendente como uma “nação” para
esperar que as instituições de controle da violência (polícia, poder
judiciário) funcionem. Contudo, as instituições do Estado secular não param
de se perguntar como emular unidade, como fazer com que as pessoas
demonstrem a sincera adesão a certos valores.

Não basta ser ateu em relação ao Estado secular, dizendo-lhe: você é


apenas um mecanismo de controle da violência, melhor do que os demais,
mas nem por isso transcendente. Temos ainda ideólogos, de direita e de
esquerda, que, como velhos pajés sinceramente iludidos, pedem que
associemos nossa adesão ao Estado-nação, ou a mecanismos globais de
controle, a algo vago, intangível, para fora deste mundo. E temos, claro,
cínicos, argutos como desconstrucionistas e manipuladores como
ilusionistas.

Temos, sobretudo, poucos que digam: eu mesmo tenho essa atitude


religiosa, de tipo primitivo, que enxergo nos outros; sou capaz de aderir
religiosamente a praticamente qualquer coisa, porque é possível desejar a
verdade de qualquer coisa, recusando-se respeitosamente a criticá-la;
apontar todo o meu aparato crítico para um lado, mas não para outro
(principalmente o próprio). É o impasse secular, que está intimamente
ligado ao problema sem fim da religião.

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