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LETRAS CLÁSSICAS, n. 4, p. 343-346, 2000.

O ORADOR PERFEITO
CÍCERO. O melhor gênero de oradores. I-IV; V, 15-16; VI, 16-17*

I.1. Dizem existir gêneros tanto de oradores como de poetas; não é assim, pois
num caso se trata de unicidade, noutro se tem multiplicidade. Do poema trágico, do
cômico, do épico, do lírico e até do ditirâmbico, como foi praticado pelos gregos, real-
mente existe, de cada um, o gênero próprio, diverso dos demais; assim, tanto o cômico
é vicioso na tragédia como o trágico é torpe na comédia, e nos outros gêneros existe,
para cada um, determinado tom próprio e um acento noto para conhecedores. 2. Mas,
se alguém enumera vários gêneros de oradores, uma vez que considere uns como gran-
diosos ou graves ou copiosos, outros como tênues ou sutis ou breves, outros como
interpostos àqueles e, por assim dizer, médios, diz algo a respeito dos homens, pouco a
respeito da coisa;1 de fato, na coisa se procura o que seja o melhor, no homem se diz
aquilo que é. E então é lícito dizer que Ênio seja o sumo poeta épico, se a alguém assim
parece, e que Pacúvio seja o trágico e que Cecílio talvez seja o cômico. 3. O orador não
divido por gênero2 ; efetivamente procuro o perfeito. Ora, o gênero do perfeito é uno;
os que se afastam dele não diferem em gênero, como Terêncio difere de Ácio, mas no
mesmo gênero não são pares. Com efeito, o melhor é o orador que, discursando, ins-
trui, assim como deleita e também comove os ânimos dos ouvintes. Instruir é devido,
deleitar é dádiva, comover é necessário. 4. Quanto a essas funções, deve-se admitir
que um seja melhor do que o outro; na verdade, porém, isso se deve não a gênero, mas
a grau. O melhor é seguramente um único, e o mais próximo é o que mais se lhe
assemelha. Daí é evidente ser o pior o que seja o mais dessemelhante do melhor.
II. Visto que, efetivamente, a eloqüência consta de palavras e de idéias, deve-
se lograr que, falando pura e corretamente, isto é, latinamente, sigamos de perto a
elegância dos termos, ademais tanto os próprios como os translatos; nos próprios, que
escolhamos os mais distintos; nos translatos, que deles usemos seguindo respeitosa-
mente a similitude. 5. E existem precisamente tantos gêneros de idéias quantos eu
disse existir de méritos; assim, as idéias do instruir são agudas, as do deleitar são, por
assim dizer, argutas, as do comover são graves. Das palavras existe uma estrutura que
produz dois efeitos, o ritmo e a leveza; as idéias, por sua vez, têm sua composição, a
ordem apropriada ao que deve ser demonstrado. Mas disso tudo a memória é, por
assim dizer, o fundamento, como o dos edifícios; a ação, a luz. 6. Será, pois, o mais
perfeito orador aquele no qual isso tudo for sumo; medíocre aquele no qual for médio;
o pior aquele no qual for mínimo. E todos serão chamados oradores, como são chama-

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ALONSO JÚNIOR, Clóvis Luiz. CÍCERO. O melhor gênero de oradores. I-IV; V, 15-16; VI, 16-17.

dos pintores mesmo os maus, e não em gêneros, mas em capacidades, diferirão entre
si. Assim, não é orador quem se não queira semelhante a Demóstenes. Porém
Menandro não se quis semelhante a Homero; ora, o gênero era outro. Isso não existe
entre os oradores, ou, se é que alguém, buscando a gravidade, fuja à sutileza, outro,
pelo contrário, se queira mais agudo que ornado, mesmo estando em gênero tolerá-
vel certamente não está no melhor, se em verdade o que possui todos os méritos é o
melhor.
III.7. Disse isso decerto mais brevemente do que o assunto pedia, mas para
aquilo de que tratamos não foi preciso dizer mais. Efetivamente, como o gênero é uno,
o que procuramos é qual seja ele. Ora, é tal qual floresceu em Atenas. Desde aí, a
própria força dos oradores áticos tem sido ignorada, a glória conhecida. De fato, um
dado muitos viram: nada de vicioso existir entre eles; outro, poucos: muito ser louvá-
vel. O vicioso está na idéia se algo absurdo ou alheio ou não agudo ou um tanto insosso
existe; nas palavras, se corrompido, se abjeto, se inadequado, se duro, se tirado de
longe. 8. Evitaram-no quase todos que ou são tidos como áticos ou falam à maneira
ática; contudo, na medida em que prevaleceram, sejam considerados apenas sãos e
concisos, mas3 como amadores na palestra4 : ainda que lhes seja permitido estender-se
no xisto, não reclamem aos jogos olímpicos a coroa. Os que, como carecem de todo
vício, não estão satisfeitos com uma, por assim dizer, boa saúde, mas procuram obter
forças, músculos, sangue, até certa suavidade de cor, esses imitemos, se pudermos; se
não, aqueles que estão em incorrupta sanidade, o que é próprio dos áticos, preferen-
cialmente àqueles cuja abundância é viciosa, dos quais a Ásia muitos gerou. 9. Quan-
do o5 fizermos – se ao menos isso atingirmos, pois é muito –, imitemos, se tivermos
podido, Lísias e, de preferência, a tenuidade desse; ele é de fato muito grande em
muitas passagens, mas, porque escreveu pequenas causas de pequenas questões, a maior
parte privada e para terceiros, parece árido, tendo-se de moto próprio dedicado ao
gênero das causas pequeninas. IV. Quem assim o fizer, se deseja ser mais copioso e não
pode, seja seguramente considerado orador, mas6 dos menores. Ora, a um grande
orador freqüentemente toca discursar também desse modo em tal gênero de causas.
10. Assim, ocorre que Demóstenes certamente possa discursar sem elevação – com
elevação Lísias talvez não possa – . Mas, se, colocado o exército no foro e em todos os
templos que circundam o foro, julgam mister discursar em prol de Milão como se
discursássemos a um único juiz sobre assunto privado, medem a força da eloqüência
pela faculdade oratória, não pela natureza do assunto.
11. Então, como a conversa7 de alguns já se espalhou, uns afirmando que eles
mesmos discursem à maneira ática, outros assegurando que ninguém de nós discurse
assim, negligenciemos esses outros; com efeito, satisfatoriamente o próprio fato lhes

