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Arquitetura, entre arquitetos e comuns

Ricardo Lopes Stanzani


Arquitetura, entre arquitetos e comuns

Ricardo Lopes Stanzani


Taste is not only a part and an index of morality – it is the
only morality. Tell me what you like, and I’ll tell you what
you are.

John Ruskin
6
Considerações

As pessoas frequentemente sabem se situar numa localida-


de, embora sejam incapazes de descrever as distâncias ou
direções entre as partes diferentes dessa localidade ou entre
ela e outras localidades familiares. Nosso conhecimento co-
tidiano da geografia de nossas ideias é um caso semelhante.

Gilbert Ryle

Todos possuímos, da poesia, da pintura, da música, etc.,


uma experiência tal que, se não somos capazes de dizer,
fundamentando-nos nela, o que essas coisas são, somos ao
menos capazes de reconhecer quando nos dizem que elas
são algo que de fato não são.
7
Richard Wollheim

Este trabalho situa-se entre um ensaio acadêmico e um texto


de escrita pessoal. Aproveitei-me grandemente da liberdade que
a FAU concede a seus alunos no desenvolvimento do trabalho
final de graduação para propor como produto um texto híbrido,
que não tivesse lugar certo dentre as categorias mais comuns de
tfgs (artístico, projetivo, teórico, etc.). Entendo que parte disto se
deve à natureza de certos temas e ideias sobre os quais pretendi
me debruçar, tão específicos que requereram arriscar hipóteses
a partir de observações pessoais. Sendo um trabalho de conclu-
são de curso, tentei entender essa condição como configurado-
ra do próprio trabalho. Não haveria de ser mais um projeto de
arquitetura, como inicialmente ambicionado, que dessa forma
teria o caráter de comprovação de habilidade projetiva, funcio-
nando como justificativa ao merecimento do diploma. Pareceu
mais pertinente a servir como um balanço final do curso, um
momento para refletir sobre a própria formação e dar vazão a
ideias surgidas a respeito da arquitetura que de outro modo per-
maneceria no âmbito pessoal.

Como na citação de Ryle, o que tentei durante este ano foi tatear
meu ideário a respeito da arquitetura de modo a mapeá-lo neste
trabalho. É inerente a isso que essa “tradução” se dê de forma
problemática. Não apenas por – obviamente – não ter ideias co-
erentes em absoluto, nem tão somente pela própria inabilidade
e incultura daquele que escreve, mas também pela insuperável
insuficiência das palavras. Feitas essas considerações, constato
que obtive algum sucesso ao escrever sobre tais ideias na forma
como elas aparecem para mim.

O trabalho pode ser resumido como uma justificativa de gosto:


8 escrevo com a intenção de justificar porque gosto de tais arqui-
teturas e porque não gosto de outras arquiteturas; sobre o que
gostaria de construir e sobre o que não construirei; que parâme-
tros considero ao avaliar e produzir arquitetura. O gosto aqui
deve ser compreendido tal como coloca o filósofo britânico Ro-
ger Scruton: um tipo de apreciação que é subjetiva e objetiva ao
mesmo tempo. Scruton acrescenta ainda que a perspectiva esté-
tica é inseparável da perspectiva global de mundo e, portanto,
acompanha as convicções morais e religiosas. Sendo assim, ao
tratar sobre o que gosto, este trabalho fala sobre o que aprendi
do mundo durante meu período na FAU.
Problematização

Durante uma de suas aulas o professor Jonas Malaco comen-


tava sobre a escada de um duplex projetado por Niemeyer: “É
tão estreita e de curva tão fechada que não é possível subir com
um colchão para os quartos”. O comentário me incomodou. Por
criticar um arquiteto de que gostava muito na época, mas mais
do que isso, por fazer a crítica de um projeto a partir de um
fato vulgar. Considerando existir diferenças entre arquitetura e
simples construções, entendia que críticas como essa eram mais
apropriadas ao segundo tipo, e que quando direcionadas ao do
primeiro tipo demonstravam certa ignorância do crítico a res-
peito do papel e lugar da arquitetura.

Minha visão era de que as preocupações e temas da arquite-


tura estavam muito acima desses problemas cotidianos e que, 9
portanto, assim como os extremos de frio e calor da FAU, nós
enquanto habitantes do edifício deveríamos dispor de alguma
tolerância; alguma devoção. Deveríamos nos manter comple-
tamente passivos perante a arquitetura, a distinção hierárquica
entre quem produzia e quem “desfrutava” era clara. Se por acaso
algum incômodo na rotina diária causado pela arquitetura fosse
consequência de uma atitude aparentemente arbitrária ou im-
pensada do arquiteto, caberia ao próprio habitante considerar
sua posição privilegiada e se resignar: que se esforce a compre-
ender as causas em uma outra esfera. A arquitetura tinha tom
de dádiva.

Por outro lado pululavam dúvidas, pois reconhecia que os


“grandes temas” que conformavam a arquitetura, foco de aten-
ção e trabalho por parte dos arquitetos, nem sempre eram com-
preensíveis ou legíveis a quem vivenciava de fato a arquitetura.
E então, apesar de não ter feito nenhuma consideração muito
distante de certas abordagens a respeito da etiqueta requerida
da audiência perante arquitetos e artistas em geral, a verdade era
que começava a parecer que a posição privilegiada dos usuários,
tal como entendia, era vista pelos arquitetos como uma posição
menor, quase prescindível.

