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2.1.

O Espaço

“... mas o espaço arquitetural é complexo demais. Falta -lhe

muitas vezes o calor humano, o movimento e o dinamismo, em

função dos quais é conhecido”. 1

Será a partir dessa consciência da complexidade do espaço arquitetônico, o qual

necessita do pulsar da vida humana dentro de si para poder ser denominado Espaço

Arquitetônico, que discorreremos sobre os espaços do SESC Pompéia projetados por

Lina Bo Bardi.

Em primeiro lugar, o que é espaço?

Não tentaremos aqui buscar por uma definição precisa, unânime, fechada. Tal

tentativa seria um intento improcedente, visto que, para a cada área de interesse, o

espaço possui uma definição, a qual lhe atribui qualificações distintas.

Conceituação

Merleau-Ponty (1989), disse que “o espaço não é objeto de visão, mas objeto de

pensamento”.2

1 NIEMAYER, Oscar. apud Okamoto, Jun. Percepção Ambiental e Comportamiento. 2º ed. IPSIS
Gráfica Editora. São Paulo. 1997. p.110
2 MERLEAU-PONTY, Maurice. O Primado da Percepção e suas Conseqüências Filosóficas.
Papiros. São Paulo. 1989. p.23.
Se espaço é objeto de pensamento, tal conceito casa-se perfeitamente bem com a

forma como os modernistas interpretavam o espaço. Estes defendiam que o espaço não

precisava estar confinado entre paredes, explicitamente delimitado, para possuir status

espacial, para ser espaço arquitetônico.

Para os modernistas, espaço era algo subjetivo, objeto de pensamento, por isso

concebiam arquiteturas com planta livre, 3 amplos espaços, sem interrupção física entre

uma e outra atividade, com uma sutil integração entre interior e exterior, a qual era

possível através da utilização de paredes de vidro.

Mies van der Rohe. Pavilhão em Barcelona. 1929.


Planta e Vistas. Planta livre oferece inúmeras possibilidades de
divisões e subdivisões internas.

Se consideramos que Lina Bo Bardi possuía matizes modernistas, podemos

considerar também, que ela defendia o mesmo conceito de espaço apresentado por

Ponty e projetado pelos modernistas do começo do século XX.

Um outro ponto importante quanto à questão espacial, deve-se à relação espaço-

tempo. Cassier (1972), disse que “o espaço e o tempo são o arcabouço que sustenta a

realidade. Não podemos conceber coisa alguma real senão sob as condições de espaço e

3 ZEVI, Bruno. Saber Ver a Arquitetura. 5º ed. Editora Martin Fontes. São Paulo. 2002. Ver pp. 121-127.
tempo”.4

A relação espaço-tempo foi largamente trabalhada pelos cubistas, os quais

entendiam que uma imagem não poderia ser representada apenas a partir de um

momento único, congelado, por isso, fragmentaram suas imagens em inúmeros

momentos distintos, para melhor representá-la, segundo a visão deles.

Na arquitetura, tal relação se dá quando o espaço arquitetônico é ocupado,

apropriado e utilizado por uma ou mais pessoas. Nesse momento, em que o espaço

passa a ser povoado e ganha vida, a dupla espaço-tempo passa a estabelecer uma

delicada inter-relação, pois é o movimento humano dentro de qualquer espaço que julga

adequada ou não suas dimensões.

Exemplo de como um espaço vazio não nos dá uma noção precisa de suas dimensões.

Qualquer descuido do arquiteto quanto à percepção dessa inter-relação resultará

na produção de um espaço com proporções inadequadas ao uso para o qual foram

concebidos. Em outras palavras, o tempo, em um projeto arquitetônico, é algo

altamente subjetivo e difícil de ser contemplado. Por isso, quando num projeto, o

arquiteto não prevê a movimentação e a ocupação 5 das pessoas dentro do espaço, é

4 CASSIER, Ernest. Antropologia Filosófica. 1972 apud Okamoto. 1997. p. 109.


5 Movimentação e Ocupação de um espaço arquitetônico: é a forma mais concreta de se visualizar o tempo na arquitetura.
porque o fator tempo não foi levado em consideração. Nesse caso, o espaço produzido

pode até contemplar as dimensões físicas do ser humano, mas certamente não

contemplará as dimensões sociais, que são a alma de uma arquitetura humanizada.