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responde, já que ou não são convidados para as causas ou, convidados, são ridiculari-
zados; se ridicularizados, isso já é próprio dos áticos. Mas os que não querem ser ditos
por nós oradores à maneira ática declaram, por outro lado eles mesmos, nem ser ora-
dores, se têm refinados os ouvidos e esclarecido o juízo, como para examinar uma
pintura são convidados até os ignorantes do fazer, com alguma solércia do julgar. 12.
Se, entretanto, põem seu entendimento no fastio de ouvir, e nada de excelso ou mag-
nífico lhes agrada, digam querer algo sutil e polido, desprezar o grandioso e o ornado,
mas deixem de afirmar que somente discursam à maneira ática, isto é, por assim dizer,
concisa e puramente, os que discursem sutilmente; discursar ampla, ornada e copiosa-
mente, com a mesma pureza, também é próprio dos áticos. Quê? Há dúvida sobre o
que desejamos, que nosso discurso seja apenas tolerável ou que seja também admirá-
vel? Ora, indagamos não mais o que seja discursar à moda ática, mas o que seja discur-
sar otimamente. 13. Daí, visto que dos oradores gregos os superiores sejam os que
viveram em Atenas, e desses o primeiro seja com toda certeza Demóstenes, se entende
que, se alguém o imitar, discursará não só à maneira ática, mas também otimamente,
de modo que, como os áticos foram propostos para nossa imitação, bem discursar seja
discursar à maneira ática.
V. (...)8
Mas se levantará Tucídides; com efeito, alguns admiram sua eloqüência. E isso
com razão, seguramente, mas nada que ver com o orador que procuramos. Uma situa-
ção é expor feitos narrando; outra é, argumentando, acusar ou absolver; outra é o que
narra manter o ouvinte; outra é mantê-lo o que excita. “Mas fala com beleza!” Acaso
melhor do que Platão?... 16. Ao orador que procuramos é, todavia, necessário expor as
controvérsias forenses em gênero apto a instruir, a deleitar, a comover. VI. Por isso, se
houver alguém que afirme dever discursar no foro no gênero de Tucídides, estará longe
até da suspeição do que anda em matéria civil e forense; mas, se elogiou Tucídides,
acrescente nossa idéia à sua.
17. Até o próprio Isócrates, que o divino autor Platão, de quem é quase
contemporâneo, fez ser, em Fedro, admiravelmente elogiado por Sócrates, e que to-
dos os doutos disseram sumo orador, não ponho contudo nesse número. De fato não
anda em combate, e não com ferro, mas, por assim dizer, com floretes, seu discurso
elude.
E, de minha parte, já que com as maiores coisas eu componho as menores,
apresenta-se o mais nobre par de gladiadores. Ésquines, comparado ao Esernino, ho-
mem não sórdido, como diz Lucílio, mas penetrante e douto [LACUNA] ele
[Demóstenes?] põe-se ao lado de Placideiano – e é, de longe, o melhor depois de

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nascidos os homens. Com toda certeza, nada julgo poder ser imaginado mais divino do
que o grande orador.
(...)

CLÓVIS LUIZ ALONSO JÚNIOR**


Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo

NOTAS
* CÍCERON. L’orateur. Du meilleur genre d’orateurs. Texte établi et traduit par Albert Yon.
Paris: Les Belles Lettres, 1964.
** Mestrando em Latim do Programa de Pós-graduação em Letras Clássicas da FFLCH-
USP.
1 Parece-me que a afirmação seguinte (na coisa se procura o que seja o melhor, no homem
se diz aquilo que é) se relacione diretamente com a anterior imediata (alguém diz algo a
respeito dos homens, pouco a respeito da coisa), embora Cícero tenha utilizado, na
seguinte, voz passiva – o que significa que, aí, o pronome quis do texto latino não é
sujeito – e o estabelecimento do texto (Cicéron: 1964) tenha proposto, aqui, ponto e
não ponto-e-vírgula.
2 Cícero nega a referencialidade contida no próprio título do texto. Esse título parece
enunciar a voz corrente (“dicuntur”), que será negada.
3 Cícero sobrepõe orações adversativas; utiliza a mesma conjunção, todavia marcada pelo
alongamento da vogal apenas na primeira ocorrência, devendo soar diversamente na
segunda, razão pela qual utilizei conjunções diferentes.
4 Tradução proposta por Yon (Cicéron: 1964, 162), segundo o qual “(...) Le sens de
palaestritae est mal défini, vu la rareté du mot. Il faut entendre que Cicéron veut distinguer
le simple ‘sportif’ qui va au gymnase pour se maintenir en bonne condition physique de
l’athlète qui se soumet à un entraînement en vue des grandes compétitions.”.
5 Refere-se à alternativa (imitação dos que estão em incorrupta sanidade), apesar do uso
de ponto no estabelecimento do texto.
6 Sentido concessivo e não exatamente adversativo.
7 Em latim, sermo. Veja-se em Orator, XIX, 64, a distinção estabelecida pelo próprio Cícero
entre sermo e oratio.
8 Nesse passo do capítulo V, em passo do capítulo VI e em todo o capítulo VII, Cícero fala
diretamente a propósito de suas traduções de Ésquines e de Demóstenes, às quais De
optimo genere oratorum serve de prefácio. Esses segmentos foram aqui omitidos, uma vez
que sua leitura parece justificar-se sobretudo em função do subseqüente contato com os
textos gregos, traduzidos ou não.

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Tamura Chihiro

Yamada Kentarô. Eigoban Anime Sakuhin ni miru Hon'yaku no Mandai 2: . Considerações sobre a epístola A Pamáquio: sobre
Tona ri no To toro no Baai. Kenritsu Nagasaki Shiiboruto Daigaku ~':_sat a melhor maneira de traduzir de São Jerônimo 1
Jôhô GakubuKiyô, v. 6, 2005. p. 273-284. 83ü!Ã~~ (2~~_) r~õ_;:_AA7
w Tradução e revisão de Luciana Malacarnel
.:::. ; 1'F6'o ~::::>t~iTI~O)r"~~2: w~ tt ~O) r r o JJ O)m
o J W!Jf!<.lL.*il!ij- Maria Cristina Martins 3
v-~Nr*~oo•mw~w&~JM6~

Introdução

Eusébio Sofrônio Hierônimo (em latim, Eusebius Sophronius Hieronymus)


nasceu em Stridon (ou Estridão), na Dalmácia (atual Eslovênia), entre 345 e
347, e morreu em 419 ou 420. Mesmo não sendo precisas as datas de nasci-
mento e de morte, é inegável que Jerônimo teve vida longa. Em seus mais de
70 anos vividos, dedicou-se inteiramente ao estudo e à escrita. Dos 12 aos 16
anos foi discípulo do gramático Donato, de quem chamou a atenção por ser
um aluno brilhante, tendo, por sua influência, aplicado a técnica de comentar
os textos bíblicos versículo por versículo. Jerônimo é reconhecido como santo
por católicos, ortodoxos, luteranos e anglicanos: não por ter realizado mila-
gres, mas por ter sido enviado por Deus para pregar ou expandir a sua palavra,
através da Bíblia que ele popularizou e permitiu que a compreendessem me-
lhor, pela sua tradução diretamente do hebraico, realizada entre 390 e 405. É
justamente pela tradução da Bíblia que realizou, a Vulgata, que são Jerônimo
é mais conhecido no ambiente intelectual e literário. Porém, a sua obra é muito
extensa: começou traduzindo os gregos, como por exemplo, a História Eclesiásti-
ca, de Eusébio de Cesareia, e as Crônicas, de Orígenes. Em seguida, fez comentá-
rios exegéticos sobre a Bíblia, escreveu comentários (Commentarii) sobre todos
os profetas do Antigo Testamento, além de crônicas, escritos polêmicos (apolo-
gias contra diversas personalidades), centenas de cartas, de assuntos variados,

Títu lo original: Ad pammachium: de optimo genere interpretandi. Epistola LVII- excertos.