Isso foi se esclarecendo com o progredir das disciplinas de pro-


jeto, na discrepância entre discurso e prática e entre prática e
recepção. As divergências entre as prioridades dos arquitetos e
as dos usuários pareciam cada vez mais gritantes à medida que
começava a entender o habitar como questão central da arqui-
tetura. A partir disso a relação desbalanceada entre arquiteto e
público pareceu estar invertida.

Em uma outra aula o professor Jonas a perspectiva realmente se


10 inverteu: segundo seu relato, em uma visita à residência Butantã
do arquiteto Paulo Mendes da Rocha, enquanto esta ainda era
sua própria morada, ele se surpreendera ao ver uma barraca de
acampar instalada no quarto do arquiteto. O usuário coincidia
com o autor da obra, o que potencializava o absurdo da situa-
ção. O arquiteto admitia a contragosto a inabitabilidade de sua
própria obra.

Ficou evidente que existia uma grande assimetria no entendi-


mento entre arquiteto e habitante sobre o que é e o que deveria
proporcionar a arquitetura. Em um primeiro momento pareceu
pertinente imaginar um entendimento comum apropriado. Um
segundo passo seria imaginar se essa busca por uma relação me-
nos hierarquizada entre arquiteto e público caracterizaria algu-
ma linguagem de arquitetura específica, ou se ao menos deline-
aria preceitos de desenho.
O significado comum da arquitetura

A partida da questão deve seguir à clarificação do que relaciona


arquiteto e usuário e qual é a expectativa entre as duas partes.
A respeito disso o combativo arquiteto italiano Giorgio Grassi
explicita sua concepção de arquitetura de forma elementar (mas
não tão inocente) ao afirmar que:

Estamos falando sobre obra, sobre matéria concreta – não


sobre ideias, imagens fantásticas, ou assuntos polêmicos. A
casa Schrörder e a Villa Savoye estão lá; elas não são mani-
festos ou modelos ideais – elas são “casas”, projetadas para
serem usadas; elas estão conectadas com a vida cotidiana.
E mesmo aquilo que ainda não foi construído mas que con-
tinua apenas em projeto deve ser imaginado nos termos de
sua completude, já que essa é a única raison d’être da Ar- 11
quitetura. (GRASSI, 1998, p. 391, tradução do autor)

Apesar de o senso comum relacionar diretamente arquitetura


a uma obra concreta, é frequente que esse entendimento não
coincida com as acepções do termo por parte dos arquitetos. A
declaração de Grassi revela uma posição essencialmente anti-
-idealista não somente em relação à arquitetura per se, mas em
relação às palavras e à linguagem em geral. Seu simplismo ilus-
tra certo desinteresse em buscar um sentido erudito, pretensa-
mente mais verdadeiro, do que seria a arquitetura. Richard Ror-
ty, filósofo da tradição pragmatista norte-americana, pode ajuda
a esclarecer tal posição anti-idealista:

A história positivista da cultura vê a linguagem como algo


que se molda gradativamente em volta dos contornos do
mundo físico. A história romântica da cultura a vê como
algo que aos poucos leva o Espírito à consciência de si. A
história nietzschiana da cultura, assim como a filosofia da-
vidsoniana da linguagem, vê a linguagem como hoje ve-
mos a evolução: como novas formas de vida que liquidam
constantemente as formas antigas - não para cumprir um
propósito superior, mas às cegas. Enquanto o positivista
vê Galileu como alguém que faz uma descoberta - que fi-
nalmente descobre as palavras de que se necessitava para
enquadrar adequadamente o mundo, palavras que teriam
faltado a Aristóteles , o davidsoniano o vê como alguém
que esbarrou num instrumento que por acaso funcionou
melhor, para alguns fins, do que qualquer instrumento an-
terior. Depois de descobrir o que era possível fazer com um
vocabulário galileano, ninguém mais se interessou muito
por as coisas que costumavam ser feitas (e que os tomistas
julgavam que deviam continuar a ser feitas) com um voca-
12 bulário aristotélico. (RORTY, 2007 p. 51)

E mais a frente:

Abandonar a ideia das línguas como representações e ser


rigorosamente wittgensteinianos em nossa abordagem da
linguagem equivaleria a desdivinizar o mundo. Somente se
o fizermos poderemos aceitar em sua plenitude a tese que
apresentei antes - a tese de que, já que a verdade é uma pro-
priedade das frases, já que a existência das frases depende
de vocabulários e já que os vocabulários são feitos por se-
res humanos, o mesmo se dá com as verdades. Enquanto
acharmos que “o mundo” designa algo que devemos respei-
tar e enfrentar, algo semelhante a uma pessoa, no sentido
de ter uma descrição predileta de si mesmo, insistiremos em
que qualquer descrição filosófica da verdade salve a “in-
tuição” de que a verdade está “aí”. Essa intuição equivale
ao vago sentimento de que seria arrogância de nossa parte
abandonar a linguagem tradicional do “respeito aos fatos”
e da “objetividade” - de que seria arriscado e blasfemo não
ver o cientista (ou o filósofo, ou o poeta, ou alguém) como
detentor de uma função sacerdotal, como aquele que nos
põe em contato com um reino que transcende o humano.
(RORTY, 2007, p. 53)

Essa perspectiva coaduna-se com o entendimento de filósofos


como Gilbert Ryle, cuja tradição conhecida como “filosofia da
linguagem comum” atenta para os significados das palavras no
seu uso ordinário e não na forma “pura” - como certos estudos
semióticos pretendiam. Valer-se disso é reconhecer a linguagem
em seu horizonte social: as palavras não existem por si, mas no
uso que fazemos delas. Relativiza-se assim a importância da
erudição perante o senso comum sobre o que seria o apropriado
para a arquitetura. Grassi afirma seu sentido sem medo do senso 13
comum e sim o tomando para si. Ao nos afastarmos de um sig-
nificado mais acadêmico para a arquitetura, desnaturalizamos
o vínculo entre a ideia de arquitetura e a narrativa oficial da ar-
quitetura, este sim o espectro que círculos de arquitetos tomam
como a própria arquitetura.

