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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

FACULDADE DE DIREITO
GRUPO DE ESTUDOS PERMANENTE DE DIREITO, ESTADO E RACISMO

AS TENSÕES IDEOLÓGICAS DO CAPITALISMO: UNIVERSALISMO


VERSUS RACISMO E SEXISMO

Immanuel Wallerstein1

O mundo moderno, temos dito há tempos, é o primeiro a ir além dos estreitos limites da
lealdade local e proclamar a irmandade universal do homem. Ao menos foi isso o que
nos disseram lá pela década de 1970. Desde aquele tempo, temos tomado consciência de
que a própria terminologia da doutrina universalista como, por exemplo, a frase “a
irmandade do homem”, desmente a si própria, uma vez que esta frase é masculina no
gênero, o que exclui explicitamente ou ao menos relega a uma esfera secundária todas
aquelas que sejam mulheres. Seria fácil multiplicar exemplos linguísticos, todos os
quais revelam uma tensão subjacente entre a contínua legitimação ideológica do
universalismo no mundo moderno e a persistência da realidade (tanto material quanto
ideológica) do racismo e do sexismo neste mesmo mundo. É esta tensão, ou mais
precisamente, esta contradição, que eu gostaria de discutir. As contradições não apenas
fornecem a força dinâmica dos sistemas históricos; elas também revelam suas
características essenciais.

Uma coisa é perguntar sobre a procedência da doutrina universalista e o quão


largamente ela é compartilhada; e por qual motivo o racismo e o sexismo existem e
persistem. Outra muito diferente é questionar sobre as origens do emparelhamento das
duas ideologias, ou mesmo argumentar que há uma relação simbiótica entre elas.
Começaremos com um aparente paradoxo: o maior desafio ao racismo e ao sexismo tem
sido as crenças universalistas; e o maior desafio ao universalismo tem sido as crenças
racistas e sexistas. Costuma-se tomar como evidente que os propositores de cada um
desses conjuntos de crenças são pessoas em campos opostos. Apenas ocasionalmente

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Traduzido por Pedro Eduardo Zini Davoglio para uso exclusivo interno do “Grupo de Estudos
Permanente de Direito, Estado e Racismo – Mackenzie/SP”

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nos permitimos notar que o inimigo, como disse Pogo, somos nós mesmos; e que a
maioria de nós (talvez todos nós) considera perfeitamente possível perseguir as duas
doutrinas simultaneamente. Isso, sem dúvida, é uma situação deplorável; mas devemos
explicá-la, e para além da afirmação simplista de hipocrisia. Este paradoxo (ou esta
hipocrisia) é duradouro, generalizado e estrutural, não uma falha humana passageira.

Nos sistemas históricos anteriores ao capitalismo era mais fácil ser coerente. Embora
muitos desses sistemas anteriores variassem em suas estruturas e em suas premissas,
nenhum deles hesitava em fazer algum tipo de distinção moral e política entre o
pertencente (insider) e o não-pertencente (outsider), distinção na qual tanto a crença e as
qualidades morais superiores do pertencente quanto o senso de obrigação dos
pertencentes uns quanto os outros tomavam precedência sobre qualquer conceito
abstrato a respeito da espécie humana, isso quando tais abstrações existiam. Mesmo as
três religiões mundiais monoteístas – Judaísmo, Cristianismo e Islamismo – fizeram tais
distinções entre pertencentes e não-pertencentes apesar de seu compromisso hipotético
com um único Deus presidindo uma única espécie humana.

Este ensaio discute primeiro as origens das doutrinas universalistas modernas, seguindo
para as fontes do racismo e sexismo modernos e finalmente para as realidades da
combinação das duas ideologias, ambas em termos do que deu origem a elas e de quais
tem sido suas consequências.