2 Aluna do Bacharelado em Filosofia e bolsista de Iniciação Científica FAPERGS, sob orientação
da professora Maria Cristina Martins.
3 Professora de Latim, Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, Instituto de Letras,
UFRGS.

Cadernos de Tradução, Porto Alegre, Número Especial, 2016, p. 167-177 167


Cadernos de Tradução, Porto Alegre, Número Especial, 2016, p. 145-166
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Trad.: Luciana Malacarne e Maria C. Martins
Considerações sobre a epístola A Pa111ríquio: sobre a melhor...
entre outros escritos, já que produziu continuamente durante 35 anos. Além de
~ma tradução estritamente literal também é rejeitada por São Jerônimo, por
monge, asceta e conselheiro espiritual, São Jerônimo foi um dos maiores inte- Isso, eventualmente, ele adota os princípios ciceronianos4.
lectuais do Ocidente de todos os tempos: foi tradutor (atualmente patrono dos . Passemos agora a~s trechos da carta Ad Pammachium: de optimo genere
tradutores, bibliotecários e enciclopedistas), filólogo, historiador, teólogo. mt:r~retandt (~ Pamaquio: sobre a melhor maneira de traduzir), na qual São
Durante toda a sua vida, Jerônimo precisou se defender das acusações que lhe Jerommo precisou se defender das acusações de ser um mau tradutor com
foram atribuídas, como, pór exemplo, das calúnias em relação à sua amizade com uma breve contextualização do momento histórico em que a mesma se i~sere.
Paula (depois Santa Paula), mas também de várias acusações que lhe faziam por
causa de suas ideias, tanto em relação aos dogmas da Igreja quanto a várias ques-
tões de ordem moral e intelectual, das quais uma diz respeito ao objeto deste tra- 1 Ad Pammachium:
. de optimo ouenere interpretandt' - "A
n. Pa maquto:
· · so bre a
balho: as acusações de ser urri mau tradutor, um mentiroso e um falsário. meIh or manetra de traduzir" (Excertos)
Na verdade, como tudo em sua vida, S.ão Jerônimo foi um homem de gran-
des contradições. Podemos citar pelo menos duas que o acompanharam até Pam.áq~io e Jerônimo eram amigos e colegas de longa data, pois ambos
o fim de sua vida: uma delas foi a impossibilidade de se afastar de seus livros foram discipulos de Donato. Em 395, ano em que a carta foi escrita, Pamáquio
e da cultura latina, à qual devia a sua formação. Como um homem que pre ~ era senador romano .e recém viúvo de Paulina, filha de Paula (Santa Paula) e
gava para os outros e para si mesmo o desapego das coisas materiais, isso foi uma das mulheres anst?~ratas que fazia parte do círculo de estudos bíblicos e
um sofrimento para ele. Ainda em relação à cultura latina, por ser cristão, de aconselhamento espmtual presidido por São Jerônimo.
culpava-se de ler os grandes autores pagãos e de tê-los como modelo, a saber, Em 394, Jerônimo traduziu uma carta (51) do bispo Epifânio de Sal ·
t b · b· J - amma ao
principalmente Virgílio, Cícero, Horácio e Plauto, constantemente citados por am e~ Ispo . oao, de J~rusalém, ~ob circunstâncias que ele descreve no pará-
ele. Na carta 22 (Ad Eustoquium), São Jerônimo relata o seu famoso sonho, em grafo 2. traduzm-a a pedido de Eusebio de Cremona, tendo sido acordado entre
que Deus se apresenta a ele caracterizando-o como ciceroniano e não cristão e~es. que a c: rta nã~ viesse a público. Porém, a tradução foi roubada _ como Je-
(Ciceronianus es, non christianus). No que diz respeito à tradução, inegavel- ~o~tmo supos (paragrafo 12), por um discípulo de Rufino, que, na época, era seu
mente, São Jerônimo foi um continuador da tradição romana, cujo principal Illlmigo por ~uestões dogmáticas em torno do origenismo. Jerônimo foi acusado
de ter traduzido de maneira incorreta a carta grega original, 0 que 0 leva a se
expoente é Cícero. Mas antes de Cícero, Lívio Andronico, grego de nascimen-
defender. na carta 57, expo.n do seu método de tradução, conforme 0 parágrafo 5.
to, inaugura, no século III, a literatura latina em tradução, com Odissa, obra
~elec10n<U_Uos os .segumtes parágrafos da carta 57: o primeiro e 0 segundo
em que traduziu e, talvez mais do que isso, adaptou a Odisseia de Homero ao
explicam as Circunstan~ias que levaram Jerônimo a traduzir uma carta do gre-
latim. Lívio Andronico é considerado o primeiro tradutor europeu. De fato,
go e o r.o~bo da traduçao, possibilitando aos seus adversários que 0 acusassem
na tradição ocidental, devemos aos romanos os primeiros esforços e reflexões de fals~no e mau .tradutor. No capítulo 5, Jerônimo defende-se invocando
nessa área. Mas foi Cícero o primeiro a tecer comentários que se aproximam a autondade de Cicero e de Horácio, autores clássicos que lhe servem como
de considerações teóricas sobre a tradução. Para este autor, existiam dois tipos mes~r:s na arte da tradução. Fala, ainda, que, como um continuador dessa
de tradução: a literal, feita palavra por palavra, e a que se prendia ao sentido, tr~d~7ao romana de tradução, ele procura traduzir o "sentido pelo sentido" e
que se preocupava em produzir um texto na língua final que valorizasse a boa nao palavra por palavrá: No sexto parágrafo, Jerônimo diz que existem inú-
expressão, respeitando a pureza e a elegância da língua. Fazia, assim, do tradu- meros autores que traduziram conforme o sentido e que seria impossível no-
tor também um auctor, pois em seu Libellus de optimo genere oratorum adverte mear a todos, mas ~ue dari~ .como exe~plo Hilário, o Confessor, que traduziu
que não se deve traduzir "palavra por palavra" (uerbum pro uerbo), mas sim do ~rego para o l: tim homilias sobre Jo e vários tratados sobre os Salmos. No
"sentido pelo sentido" (sensum de sensu). Esse tipo de tradução estava bastante paragrafo 1.0, Jer~nimo argumenta sobre um outro aspecto que leva os tradu-
atrelada à retórica, por isso para Cícero havia a tradução literal do interpres e s:
tores a dista~ciarem um pouco da língua de origem, 0 que seria um tipo de
a do orator. Jerônimo por um bom tempo seguiu essas recomendações. Vê-se adaptaçao. Assim, exemplifica através de um trecho do evangelista Lucas, no
inclusive a influência de Cícero no próprio título da carta que iremos abordar ~ual ele se refere a uma passagem do Antigo Testamento, não a traduzindo
- De optimo genere interpretandi. Pouco a pouco, em razão da tradução que literalmente. Igualmente, no parágrafo 10, Jerônimo faz referência a um Salmo
fazia dos textos religiosos e da Bíblia em particular, a partir do hebraico, São
Jerônimo precisou se voltar a uma tradução mais literal, para não fugir do sen-
tido original e não ser criticado como infiel aos textos sagrados. No entanto,

