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Marx e Gandhi eram Liberais - Feminismo e a Esquerda

“Radical” (1973)
Por Andrea Dworkin

Tradução: Ana Clara Souza Santos


Revisão: MIKIRI
Dedicado à memória de Virginia Woolf

1. Problema

“Elas [feministas] estavam lutando contra o mesmo inimigo que você, e pelas mesmas razões. Elas estavam
combatendo a tirania do Estado patriarcal, enquanto você estava combatendo a tirania do Estado fascista. E no
exterior, o monstro veio à superfície abertamente. Não há como confundi-lo ali. Ele ampliou seu escopo. Ele está
interferindo agora em sua liberdade; ele está ditando como vocês devem viver; ele está fazendo distinções não
apenas entre os sexos, mas entre as raças. Vocês estão sentindo na pele o que suas mães sentiram quando foram
excluídas, quando foram caladas porque eram mulheres. Agora vocês estão sendo excluídos, estão sendo
calados porque são judeus, porque são democratas, por causa da raça, por causa da religião. Toda a
perversidade da ditadura, seja em Oxford ou Cambridge, em Whitehall ou Downing Street, contra judeus ou
contra mulheres, na Inglaterra ou na Alemanha, na Itália ou na Espanha, é agora visível para vocês.”
— Virginia Woolf, Três Guinéus

“‘O lar é o verdadeiro lugar das mulheres que agora estão obrigando os homens a serem ociosos. É hora de o
governo insistir para que os empregadores dêem trabalho a mais homens, permitindo assim que eles se casem
com as mulheres de quem agora não podem se aproximar’. Coloque ao lado outra citação: ‘Há dois mundos na
vida da nação, o mundo dos homens e o mundo das mulheres. A natureza fez bem em confiar ao homem o
cuidado de sua família e da nação. O mundo da mulher é sua família, seu marido, seus filhos e sua casa’. Uma
foi escrita em inglês, a outra em alemão. Mas onde está a diferença? Não estão os dois dizendo a mesma coisa?
Não são ambas as vozes dos Ditadores, quer falem inglês ou alemão, e não estamos todos de acordo que o
Ditador, quando o encontramos no exterior, é um animal muito perigoso e feio? E ele está aqui entre nós,
levantando sua cabeça feia, cuspindo seu veneno no coração da Inglaterra. Não é desta larva, para citar o Sr.
Wells novamente, que ‘a obliteração prática da [nossa] liberdade pelos fascistas ou nazistas’ surgirá? E não é a
mulher que tem que respirar esse veneno e lutar contra esse inseto, em segredo e sem armas, combatendo o
fascista ou nazista tanto quanto aqueles que o combatem com armas? E não irá essa luta minar sua força e
esgotar seu espírito? Não deveríamos ajudá-la a esmagá-lo em nosso próprio país antes de pedirmos a ela que
nos ajude a esmagá-lo no exterior? E que direito temos nós, senhor, para trombetear nossos ideais de liberdade
e justiça para outros países quando nós podemos sacudir nossos mais respeitáveis jornais, em qualquer dia da
semana, e encontrarmos larvas como essas?”
— Virginia Woolf, Três Guinéus

“É a figura de um homem; alguns dizem, outros negam, que ele é o próprio Homem, a quintessência da
virilidade, o tipo perfeito do qual todos os outros são prognósticos imperfeitos. Ele é certamente um homem.
Seus olhos são vidrados; seus olhos brilham. Seu corpo, que se sustenta em uma posição não natural, está
firmemente revestido de um uniforme. Sobre o peito desse uniforme estão costuradas várias medalhas e outros
símbolos místicos. Sua mão está sobre uma espada. Ele é chamado em alemão e italiano de Führer ou Duce; em
nossa própria língua, de Tirano ou Ditador, e atrás dele jazem casas arruinadas e cadáveres — homens,
mulheres e crianças… Ele sugere uma conexão e, para nós, uma conexão muito importante. Sugere que o mundo
público e o privado estão inseparavelmente ligados; que as tiranias e servilidades de um são as tiranias e
servilidades do outro. Sugere que não podemos dissociar-nos dessa figura, mas somos nós mesmos essa figura.
Sugere que não somos espectadores passivos condenados à obediência irrestrita, mas por nossos pensamentos e
ações podemos nós mesmos mudar essa figura.”
— Virginia Woolf, Três Guinéus

