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Já que uma ambiência nos leva a refletir sobre tipos de experiência, percepção e ação em
determinados e específicos contextos, podemos dizer que sua definição está muito mais
próxima do campo empírico do que teórico. Por isso, ultrapassar as amarras que tornam as
ambiências objetos explicitados simplesmente pela junção de descobertas e conceitos
definidores tem sido, há algumas décadas, um mote. Em uma de nossas pesquisas – ao
abordarmos determinados usuários em espaços públicos do Rio de Janeiro – ouvimos um
informante dizer: “aquele lugar tem um clima indescritível” (Duarte, 2011) quando se
referia exatamente a determinado local que não podia ser descrito separadamente de suas
características sensíveis (sons, cheiros, luzes), socio-culturais e físicos (a movimentação das
pessoas, o suporte espacial). Tal declaração sobre o "clima indescritível" se aproxima da
palavra usada em inglês para traduzir ambiência: “atmosphere” que, por mais estranho que
possa parecer num primeiro momento para os lusófonos, tem, de fato, um componente de
“atmosfera” social, material e moral da qual se refere Augoyard (2004:18).
1 Este texto é a tradução da introdução intitulada: “Ambiance: pour une approche sensible de l´espace"
publicado no livro AMBIANCES URBAINES EN PARTAGE. Organizado por: THIBAUD, Jean-Paul e
DUARTE, Cristiane Rose. Genebra: Metis-Presses, 2013. pp.21-30
2 A autora agradece às revisões e sugestões das pesquisadoras do LASC Ethel Pinheiro Santana, Alice
Brasileiro e Paula Uglione.
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Ambiência: por uma ciência do olhar sensível no espaço - Cristiane Rose Duarte
(Introdução do livro AMBIANCES URBAINES EN PARTAGE. Organizado por: THIBAUD, J-P e DUARTE, C.R.
Genebra: Metis-Presses, 2013. pp.21-30)
Ainda, uma vez que a dimensão sensível é inerente à ambiência, torna-se impossível estudá-
la sem considerar a presença do corpo: é o corpo que sente; sem ele não há percepção nem
tampouco movimento a ser considerado.
Dessa forma, compreende-se que os processos de apropriação do local urbano passam pelo
reconhecimento da realidade sensorial das ambiências da cidade. Sendo o corpo o aparelho
sensível que capta a percepção do mundo com o qual interagimos, diríamos que este
reconhecimento se dá não apenas quando o corpo penetra na a ambiência urbana mas,
principalmente, quando esta ambiência penetra nosso corpo. Ouvir sons distintos que
caracterizam locais urbanos, sentir seus cheiros, sua luz, suas cores, suas diferenças de
temperatura e de velocidade do vento (e do tempo) batendo na pele é uma maneira de
situar o corpo nessa atmosfera urbana. Ter consciência dessa atmosfera e reconhecê-la em
seu suporte espacial propicia a experiência e a interação na ambiência.
De fato, como lembra Amphoux (2004: 51), a ambiência permite a passagem da dimensão
sensível para a dimensão cognitiva e Thibaud (Ibidem) ressalta que o fato de uma
ambiência ser considerada agradável (ou desagradável) reside na sua capacidade de ser
reconhecida. Tal reconhecimento, em nosso entender, nasce de um processo desencadeado
pela memória – e consequentemente pela fantasia, pelo desejo, pelo processo complexo de
significações - dos usuários na presença de determinadas ambiências. Assim, dizer que a
ambiência desperta familiaridade nas pessoas significa dizer que a memória desses usuários
foi capaz de “trabalhar”, atribuindo significados ao lugar a partir de seu caráter
multisensorial e íntimo dos registros previamente adquiridos por seus praticantes.
Augoyard (2007:33) ressalta que a Ambiência é algo muito fácil de sentir, ao mesmo tempo
em que explicá-la é o que há de mais difícil. Com base nessas considerações, o laboratório
de pesquisa LASC3, da UFRJ, se propôs a averiguar a noção do conceito de Ambiência
junto à população urbana, procurando se afastar das elaborações de teóricos e
pesquisadores em geral. O objetivo dessa investigação foi o de compreender o
entendimento dos reais praticantes da cidade sobre essa atmosfera que tem ocupado lugar
na base de suas pesquisas. Procurava-se, também, identificar algumas “ambiências
notáveis”, a fim de subsidiar a análise dos atributos que tornariam alguns locais mais
reconhecíveis por suas ambiências.