O círculo erudito da arquitetura, cada vez mais divergente do


senso comum, ganha espaço quando a busca incessante por
perspectivas que decifrassem as regras por trás das linguagens
(a “linguistic turn” da segunda metade do século XX) fomen-
tou o aparecimento de discussões que desembocariam no pós-
-modernismo arquitetônico. É curioso notar que muitas das
pesquisas nesse sentido diziam tentar fazer a arquitetura falar
novamente. Isso não apenas na forma resultante dos edifícios,
concebidos como “texto” ou “linguagem” cujos elementos cons-
titutivos seriam “palavras” em sua equivalente material, mas
principalmente nos textos dos arquitetos: muitos deles preten-
diam partir do “desvelamento de regras perenes”, que até então
estariam conformando silenciosamente a arquitetura, para pro-
por uma renovação disciplinar, ressignificando a arquitetura e
seu vocabulário.

Peter Eisenman talvez seja o mais radical nesse sentido: em sua


prolífica obra escrita ele se propõe teorizar uma nova perspec-
tiva para a arquitetura, pretendendo deslocá-la de seu sentido
habitual. Apesar de seus posicionamentos polêmicos serem in-
constantes e muitas vezes contraditórios, uma constante em seu
trabalho foi de, apesar de toda a sua radicalidade no âmbito da
disciplina, nunca ter tido interesse em se situar fora dela, forçan-
do dessa forma os limites do que seria o ofício de um arquiteto.
Eisenman enquanto símbolo do arquiteto quixotesco que busca a
reinvenção da arquitetura na tentativa de substituir a arquitetura
14 “normal” – no sentido de ter a arquitetura moderna se tornado a
norma – se presta a ser o mais adequado como estudo de caso. É
uma atitude de afirmação de um sentido pessoal perante o senso
comum, seja do público ou dos arquitetos, na pretensão de mudar
o que de fato a arquitetura significa. É esclarecedora a introdução
do crítico Jeffrey Kipnis para uma de suas coletâneas de textos:

Eisenman nunca esteve tão vívido em um seminário da


graduação quanto na apresentação que fez de momentos
chave da arquitetura não apenas como um passo criati-
vo, mas como um ato de heresia, do Alberti sintetizando o
frontão de um templo sagrado com um profano arco triun-
fal até a expulsão de Tony Garnier da Ecole des Beaux-Arts
por deslocar intencionalmente uma coluna. Aqui o termo
“heresia” é usado intencionalmente; sua característica es-
sencial é que ocorre com o horizonte da ortodoxia e admi-
te em princípio um propósito maior, mas desafiando um
de seus dogmas.. (...) Nesses termos, Eisenman é o próprio
herético da Arquitetura, um sumo sacerdote dedicado a de-
safiar um dogma após o outro, mas nunca tão fortemente
a ponto de negar a sua fé. (EISENMAN, 2007, p. 11, tra-
dução do autor)

Em um sentido amplo, Eisenman comete heresia ao não con-


siderar o que a arquitetura significa em geral ao mesmo tempo
em que não desacredita o termo. Ele se esforça para que suas
obras sejam reconhecidas enquanto arquitetura e ele enquan-
to arquiteto; não quer de modo algum ser visto como artista
plástico ou escultor. Da mesma forma que a vanguarda artística
do início do século XX se aproveitou de mecanismos da insti-
tuição arte para promover a sua própria arte (e/ou a destruição
da instituição), Eisenman tenta ressignificar a arquitetura por
meio de sua autodeclarada arquitetura. A lógica é similar a dos
ready-made de Duchamp: como se fossem detentores do toque 15
de Midas moderno, o artista e a instituição envolvida têm o
poder de transformar coisas ordinárias em arte. Talvez reconhe-
cendo a necessidade de uma confirmação institucional sobre
seu próprio trabalho, não é surpreendente que Eisenman tenha
se empenhado enormemente como agitador cultural, criando
suas próprias instituições validadoras, fundando o IAUS e suas
diversas revistas.

Em um de seus textos mais paradigmáticos, O fim do clássico:


o fim do começo, o fim do fim, Eisenman empreita uma ousada
tentativa de apresentar uma interpretação libertadora para a ar-
quitetura no contexto da época. Ele explicita seus alvos: quais
seriam as ficções que ao longo da história reprimiram a criação e
o vocabulário arquitetônico. Para ele a criação arquitetônica te-
ria infinitas possibilidades quando liberta de tais ficções – e aqui
temos a ilustração da ideia de pesquisa eisenmaniana como uma
ininterrupta derrubada de dogmas, tal como vê Kipnis.
São três as ficções apresentadas: a representação, a razão e a his-
tória. Ao longo da história da arquitetura essas seriam as balizas
constantes do que ele chama de “arquitetura clássica” e que te-
riam servido como parâmetros para produção e valoração dos
projetos de arquitetura desde Vitrúvio até a arquitetura moder-
na – que, reconhece ele, apesar de pretender renovar a cultura
arquitetônica acabou por ater-se às ficções, mantendo-se em um
continuum histórico. Eisenman almeja uma arquitetura de fato
moderna (não-clássica), que já não teria essas três exteriorida-
des como balizas para sua valoração; antes seria uma arquitetura
valorada por si, sem objetivar representar nada.