“‘Três Guinéus’ foi publicado em junho de 1938. É o produto de uma mente ímpar e, penso eu, de um estado de
espírito muito singular. Foi concebido como uma continuação de ‘Um teto todo seu’, mas foi escrito de forma
muito menos persuasiva, com muito menos humor lúdico. Foi um protesto contra a opressão, um protesto
genuíno denunciando os verdadeiros males e, para os convertidos, Virginia não pregou em vão. Um grande
número de mulheres escreveu para expressar sua entusiasmada aprovação; mas seus amigos próximos estavam
em silêncio, e se não em silêncio, críticos. Vita não gostou, e Maynard Keynes estava furioso e desdenhoso. Ele
declarou que era um argumento bobo e não muito bem escrito. O que realmente pareceu errado em relação ao
livro — e eu estou falando aqui pelas minhas próprias reações na época — foi a tentativa de envolver uma
discussão sobre os direitos da mulher com a questão muito mais agonizante e imediata do que deveríamos fazer
para enfrentar a ameaça sempre crescente do Fascismo e da guerra. A conexão entre as duas questões parecia
tênue e as sugestões positivas totalmente inadequadas”.
— Quentin Bell, Virginia Woolf: Uma Biografia

Citei longamente “Três Guinéus”, de Virginia Woolf, porque é improvável que aqueles da
Esquerda que se preocupam com as causas da guerra e agem para acabar com ela conheçam o
livro. Ele foi tratado como uma bobagem pelos esquerdistas em 1938 e hoje é, sejamos
educados, ignorado pela maioria dos ativistas políticos.

Em 1938, Virginia Woolf era uma artista proeminente (embora vista com infinita
condescendência) de primeira magnitude. Embora suas preocupações formais a aliassem a
James Joyce, como mulher, ela foi colocada sem esforço no final de uma lista muito curta: as
irmãs Bronte, Austen, as duas Georges, Woolf. Mesmo que suas preocupações políticas a
habilitassem a ser reconhecida como uma mente original, como uma séria pensadora
revolucionária, tanto a qualidade quanto o conteúdo de suas análises foram ignorados. Em
1938, Woolf estava a 3 anos de seu último ato de consciência, o suicídio, o último recurso de
muitas profetisas sem nenhuma comunidade real.

“Três Guinéus” é a primeira análise feminista do que é a guerra e como detê-la. Woolf é
implacável em sua insistência de que a guerra é uma atividade masculina, não só porque os
homens fazem a guerra, mas porque a guerra é uma extensão direta dos valores e
comportamentos masculinos. Ela delineia, implacavelmente, a exclusão total das mulheres de
todas as instituições de decisão e poder em um patriarcado. Ela descreve o que é machismo
(embora ela não tenha usado a palavra), e como sua manifestação pública na guerra é um
reflexo sombrio e preciso de sua presença no que ela chama de “a casa privada”, a casa onde
os homens governam e as mulheres servem. Ela mostra como o modelo homem-mulher
heterossexual é o modelo básico para padrões de dominação e submissão que caracterizamos
na esfera pública como tirania. Ela demonstra que o Führer e o II Duce são Maridos, violando
sem consciência as nações de mulheres. Ela insiste que os nazistas e os ingleses que os
desprezam são uma irmandade com um apetite compartilhado por poder ilegítimo, por jogos
de guerra, por uniformes, por riqueza, por conquista: por, em uma palavra, dominação. Ela diz
que para parar a guerra, os homens devem mudar o comportamento dos homens. Em sua
análise, a humanidade deve destruir o próprio patriarcado.