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Trad.: Luciana Malaca rne e Maria C. Martins Considerações sobre a epístola A Pnmáquio: sobre a melhor...

em que na Septuaginta são adicionadas algumas palavras que não faziam parte 11. Ante hoc ferme biennium miserat loanni Epis- 2. Cerca de dois anos atrás, o acima mencionado
do original hebraico. Conclui, assim, no parágrafo 10, que do mesmo modo copo supradictus Papa Epiphanius litteras, arguens o bispo Epifâ nio enviara uma carta ao bispo João,
que nas traduções da Bíblia houve liberdade de tradução, ele mesmo, na pressa eum in quibusdam dogmatibus, et postea clementer repreendendo-o sobre algumas de suas opiniões, e
de ditar, pode ter omitido algumas· palavras, mas que isso não representaria ad poenitentiam provocans. Harum exemplaria cer- depois, com bondade, chamando-o ao arrependi -
um risco para a Igreja. No parágrafo 11, Jerônimo continua a argumentação a tatim Palaestinae rapiebantur, vel ob auctoris meri- mento. Os exemplares desta eram roubados da Pales-
respeito das omissões e acréscimos que fizeram parte da Septuaginta, e que isso tum, vel ob elegantiam scriptionis. Erat in monas- tina, continuamente, ou pelo mérito do autor ou pela
não foi um motivo para que esta versão da Bíblia deixasse de ser considerada teria nostro vir apud suos haud ignobilis, Eusebius elegância do escrito. Agora havia em nosso mosteiro
pela Igreja. Ao contrário, um certo Aquila, prosélito judeu e tradutor, esfor- Cremonensis, qui cum haec Epistula per multorum um homem não desprezível entre os seus, Eusébio
ora volitaret, et mirarentur eam pro doctrina et pu- de Cremona, aquele que - como esta carta andava
çou-se para traduzir a Bíblia literalmente, inclusive indicando a etimologia de
ritate sermonis, docti pari ter et indocti, coepit a me na boca de muitos e que a admirassem, igualmente
certas palavras, mas isso não levou a que a sua tradução fosse reconhecida pela
obnixe petere, ut sibi eam in Latinum verterem, et cultos e incultos, pelo seu ensinamento e pureza de
Igreja. Conclui o parágrafo 11 dizendo que há palavras que soam bem em gre-
propter intelligendi facilitatem apertius explicarem: estilo -, começou a me pedir obstinadamente para
go, mas que se traduzidas literalmente não soarão bem em -latim e vice-versa. Graeci enim eloquii penitus ignarus erat. Feci quod
No capítulo 12, Jerônimo dá exemplos de erros que ele teria cometido na tra- que eu lha traduzisse para o latim e a explicasse, por
voluit; accitoque Notario, raptim celeriterque dictavi: causa da facilidade de entende-la mais claramente:
dução da referida carta, como, por exemplo, um simples adjetivo grego que ele ex latere in pagina breviter adnotans, quem intrinse- de fato, ele próprio era profw1damente desconhe-
preferiu traduzir no grau superlativo. Neste mesmo parágrafo, nomeia Rufino cus sensum singula capitula continerent. Siquidem cedor da língua grega. Fiz aquilo que ele quis: ten-
e Melânia como mestres de quem o está acusando. A carta termina no parágra- et hoc ut sibi soli facerem, oppido flagitarat; postu - do mandado vir um notário, ditei rapidamente e às
fo 13, onde Jerônimo se despede e diz que Pamáquio, ao comparar o original lavique ab eo mutuo, ut domi haberet exemplar: nec pressas, marcando brevemente no lado da página, os
grego e a sua tradução, poderá constatar as críticas que lhe imputaram. facile in vulgus proderet. Res ita anno et sex mensi- conteúdos de cada um dos capítl~ os. Ti nha pedido
bus transiit: donec supradicta interpretatio de scri - com muita insistência que fizesse isso somente para
I. Paulus Apostolus, praesente Agrippa rege. de cri- I. O Apóstolo Paulo, em presença do rei Agripa, ten- ni is eius novo praestigio lerosolymam commigravit. si, que tivesse o exemplar em casa; pa ra que não se
minibus responsurus, quod posset intelligere qui do a intenção de responder sobre as acusações <que Nam quidem Pseudomonachus, vel accepta pecunia, divulgasse fac ilmente em público. Tra nscorreu um
auditurus erat, securus de causae victoria statim in lhe eram imputadas>, imediatamente se congratula ut perspicue intelligi datur, vel gratuita malitia, ut ano e seis meses do fato, e então a supracitada tra-
principio sibi gratulatur, dicens: "De omnibus quibus - seguro da vitória de sua causa, porque aquele que incassum corruptor nititur persuadere, compilatis dução migrou dos objetos dele para Jerusalém por
accusor a ludaeis, o rex Agrippa. existimo me bea- estava disposto a ouvir poderia compreender -, di - chartis eius et sumptibus, ludas factus est proditor: uma nova artimanha. De fato, um pseudo-monge,
tum, cum apud te sim hodie defendendus, qui prae- zendo: "de todas as coisas de que sou acusado pelos deditque adversariis latrandi contra me occasionem, por dinheiro recebido ou por ma lícia gratuita, como
cipue nosti cunctas quae in ludaeis sunt consuetudi - judeus, 6 rei Agripa, considero-me feliz, que eu esteja ut inter imperitos concionentur, me falsarium, me muito claramente é permitido se perceber, tal como
nes et quaestioneS: Legerat enim illud lesu: "Beatus hoje junto a ti para me defender, tu que especialmen- ve rbum non expressisse de verbo: pro honorabi- um sedutor que se esforça a persuad ir, se revela um
qui in aures loquitur audi entis~ et noverat tantum te tomaste conhecimento de todas as coisas que são li dixisse carissimum, et maligna interpretatione, novo Judas: e deu oportunidade aos meus adversá-
oratoris verba proficere, quantum iudicis prudentia costumes e problemas entre os j ud eus~ Na verdade, quod nefas dictu sit. aiÕEm~<i'taTOv nurrrrav, noluisse rios de ladrar contra mim, para que, entre os impe-
cognovisset. Unde et ego beatum me in hoc duntaxat <o Apóstolo> tinha lido isto de Jesus: "Feliz aquele transferre. Haec et istiusmodi nugae crimina mea ritos, proclamassem que sou um falsário e que não
negotio iudico, quod apud eruditas aures imperitae que fala para ouvidos que ouvem·: e ele estava con- sunt. trad uzi palavra por palavra: teria dito "caríssimo" em
linguae responsurus sum: quae obiicit mihi vel ig- vencido de que as palavras do orador são tanto úteis vez de "honrosó' e, por má interpretação, o que seria
norantiam, vel mendacium; si aut nescivi alienas quanto tenha conhecimento do bom senso do juiz. uma atrocidade de dizer, não teria desejado traduzir
litteras vere interpretari, aut nolui: quorum alterum Daí que eu também me considero feliz pelo menos ai &m~llnamv Oarmav. Desta forma, estas ninharias
error, alterum crimen est. Ac ne forsitan accusator nesse assunto jurídico, pois junto a sábios ouvidos são os meus crimes.
meus facilitate, qua cuncta loquitur, et impunitate, hei de responder a uma língua imperita, a qual joga
qua sibi licere omnia putat, me quoque apud vos ar- sobre mim ou a ignorância ou a mentira - das quais Omissae sunt partes 3 et 4 Foram omitidas as partes 3 e 4
gueret, ut Papam Epiphanium criminatus est, hanc uma é erro, e a outra é crime - , se não soube ou não
epistulam misi, quae te, et per te alios, qui nos amare quis traduzir corretamente uma carta estrangeira. E V. Hactenus sic locutus sum quasi aliquid de Epis- 5. Até agora falei como se tivesse alterado algo da car-
dignantur, rei ordinem doceat. para que o meu acusador não me acuse junto a vós, tula commutaverim, et simplex translatio possit ta de origem, e que uma simples tradução poderia ter
como também acusou o Papa Epifâ nio, porque pensa errarem habere, non crimen. Nunc vero cum ipsa um erro, não um crime. Agora, na verdade, como a
ser permitido todas as coisas de que fala com facili- Epistula doceat nihil mutatum esse de sensu, nec res própria carta informa nada ter sido mudado a respei-
dade e com impunidade, enviei esta carta, para que a additas, nec aliquod dogma confictum, "Faciunt nae to do sentido, nem coisa <alguma> acrescentada ou
ti e, através de ti, a outros, que consideram digno nos intelligendo ut nihil intelligant': et dum alienam im- alguma opinião inventada "certamente, como nada
amar, in forme o encadeamento do assunto. peritiam volunt coarguere, suam produ nt. Ego enim entendem, se fazem de entendidos" e, enquanto que-