Há duas maneiras principais de explicar as origens do universalismo como uma


ideologia do nosso sistema histórico presente. Uma delas é ver o universalismo como o
ponto culminante de uma antiga tradição intelectual. A outra é vê-lo como uma
ideologia particularmente apropriada a uma economia-mundo capitalista. Os dois
modos de explicar não necessariamente contradizem um ao outro. O argumento de que
ele seria a linha de fuga ou o ponto alto de uma longa tradição tem a ver precisamente
com o trio de religiões monoteístas. O salto moral crucial, tem-se argumentado, ocorreu
quando os humanos (ou alguns humanos) deixaram de acreditar em um deus tribal e
reconheceram a unicidade de Deus e, portanto, implicitamente, a unicidade da
humanidade. Certamente, prossegue o argumento, as três religiões monoteístas não
levaram a lógica de sua posição até as últimas consequências. O judaísmo reservou uma
posição privilegiada ao povo escolhido por Deus e era relutante em acolher novos

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membros por adoção. O cristianismo e o islamismo quebraram as barreiras à entrada no
grupo dos escolhidos e seguiram mesmo a direção oposta, com o proselitismo. Mas
tanto o cristianismo quanto o islamismo normalmente requeriam um juramento de
fidelidade (que o adulto não crente poderia realizar mediante a conversão formal) para
que se ganhasse acesso integral ao reino de Deus. O pensamento iluminista moderno,
diz-se, simplesmente levou esta lógica monoteísta um pouco mais longe, derivando
igualdade moral e direitos humanos da própria natureza humana, uma característica com
a qual todos nós nascemos e que resulta no fato de que nossos direitos tornam-se
atributos naturais em oposição a privilégios adquiridos.

Esta não é uma história das ideias incorreta. Temos vários documentos político-morais
importantes do final do século XVIII que refletem esta ideologia iluminista:
documentos que receberam ampla credibilidade e adesão como resultado de grandes
convulsões políticas (a Revolução Francesa, a descolonização das Américas, etc.). Mas
podemos levar a história dessa ideologia adiante. Houve muitas omissões de facto
nestes documentos ideológicos do século XVIII – sobretudo no que se refere a não-
brancos e mulheres. Com o passar do tempo, estas e outras omissões têm sido
retificadas mediante a inclusão explícita desses grupos sob a epígrafe da doutrina
universalista. Na atualidade, inclusive os movimentos sociais cuja razão de ser consiste
em pôr em prática políticas racistas ou sexistas tendem a aceitar verbalmente a ideologia
do universalismo, com a qual dão a impressão de que considerariam vergonhoso
proclamar abertamente os princípios que com toda a clareza regem suas prioridades
políticas. Não é difícil, portanto, traçar a partir da história das ideias uma espécie de
curva temporal ascendente da aceitação da ideologia universalista e, com base nessa
curva, afirmar a presença de uma espécie de processo histórico mundial irreversível.

Entretanto, o universalismo só foi seriamente defendido como doutrina política no


mundo moderno, de modo que parece consistente argumentar que a sua origem deve ser
procurada no marco socioeconômico desse mundo. A economia-mundo capitalista é um
sistema baseado na acumulação contínua de capital. Um dos principais mecanismos que
a tornam possível é a conversão de qualquer coisa em mercadoria. Estas mercadorias
circulam no que denominamos mercado mundial sob a forma de produtos, capital e
força de trabalho. É de se supor que quanto mais livre é a circulação, mais ativa será a
mercantilização e, consequentemente, tudo aquilo que se opõe ao seu movimento está
hipoteticamente contraindicado.

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Qualquer coisa que impeça que os produtos, o capital e a força de trabalho
transformem-se em mercadorias vendáveis significa um obstáculo para esses
movimentos. Todo recurso a critérios para avaliar os produtos, o capital e a força de
trabalho que não sejam seu valor de mercado, toda intromissão de outras prioridades
nesta avaliação, fazem com que esses elementos sejam não vendáveis ou ao menos,
dificilmente vendáveis. Por conta de uma lógica interna impecável, todos os
particularismos, sejam quais forem, são considerados incompatíveis com a lógica do
sistema capitalista, ou no mínimo um obstáculo para o seu perfeito funcionamento.
Consequentemente, no contexto do sistema capitalista é imperativo proclamar uma
ideologia universalista e introduzi-la na realidade como elemento fundamental da
incessante persecução da acumulação de capital. Assim, dizemos que as relações sociais
capitalistas são uma forma de “solvente universal” que reduzem tudo a uma homogêna
forma de mercadoria cujo único critério de valoração é o dinheiro.