Não é de se admirar, então, que Keynes e outros destacados esquerdistas da época estivessem
zangados. Afinal, uma parte crucial da dinâmica de guerra é a convicção de que existem os
bons e os maus da fita. Woolf deixou claro que, na verdade, existiam os maus e os piores. A
vida sob os maus era ruim, e sob os piores seria pior.

A atitude da Esquerda não mudou muito desde 1938. O sexismo, é verdade, é colocado com
boa vontade liberal no fim daquela imponente ladainha de Esquerda: imperialismo,
colonialismo, capitalismo, racismo e, para as senhoras, sexismo. As originais análises de
Woolf e subsequentes análises feministas são, sejamos educados, ignoradas, não assimiladas,
não postas em prática.

Os cidadãos da Esquerda dominada pelos homens ainda são cúmplices das instituições que
oprimem as mulheres, ainda aceitam a identidade fálica de domínio (masculinidade) que
exige, para continuar a existir, a submissão (feminilidade); ainda perpetuam ativamente as
relações patriarcais de marido-mulher, da família dirigida pelo pai, da igreja e do Estado;
ainda exigem privilégios e os confundem com liberdade. Enquanto a Esquerda estiver
comprometida com as formas patriarcais, não poderá deixar de perpetuar os valores aos quais
se propõe a se opor. Enquanto a Esquerda não for consciente e conscienciosamente feminista,
ela não conseguirá evitar perpetuar as mesmas formas de dominação e submissão a que se
propõe, em outras áreas, se opor. Enquanto os esquerdistas não reconhecerem a verdadeira
dimensão de suas alianças patriarcais, não conseguirão deixar de perpetuar o patriarcado,
aquele sistema de propriedade masculina que é a figura paterna do fascismo.
Como feministas, devemos ver a Esquerda não-feminista como um movimento de reforma.
Devemos nos maravilhar com sua crise moral, com a pobreza de sua consciência
revolucionária. A espécie humana ainda é, para esse movimento, literalmente, o Homem. O
Operário é ainda, ou cada vez mais, uma metáfora do músculo fálico do herói, o centro da
preocupação da Esquerda com as imagens de virilidade. As mulheres são ignoradas ou
tratadas com paternalismo. Gestos liberais de boa vontade são feitos, quando somos
suficientemente insistentes ou onde estivermos na moda, desde que não interfiramos na
“verdadeira revolução”. Cada vez mais, nós compreendemos que somos a verdadeira
revolução.

2. Patriarcado e Sexismo

“A economia é o osso, a política é a carne; observe a quem batem e a quem comem, observe a quem se aliviam,
observe a quem possuem. O resto é decoração.”
— Marge Piercy

“[meu pesadelo] se parece com um vilarejo iluminado com sangue/onde todos os pais estão chorando: Meu
filho é meu”.
— Adrienne Rich

“Esposas, submetei-vos a vossos maridos para que o marido seja a cabeça da esposa, como Cristo é a cabeça
da Igreja”.
— Efésios 5:23–24

“Sexismo” é uma palavra nova, que foi assimilada com notável facilidade ao uso comum. Ela
se refere ao preconceito cultural, político e psicológico sistemático contra a mulher. Denota
diferenciação/inferioridade biológica, assim como o racismo denota diferenciação/inferioridade
racial. Foi cunhado para que pudéssemos nos referir à convicção cultural, política e psicológica
geral de que as mulheres são inferiores aos homens, e que as qualidades femininas (como as
define uma cultura masculina supremacista) são inferiores às qualidades masculinas, ou
masculinistas. Como em nossa cultura os homens homossexuais estão associados à
feminilidade, ou seja, ao serem penetrados eles assumem o estigma feminino, a palavra
“sexismo” veio desde cedo a denotar preconceito contra os homens homossexuais. Na verdade,
a palavra é usada tão promiscuamente que seu significado se tornou muito vago: na maioria
das vezes denota preconceito contra uma pessoa com base no gênero ou na orientação sexual,
sem nenhuma referência intrínseca à supremacia masculina ou à inferioridade feminina. Como
resultado, expressões como “Eu odeio todos os homens”, ou “Odeio todas as bichas”, ou
“Mulheres? Eu acho que elas deveriam exercer o Poder da Buceta (Pussy Power)” são todas,
em algum senso, sexistas. Isto confunde incrivelmente as coisas, e nós podemos começar a
entender por que a palavra “sexismo” é colocada sem dor na lista do que esquerdistas não
devem fazer. Apropriadamente manipulada, a palavra não tem sentido, porque não faz mais
qualquer referência à realidade do poder. Qualquer pessoa pode ser contra o sexismo, e não
muitas estão a seu favor. É possível ser contra ele sem mudar sua identidade ou
comportamento como opressor — que é, claro, o que queremos dizer quando falamos de forma
depreciativa sobre os liberais. Assim como os liberais são contra o racismo, mas se recusam a
renunciar ao poder que lhes é conferido pela própria supremacia branca, também os
esquerdistas são contra o sexismo, mas se recusam a abrir mão do poder que deriva de sua
própria supremacia masculina. Como então separamos os feministas dos meninos?