Em relação à ficção da história seu próprio projeto de pesquisa


levanta contradições, quando diz:

16 Dizer que uma arquitetura “não-clássica” é necessária, que


é uma proposta compatível com a nova era ou com a ruptu-
ra na continuidade histórica, é criar um outro argumento
do Zeitgeist. O “não-clássico” simplesmente propõe o fim
do predomínio dos valores clássicos a fim de revelar outros
valores. Não propõe um novo valor, ou um novo Zeitgeist,
mas tão-somente uma nova condição: a de ler a arquite-
tura como um texto. Não há dúvida, porém, de que essa
ideia de leitura da arquitetura parte de uma consideração
do Zeitgeist: de que atualmente os signos clássicos já não
são significativos e se tornaram não mais que repetições.
Assim, não é que uma arquitetura “não-clássica” seja in-
diferente à percepção do caráter inerentemente fechado do
mundo, mas ela não se propõe representá-lo. (NESBITT,
2006, p. 242)

Apesar do texto datar de 1984, o posicionamento crítico de ar-


quitetos em relação a ideia de Zeitgeist já estava colocada há
algum tempo. Em 1975, na introdução do livro Five Architects
(agrupamento de arquitetos feito para uma exposição da qual
Peter Eisenman fez parte), Collin Rowe escreve criticando a po-
sição pró-moderna de Reyner Banham, a partir de uma citação
deste:

‘Arquitetura moderna não é mais do que o resultado da


época; Esta época está criando um estilo que não é um esti-
lo, pois esse estilo está sendo moldado pela acumulação de
reações objetivas a eventos exteriores; e por isso, este estilo
é autêntico, válido, puro e limpo, renovador e perpetuador
de si mesmo.’

É difícil entender como a paixão pôde e ainda pode girar


em torno de uma afirmação como essa; até que reconhe-
çamos que o que temos aqui é a fusão de duas tendências 17
de pensamento poderosas do século dezenove. Em variá-
vel grau de mascaramento, temos presente “ciência” e “his-
tória. Estamos lidando com o conceito positivista de fato
(sem nenhuma reserva epistemológica sobre o que constitui
um fato) e com a concepção hegeliana de destino manifes-
to (sem nenhuma dúvida com a realidade substancial do
inexorável Zeigeist) e então nós temos o entendimento im-
plícito que quando esses dois conceitos são aliados, quando
o arquiteto reconhece apenas “fatos” e daí, respaldado pela
ciência, torna-se instrumento da “história”, a situação irá
invariavelmente caminhará de forma que todos os proble-
mas se resolvam. (...) Deduz-se que a arquitetura é ape-
nas moralmente aceitável assim que o arquiteto suprima
sua individualidade, seu temperamento, seu gosto e sua
tradição cultural; e nesse sentido, ao menos que ele esteja
disposto a “objetividade” e a um estado mental “científico”,
tudo o que seu trabalho poderá fazer é obstruir o inexorá-
vel desdobrar de mudanças e portanto, presumivelmente,
retardar o progresso da humanidade. (...) No final o que
é entendido como teoria da arquitetura moderna se reduz
a pouco mais do que uma coleção de mitos escapistas que
funcionam para aliviar o arquiteto da responsabilidade so-
bre suas escolhas assim como para convencê-lo de que suas
decisões não são tão propriamente dele, mas imanentes do
processo científico, histórico ou social. (ROWE, 1975, p. 5)

Pode-se compreender as duras críticas à posição tardiamente


moderna de Banham como uma crítica ao modernismo como
um todo, em especial à ideia de Zeitgeist, ideia fundante do mo-
vimento moderno. Ainda mais profunda e radical é a crítica de
David Watkin, a começar pelo título de seu livro publicado em
1977: Morality and Architecture – The Development of a theme
18 in architectural history and theory from de the gothic revival to
the modern movement. O objetivo do autor é desmontar a ideia
“romântica” e “coletivamente populista” de que “o arquiteto não
tem imaginação ou desejos por si próprio, mas é meramente a
‘expressão’ de um ‘inconsciente coletivo’”(WATKIN, 1977, p. 3).
Para isso ataca teóricos que serviram de base para a construção
do movimento moderno como Pugin, Viollet-le-Duc, Lethaby e
posteriormente Pevsner, Giedion dentre outros. A crítica parte
da interpretação naturalista sobre a arquitetura gótica, descri-
ta por diversos estudiosos como uma expressão mais natural,
espontânea, livre de elementos e princípios artificiais que base-
ariam a arquitetura clássica; enfim, era a proposta “não de um
estilo, mas de um princípio” (WATKIN, 1977, p. 13). Importante
e curiosa é a última sentença do livro:

Nossa conclusão é que uma crença arte-histórica na ideia


cada vez mais dominante do Zeitgeist, combinado com
uma ênfase historicista no progresso e a necessária superio-
ridade da novidade, tornou-se perigosa ao ponto de minar,
por um lado, nossa apreciação sobre o gênio imaginativo
de um indivíduo, e por outro, a importância da tradição
artística. (WATKIN, 1977, p. 115, tradução do autor)

Aqui fica explícito o paradoxo em que se insere a pretensão de


Eisenman na produção de uma arquitetura “não-clássica”, me-
nos por sua “nova condição” ser a de “ler a arquitetura como um
texto” – curiosamente tão ao gosto da época em que se insere
– e mais por, em sua busca por “revelar outros valores” – sem
a pretensão de construir um outro sentido para a arquitetura,
mas antes de desconstruir seus sentidos – acaba por afirmar, sem
querer fazê-lo, a superioridade da novidade.