Daí extrai-se duas consequências principais. O universalismo permitiria a máxima


eficácia possível na produção de bens. Especificamente, em termos de força de trabalho,
se temos um “caminho aberto aos talentos” (uma das consignas nascidas na Revolução
Francesa), é provável que coloquemos as pessoas mais competentes nas funções
profissionais que, na divisão mundial do trabalho, melhor convenham a suas aptidões.
Com efeito, temos desenvolvido todo um conjunto de mecanismos institucionais (o
ensino público, o serviço público, legislações anti-nepotismo) que são concebidos para
estabelecer o que hoje chamamos de um sistema “meritocrático”.

Por outro lado, a meritocracia seria não apenas economicamente eficaz, mas também
um fator de estabilização política. À medida que na história do capitalismo (do mesmo
modo que nos sistemas históricos anteriores) existem desigualdades na distribuição de
recompensas, o ressentimento daqueles que recebem recompensas modestas em face
daqueles que recebem as mais importantes seria menos intenso, já que tal desigualdade
está justificada pelo mérito e não mais pela tradição. Em outras palavras, pensa-se que a
maior parte das pessoas consideraria mais aceitável, moral e politicamente, o privilégio
adquirido mediante o mérito do que o adquirido hereditariamente.

Esta sociologia política me parece discutível. Diria inclusive que o exato oposto seria o
verdadeiro. Ainda que o privilégio adquirido hereditariamente tenha sido aceito, ao
menos em parte, durante muito tempo pelos oprimidos, com base em crenças místicas

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ou fatalistas em uma ordem eterna que, pelo menos, os instalava na comodidade da
certeza, o privilégio adquirido por uma pessoa que se supõe mais inteligente e, em todo
caso, mais instruída do que outra, é sumamente difícil de admitir, salvo pela minoria
que, efetivamente já está com o pé no degrau da escada. Ninguém que não seja um
yuppie2 ama ou admira um yuppie. Príncipes ao menos podem parecer bondosas figuras
paternas. Um “yuppie” não é nada além de um irmão superprivilegiado. O sistema
meritocrático é um dos sistemas politicamente menos estáveis. E é precisamente por
conta desta fragilidade política que o racismo e o sexismo entram em cena.

Durante muito tempo pensou-se que a curva ascendente da ideologia universalista


correspondia à curva descendente do grau de desigualdade determinado pela raça ou o
pelo sexo, tanto na teoria como na prática. Do ponto de vista empírico, contudo, este
não tem sido o caso. Poder-se-ia inclusive observar o contrário e constatar que, no
mundo moderno, os gráficos de desigualdades raciais e sexuais têm apresentado
aumentos ou, quando muito, estagnação – tanto de fato quanto na ideologia. Para
determinar as razões disso devemos examinar o que proclamam efetivamente as
ideologias racistas e sexistas.

O racismo não é apenas uma atitude de desprezo ou de medo contra pessoas que
pertencem a outros grupos definidos por critérios genéticos (como a cor da pele) ou por
critérios sociais (crença religiosa, pautas culturais, preferência linguística, etc.). Via de
regra, ainda que inclua este desprezo e este medo, o racismo vai muito mais longe. O
desprezo e o medo são aspectos muito secundários do que define a prática do racismo
na economia-mundo capitalista. Pode-se afirmar inclusive que o desprezo e o medo para
com o outro (xenofobia) é um aspecto do racismo que guarda uma contradição.