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Considerações sobre a epístolaA Pamriquio: sobre a melhor...
Trad.: Luciana Malacarne e Maria C. Martins

semper ab adolesce ntia non verba, sed sententias eu tenha desejado provar, que sempre, desde a ado-
non solum fateor, sed libera voce profiteor, me in in- rem demonstrar a falta de conhecimento alheia, re-
transtulisse), qualis super hoc genere praefatiuncula lescência. traduzi não palavras, mas significados - ,
terpretatione Graecorum, absque Scripturis sanctis, velam a sua. Eu, de fato, não só confesso, mas declaro
ubi et verborum ordo mysterium est, non verbum e livremente, que, na minha interpretação dos gregos, sit, in libro quo beati Antonii Vita describitur, ipsius examina de que natureza é, pela leitura do mesmo,
verbo, sed sensum exprimere de sensu. Habeoque exceto nas Escrit.uras santas, onde também a ordem lectione cognosce. "Ex alia in aliam linguam exp ressa o breve prefácio a respeito deste assunto no livro
huius rei magistrum Tullium, qui Protãgoram PÍa- das palavras é um mistério, traduzo não palavra por ad verbum translatio, sensum operit; et veluti laeto em que é narrada a vida do abençoado Antônio: ''A
tonis, et Oeconomicon Xenophontis e.t Aeschinis ac palavra, mas sentido por sentido. E tenho como gramine, sata strangulat. Dum enim casibus et fig u- expressa tradução literal de uma língua para outra
Demosthenis duas contra se orationes pulcherrimas mestre desta arte Túlio <Cícero>, que traduziu "Pro- ris servil oratio, quod brevi poterat indicare sermo- encobre o sentido, assim como os campos semeados
transtulit. Quanta in illis praetermiserit, quanta tágoras·: de Platão, "Econômico~ de Xenofonte, e dois ne, longo ambitu circumacta vix explica( Hoc igitur sufocam-se com a erva abw1dante. De fato, no mo-
addiderit, quanta mutaverit. ut proprietates alterius belíssimos discursos de tsquines e de Demóstenes, ego vitans, ita beatum Antonium, te petente, trans- mento em que o estilo se sujeita aos casos e figuras
linguae, suis proprietatibus explicare!, non est huius um contra o outro. Quantas coisas nessas <obras> posui, ut nihil desit ex sensu, cum aliquid desit ex <de palavras>, aquilo que ele poderia indicar com
temporis dicere. Suflicit mihi ipsius ú anslatoris omitira, quantas acrescentara, quantas mudara, verbis. Ali i syllabas aucupentur et litteras, tu quaere um discurso breve, explica, com dificuldade, por
auctoritas, qui ita in Prologo earumdem orationum. para que desenvolvesse as qualidades próprias da sententias. Dies me deficiet. si omnium qui ad sen- meio de uma longa circunlocução. Evitando isso,
locutus est: "Putavi mihi suscipiendum laborem uti- outra língua, nas suas particularidades, não é oca- sum interpretati sunt, testimonia replicavero. Sufficit portanto, traduzi desta maneira, a teu pedido, a vida
lem studiosis, mihi quidem ipsi non necessarium. sião de narrar. É suficiente para mim a autoridade in praesenti nominasse Hilarium Confessarem, qui do abençoado Antônio, de sorte que nada falte do
Converti enim ex Atticis duorum eloquentissimo- desse mesmo tradutor. que, no prólogo dos já citados Homilias inlob, et in Psalmos tractatus plurimos in sentido, ainda que falte algo das palavras. Que outros
rum nobilissimas orationes, inter seque contrarias, discursos, disse assim: "Julguei dever empreender Latinum verti! e Graeco, nec assedit litterae dormi- apanhem sílabas e letras; tu, procura significados':
Aeschinis et Demosthenis: nec converti, ut interpres, um trabalho útil aos estudiosos, na verdade desne- tanti, et pu tida rusticorum interpretatione se torsit: Faltar-me-á tempo, se eu referir os testemunhos de
sed ut Orator, sententiis iisdem et earum formis, tam cessário a mim mesmo. Com efeito, traduzi os mais sed quasi captivos se nsus in suam linguam , victoris todos aqueles que traduziram conforme o sentido.
figuris quam verhis ad nost ram consuetudinem ap- conhecidos discursos, um contra o outro, originários iure transposuit. No momento presente, é suficiente nomear Hilário,
tis. In quibus non verbum pro verbo necesse habui dos dois oradores áticos mais eloquentes, tsquines e o Confessor, que traduziu homilias sobre )ó e vários
reddere: sed genus omne verborum vimque servavi. Demóstenes; não <OS> traduzi como tradutor, mas tratados sobre os Salmos, do grego para o latim, e não
Non enim me annumerare ea lectori putavi oportere, como orador, com as mesmas sentenças e formas se ocupou constantemente com a sonolenta letra ou
sed tanquam appenderé: Rursum in calce sermonis: das mesmas, tanto com as figuras <de palavras> se contorceu por uma afetada tradução de incultos,
"Quorum ego': ait, "orationes, si, ut spero, ita expres- quanto com as palavras adequadas ao nosso costu- mas como que transpôs catii'OS os significados para a
sem, virtutibus utens illorum omnibus, id est senten- me, <discursos> nos quais não tive necessidade de sua língua- com justiça, a língua do vencedor.
tiis, et earum figuris, et rerum ordine: verba perse- transmitir palavra por palavra, mas conservei toda
quens eatenus, ut ea non abhorreant amore nostro. a semelhança natural e força das palavras. De fato, Omissae sunt partes 7, 8 et 9 Foram omitidas as partes 7, 8 e 9
Quae si e Graecis omnia conversa non erunt: tamen não pensei que devesse, ao leitor, contar as palavras,
ut generis eiusdem sint, elab oravimus~ Sed et Hora- mas, pelo contrário, pesá-las~ Em seguida, no fim do X. Lucas vir Apostolicus et Evangelista scribit, IO. Lucas, homem apostólico e evangelista, descreve
tius vir acutus et doctus, hoc idem in Arte Poetica prólogo dos discursos, <Cícero> diz "Os discursos se, Stephanum primum Christi Martyrem in Iudaica Estêvão, o primeiro mártir de Cristo, narrando numa
erudito interpreti praecipit: Nec verbum verbo cura- como espero, assim expressarei, servindo-me das concione narrantem: "In septuaginta quinque ani- assembleia judaica: "Jacó desceu ao Egito com seten-
bis reddere, fidus interpres. Terentius Menandrum, virtudes de todos aqueles, isto é, os sentidos e as fi- mabus descendi! Iacob in Aegyptum: et defunctus ta e cinco almas; e ele morreu, e os nossos pais foram
Plautus et Cecilius veteres comicos interpretati sunt. guras <de palavras> desses e a ordem dos assuntos, est ipse, et palres nostri translati sunt in Sychem et levados a Siquém e colocados no sepulcro que Abraão
Numquid haerent in verbis: ac non decorem magis et seguindo as palavras até o ponto que não fujam do positi sunt in sepulcro quod emit Abraham pretio comprou, por um valor em prata, dos filh os de Emor,
elegantiam in translatione conservant? (... ) nosso gosto. Se todas essas palavras não tiverem sido
arge nti a filiis Emor patris Sychem:· Hic locus in pai de Siquéni: No Gênesis, esse passo se encontra de
traduzidas a partir dos gregos, pelo menos nos es-
Genesi multo ali ter invenitur, quod scilicet Abraham modo muito diferente, porque Abraão teria compra-
forçamos para que fossem <interpretadas> da mes-
emerit ab Ephron Hetheo, filio Seor, iuxta Hebron, do de Efrom, o heteu, filho de Seor, perto de Hebron,
ma maneira. Mas também Horácio, homem sutil e
quadringentis drachmis argenti, speluncam dupli- por quatrocentas dracmas de prata, uma gruta dupla
douto, isso mesmo recomenda ao tradutor erudito:
cem, et agrum circa eam, sepelieritque in ea Saram e o campo ao redor dela, e nela teria sepultado Sara,
"Não te preocupes em traduzir palavra por palavra,
uxorem suam. Atque in eodem legimus libro, poslea sua esposa. E ainda no mesmo livro, lemos que Jacó,
fiel tradutor. Terêncio <trad uziu> Menandro, Plauto
revertentem de Mesopotam ia Iacob cum uxoribus et depois, voltando da Mesopotâmia, com suas esposas
e Cecilia os antigos cômicos. Por acaso se prendem
filiis suis, posuisse tabernaculum ante Salem urbem e filh os, estabeleceu sua tenda diante de Salém, a ci-
às palavras e não conservam na tradução mais graça
Sychimorum, quae est in terra Chanaan, et habitasse dade dos siquem itas, que está na terra de Canaã, e
e elegância?" (... )
ibi, et emisse partem agri, in quo habebat tentoria, aí habitou e comprou de Emor, pai de Siquém, por
ab Emor palre Sychem centum agnis: et statuisse ibi cem cordeiros, uma parte do campo em que possuía
VI. Verum ne meorum scriptorum parva sit aucto- 6. Em verdade, com receio de que a autoridade de
altare, et invocasse ibi Deum Israel. Abraham non barracas, e aí construiu um altar e invocou o Deus de
ritas (quanquam hoc tantum probare voluerim, me meus escritos seja pequena - embora apenas isto

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Trad.: Lucia na Malacarne e Maria C. Martins Considerações sobre a epístola A Pnmáquio: sobre a melhor...