Já não pretendendo produzir uma arquitetura que responda a


um suposto fato lógico e evidente, ou que expresse a vontade do 19
coletivo ou da época, o arquiteto ganha autonomia para definir
seus parâmetros valorativos sem conceder espaço a qualquer
crítica normativa. Sai de cena a busca por uma arquitetura co-
letiva, padronizada, social ou anônima e entra a valorização do
caráter pessoal e excepcional de cada edifício. Nessa perspectiva
o arquiteto ganha poder e o gênio por trás de cada obra torna-
-se tão ou até mais importante que a própria obra. Precisamente
sobre Eisenman, Rafael Moneo escreve:

Peter Eisenman deseja que seu trabalho seja entendido


como a sua biografia. Por isso, ainda que brevemente, se-
remos obrigados a aludir às suas marcas biográficas. Não
acredito que sua obra possa ser estudada sem que sejamos
atraídos pelo magnetismo exercido por sua pessoa: a perso-
nagem, o inventor da arquitetura, é, no caso de Peter Eisen-
man, tão importante quanto a própria arquitetura. Ambos
são inseparáveis. (MONEO, 2008, p. 137)
Apesar de Moneo se referir desse modo ao caso de Peter Eisen-
man, não são poucos os arquitetos (modernos e pós-modernos)
que podem ser enquadrados nessa relação intrínseca entre bio-
grafia e obra. Cabe então investigar de que modo a figura do
arquiteto consegue se inserir no âmbito artístico ao ponto de ser
visto como “tão importante quanto a própria arquitetura”.

A arquitetura, diferentemente das outras artes, é, por excelência,


imóvel. A literatura, por exemplo, é um caso completamente dis-
tinto, já que sua dependência de um suporte físico é fundamen-
tal mas não especificamente condicionadora: sobre uma obra
literária qualquer não existe uma versão original cujas outras
cópias são consideradas de importância ou qualidade menor;
todas as cópias são consideradas como edições de mesma qua-
lidade. E todas são a obra. Nessa relação específica da literatura
20 com seu suporte devemos entender que não há preponderância
entre conteúdo e forma ou vice-e-versa, mas antes uma coin-
cidência total entre “partes”, uma formatura una. Outras artes,
como o teatro ou a música também existe essa relação específi-
ca, característica que permite grandemente a circulação/repro-
dução das obras sem nenhuma perda qualitativa.1

A pintura é, assim como a escultura e arquitetura, vinculada


a um material específico. No entanto pinturas e esculturas em
geral são móveis, permitindo a sua circulação entre institui-
ções do mundo inteiro, o que amplifica seu potencial público.
De qualquer modo, para além da circulação da matéria em si,
a fotografia de uma pintura pode, grosso modo, ser suficiente
para a experiência de seu caráter pictórico. Estando a arquitetu-

1 Richard Wollheim discute longamente essa relação entre a obra ideal e o material
percorrendo as especificidades de cada arte em WOLLHEIM, 1994.
ra essencialmente vinculada ao local em que se insere, mesmo
as pretensas fotografias documentais de arquitetura produzem
distorções de leitura que as tornam peças especialmente autô-
nomas em relação ao objeto fotografado. A circulação de arqui-
tetura por meio de fotografias pode ser considerada ineficiente.
A vivência da edificação in loco é intrinsicamente necessária à
experiência da arquitetura, já que a arquitetura não apenas diz
respeito à relação do objeto arquitetônico com seu contexto de
inserção, mas também entre objeto arquitetônico e corpo.

No início do século XX, a mais antiga arte de massa (ARANTES,


2000, p. 20) começa a perder voz perante o apogeu da circulação
de imagens, tão mais propícia às outras artes. Nesse contexto
não é de se estranhar que um arquiteto como Le Corbusier te-
nha sido o autor de 54 livros. A angústia do arquiteto perante a
inércia e mudez de sua obra construída o pode colaborar à ur- 21
gência de sua persona: é necessário estar presente onde quer que
seja para se expressar, dar vazão a suas pretensões arquitetôni-
cas, cuja apreciação se mantém restrita a um ínfimo público (se
comparado com o número potencial de seus leitores ou alunos).