Em todos os sistemas históricos anteriores, a xenofobia importava uma consequência


fundamental no comportamento: a expulsão do “bárbaro” do espaço físico da
comunidade, da sociedade, do grupo interno; a versão extrema da expulsão era a morte.
Quando expulsamos o outro fisicamente, o ambiente que pretendemos acomodar ganha
uma “pureza”, mas é inevitável que ao mesmo tempo percamos algo. Perdemos a força
de trabalho da pessoa expulsa e, consequentemente, a contribuição dessa pessoa à

2
N. T.: Yuppie é uma derivação fonética da sigla YUP (Young Urban Professional), que em português
significa Jovem Profissional Urbano. O termo é comumente utilizado com carga pejorativa para designar
jovens americanos de classe média-alta niilistas, consumistas e extremamente individualistas. São o
contraponto histórico do movimento hippie.

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criação de um excedente de que poderíamos nos apropriar periodicamente. Isso
representa uma perda em todos os sistemas históricos, mas torna-se particularmente
grave quando toda a estrutura e a lógica do sistema se fundamentam na acumulação
contínua de capital.

Um sistema capitalista em expansão (e ele está em expansão em boa parte do tempo)


necessita de toda a força de trabalho disponível, já que é esse trabalho que produz os
bens por meio dos quais se extrai e acumula o capital. A expulsão do sistema não tem
sentido. Mas se se quer obter o máximo de acumulação de capital é preciso reduzir ao
mínimo simultaneamente os custos de produção (e, portanto, os custos gerados pela
força de trabalho) bem como aqueles derivados dos problemas políticos, isto é, reduzir
ao mínimo – e não eliminar, já que isso é impossível – as reivindicações da força de
trabalho. O racismo é a fórmula mágica que favorece a consecução de ambos esses
objetivos.

Examinemos um dos primeiros e mais famosos debates feitos até hoje sobre o racismo
como uma ideologia. Quando os europeus vieram ao Novo Mundo eles encontraram
vários povos, muitos dos quais eliminaram – diretamente pela espada ou indiretamente
pelas doenças. Um frei espanhol, Bartolomeu de las Casas, encampou a causa destes
povos argumentando que os índios tinham almas e que era preciso salvá-las.
Analisemos mais profundamente as implicações do argumento exposto por De las
Casas, que obteve a aprovação oficial da Igreja e finalmente a dos Estados. Dado que
tinham alma, os índios eram seres humanos e, portanto, eram aplicáveis a eles as
normas do direito natural. Por conseguinte, estava moralmente proibido matá-los de
maneira indiscriminada (isto é, expulsá-los do domínio da humanidade) e era devido
procurar a salvação de sua alma (isto é, convertê-los aos valores universalistas do
cristianismo). Ao estarem vivos e presumivelmente em vias de conversão, podiam ser
integrados à força de trabalho de acordo com suas aptidões, o que queria dizer, no mais
baixo nível de hierarquia profissional e salarial.

De um ponto de vista operacional, o racismo adotou a forma do que podemos


denominar “etnificação” (“ethnicization”) da força de trabalho. Com isso quero dizer
que em todos os tempos históricos existiu uma hierarquia de profissões-remunerações
que tendeu a relacionar-se com certos critérios supostamente sociais. Mas enquanto o
modelo de etnificação tem sido uma constante, os seus detalhes têm variado em cada

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lugar e momento, tomando partes diferentes da genética e dependendo da localização
dos povos e das raças que se encontram em um espaço e tempo concretos e as
necessidades hierárquicas da sua economia.