emit specum ab Emor palre Sychem: sed ab Ephron Israel. Abraão não comprou a gruta de Emor, pai de órrwptOftÓv, CtÀrrvóTt]Ta. quod nos possumus dice- que ela não difere do hebraico. Por sua vez, Aquila,
filio Seor: nec sepultus est in Sychem, sed in Hebron, Siquém, mas de Efrom, filho de Seor, nem foi ele se- re "fusionem, pomationemque:· et "splendentiam :· prosélito e controverso tradutor, que se esforçou
quae corrupte dicitur Arboch. Duodecim autem Pa- pultado em Siquém, mas em Hebron, que, de modo Aut quia Hebraei non solum habent áp8pa, sed et para traduzir não só as palavras, mas também suas
triarchae non sunt sepulti in Arboch; sçd in Sychem, corrupto, se chama Arboch. Ora, os doze patriarcas rrpóap8pa, ille KaKo(tjÀwc. et syllabas interpretatur. etimologias, com justiça é rejeitado por nós. Quem
qui ager non est emptus ab Abraham, sed a lacob. não foram sepultados em Arboch. mas em Siquém. et litleras dicitque OUV TÓV OUpOVÓV KQt OUV TIÍV ytjV, poderia, com efeito, ler ou compreender como 'tri-
Differo solutionem et istius quaestiunculae, ut ob- <no> campo que foi comprado não por Abraão, mas quod Graeca et Latina língua omnino non recipit; gt:i 'vinho' e 'óleo' <as palavras> XEÜ~a. urrwptopóv e
trectatores mei quaerant, et intelligant, non verba in por Jacó. Deixo para outro momento a solução desta cuius rei exemplum ex nostro sermone capere possu- rrnÀrrvÓTqc. que podemos entender como 'derra ma-
Scriph~ris consideranda, sed sensus. Vicesimi p·rimi questão ·de pouca importância, para que meus de- mus. Quanta enim apud Graecos bene dicunhlr, quae mentO: 'colheita de frutas' e 'esplendor' I Ou, porque
Psalmi iuxta Hebraeos idipsum exordium est, quod tratores a procurem e compreendam que não são as si ad verbum transferamus, in Latino non resonant: os hebreus não têm apenas artigos (áp8pa), mas
Dominus locuhts est in cruce: "Eii Eli lama azab- palavras que devem ser consideradas nas Escrituras, et e regione, quae apud nos placent si ve rtantur iuxta também out ros prefixos (rrpóap8pa). ele, com mau
thani ~ quod interpretah1r, "Deus meus, Deus meus, mas o sentido. Segundo os hebreus, o exato início do ordinem, apud illos displicebunt. gosto, traduz não apenas as sílabas, mas também as
quare me dereliquisti?" Reddant rationem, cur Sep- vigésimo primeiro salmo é o que o Senhor disse na letras, e diz OUV TÓV OUpavàv Kai OUV Tl]V ytjv, Oque as
htaginta translatores interposuerint, "respice me~ !ta cruz: "i::!i, Eli, Iam ma azabthani'; que significa "Meu línguas grega e latina absolutamente não admitem,
enim verterunt: "Deus Deus meus, respice me, quare Deus, meu Deus, por que me abandonaste?" Que fato do qual nós podemos tomar um exemplo a partir
me dereliquisti?" Respondebunt utique nihil damni ·deeril a razão p-or que os tradutores da Sephtaginta · de nossa língua. De fa to, quantas coisas são bem di-
in sensu esse, si duo verba sint addita. Audiant et a intercalaram "Volta o olhar sobre mim~ pois tradu- tas en tre os gregos. que, se traduzirmos palavra por
me non periclitari Ecclesiarum statum, si celeritate ziram deste modo: "Deus, meu Deus, volta o olhar palavra, não soam <bem> em latim' E, ao contrário,
dictandi, aliqua verba dimiserim. sobre mim. por que me abandonaste?" Responderão, <quantas coisas> que entre nós são agradáveis, se
sem dúvida, que nâo há nenhum prejuízo no sentido traduzidas segundo a ordem, serão desagradáve is
se são acrescentadas duas palavras- que eles saibam entre os gregos!
também que a sihtação das Igrejas não seria colocada
em perigo por mim, se, na pressa de ditar, eu omitis- XII. Sed ut infinita praeteream, et estenda m tibi, vir 12. Mas, para que eu deixe de lado infinitas coisas e
se algumas palavras. om nium nobilium Christianissime, et Christiano- mostre a ti , o homem mais cristão de todos os nobres
rum nobil issime, cuiusmodi falsitatis me in epistulae e o mais nobre de todos os cristãos, de que tipo de
XI. Longum est nunc revolvere, quanta Sephtaginta 11. Seria <muito> longo desenvolver agora quantas translatione reprehendant, ipsius epistulae ponam falsidade me repreendem na tradução da carta, apre-
de suo addiderint, quanta dimiserint, quae in exem- coisas os Setenta acrescentaram de seu, ou quantas cum Graeco sermone principium, ut ex uno crimi - sentarei o in ício da própria carta com o idioma gre-