Uma última definição sobre espaço num contexto mais genérico, antes de nos

fixarmos em espaço arquitetônico propriamente dito, diz respeito à forma como o

professor Milton Santos percebia o seu objeto de estudo:

O espaço deve ser considerado como um conjunto indissociável de


que participam, de um lado, certo arranjo de objetos geográficos,
objetos naturais e objetos sociais, e, de outro, a vida que os preenche e
os anima, (...) a sociedade em movimento, [ou seja], o espaço, é um
conjunto de formas contendo cada qual frações da sociedade em
movimento.6

Essa é uma definição de espaço que cabe perfeitamente à descrição de espaço

arquitetônico. Os arquitetos, jamais poderão dissociar objetos geográficos, naturais e

sociais para a produção de seus espaços, senão, cairão em uma atuação muito próxima

àquela descrita por Lina Bo Bardi sobre o profissional que fica de sua prancheta

folhando revistas e concebendo espaços para um ser humano fictício.

Como já esclarecido, não buscávamos encerrar o conceito de espaço nesse

pequeno discurso. Apenas procuramos nortear o caminho pelo qual trabalharemos o

estudo sobre os espaços arquitetônicos de Lina Bo Bardi para o projeto do SESC

Pompéia.

6 SANTOS, Milton. Metamorphoses do Espaço Habitado. Hucitec. São Paulo. 1988. pp.26-27.
Espaço Arquitetônico

Voltando àquela descrição de Lina Bo Bardi sobre seus primeiros contatos com a

velha e aparentemente abandonada fábrica da Pompéia, a arquiteta descreve que em sua

primeira visita, em um dia de semana, o que lhe chamou a atenção foram as estruturas

hennebiqueanas. Contudo, na segunda vez em que lá esteve, em um final de semana, o

foco de sua atenção foi atraído por uma alegre movimentação humana e de vida social

que preenchia aqueles velhos galpões.

Segundo Gropius, “o espaço não é nada em si (...) Começa a existir, a se

delimitar, a tomar forma, quando é considerado como dimensão virtual do agir de um

grupo social”.7 Ou seja, a presença humana nos galpões da Pompéia, criou espaços e fez

com que esses começassem a existir a partir da apropriação humana. Era nesse espaço

criado pela ocupação humana que Lina Bo Bardi focaria sua atenção para a produção do

projeto do centro de lazer do SESC Pompéia.

Argan8 explica que o elemento de coesão de um grupo social encontra-se numa

mesma disponibilidade dos componentes desse grupo para a realização de uma

determinada experiência. A arquiteta, ao perceber a disponibilidade daquelas pessoas

para as atividades mais singelas do convívio humano, decidiu que todas elas deveriam

ser mantidas. Como mencionado anteriormente, explica Lina Bo Bardi:

Voltei [aos galpões da fábrica] muitas vezes, aos sábados e domingos,

até fixar claramente aquelas alegres cenas populares e pensei: isto tudo

deve continuar assim, com toda esta alegria. (...) Ninguém

7 ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. 1ºed. 8ºreimpr. Ed. Companhia das Letras. São Paulo. 2002. p.273.
8 Ibdem.
transformou nada. (...) Nós apenas colocamos algumas coisinhas: um

pouco de água, uma lareira.9

No conceito de espaço, apresentado por Gropius, percebe-se que está contido

aquele princípio de inter-relação espaço-tempo. A arquiteta, ao voltar diversas vezes

para poder gravar aquelas imagens, buscava apreender as dimensões espaciais - criadas

pela apropriação humana daquele espaço - com as quais ela teria que trabalhar para

produzir os espaços vivenciais10 do SESC Pompéia.

Ferraz descreve que Lina Bo Bardi fazia a arquitetura do comportamento

humano. Para a arquiteta, segundo ele, o convívio entre os homens era o grande gerador

de tudo,11 por isso, tanto nas fotografias quanto nos desenhos de seus projetos, sempre

estavam presentes imagens da razão de sua criação arquitetônica: o ser humano. E este

não estava rigidamente representado, em situações formais, mas sim, representado em

cenas informais, descontraídas, que era como a arquiteta gostaria que seus espaços

fossem utilizados.

Aquarela, 1929. Lina Estudo para projeto Estudo para residência


ainda era adolescente do Museu do em comunidade
e já demonstrava sua Instituto Butantã. cooperativa em Própria,
atenção ao convívio 1965. SE. 1975.
entre os homens.