Os homens são poderosos e as mulheres são impotentes porque vivemos em um patriarcado.


“Pater” significa dono, proprietário ou mestre. A unidade social básica do patriarcado é a
família. A palavra “família” vem da palavra de língua osca “famel”, que significa servo,
escravo, ou propriedade. Pater familias significa “dono de escravos”. Os pais comuns e os
padres comuns obtêm sua autoridade como paters.

“Patriarcado” é o nome do sistema político e cultural que oprime as mulheres. Ser a favor da
libertação das mulheres é ser contra o patriarcado, um comprometimento menor do que esse
não pode ser levado a sério. Em um patriarcado, toda autoridade civil e religiosa (poder)
pertence por direito de nascença aos homens. O patriarcado é um sistema de propriedade em
que mulheres e crianças têm donos. O patriarcado é o modelo autoritário original, o modelo
totalitário molecular, e toda forma tirânica deriva dele. Ser contra a tirania e a favor da
liberdade é se opor, resistir, recusar-se a ser cúmplice das instituições patriarcais. A destruição
do cenário político senhor-escravo, independente de como o descrevemos
(capitalista-trabalhador branco-negro, rico-pobre etc.), requer a destruição da fonte desse
cenário: o patriarcado. A destruição das psicologias e dos comportamentos que chamamos de
dominantes (senhor, masculino) e submisso (escravo, feminino), ou agressor-vítima, exige a
destruição da fonte dessas mentalidades e comportamentos: o patriarcado. Extinguir para
sempre a guerra dos poderosos contra os impotentes e extinguir as guerras menores de
homens maus contra homens piores significa desmantelar a máquina do patriarcado. Liberais,
Deus os abençoe, são contra o sexismo e favoráveis a alguma medida de reforma positiva.
Eles querem que os homens maus parem de lutar contra os homens piores aqui e ali; eles
querem que os trabalhadores, principalmente os homens, controlem os meios de produção. Os
revolucionários pretendem destruir aquele sistema de opressão, fonte de um milhão de
tiranias, denominado patriarcado.

3. Patriarcado e Violência

“Eu sou o centro de uma atrocidade.”


— Sylvia Plath

“Estamos efetivamente nos destruindo pela violência disfarçada de amor. ”


— R.D. Laing

“Falamos da Liga das Nações e das perspectivas de paz e desarmamento. Sobre esse assunto, ele era mais
marcial do que militarista. A dificuldade para a qual ele não encontrava resposta era que se a paz permanente
fosse alguma vez alcançada, e os exércitos e marinhas deixassem de existir, não haveria saída para as
qualidades viris que se desenvolviam na luta, e o físico e o caráter humano se deterioraram.”
— da biografia de Anthony (Visconde Knebworth) pelo Conde de Lytton