plaribus Ecclesiae, obelis, asteriscisque distincta omitiram. que se encontram distintas com óbelos e ne intelligantur et caetera,"E ÓEt 'Íftàc àyarr qn' fl~ go. para que, a partir de uma acusação, sejam com-
sunt. lllud enim quod legimus in !saia: "Beatus qui asteriscos nos exemplares da Igreja. Com efeito, os Tfi oitjoEI rwv KÀtjpwv <pEpE8m, quod ita me vertisse preendidas também as demais:' EóE! ~~ãc, àyám]TE,
habet semen in Sion, et domesticas in lerusalem;· hebreus coshtmam rir quando ouvem o que lemos memini: "Oportebat nos, dilectissime, clericatus pt) Tfi oitjoEJ Twv KÀtípwv <pÉpw8m, que lembro de
solent Hebraei deridere, cum audierint. Nec non et em Isaías: "Bem-aventurado aquele que possui des- honore non abuti in superbian{ Ecce, inquiu nt, in ter vertido deste modo: "Era-nos necessário, diletís-
in Amos post descriptionem luxuriae: "Stantia pu- cendência em Sião e servos em jerusaléni'; também uno versículo quanta mendacia. Primum ãyam]làc. simos. não abusar da honra do clericado para servir
taverunt haec, et non fugientia:· Revera sensus rhe- em Amós, após uma descrição de indolência: "Pensa- dilectus est non dilectissimus. Dei nde o'ít]UIC, aesti- à soberbá: Eis, dizem, quantas mentiras numa única
toricus et declama tio Tulliana. Sed quid faciemus ad ram estas coisas como estabilidade, e não como fuga- matio dicitur, non superhia; non enim dixit oltj~an, linha! F.m primeiro lugar, áymtt]TÓC significa 'diletri
authenticos libros. in quibus haec non feruntur ads- cidade" - verdadeiramente uma sentença retórica ou sed oitjoEt: quorum alterum tu morem, alterum ar- e não 'diletíssimà. Depois, olt]OICsignifica, 'opi niãO:
cripta, et caetera his similia, quae si pro ferre nitamur, uma declamação htliana <ciceroniana>. Mas o que bitrium sonat. Totumque quod sequitur, ''clericatus e não 'soberba'; de fato, não se disse oi~~a11, mas
infinitis libris opus esl. Porro quanta dimiserint, vel faremos em relação aos livros originais em que essas honore non abuti in superbiam, tu um est. Quid ais. oitjoEI, palavras das quais uma significa 'tumor: e a
asterisci testes, ut dixi, sunt, vel nostra interpretatio, e demais coisas semelhantes a essas não são trazidas o columen litterarum, et nostrorum temporum Aris- outra, 'juízO: E <quanto a> tudo o que se segue, "não
si a diligenti lectore Translationi veteri conferatur: et escritas. as quais, se nos esforçássemos em publicar, tarche, qui de universis scriptoribus sententiam fe- abusar da honra do clericado para servir à soberba~
tamen iure Sephtaginta Editio obtinuit in Ecclesiis, necessitariam um número infinito de liYros? Ora, ou ras1 Ergo frustra tanto tem pore studuimus; et a saepe <dizem:> ''é tett': O que fazes, ó sumidade das letras
vel quia prima est. et ante Christi facta adventum, os asteriscos são testemunhas de quantas coisas os manum ferulae subduximus:· Egredientes de portu, e Aristarco de nossos tempos. que dás teu parecer
vel quia ab Apostolis (in quibus tamen ab Hebraico Setenta omitiram, como eu disse, ou nossa interpre- statim impegimus. lgitur quia et errasse huma num acerca de todos os escritores? Então foi em vão que
non discrepa!) usurpata. Aquila autem proselyhts tação, se cotejada com a versão antiga por um leitor est; et confiteri errarem , prudcntis: tu quicumque por tanto tempo estudamos e muitas vezes retiramos
et contentiosus interpres, qui non solum verba, sed diligente, e, todavia, com justiça, a edição dos Seten- reprehensor es, tu me obsecro emenda praeceptor, et a mão à pa ~11atória (i. e., frequentamos a escola).
etymologias quoque verborum transferre conahts ta é reconhecida nas Igrejas. ou porque é a primeira verbum de verbo exprime. Debueras, inquit, dicere: Saindo do porto, imediatamente encalhamos. Enfim,
est, iure proiicitur a nobis. Quis enim pro frum ento e foi feita antes do advento de Cristo, ou porque foi "Oportebat nos, dilecte, non aestimatione Clerico- porque errar é humano e confessar o erro é sábio, tu,
et vino et oleo, possit, vellegere, vel intelligere, XEüpa. usada pelos apóstolos - nas passagens, porém, em rum ferri:' Haec est Plautina eloquentia, hic lepos At- censor, quem quer que sejas, tu, mestre, suplico-te,