Portanto nenhuma surpresa sobre os arquitetos estarem inves-


tindo cada vez mais tempo em publicizar suas obras. Nessa ânsia
por voz e espaço, Bruce Steele em seu posfácio para Supercrítico,
em que boa parte dos seus cem pontos a respeito de Koolhaas e
Eisenman tratam precisamente sobre a produção escrita de am-
bos, chega a afirmar que:

Peter Eisenman e Rem Koolhaas escolheram iniciar suas


carreiras arquitetônicas por meio da escrita, não da cons-
trução. Para eles, as palavras se tornaram um sítio arqui-
tetônico para a invenção vitalícia. (EISENMAN, 2013 p.
177)
E de fato como muitas vezes arquitetos se referem à própria pro-
dução escrita enquanto produção de arquitetura, em total ali-
nhamento com a atitude de Eisenman quando ele, por exemplo,
insiste que suas maquetes de papelão são arquitetura (cardboard
architecture). É factível vincular essa atitude ao contexto da arte
conceitual nos anos sessenta, quando artistas iniciam sua em-
preitada contra a mercantilização da arte mirando a valorização
das ideias em detrimento da matéria (associada às mercado-
rias). Uma tentativa de reabrir as vias para uma arte de cará-
ter contestatório perante um panorama artístico domesticado,
mercantilizado e dócil ao status quo que o formalismo moder-
nista havia delineado (uma crítica especialmente direcionada
à perspectiva formalista do crítico norte-americano Clement
Greenberg). Yoko Ono, por exemplo, reduz seu trabalho a es-
crever instruções e descrições de obras, em vez de executá-las;
22 também não era requisitado que a audiência se predispusesse a
levá-las a cabo – a transmissão da ideia da obra era o suficiente
enquanto realização da obra. Tendo o próprio Eisenman escri-
to um texto com o título Notes on conceptual architecture, essa
vinculação entre a desmaterialização da arquitetura e as ideias
da arte conceitual parece cabível. Ele claramente se filia a esse
movimento quando afirma que as construções resultantes de
sua série “Houses X” não eram senão uma das formas possíveis
retiradas arbitrariamente de um processo sem começo nem fim.
A ideia de processo generativo por trás da produção dessas casas
é arquitetura. A construção em si é dispensável e sua importân-
cia minimizada.

Partindo de premissas tão radicais, a arquitetura de Peter Eisen-


man acaba por parecer decepcionante, em especial quando são
levadas em consideração a sua opinião em seu texto A arquite-
tura e o problema da figura retórica de que
O que define a arquitetura é o contínuo deslocamento do
habitar, em outras palavras, a deslocalização do que ela, de
fato, localiza. (...) É a necessidade de desalojar a habitação
que sustentou a arquitetura através da história. (NESBITT,
2006 p. 194).

Em suas casas executadas entre a década de sessenta e setenta


é um tanto surpreendente como é possível levar um cotidiano
excessivamente confortável, já que motivos exteriores como a
criação de espaços interiores seguindo o padrão médio ameri-
cano de conforto teria sido completamente ignorado por parte
do arquiteto. Cada habitação executada forma um conveniente
interior único, o que nos leva a imaginar o quão sortudos foram
seus clientes ao, tendo suas casas extraídas arbitrariamente de
um processo contínuo, terem coincidentemente panos de vidro
senão paredes conformando uma interioridade. O deslocamen- 23
to do habitar se resume a uma figuração: uma escada invertida
impossível de se subir, pilares que não sustentam nada, etc. É
extremamente visual. Chega a ser irônico o fato de Tadao Ando
ter construído, na mesma época, sua famosa casa em Sumiyoshi
em que os espaços se conectavam por um pátio aberto central.
Aqui sim o deslocamento do habitar pretendido por Eisenman se
consolida, interferindo radicalmente no cotidiano de seus habi-
tantes, exigindo grande sujeição destes ao clima.

Vem reforçar essa decepção sua postura dúbia em relação à


ocupação dessas casas. Em episódio conhecido, Eisenman se
enfureceu com um casal de clientes quando estes permitiram
que fotografias de sua House VI fossem feitas com a disposição
de móveis e objetos domésticos tal como no dia-a-dia da casa.
As fotografias foram publicadas em uma revista de arquitetura
da época e veementemente reprovadas por Eisenman. Sua ob-
sessão com a pureza de seus “objetos” arquitetônicos fazia com
que a própria ocupação de seus proprietários fosse vista como
uma contaminação: os espaços que se pretendiam radicalmente
deslocados de referenciais históricas, funcionais e sociais, ga-
nhavam características domésticas. De repente era possível no-
mear os ambientes dentro das tipologias cozinhas, banheiros,
quartos, etc. A dúbia postura aparece quando em uma entrevista
a Charles Jencks, este insiste que suas casas não funcionam, que
são anti-funcionais e que se vive nelas com dificuldade, ao que
Eisenman responde:

Não é uma negação, eu estou apenas tentando deixar claro


que eu nunca fui anti-funcional. Eu acredito que há dife-
rença entre ser anti-funcional e ser contra tomar a função
como tema. (...) Meu argumento é de que a obra certamen-
te não é anti-funcional mas contra simbolizar a função. (...)
24 Meu trabalho ataca o conceito de ocupação como é dado.
É contra a noção tradicional de como ocupar uma casa. E
ter uma coluna no meio do quarto, e por isso não poder co-
locar uma cama lá certamente ataca a noção de como você
ocupa um quarto. (EISENMAN, 1988, p. 51, tradução do
autor)

A casa em questão é, por acaso, a House VI, completada em


1975, ou seja, treze anos antes dessa entrevista. Essa abordagem
mais “humanizada” a respeito dos usos da casa talvez seja re-
cente, mas já estava delineada pelo menos um ano antes, em
seu texto A arquitetura e o problema da figura retórica, de 1987,
e demarca uma mudança de postura, já que é extremamente di-
fícil imaginar como sequer a ideia de deslocamento do habitar
se coadunaria à ideia de um processo generativo formal fechado
em si, como almejava em seu início de carreira.