A violência está entrelaçada no tecido social porque é a substância da sexualidade como a


conhecemos. Dominância e submissão, ele e ela. Agressão, conquista e brutalidade são as
características masculinas definidoras. A guerra, acreditam as feministas, é uma função da
identidade masculina (fálica). O vocabulário de guerra — agressão, conquista, dominação —
é o vocabulário da virilidade masculina “saudável”. Nós falamos do estupro de um país e não
é um acidente que quando soldados violam um país, eles também violam suas mulheres. O
genocídio do Vietnã foi caracterizado por tentativas massivas e repetidas de deflorar a terra, a
própria Mãe Natureza. A mensagem de natal de Nixon, sobre o bombardeio, usou uma
linguagem que foi altamente sexual e sexista. Sabemos que essas conexões existem, e
qualquer um que se preocupe com a violência, e com o fim dela como substância da relação
humana, deve se pronunciar em relação a elas.

É incrível para as feministas que a noção de violência como uma função da identidade sexual
masculina não seja uma preocupação urgente e ardente para aqueles que são contra, dizem
eles, a violência. Como, perguntamos, pode alguém ser contra a violência sem ser contra a
violência comum e diária que define a relação homem-mulher? Como alguém pode ser contra
a guerra lá e celebrá-la aqui, em nossos corpos? Uma oposição real à violência exigiria uma
específica atenção aos crimes de violência contra as mulheres. O espancamento de esposas e a
agressão física geral por homens contra mulheres são endêmicos na América, como em outros
lugares. O espancamento de esposas, em particular, é um crime que permanece invisível,
sancionado por leis que dão ao marido autoridade sobre a esposa. O estupro violento é comum
nas ruas da cidade, epidêmico; e também é comum nas chamadas relações privadas e pessoais
entre homens e mulheres. As mulheres são estupradas, as mulheres são forçadas à
prostituição, as mulheres são agredidas, e atos de violência contra as mulheres em todos os
lugares, em todos os níveis, são comuns, tão comuns que não são dignos de nota, tão comuns
que são chamados de “normais” e romantizados como amor.

Como é possível, perguntamos, agir contra a guerra sem agir contra a violência? E como é
possível agir contra a violência sem agir contra violência masculina contra as mulheres? As
feministas não pensam que isso seja possível e, no entanto, quando procuramos em nossas
fileiras aqueles da Esquerda que dizem se opor à violência, nós não os encontramos.

4. O Significado de Produção e o Capital Original

“Sabemos que dois males são claramente anteriores ao capitalismo corporativo, e têm pós-datado revoluções
socialistas: sexismo e racismo — então sabemos que uma denominada revolução masculina socialista na
economia e até mesmo nos termos culturais, se fosse para acontecer amanhã, não seria uma revolução, mas
apenas outro golpe de estado entre os homens. ”
— Robin Morgan

“Garanto-lhes que não sou inimigo das mulheres. Eu sou muito favorável aos seus empregos como operárias ou
em outras capacidades servis. ”
— Um industrialista para Emily Davis, que queria ajuda para fundar de uma escola para mulheres

“Em um mundo, os filhos de homens instruídos trabalham como funcionários públicos, juízes, soldados, e são
pagos por esse trabalho; no outro mundo, as filhas de homens instruídos trabalham como esposas, mães,
filhas… mas elas não são pagas por esse trabalho? Será que o trabalho de uma mãe, de uma esposa, de uma
filha, não vale nada para a nação em dinheiro sólido? ”
— Virginia Woolf

“As mulheres dizem: que vergonha. Elas dizem: você é domesticada, alimentada à força, como gansos no
quintal do fazendeiro que os engorda. Elas dizem: você se pavoneia, não tem outra preocupação a não ser gozar
das coisas boas que seus senhores oferecem, preocupados com seu bem-estar, desde que eles tenham algum
interesse nisso. Elas dizem: não há espetáculo mais angustiante do que o das escravas que têm prazer no seu
estado servil. Elas dizem: você está muito longe de ter o orgulho das aves selvagens que se recusam a chocar os
ovos quando estão enjauladas. Elas dizem: siga o exemplo das aves selvagens que, mesmo acasalando com os
machos para aliviar o tédio, se recusam a se reproduzir se não estiverem em liberdade. ”
— Monique Wittig, Les Guerilleres