Isso quer dizer que o racismo tem sempre articulado as pretensões baseadas na
continuidade de um vínculo com o passado (definido genética e/ou socialmente) a uma
extrema flexibilidade na definição presente das fronteiras entre estas identidades
reificadas denominadas raças ou grupos étnicos, nacionais e religiosos. A flexibilidade
que oferece a reivindicação de um vínculo com as fronteiras do passado, unida à revisão
contínua destas fronteiras no presente, adquire a forma de uma criação e de uma
contínua recriação de comunidades e grupos raciais e/ou étnicos, nacionais e religiosos.
Eles sempre estão presentes, e sempre são classificados hierarquicamente, mas nem
sempre são exatamente os mesmos. Certos grupos podem ser móveis nesse sistema de
classificação; alguns grupos podem desaparecer ou se combinar com outros; enquanto
outros ainda podem se desmembrar ou nascer. Mas toda sociedade tem os seus
“crioulos” (“niggers”3). Se não houver pretos ou eles forem muito poucos para
desempenhar esse papel, alguém poderia até mesmo inventar “crioulos brancos”.

Este tipo de sistema – um racismo constante na forma e na vileza, mas de algum modo
flexível em suas fronteiras – tem três características chave. Em primeiro lugar, permite
ampliar e contrair, segundo as necessidades do momento, o número de indivíduos
disponíveis para as funções econômicas pior remuneradas e menos gratificantes em um
âmbito espaço-temporal particular. Por outra parte, faz nascer e recria permanentemente
comunidades sociais que socializam os seus filhos para que possam desempenhar, no
futuro, as funções que lhes correspondem hoje (ainda que, desde cedo, lhes inculquem
também formas de resistência). Por último, oferece uma base não-meritocrática para
justificar a desigualdade. Vale a pena destacar este último aspecto. Precisamente por ser
uma doutrina anti-universalista, o racismo ajuda a manter o capitalismo como sistema,
pois justifica pagamentos sensivelmente baixos para grandes segmentos da força de
trabalho que jamais poderiam ser justificados com base no mérito.

Mas se o capitalismo como um sistema engendra o racismo, ele precisa engendrar o


sexismo também? Sim, porque os dois estão intimamente ligados. A etnização da força

3
N.T.: Nigger é um termo americano com conotação extremamente ofensiva utilizado para se referir aos
negros. Usei “crioulo” como tradução, na esteira de outros autores, mas acredito que o sentido original
seja ainda mais pejorativo.

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de trabalho existe para permitir salários muito baixos para segmentos inteiros da força
de trabalho. De fato, esses salários baixos só são possíveis porque os assalariados
pertencem a estruturas familiares para as quais os proventos salarias de toda uma vida
só constituem uma parte relativamente reduzida do total da renda familiar. Tais
estruturas familiares precisam de um investimento considerável de trabalho em
atividades denominadas de “subsistência” e em pequenas atividades mercantis, em parte
do homem adulto, mas em maior medida da mulher, dos jovens e idosos.

Em um sistema como este, o aporte de trabalho não assalariado “compensa” o baixo


nível dos rendimentos salariais e, por conseguinte, representa na prática uma subvenção
indireta aos patrões dos assalariados que pertencem a essas famílias. O sexismo permite
que não pensemos nisso. O sexismo não é apenas a designação de um trabalho
diferente, ou mesmo pouco valorizado, para as mulheres, não mais do que o racismo é
apenas xenofobia. O racismo deve manter as pessoas dentro do sistema de trabalho, não
expulsá-las dele. O sexismo pretende o mesmo.

Ao induzirmos as mulheres – bem como os jovens e idosos – a trabalharem para criar


mais-valia para os proprietários de capital, que sequer lhes pagam, proclamamos que o
seu trabalho é, de fato, não-trabalho. Inventamos o conceito de “dona de casa”4 e
afirmamos que ela não está “trabalhando”, mas apenas “cuidando da casa”. Assim,
quando o governo calcula a percentagem da assim chamada força de trabalho ativa que
está empregada, “donas de casa” não aparecem nem no numerador, nem no
denominador do cálculo. E ao sexismo segue-se automaticamente o “idadismo”
(ageism). Como consideramos que o trabalho da dona de casa não está criando mais-
valia, consideramos também que os múltiplos trabalhos dos jovens não-assalariados e
dos idosos também não estão.