As respostas a esta pesquisa demonstraram que as pessoas em geral têm uma noção do que
seja Ambiência e, mesmo que não verbalizem literalmente os atributos inerentes às
ambiências, elas aceitam como coerente a explicação do conceito, demonstrando que há
uma visão global da reunião de sensações e atributos físicos do lugar (como entidades
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Laboratório de Pesquisa “Arquitetura, Subjetividade e Cultura”, vinculado ao Programa de pós-graduação em
Arquitetura da FAU/Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Ambiência: por uma ciência do olhar sensível no espaço - Cristiane Rose Duarte
(Introdução do livro AMBIANCES URBAINES EN PARTAGE. Organizado por: THIBAUD, J-P e DUARTE, C.R.
Genebra: Metis-Presses, 2013. pp.21-30)
inseparáveis). O mais interessante é que a maioria dos entrevistados não apenas concordava
com as explanações fornecidas pelo pesquisador mas, de algum modo, lhes parecia que a
explicação para o conceito de Ambiência poderia ser ainda mais amplo: -“É isso, mesmo.
Concordo... Mas eu acho que é um pouco mais, eu sinto que algumas coisas não
conseguem ser ditas” (F., 29 anos).
Após esse primeiro contato, pediu-se que os informantes apontassem alguns locais da
região central da cidade do Rio de Janeiro que desejassem comentar a partir de suas
Ambiências. Ao fazer tais perguntas, tinha-se interesse em verificar a repetição de
determinados atributos desses lugares, construindo, desta forma, um panorama coeso para
a identificação de Ambiências notáveis na cidade.
Se, como dissemos mais acima, o corpo é o limite físico do “eu”, podemos concordar que é
também do corpo que emerge essa relação de fricção, de reconhecimento do que está além
de si mesmo: o reconhecimento do Outro. Essa alteridade é uma dimensão importante do
estudo das ambiências. Ter consciência da existência do Outro – aqui compreendido não
apenas como o grupo de pessoas com quem compartilhamos o ambiente urbano, mas
como a própria Ambiência em si mesma – é reconhecer o seu próprio lugar no espaço
(ético e estético) do mundo urbano.
Rapoport (1969) lembra que, no estudo das relações culturais que as pessoas estabelecem
com o espaço, entender quais atividades as pessoas fazem é menos importante do que
estudar como elas realizam essas atividades. Da mesma forma, a Ambiência se referencia
muito mais com o "como" da ação do que propriamente com o "quê" da atividade. Isso
significa dizer que a Ambiência não é objeto da percepção: ela estabelece os termos da
percepção, afetando todos os tipos de ação.
Podemos dizer, então, que a Ambiência evoca nossa interpretação subjetiva da experiência
coletiva, da consciência de fazer parte de um lugar urbano cujas sensações possuem
significados compartilhados pelos seus usuários. Evidencia-se, assim, uma clara
Ambiência: por uma ciência do olhar sensível no espaço - Cristiane Rose Duarte
(Introdução do livro AMBIANCES URBAINES EN PARTAGE. Organizado por: THIBAUD, J-P e DUARTE, C.R.
Genebra: Metis-Presses, 2013. pp.21-30)
“encarnação” da subjetividade, o que faz emergir a ideia de que uma ambiência se faz
reconhecer na coletividade, apesar de se representar na individualidade.
Isto significa dizer que a experiência dos usuários precisa ocupar lugar de maior destaque
em todas as formas de gestão do espaço público urbano. Concordamos com Augoyard
quando lamenta que os planejadores do espaço urbano ainda se guiem por um tecnicismo
redutor, desconhecendo muitas vezes esse "extraordinário poder de induzir um certo
clima a partir das dimensões não-visíveis do espaço construído"(2007:35).
laboratório foram responsáveis pela difusão de uma série de aspectos a partir dos quais se
tornou possível classificar as ambiências, tais como, por exemplo, a possibilidade de
interação entre a percepção, as sensações lumínicas e sonoras, o afeto, a ação dos usuários e
as representações sociais que, por seu compartilhamento, permitem o reconhecimento do
Lugar5.