Na Esquerda, jovens brilhantes gostam de dizer que as mulheres serão libertadas quando os
trabalhadores controlarem os meios de produção. É muito difícil para explicarmos, embora
pareça perfeitamente óbvio, que o sexismo não é um derivado do capitalismo. Corporativo ou
monopolista, o capitalismo é a manifestação desta era, sofisticada e virtualmente
incontrolável, da propriedade patriarcal. Homens possuíam mulheres, mulheres eram capital;
os homens possuíam as mulheres e as crianças que as mulheres produziam; os homens
possuíam mulheres como esposas, concubinas, escravas, e o que quer que as mulheres
produzissem, pertencia aos homens. Havia um homem e ele possuía várias mulheres e seus
filhos e o que quer que fosse que todos eles produzissem. Havia um homem e ele possuía
famílias que trabalhavam suas terras, e naquelas famílias as mulheres eram possuídas primeiro
pelo homem que possuía as famílias, depois pelo homem que chefiava sua família particular.
Ele era o mestre, e “mestre” tornou-se seu título, depois uma forma comum de tratamento. As
mulheres eram o capital; mais tarde, outras mercadorias, então dinheiro, substituindo
ocasionalmente as mulheres, então com mais frequência. Hoje há empresas capitalistas na
América, e o capitalismo de Estado na Rússia. Quando olhamos para o fracasso da revolução
socialista na Rússia, vemos claramente a incapacidade dos patriarcas de renunciar à
propriedade das mulheres. Quando essa forma básica totalitária de propriedade sobrevive,
onde quer que ela sobreviva, toda a gama variada de comportamento totalitário sobrevive com
ela.

Quando olhamos para a Esquerda na América aqui e agora, o que vemos aterroriza nossos
corações: na maioria das vezes há capitalismo — a propriedade privada de mulheres com
reforma simbólica na divisão do trabalho; onde existe o socialismo, existe a coletividade
masculina da propriedade de mulheres, geralmente sem sequer a reforma simbólica na divisão
do trabalho.

Estou convencida, ao ponderar por que os esquerdistas estão absolutamente e felizmente


presos à noção de que a liberdade para todos é quando os trabalhadores controlam os meios de
produção, que a Esquerda tem um apego quase patológico à mítica noção dO Trabalhador
como figura de virilidade. Ali, pensam os intelectuais, está ele: dirigindo caminhões,
assentando tijolos, construindo estradas, trabalhando com equipamentos pesados — um
homem de verdade — O Homem Operário. Certamente não se pode negar que ele é o herói da
Esquerda, e se aprendemos alguma coisa, foi a manter nossa distância de heróis da Esquerda.
Como se chega a tal conclusão? Eu começo com a proposta de que os meios de produção
devem estar nas mãos do povo; essa liberdade, dignidade, e o trabalho não-alienado são os
direitos de todas as pessoas. Eu olho para aqueles que articulam essas proposições. Mas na
verdade, ou de fato, eles dizem: os meios de produção devem estar nas mãos dos homens; o
trabalho deve ficar nas mãos dos homens; o dinheiro deve ficar nas mãos dos homens;
liberdade, dignidade e trabalho não-alienado são os direitos dos homens. Eles dizem: os
homens têm estes direitos e se sobrar alguma coisa — trabalho, ou dinheiro, ou algum
excesso de liberdade ou dignidade — então distribuiremos entre as mulheres.
Não preciso dizer que não sobra nada, nunca.