De qualquer forma Tadao Ando já teria sido mais radical na


tarefa de “atacar o conceito de ocupação”, mesmo que com pre-
tensão diametralmente oposta à de Eisenman, vinculada forte-
mente à um resgate da cultura e tradição japonesa, buscando a
recuperação da relação entre casa e natureza, algo que as mora-
dias japonesas perderam ao longo do processo de modernização.
(apud FRAMPTON, 2003, p. 393)

Apesar desse momento excepcionalmente atento ao habitante,


no geral os textos de Eisenman se preocupam com a arquitetura
enquanto linguagem, com maior ênfase quando se aproxima de
Derrida. Seu empenho nos processos quase automatizados de
produção de forma tinha como objetivo evitar lugares comuns
na arquitetura. A poesia da arquitetura seria inventar novas pa-
lavras arquitetônicas, palavras que dessem nome ao inominá-
vel. E por isso emprega elementos de alto teor simbólico (como
uma escada) de forma deslocada de seu lugar, demonstrando 25
que uma escada não precisava significar a possibilidade de subir.
O valor disso estaria em estabelecer novas relações, reconhecer
novas possibilidades, e acima de tudo, dar vazão ao que esteve
reprimido pelas ficções próprias da arquitetura. A sua batalha
contra o logocentrismo da arquitetura, ou seja, contra a criação
arquitetônica por meio de um vocabulário corrente em detri-
mento de uma liberdade total de não-palavras é problemático à
medida que desvincula completamente a arquitetura de suas ra-
zões (para Eisenman, ficções) estruturadoras. Esse trazer à tona
algo que estava reprimido acaba por ser uma repressão de todo
significado construído ao longo da história da arquitetura.

É paradoxal a – aparente – atitude libertadora de Eisenman em


relação à ficção da história porque sua pesquisa está comple-
tamente vinculada à história da arquitetura. O logocentrismo
não perde a centralidade em sua produção, pelo contrário, ga-
nha força. Nenhum outro arquiteto se apegou tanto a ideia de
26

House VI, de Peter Eisenman.


27

Casa Sumiyoshi, de Tadao Ando.


uma narrativa da arquitetura como Eisenman fez. Se levarmos
em conta a insuficiência das palavras – ou seja, a inevitável re-
dução sintética que os discursos produzem, perceberemos que
grandes esquemas interpretativos utilizados na construção de
uma história da arquitetura enquanto um desenvolvimento com
um objetivo qualquer, fica evidente o potencial repressivo destes
discursos. Não é difícil ver arquitetos “destoantes” ou mesmo
tradições inteiras sendo ignoradas pela história da arquitetura
a favor de uma “narrativa mais coerente” – a tentativa de inves-
tir o passado de um propósito superior, como diz Rorty. Fica
claro, portanto, as possibilidades de repressão que a história de
arquitetura pode exercer, por meio dos livros, sobre o passado
da arquitetura.

E exatamente nesse contexto, Peter Eisenman, o herege da ar-


28 quitetura, o anti-humanista, torna-se a mais fanática das carolas
da história da arquitetura, e não por acaso empenha-se na publi-
cação de uma compilação de textos sobre o que ele próprio cha-
ma de “obras canônicas” de arquitetura: um esforço para inserir
suas leituras nos rumos da narrativa arquitetural. Não à toa um
texto de Manfredo Tafuri sobre Eisenman e outros “linguistas”
da arquitetura tenha como título L’architecture dans le boudouir2.
Entre a academia e a experiência direta, Eisenman preferiu ver
a arquitetura através dos livros. Preferiu a abstração dos discur-
sos à concretude da arquitetura, e a partir deles contra-traduziu
arquitetura em linguagem. Seu engano é acreditar que isso pos-
sa dar conta da experiência da arquitetura, seja na recepção ou
na produção. A crítica do historiador Ulpiano de Meneses, feita

2 A tradução corresponde a “A arquitetura do boudoir”. Boudoir era o nome do quarto


de vestir das madames, característico do século XIX e que persistiu nas habitações
até o início do século XX. A imagem contraposta a essa seria a de uma “arquitetura
de rua”, defendida por Tafuri em seu texto.
durante uma entrevista, a respeito desse tipo de atitude “abstra-
cionista” por parte dos linguistas semióticos é precisa:

Em primeiro lugar, eu diria que a palavra e a imagem são


dois sistemas diferentes de apreensão do mundo empírico.
Depois, existe a noção de que imagens e coisas são lingua-
gens, mas não são linguagem coisa nenhuma; têm potencial
linguístico, o que é outra conversa. Por exemplo, o marte-
lo não integra uma linguagem. Se o martelo fosse compo-
nente de uma linguagem, eu não poderia pregar um prego,
porque não estou emitindo mensagem nenhuma. Agora, o
martelo pode ser usado em um contexto linguístico. Você
pega o martelo e diz: “Representa o trabalho operário”, bota
a foice e se completa. Mas não é para isso que se inventou
o martelo. Essa desmaterialização das coisas materiais e
essa desvisualização das coisas visuais, nessa concepção, 29
justamente, de que objetos e imagens são componentes de
linguagem semelhante à articulada, como a linguagem ver-
bal, comprometem absolutamente o entendimento do jogo
social de que participam coisas e imagens. Se você vai usar
a imagem como ilustração daquilo que lhe foi fornecido por
fontes verbais, você não vê jogo nenhum, porque aí o que
conta é a representação, é o discurso sobre a coisa e não
a coisa funcionando como discurso. Em suma, as coisas e
as imagens (que são coisas), não podem ser reduzidas a
representações, mas devem ser consideradas na sua efetiva
agência, que entendo como potência de ação.3