Foi também por iniciativa do CRESSON que se estabeleceu a rede internacional de pesquisa
"ambiances.net", que tem buscado unir estudiosos, planejadores e laboratórios de pesquisa
de vários países do mundo em torno desse campo do saber. Atualmente, fazem parte da
rede algumas equipes ligadas a universidades, centros de pesquisa e organismos de
planejamento do espaço urbano originários de diversos países, tais como França (8 grupos
de pesquisa); Belgica (2); Canadá (3); Alemanha(1); Tunísia (1); EUA (1); Brasil (3), além de
um grande número de pesquisadores individuais.
De igual modo, cremos que uma das maiores contribuições do Colóquio “Ambiências
Compartilhadas” tenha sido o de contemplar e funcionalizar alguns workshops urbanos
intitulados „desestabilizações‟ como forma de produzir um compartilhamento de
10 www.labeurb.unicamp.br
Ambiência: por uma ciência do olhar sensível no espaço - Cristiane Rose Duarte
(Introdução do livro AMBIANCES URBAINES EN PARTAGE. Organizado por: THIBAUD, J-P e DUARTE, C.R.
Genebra: Metis-Presses, 2013. pp.21-30)
experiências por todos os grupos envolvidos e de, sem dúvida, experimentar a cidade.
Assumindo que somos corpo-movimento-ação e nos deslocamos nos espaços
democráticos que habitam nossos sonhos e desejos, o desenvolvimento de três workshops
pautados na experiência das cidades trouxe à tona a totalidade empreendida pelas sensações
corporificadas em uma ambiência, pois as ambiências vividas se referem ao modo como a
cidade é habitada, ao desejo de nela estar, a ela pertencer e de partilhar os lugares.
Assim, podemos concluir que apesar de vivermos cada vez mais o paradoxo de identidades
incorporadas no espaço versus realidades espaciais virtuais, buscamos as imagens de um
espaço que nos acolha e de ambientes urbanos concretos, físicos e visíveis, capazes de nos
comover e conferir prazer ao nosso caminhar.
Este livro apresenta algumas dessas ideias e temos certeza da importância dos textos aqui
apresentados para a consolidação dos estudos sobre as Ambiências, que, temos
consciência, ainda está longe se esgotar. Seu desenvolvimento e futuros desdobramentos
apontam para novas maneiras de se intervir no espaço urbano, de forma mais holística,
enriquecida com outras dimensões, não apenas físicas e sensitivas, mas afetivas e
emocionais, contribuindo para a criação de espaços e cidades mais coerentes com as
aspirações de quem o habita.
Bibliografia
AMPHOUX, Pascal ; THIBAUD, Jean-Paul ; CHELKOFF, Grégoire. Ambiances en Débats. Bernin :
Editions A la Croisée, 2004.
AUGOYARD, Jean-François. Vers une esthétique des Ambiance. In : AMPHOUX, Pascal; THIBAUD, Jean-Paul
et CHELKOFF, Grégoire. Ambiances en Débat. Bernin : À La Croisée, 2004 pp. 07-30
AUGOYARD, Jean-François. A comme Ambiance(s). In: Les Cahiers de la Recherche Architecturale et Urbaine.
nos. 20/21 - mars 2007. p. 33-37
CAHIERS DE LA RECHERCHE ARCHITECTURALE (LES) - "Ambiances Architecturales et Urbaines".
42/43. Ed. Parenthèses, 1998
DUARTE, Cristiane Rose et all. « Exploiter les ambiances: dimensions et possibilites methodologiques pour la recherche en
architecture » in : Actes du colloque Faire une Ambiance. Cresson / ENSA Grenoble, 2008 - 415-422 -
disponível em: www.ambiances.net/index.php/fr/colloques/160-faire-une-ambiance
DUARTE, Cristiane Rose. Explorando Ambiências: Caminhos de Pesquisa e Possibilidades
Metodológicas. Relatório conclusivo da pesquisa CNPq, 2011
RAPOPORT, Amos. House, Form and Culture. London: Prentice-Hall Inc, 1969
THIBAUD, Jean-Paul. De la Qualité Diffuse aux Ambiances Situées. Paris: Editions de l'Ehess, 2004.
Agradecimentos