9 BARDI, Lina Bo, apud FERRAZ, Marcelo in Lina Bo Bardi. 2º ed. São Paulo: Inst. Lina Bo e P.M.Bardi, 1996. p.220.
10 Para Okamoto (1997, p.112), um espaço arquitetônico nada mais é do que um espaço vivencial, ou seja,
um espaço onde o ser humano encontra-se em permanente deslocamento de uma atividade para outra.
11 FERRAZ, Marcelo. AU nº 40 – fev./mar 92 .
Rossetti (2002), descreve essa vocação de Lina Bo Bardi, de humanizar seus espaços, já

no momento de sua concepção, quando se referiu aos desenhos dos projetos da

arquiteta:

O desenho parece ser o índice de reconhecimento do raciocínio que

elaborou a solução do projeto, registrando o desejo de seu uso. Lina

mostra as pessoas se encontrando, os pais junto aos filhos, as crianças

correndo e brincando, numa cidade aparentemente feliz, ou em

espaços onde parece ser possível agir de modo mais descontraído. 12

Aqui no SESC Pompéia, esse agir de modo descontraído não necessitava de

estímulos. Ele já estava presente na forma espontânea como aconteceu a apropriação

daqueles galpões, mas ainda assim, os desenhos desse projeto são repletos de cenas

como essas descritas por Rossetti.

Desenhos para o projeto


do SESC Pompéia, onde é
possível perceber a
intenção da arquiteta em
ver seus espaços sendo
utilizados de forma
humanizada e
descontraída.

12 ROSSETTI, Eduardo Pierrotti. Tensão moderno/popular em Lina Bo Bardi: nexos de


arquitetura. Dissertação de Mestrado. Salvador. 2002. Ver capítulo 02.
Idealizar espaços com a intenção de vê-los utilizados de forma humanizada,

democrática, descontraída, como reflexo de uma sociedade feliz, poderia soar como

utopia para muitos que a ouvissem defender esse tipo de arquitetura, mas argumentava

ela que “arquitetura não é so mente uma utopia, mas é o meio para se alcançar certos

resultados coletivos”.13

A crença na construção da salvação da humanidade, através da arquitetura, foi

uma das grandes bandeiras carregadas pelos arquitetos modernos. Hoje, os arquitetos

deixaram de acreditar que através de seus projetos, conseguirão salvar a humanidade.

No entanto, Lina Bo Bardi nunca perdeu a fé nessa crença modernista e o SESC

Pompéia dava-lhe a certeza de que os espaços podiam encaminhar a humanidade rumo

a um mundo socialmente coletivo e humanizado. Sendo assim, no caso específico de

Lina Bo Bardi, é possível dizer que o projeto arquitetônico tinha seu ponto de partida na

utopia, e essa, conseguia se concretizar atingindo os resultados coletivos imaginados

como utopia.

A afirmação que fizemos anteriormente sobre o espaço arquitetônico não

necessitar estar delimitado fisicamente para ser reconhecido como tal, não era uma

afirmação que eximia a necessidade de haver algum tipo de demarcação para ocorrer

uma identificação espacial. Em espaços abertos, como os do SESC Pompéia, onde as

muitas atividades acontecem em um mesmo galpão, essa demarcação torna-se

fundamental. No entanto, tal demarcação não ocorre como forma de rotular o espaço

como sendo exclusivo de uma determinada atividade, mas apenas, como forma de

organização das atividades, o que não implica na impossibilidade de uma atividade

13 Idem, BARDI apud FERRAZ. 1996. p. 276.


extrapolar seus limites e ocupar o espaço de outra, em casos eventuais.

Hertzberger (1996) disse que:

quando, ao projetar cada espaço e segmento, temos consciência do

grau de relevância da demarcação territorial (...), podemos expressar

essas diferenças pela articulação de forma, material, luz e cor, e

introduzir certo ordenamento no projeto como um todo.14

Ao trabalhar o espaço dessa forma, com demarcações conceituais, é possível

obter grandes espaços com inúmeras atividades concomitantes, sem que uma interfira

na outra e sem haver barreiras físicas para separá-los. Foi essa a forma adotada por Lina

Bo Bardi, para trabalhar as atividades contidas no maior galpão da velha fábrica, o

galpão 01.

Planta do Galpão 01 com a distribuição das atividades sem


a utilização de barreiras físicas.
01. Área de Exposições; 02. Área de Estar com lareira e espelho d’água;
03. Nichos de leitura e jogos (a única área separada por barreira física).