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Trad.: Luciana Malacame e Maria C. Martins
Considerações sobre a epístola A Pmuriquio: sobre a melhor...

ticus, et Musarum, ut dicunt, eloquio comparandus. corrige-me e traduz literalmente. Deverias, diz ele, Considerações Finais
Com pletur in me tritum vulgi sermone proverbium: dizer: "Era-nos necessário, diletos, não sermos le-
Oieum perdi! et impensas, qui bovem mittit ad cero- vados pela opinião dos clérigos': Esta é a eloquência
M_uito embora a Carta 57 seja famosa entre muitos estudiosos de tradução,
ma. Haec non est tlhus culpa, cmus sub persona alms plautina, esta é a graça ática que, como dizem, deve
acredttamos que entre nós ela mereça ser mais conhecida, porque trata de cer-
agit Tragocdiam; sed Ruffini et Melanii magistrorum ser comparada à linguagem das musas. Cumpre-se
eius, qui illum magna mercede nihil scire docuerunt. em mim o conhecido provérbio, na linguagem do tos prob~ema~ de tradução que até hoje geram discussão. Ou seja, questões
Nec reprehendo in quolibet Christiano sermonis im- povo: "Perde o óleo e as despesas aquele que manda como a hterahdade ou não de uma tradução, a omissão ou acréscimo de ter-
peritiam: atque utinam Socraticum illud haberemus:·. um boi para os exercícios atléticos': Esta culpa não mos, a par~:rase e a adaptação são fonte de divergência entre especialistas. Te-
Seio, quod nescio; et alterius sapientis (Chilonis ut é daquele sob cuja máscara uin outro representa a mos consCiencta de que muito mais poderia ser mostrado sobre a temática de
putatur): Teipsum intellige. Venerationi mihi sem- tragédia, mas é de Rufino e Melânia, seus mestres, tradução com base na obra de São Jerônimo. Por ora, limitamo-nos a mostrar
per fuit non verbosa rusticitas, sed sancta simplici- · os quais, por um ·grande preço, ensinaram-no a nada que certas discussões que perduram até hoje tiveram início há séculos atrás e
tas. Qui in sermone imitari se dicit Apostolus, prius saber. E. não censuro, em qualquer cristão que seja, foram o alicerce dos estudos posteriores. Efetivamente, em qualquer área do
imitetur virtutes in vita illorum , in quibus loquendi a imperícia de linguagem, e oxalá considerássemos
c~n?e_cimento é ,i~portante que se faça um esforço para entender a trajetória
simplicitatem excusabat sanctimoniae magnitudo; · aquele socrático "sei que nada sei" e o "conhece-te
htstonca da matena em questão, por meio do estudo de seus clássicos.
et syllogismos Aristotelis, contortaque Chrysippi a ti mesmó; de outro sábio, Quilão, como se pensa.
acumina, resurgens mortuus confutabat. Caeterum Sempre foi de minha veneração não a verbosa rus-
ridiculum, si quis e nobis manens inter Croesi opes, ticidade, mas a santa simplicidade. Aquele que se
et Sardanapali delicias, de sola rusticitate se iactet: diz imitar os apóstolos na linguagem, antes imite
Bibliografia
quasi omnes latrones, et diversorum criminum rei, em sua vida as vi rtudes deles, nos quais a grandeza
diserti sint: et cruentos gladios, Philosophorum vo- da santidade escusava a simplicidade de falar, e um MARAVAL:Jerônimo: tradutor da Bíblia. São Paulo: Paulinas, 1998.
luminibus, ac non arborum truncis occulant. morto ressuscitado refutava os silogismos de Aristó- OUSTINOFF, M. Tradução: história, teoria e métodos. São Paulo: Parábola
teles e as sutilezas intrincadas de Crisipo. De resto, Editorial, 2011.
seria ridículo se alguém de nós, permanecendo entre SAINT JÉRÔME. Lettres. Traduites en français par Grégoire et Collombet.
as riquezas de Creso e as delícias de Sardanapalo, se
Lyon: Librairie Catholique de Perisse Freres, 1837. T. 2:140-183.
jactasse apenas de sua rusticidade, como se todos os
ladrões e réus de acusações diversas fossem cultos, se
ocultassem as espadas ensanguentadas em volumes
Je filósofos e não em troncos Je árvores.

XII I. Excessi mensuram epistulae, sed non excessi 13. Excedi a dimensão de uma carta, mas não exce-
doloris modum. Nam qui falsarius vocor; et inter dia medida de minha dor, pois eu, que sou chamado
muliercularum radios et textrina dilanior, conten- de falsário e sou rasgado em pedaços entre as lança-
tus sum crimen abnuere, non referre. Unde arbitrio deiras e teares das mulherezinhas, estou contente em
tuo cuncta permitto; ut legas ipsam epistulam, tam repelir a acusação e não revidar. Por isso, confio tudo
Graecam quam Latinam: et illico intelliges accusato- a teu julgamento, para que leias a própria carta, tanto
rum meorum naenias, et probrosas querelas. Porra a <versão> grega quanto a latina, e compreenderás
mihi sufficit amicum instruxisse carissimum: et in imediatamente as lamentações e queixas vergonho-
cellula latitantem diem tantum exspectare iudicii. sas de meus acusadores. De agora em diante, me é
Optoque, si fie ri potest, ct si adversarii siverint, Com- suficiente ter instruído um amigo caríssimo e apenas
mentarios potius Scripturarum, quam Demosthenis esperar, retirado em minha cela, o dia do juízo. E
et Tullii Philippicas tibi scribere. desejo escrever para ti, se for possível e meus adver-
sários permitirem, antes comentários das Escrituras,
do que filípicas de Demóstenes e de Túlio <Cícero>.

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