Devemos considerar aqui mulheres que trabalham, mulheres que não trabalham, e “trabalho
de mulheres”. As mulheres que trabalham são pouco contratadas, mal pagas, as primeiras a
serem demitidas, excluídas dos sindicatos, não recebem promoções ou aumentos ou
treinamento, são discriminadas em todos os sentidos. Quando os homens trabalhadores fazem
essas reclamações, a Esquerda é envolvida, fica preocupada, sim, indignada — linhas de
grevistas se ajuntam, livros são escritos. O fato de a Esquerda ser muda quanto à situação
miserável das mulheres trabalhadoras não é acidental. Pelo contrário, é uma manifestação da
aliança masculina para proteger o poder masculino e o privilégio masculino: por mais pobres
que sejam os homens, as mulheres devem ser mais pobres e, assim, dependentes do favor
masculino, em um estado de escravidão econômica e, portanto, sexual.

Muitas mulheres não trabalham no mercado de trabalho, particularmente mulheres pobres que
estão presas pelo sistema previdenciário, pelas crianças, pela falta de habilidades
comercializáveis. Aqui a preocupação clássica da Esquerda pelos pobres e desempregados
desaparece — as mulheres não são consideradas como pobres ou desempregadas por conta
própria; não, elas são consideradas como esposas dos pobres e desempregados ou não são
pensadas de forma alguma.

O que é mais espantoso é como os economistas de Esquerda ignoram totalmente, como se não
existisse, o chamado “trabalho das mulheres”. A maioria das mulheres faz trabalho doméstico
e não são pagas por isso. A maioria das mulheres cria crianças e não são pagas por isso. As
mulheres fazem trabalho escravo, não remunerado, repetitivo, involuntário, não qualificado,
não valorizado, trabalho servil que o homem mais pobre não faria. Onde estão os escritos da
Esquerda sobre como as mulheres são a força de trabalho mais viciosamente explorada do
planeta? — Nós não apoiamos o capitalismo (a identidade da mulher não é apoiada no
capitalismo), mas também nós devemos sobreviver sob ele. Para sobreviver, devemos ser
pagas pelo trabalho que fazemos. Isso, é claro, não é suficiente. O trabalho doméstico e a
criação de crianças não são trabalhos de mulheres — rejeitamos esse precioso direito de
nascença junto com as rapsódias masculinas mentirosas que o sentimentalizam. Esfregar pisos
e lavar fezes de bebês e de fraldas não são funções predestinadas pelo gênero, a menos que só
as mulheres tenham mãos. Por último, a Esquerda, seus economistas, historiadores e filósofos,
aparentemente ainda não notaram que nós somos o meio de produção. Somos, em nossos
corpos, o trabalhador e o meio de produção. Nunca existiu um trabalho tão alienado. Para nós,
o controle sobre nossos corpos é o controle sobre nossas vidas. Nós somos privadas desse
controle por um sistema de leis, costumes e hábitos que nos exploram tão violenta e
absolutamente que a verdadeira exploração do Operário empalidece em comparação. Por que,
devemos perguntar, a situação dele é crucial para vocês, e a nossa é invisível? Não poderia ser
porque O Trabalhador é mais pobre, ou mais explorado, do que, por exemplo, sua esposa que
ou trabalha ou não trabalha remuneradamente, e em ambos os casos faz trabalho doméstico e
cria filhos sem ser paga por isso, e é ela mesma o meio de produção. Deve ser porque ele é
um homem de verdade, aquele herói da classe trabalhadora. Ela, como sempre, é apenas uma
mulher de verdade. Claramente, os autoproclamados marxistas e comunistas de todas as
ideologias permanecerão capitalistas, chefes e exploradores sem vergonha até desenvolverem
uma consciência e um compromisso feminista sério.

5. Feminismo e Transa

“‘O único amor real que eu já senti foi por crianças e outras mulheres. Todo o resto era luxúria, piedade,
auto-ódio, piedade, luxúria’. Esta é a confissão de uma mulher. Agora, olhe novamente para o rosto da Vênus de
Botticelli, Kali, a Judith de Chartres com seu chamado sorriso.”
— Adrienne Rich

“Todo ato de conscientização (diz aqui neste livro) é um ato antinatural. ”


— Adrienne Rich

“… Eu sou lésbica, certo? E eu não tenho que amá-los, eu não tenho que transar com eles e com certeza não
tenho que depender deles, e isso é liberdade…”
— Shirley, de “Woman and Madness”, Phyllis Chesler