14 HERTZBERGER, Herman. Lições de Arquitetura. 1º ed. Editora Martins Fontes. São Paulo. 1996. p.19.
Para demarcar as diferentes atividades, a arquiteta utilizou: para a biblioteca de

lazer, as lajes de leitura e a videoteca (01) - o concreto aparente; para o grande espaço de

estar, jogos e mostras expositivas (02, 03) – a água e o fogo; para o galpão de exposições

(04) – apenas a estrutura da fábrica, sem nenhum outro elemento; e para dar unidade

visual ao grande galpão - a madeira clara do mobiliário.

01 02

03 04

Passando para o galpão das oficinas, a configuração espacial é outra. Aqui,

paredes com dois metros de altura separam as diversas oficinas (01). Contudo, não é

uma divisão radical, pois as paredes não são encerradas por tetos ou qualquer outro tipo

de cobertura. Além disso, nenhuma oficina possui porta, o que permite a todas as

pessoas que circulam por ali, observar os artesãos em seus labores.


Outra forma de contato entre os artesãos e os passantes, são os painéis e os

mostruários que apresentam a produção das oficinas (02, 03). Assim, ainda que a oficina

esteja vazia, é possível saber que tipo de trabalho é realizado ali.

01

02 03

Quanto essas paredes com altura reduzida e a não existência de portas que

separam rigidamente interior e exterior, Hertzberger, pondera o seguinte, referindo-se a

projetos residenciais que possuem as portas de entrada dividas horizontalmente ao

meio:

Essas “meia-portas” constituem um claro gesto de convite: a porta

está aberta e fechada ao mesmo tempo, isto é, suficientemente fechada

para evitar que as intenções dos que estão lá dentro fiquem

demasiadamente explícitas, mas aberta o bastante para facilitar a

conversa casual com quem está passando, o que pode levar a um


contato mais íntimo.15

A composição projetual estabelecida por Lina Bo Bardi para resolver os espaços

das oficinas (01), partiu do mesmo princípio das meia-portas de Hertzberger. As paredes

evitam que as atividades fiquem muito expostas, mas a não existência da porta, facilita o

contato de quem está passando com quem está trabalhando. O mesmo acontece com os

nichos de leitura (02) e vídeo (03) e com a conformação dos sofás (04) da área de estar

do galpão 01.

01 02

03 04

Quanto ao espaço do restaurante e choperia, este é declaradamente coletivo. Em

nenhum momento há a possibilidade de individualização, de isolamento. Isso deve-se ao

15 Ibdem, p. 35.
fato de Lina Bo Bardi, como argumenta Rossetti (2002), “pensar a sociabilidade ‘via

mesa’, (...) algo muito próprio da cultura italiana: o ato de comer como fator

aglutinador e como manifestação da cultura ”.16

Refeitório do SESC Pompéia. Refeitório da LBA – Cananéia.


1988

Aquarela feita por Lina. 1929.


Exemplo de como a mesa de
refeição é um espaço de
convivência para os italianos.

Este espaço, assim como todos os outros, também comporta diferentes usos. Nos

momentos de almoço, são as refeições as protagonistas do espaço, mas após as dezenove

horas, é o ambiente de choperia que impera, com os shows musicais compondo um

agradável espaço para ‘hora feliz’ do descanso, antes do retorno para casa.

O Teatro. Esse foi um espaço causador de muita discussão e polêmica. Lina Bo

Bardi se referia a ele como um teatro-auditorum, o que já lhe atribuía funções mais

16 Idem, ROSSETTI. Ver capítulo 02.


amplas que somente a apresentação de peças teatrais. Ela queria que o espaço fosse

utilizado para convenções, espetáculos de dança, música, cinema, forró, apresentações

teatrais, enfim, que o teatro-auditorum se transformasse um espaço aberto a qualquer

tipo de manifestação.

A distribuição das cadeiras e a própria cadeira, era outro ponto polêmico, mas

defendia ela:

Por quanto se refere à dita cadeirinha, toda de madeira e sem estofado,


é de se observar que os Autos da Idade Média eram apresentados nas
praças, o público de pé e andando. Os teatros greco-romanos não
tinham estofados, eram de pedra, ao ar livre e os espectadores
tomavam chuva, como hoje nos degraus dos estádios de futebol.

