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No meio científico americano, e excluídas as opiniões dos apologistas professos

desta ou daquela religião, o debate sobre a questão religiosa divide-se, grosso


modo, entre os que juram, como Daniel Dennet e Sam Harris, ser a religião uma etapa
superada na evolução biológica da espécie humana e os que afirmam que a crença
religiosa, ou ao menos uma vaga aspiração metafísica, é uma necessidade permanente,
imutável e indestrutível dos seres humanos. Estes últimos chegam a acreditar que
não existem ateus de verdade, que o ateísmo é só da boca para fora (ver mais aqui).

Os argumentos a favor de cada uma dessas correntes são eruditíssimos e ambas fazem
questão de apoiar-se nas mais atualizadas pesquisas científicas. É uma pena que
tanto esforço intelectual se desperdice numa discussão que parece ser calculada
para não levar a parte alguma.

Desde logo, os dois lados dão por pressuposto que a religião nasce de uma
“necessidade de crer”, esquecendo que a “fé” (mesmo aceitando-se a premissa falsa
de que ela se reduza à mera crença) é um elemento distintivo e típico do
cristianismo, ausente ou rarefeito em quase todas as demais religiões mundiais e
numa infinidade de tradições religiosas menores.

Para um chinês do século 5 a.C. ou para os índios tupinambás do tempo de Pedro


Álvares Cabral, a religião oficial era a própria ordem social e até a ordem do
universo material. Como tal não constituía matéria de crença, mas de obediência,
rotina e senso prático. Perguntar se acreditavam nela seria como perguntar se
acreditavam na existência de chuva.

A opção de crer ou não crer só aparece em fases muito mais diferenciadas da


evolução cultural (como por exemplo na Atenas de Sócrates), quando as instituições
políticas se destacam progressivamente das religiosas e abrem espaço para julgá-las
e ser julgadas por elas. Esse momento coincide, segundo o clássico de Bruno Snell
(The Discovery of the Mind, reed. Dover, 2011), com a descoberta do eu consciente.

Em segundo lugar, é impossível julgar uma necessidade psíquica sem ter decidido
antes se o objeto dela existe ou não. Se existe um Deus, a necessidade de conhecê-
Lo e de caminhar em direção a Ele é uma coisa; outra totalmente diversa é o impulso
de inventá-Lo caso ele não exista. Transferir, portanto, o debate desde o problema
da existência de Deus para o da necessidade de crer n’Ele pode parecer um modo
inteligente de esquivar-se de controvérsias teológicas, reduzindo a questão às
dimensões do que pode ser abordado com os recursos da ciência atual, mas é óbvio
que toda discussão na qual o método determine kantianamente o objeto em vez de
amoldar-se a ele não pode levar jamais a nenhuma conclusão válida sobre o objeto
enquanto tal.

Em terceiro, o mais mínimo estudo das religiões comparadas mostra que elas são
incomparáveis, que simplesmente elas não são espécies do mesmo gênero. Que pode
haver de comum entre uma religião que promete integrar o homem no mundo físico e
dar-lhe o domínio das forças naturais e outra que lhe pede que dê as costas a este
universo, que aceite mesmo a miséria, a derrota e o fracasso nesta existência para
obter a vida eterna num outro mundo totalmente inimaginável?

Se você lê o Corão, verifica que ali está um código civil inteiro, regulando todas
as relações sociais, a propriedade, o comércio, o direito de família etc. Qualquer
código diferente é um crime e deve ser abolido à força, por ordem de Deus. Ao
cristão, ao contrário, o Evangelho recomenda que obedeça a qualquer código vigente,
com total indiferença. Como supor que remédios tão heterogêneos atendam a uma mesma
“necessidade”?

Em suma, o debate inteiro parte da premissa de que todas as religiões são “sistemas
de crenças” – entendendo crença no sentido kantiano daquilo que se pode pensar, mas
não saber.
O conteúdo das crenças sendo portanto indiscutível cientificamente, só resta
estudá-las em si mesmas, fazendo abstração do seu objeto e dando por pressuposto
que as religiões são fenômenos do imaginário coletivo, alheios à esfera da
“veracidade”, que é própria da ciência.

Acontece que, dentre as religiões, pelo menos uma, o cristianismo, não proclama a
crença em ideais etéreos e incognoscíveis, mas em determinados fatos da ordem
histórica e natural, perfeitamente acessíveis ao estudo científico. O historiador
pode averiguar se as profecias de Fátima se cumpriram ou não no prazo indicado e o
médico pode atestar se as curas miraculosas efetuadas por meio do Padre Pio se
realizaram ou não.

Ambos podem examinar pessoalmente as centenas de corpos intactos de santos


católicos mortos há cinco ou dez séculos e investigar se fenômenos similares se
observam ou não (já digo que a resposta é “não”) em outras religiões. O
cristianismo é por excelência a religião do milagre, e um milagre que não se
realize no domínio dos fatos, neste mundo visível, não é milagre de maneira alguma.

Reduzir todas as religiões a sistemas de crenças sobre o incognoscível é fazer


abstração da diferença essencial entre o cristianismo e as demais religiões, ou
seja: mutilar gravemente o objeto de estudo para encaixá-lo numa definição
preconcebida. O debate inteiro, portanto, na mesma medida em que se pavoneia de
científico, falha a uma das condições mais elementares do método científico e deve
ser considerado uma gigantesca desconversa.

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