“O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nomes, e a fim de indicar-lhes, era necessário
apontar.”
— Gabriel Garcia Marquez, “Cem anos de solidão”

A opressão da mulher, de corpo e alma, ocorre todos os dias. É o tecido da existência diária,
incessante, implacável, incorporado à lei, aos costumes e ao hábito. As mulheres sobrevivem
se submetendo, aprendendo a mentalidade de escrava e se glorificando nela. Mulheres
avançam nesta sociedade sendo boas mulheres (isto é, putas, vadias, pedaços de bunda, etc.)
assim como os negros avançam sendo bons negros.

Quando se para de jogar o jogo da escravidão, o mundo desmorona. Nada sobra. Nada que se
aprendeu antes funciona mais. Como se caminha, fala, veste, brinca, pensa, ama,
diferentemente? A cada minuto, como e o que fazer? O mundo se torna um lugar muito
perigoso. Quando se para de jogar o jogo da escravidão, é preciso começar a inventar cada
minuto da vida. Não há fórmulas prontas para mostrar como, e não há comunidades libertas
onde pessoas exemplares levam vidas exemplares. Vive-se à beira do colapso de um mundo
pessoal, em oposição direta a todo o mundo da realidade e poder, e o que então se pode fazer,
exceto inventar?

A questão aqui é que não temos o luxo da capacidade de abstrair nossos protestos ou
resistências — devemos viver em nossos corpos e nossos corpos devem viver no patriarcado,
sujeitos à violação contínua, ao assédio e ao desprezo. Não há áreas neutras — áreas em que o
“sexismo” não importa. Em particular, o sexo, o lar, e o “romance” não são áreas neutras.
Nada é mais político para uma feminista do que foder — nada é menos um ato de amor e mais
um ato de propriedade, violação; nada é menos um instrumento de êxtase e mais um
instrumento de opressão do que o pênis; nada é menos uma expressão de amor e mais uma
expressão de domínio e controle do que a relação heterossexual convencional. Aqui a
mentalidade de guerra faz uma visitação em nossos corpos e os valores fálicos da agressão, da
dominância e da conquista são afirmados.

Para transformar o mundo, devemos transformar a importância de nossas sensibilidades


eróticas e nós devemos fazê-lo tão consciente e tão conscientemente quanto fazemos qualquer
ato que envolva toda a nossa vida. Existem dois modelos eróticos feministas emergentes: o
lesbianismo e a androginia. O lesbianismo é um celebração da irmandade, o ato erótico
central em um cultura da mulher emergente. A androginia tem a ver com a obliteração das
distinções de gênero e papéis sexuais, e em última instância do próprio gênero.

Estes dois modelos devem abarcar aqueles que entendem que os sistemas de opressão são
cânceres que crescem e se originam no modelo sexual distorcido, que é a noção patriarcal de
normalidade, chamada dominância e submissão. Dizemos, a opressão começa onde começa a
vida, no ato de foder, e a revolução deve começar no mesmo lugar, ou ela não começou de
forma alguma.
6. Conclusão

“Apenas há uma escolha. Chame-a de liberdade”.


— Marge Piercy

Grace Paley estava me contando sobre sua viagem à Rússia, e ela disse —
Ser anti-judeu é a patologia da Rússia, e de toda a Europa Ocidental,
assim como ser anti-negro é a patologia da América, e ser anti-mulher
é a patologia do mundo.

A patologia de ser anti-mulher, ou odiar mulheres, é a condição e a trama do mundo.


Curem-na, e o mundo como o conhecemos — sua opressão cruel e sistematizada, o
sofrimento de suas miseráveis multidões — entrará em colapso. Curem-na, e nós
transformaremos a vida humana e criaremos uma comunidade humana. Continuem a nutrir
essa mesma patologia, a chamá-la de amor e normalidade, e nossa história será no futuro o
que foi no passado — Dachau, Hiroshima, Vietnã; estupro, tortura sexual, mulheres
acorrentadas.

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