Nada disso reflete a realidade do trabalho, mas faz corpo a uma ideologia que é
extremamente poderosa e que a tudo conforma. A combinação entre universalismo e
meritocracia funciona perfeitamente como base de legitimação do sistema pelos quadros
ou estratos médios enquanto o racismo opera como mecanismo destinado a estruturar a
maior parte da força de trabalho. No entanto, isso só vai até certo ponto, e por uma
razão muito sensível: as duas estruturas ideológicas da economia-mundo capitalista

4
N.T.: Em inglês a palavra “housewife” (house = lar; wife = esposa) é necessariamente feminina, não
permitindo a flexão “dono de casa”, possível no português.

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estão em flagrante contradição. Em sua combinação, o equilíbrio é frágil e está sempre
em perigo de romper-se, já que diversos grupos atuam para impulsionar a lógica do
universalismo, de um lado, e a do racismo-sexismo, de outro.

Sabemos o que acontece quando o racismo-sexismo vai longe demais. Os racistas


podem expulsar totalmente o grupo externo, seja de maneira rápida, como no caso da
matança de judeus pelos nazistas, seja mais lentamente, como na adoção de um
apartheid. Levadas a tais extremos, estas doutrinas são irracionais e, por sua
irracionalidade, encontram resistências não apenas nas vítimas, mas também em forças
econômicas poderosas, que não se opõem ao racismo, mas ao fato de que se tenha
esquecido de seu objetivo original: uma força de trabalho etnificada, mas produtiva.

Podemos imaginar também o que acontece quando o universalismo é levado longe


demais. Talvez alguns desejem implementar uma alocação efetivamente igualitária dos
postos de trabalho e das recompensas dele advindas, na qual raça (ou seu equivalente) e
gênero efetivamente não signifiquem nada. Mas diferentemente do racismo, não há
fórmula rápida para um maior desenvolvimento do universalismo, já que para isso é
preciso eliminar não só barreiras legais e institucionais anti-universalistas, mas também
as estruturas interiorizadas da etnificação, e isso requer tempo: ao menos uma geração.
Assim, é mais fácil impedir que o universalismo vá longe demais. Em nome do
universalismo pode-se denunciar o denominado “racismo ao contrário” em todas as
ocasiões em que se adote uma medida para desmantelar o aparato institucionalizado do
racismo e do sexismo.

O que vemos, portanto, é um sistema que funciona graças a uma estreita correlação
entre universalismo e racismo-sexismo nas proporções corretas. Sempre há tentativas de
levar “longe demais” um ou outro termo da equação, do que deriva uma espécie de
trama em ziguezague. A situação poderia prolongar-se eternamente se não fosse por um
problema. Com o tempo os ziguezagues não se reduzem, mas tendem a aumentar. A
tensão em favor do universalismo é cada vez mais forte; do racismo e do sexismo
também. As apostas sobem, e isso por duas razões.

De um lado está o impacto sobre todos os participantes da informação adquirida sobre a


experiência histórica acumulada; de outro, as tendências conjunturais do próprio
sistema. O ziguezague do universalismo e do racismo-sexismo não é o único do
sistema; também há o ziguezague da expansão e da contração econômicas, por exemplo,

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com o qual o ziguezague ideológico do universalismo e do racismo-sexismo guarda
uma correlação parcial. O ziguezague econômico também se agudiza como
consequência de outro fenômeno que não será abordado aqui. Não obstante, dado que as
contradições gerais do sistema-mundo moderno o obrigam a entrar em uma profunda
crise estrutural, o ponto ideológico-institucional mais crítico na busca de um sistema
diferente está na verdade localizado no acirramento da tensão, no incremento dos
ziguezagues entre o universalismo e o racismo-sexismo. Não se trata de saber qual dos
termos da antinomia terminará por vencer, já que estão íntima e conceitualmente
vinculados entre si. A questão que se coloca é saber se inventaremos – e como –
sistemas novos que não sejam provenientes nem da ideologia do universalismo nem da
do racismo-sexismo. Esta é nossa tarefa, que não é exatamente fácil.

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