A cadeirinha de madeira do Teatro da Pompéia é apenas uma tentativa


de devolver ao teatro seu atributo de ‘distanciar e envolver’ e não
apenas de sentar-se.17

Pode-se dizer que essa seja um postura radical, mas o que não se pode negar, é

que essa seja uma atitude audaz diante de uma pesada crítica que ela tinha consciência

que a rechaçaria.

Teatro-Auditório e as
cadeiras de madeira.

17 BARDI, Lina Bo in Cidadela da Liberdade. Catálogo da exposição realizada pelo SESC Pompéia em 1999. p. 38.
Uma outra consideração ao espaço arquitetônico refere-se ao conjunto esportivo

do qual fazem parte o deque e as três torres de concreto.

Escrevendo sobre arte moderna, disse Lina Bo Bardi:

Nem todo a pobreza árida da arte moderna denuncia um

desejo místico de anulação no momento histórico, um desejo

de auto-destruição, uma renúncia à imortalidade. Muitas

expressões moderna da arte podem ser interpretadas como

uma procura de simplificação, uma volta ao princípio do

mundo com os instrumentos críticos para compreendê-lo e

práticos para forjá-lo.18

Ao escrever isso, a arquiteta se referia ao Museu de Arte Moderna da Bahia, e a

descrição cabe perfeitamente à arquitetura do conjunto esportivo do SESC Pompéia.

A pobreza árida das torres, não denuncia um desejo de renúncia ao momento

histórico. Ao contrário, naquele momento, o Brasil vivia o período de distensão da

ditadura militar e as torres participavam daquele momento, como que sinalizando às

pessoas que por São Paulo passassem, que ali encontrava-se uma metáfora do que

poderia ser a nova sociedade brasileira após o regime militar. Uma sociedade capaz de

compartilhar, de forma democrática e coletiva, espaços multiuso a partir de uma

convivência harmônica e humanizada.

Outro exemplo de participação do momento histórico, refere-se às imagens da

cidade, expostas nas paredes das quadras do edifício mais robusto – o das janelas

18 Idem, BARDI apud FERRAZ. 1996. p. 139.


rasgadas. Subirats descreve três imagens recortadas por essas irregulares molduras. Diz

ele:

No centro geométrico do grande retângulo espacial, o olho

domina três aberturas no lado poente. Os grandes olhos

mostram três espetáculos distintos e claramente delineados. Por

uma das aberturas se vê um pedaço do horizonte urbano: a

colagem de paredes, arestas, antenas, ritmos verticais que se

perdem nos limites do céu. No outro extremo, se divisa um

arvoredo exuberante. Os cinzentos luminosos e as tonalidades

pardas dos edifícios contrastam com o verde escuro e brilhante

da natureza nos trópicos. E defronte à abertura central se ergue

uma fumegante e pesada chaminé. Uma seqüência de São

Paulo.19

Somente uma pessoa altamente sensível seria capaz de sintetizar de forma tão

poética a imagem de uma cidade tão complexa como é São Paulo.

Ainda que essa imagem da cidade mude, a intenção de apresentá-la aos usuários

19 SUBIRATS, Eduardo. In Cidadela da Liberdade. p.110.


do conjunto continuará sempre atualizada. Os buracos do conjunto esportivo sempre

apresentarão fragmentos atuais da cidade complexa.

A capacidade de Lina Bo Bardi dialogar com o passado através de uma

linguagem contemporânea, tem no projeto das torres do SESC Pompéia sua exaltação.

As torres de concreto aparente, com forte teor expressionista de uma crua realidade

formal, tiveram como idéia inicial a arquitetura dos fortes coloniais brasileiros.

Forte dos Reis Magos. Natal, RN. Séc. XVI e XVII.

Forte de São
Marcelo. Salvador,
BA. Séc. XVII.

Vista das Torres do SESC Pompéia.

O deque de madeira, sobre o córrego das Águas Pretas é semelhante aos

balneários europeus anteriores à última guerra - uma alusão às férias de sua infância.
Também no deque, o espaço comporta diferentes usos. Este tanto pode ser

utilizado como platéia para os shows ao ar livre, como para ser o local do banho de sol,

uma ‘praia urbana’ para os paulistanos.

Abaixo, deque sendo utilizado como ‘praia’ urbana.


Ao lado, deque sendo usado como platéia para show.

Integração Espacial

Para encerrar a questão espacial, falta-nos estudar a integração dos espaços do

Centro de Lazer do SESC da Pompéia - entre si e com a cidade.

Disse Lina Bo Bardi sobre a integração obra / cidade: “A arquitetura é,

inevitavelmente, uma expressão do urbanismo, sendo necessário considerá -la, por isso

mesmo, como parte de um todo, do conjunto urbanístico, e não como um falso avulso”. 20

Falso avulso é o que definitivamente o SESC Pompéia não é. Aquelas

gigantescas torres estabelecem um diálogo com a cidade, uma espécie de sinalização aos

mais distantes transeuntes, um convite ao direito de lazer.

20 BARDI, Lina Bo. Contribuição Propedêutica ao Ensino da Teoria da Arquitetura. p. 25.


Ao conceber o projeto arquitetônico como parte integrante da cidade, a arquiteta

não só concebe a célula urbana, como reconhece que essa resultará em um impacto no

organismo urbano como um todo. Por isso – fazendo uso de uma referência de Rossetti

(2002) – “em Lina Bo Bardi, desenhar o projeto é desenhar a cidade . (...) A cidade

também é seu projeto e com isso, as arquiteturas de Lina se tornam referências urbanas

muito significativas em sua paisagem ”. É possível constatar essa afirmação de Rossetti

ao caminhar pela Avenida Paulista e ter os olhos atraídos pelo MASP (01), ou na região

da Pompéia onde inevitavelmente nossa atenção se voltará às torres do SESC (02).

Poderíamos ainda, citar a ladeira da Misericórdia (03) – em Salvador – onde a vista

repousa tranqüila nos projetos de recuperação patrimonial, na certeza de que, através de

Lina Bo Bardi, aquele pedaço da história da cidade está preservado.

01 02

03
Retornando ao SESC Pompéia, outras escalas de integração ocorrem nesse

espaço. Gropius, ao falar de escala humana, diz que uma obra arquitetônica pode

proporcionar diferentes níveis de relação entre o homem e a arquitetura. Tal descrição,

representa exatamente os mesmos níveis de relação estabelecidos entre a população de

São Paulo e o conjunto da Pompéia. Diz ele:

À distância, cumpre que a silhueta da obra arquitetônica seja bem


simples, de modo a ser compreendida, à primeira vista, como um
símbolo por todos, desde o observador mais primitivo, até por aquele
que passe por ela rapidamente de automóvel. Quando nos
aproximamos, distinguimos protuberâncias e reentrâncias de partes e
entalhes da construção, cujas sombras proporcionam o entendimento
da escala para essa nova distância. E quando finalmente estamos bem
em frente e não podemos mais avistar o edifício inteiro, é preciso que
o olho seja atraído por novas surpresas.21

É natural e imediata uma relação de identificação das torres como um marco, um

símbolo de São Paulo. Para os que se sentem atraídos por elas e se aproximam para

desvendá-las, a árida dureza das moles de concreto é desfeita ao descobrir que aqueles

enormes buracos são fechados por uma delicada trama de madeira, a exemplo dos

muxarabis, ou pela descoberta da existência de um lúdico espaço aquático - um grande

açude - como disse Subirats (1986), guardado no interior de uma das torres.

A integração do centro de lazer com a cidade, não se dá apenas via o conjunto

esportivo. Também a entrada, localizada junto aos galpões revitalizados, tem a função

de integrar o centro de lazer à cidade. Ela é a velha rua de integração entre os galpões da

21 GROPIUS, Walter. Bauhaus: Novarquitetura. 5º ed. Ed. Perspectiva. São Paulo. 1997. p.67.
fábrica e destes com a cidade. A antiga função da rua industrial foi preservada. Agora,

essa rua tem a função de relacionar e integrar todos os espaços do SESC Pompéia. Além

disso, ela é uma extensão da malha urbana com configuração e linguagem imagética

idêntica a uma outra rua qualquer, entretanto, ao transpor os portões da velha fábrica,

transforma-se em uma rua de lazer.

‘Rua’ de acesso ao SESC Pompéia

‘Rua’ de lazer dentro do SESC Pompéia

Pode-se dizer que o SESC Pompéia consegue sublimar as barreiras impostas por

um novo conceito urbanístico - o de produzir guetos para o homem poder se isolar

ainda mais – e demonstrar que a cidade e os espaços arquitetônicos somente têm razão

de existir quando são concebidos para proporcionar espaços de convivência humana,

independente do nível da escala de integração entre homem-homem, homem-cidade.

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