Parece fazer sentido que a essa altura os críticos da leitura semi-

3 http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/3738/2368 (visitado
em 13/11/13)
ótica da arquitetura convoquem o senso comum em suas con-
siderações. Assim como Grassi, Tomás Maldonado promove
esse “choque de realidade” em seu ensaio ¿Es la arquitectura un
texto?:

Paremos um transeunte qualquer nas ruas de Nova Iorque,


Frankfurt ou Milão e façamos a seguinte pergunta: ‘Você
acredita que um edifício é um texto?’ O transeunte olha-
rá assombrado e, no melhor dos casos, procurará por uma
câmera escondida que estaria documentando, frente a um
divertido público televisivo, sua surpresa e embaraço.

Por outro lado, se fizermos a mesma pergunta a um ar-


quiteto dessas mesmas cidades, seja um feliz cultivador
das modas culturais ou um leitor assíduo dos mestres prêt-
30 -à-penser, a resposta será seguramente um entusiasmado
“sim”. (MALDONADO, 2004, p. 23, tradução do autor)

O apelo ao senso comum não deve ser confundido com popu-


lismo. Em uma época em que as palavras foram tão incessante-
mente ressignificadas, o senso comum aparece como ponto de
partida na tarefa de assegurar um vocabulário comum. A tarefa
aqui é, numa expressão de Ulpiano, remover e não confundir a
craca com o casco da embarcação. Mas mais do que isso, reco-
nhecer o caráter social e coletivo das palavras, cujos significados
e sua manipulação não estão restritos nem sujeitos à ratificação
de grupos de especialistas.

Numa leitura da história da arquitetura sobre o que estaria sen-


do de fato reprimido, poderíamos resgatar o viés do habitante
da arquitetura. Por exemplo, o porquê de os clientes de Eisen-
man terem sido repreendidos pelo arquiteto por mostrarem
como vivem em sua própria casa. Mas essa atitude no mínimo
invasiva por parte dos arquitetos sobre a vida de seus clientes
não é recente. Watkin diz:

Que Le Corbusier foi vítima da falácia de que a mente hu-


mana também pode servir como tabula rasa é evidente,
sobretudo quando diz que sua Villa Savoye foi desenhada
“para clientes desprovidos totalmente de ideias preconcei-
tuosas”. (WATKIN, 1977, p. 40, tradução do autor)

Se ainda encararmos a declaração do arquiteto apenas como um


ambíguo direcionamento de sua obra para um público específi-
co, sem maiores pretensões, a dúvida é desfeita com a situação
que se seguiu. Concebida como uma casa de fim de semana,
o casal Savoye deu total liberdade de desenho a Le Corbusier.
Com o custo estimado final ficando o dobro do previsto inicial-
mente, requisitaram mudanças ao arquiteto. Mesmo durante a 31
obra diversos ajustes foram feitos mas, apesar dos esforços, o
orçamento ficou muito acima do que o esperado. Logo na inau-
guração da casa, no ano de 1931, a estrutura já necessitava de
reparos. Ano após ano, durante as chuvas do outono surgiam
cada vez mais vazamentos na cobertura. Os gastos com reparos
da inovadora cobertura jardim foram crescentes ao ponto de a
família, após longa troca de correspondência com o arquiteto, se
sentir obrigada a acionar a justiça. Madame Savoye alegava que
os constantes vazamentos da cobertura levaram a um de seus
filhos contrair pneumonia. O arquiteto, no entanto, respondia
discorrendo sobre o privilégio que a família tinha em viver em
um imóvel merecedor de reconhecimento internacional, pu-
blicado em diversas revistas da época, uma verdadeira obra de
arte, etc, numa atitude que beirava o sadismo. Ao que se sabe, Le
Corbusier escapou do tribunal pelo deflagrar da Segunda Guer-
ra Mundial.
O que o arquiteto responde aos problemas cotidianos de suas
construções é completamente fora das expectativas de seus
clientes. Responder aos moradores referindo-se ao sucesso con-
seguido junto a um público terceiro – no caso, o círculo de ar-
quitetos – é no mínimo considerá-los não-iguais. Reivindica-se
uma hierarquia em que os arquitetos têm a palavra final sobre
a vida que os moradores de suas casas e edifícios deveriam le-
var. É sobre essa assimetria que se assenta a obra de Eisenman
quando este reivindica como tarefa maior a alteração de hábitos
dos habitantes e usuários de seus edifícios, independente desse
enunciado e suas implicações estarem claros e serem pertinen-
tes para eles ou não.

Na busca por um melhor entendimento entre as partes, temos


de reconhecer a ficção que seria restringir a arquitetura a um
32 círculo de especialistas, tomando como base a arquitetura no
seu sentido mais comum, o que deixa explícito o desinteresse
deste trabalho no entendimento da arquitetura enquanto qual-
quer coisa que não seja a obra concreta propriamente dita, único
objeto comum e constante ao longo da história da arquitetura na
inter-relação arquiteto-público. Deve-se também entender que
o habitar não é um acidente ou um acontecimento desprezível
em uma obra de arquitetura, mas antes é o que define a especi-
ficidade de sua categoria perante as outras artes. É o habitar o
definidor da arquitetura e por isso que apesar de a cardboard ar-
chitecture de Eisenman poder ser interessante para o trabalho de
especulação formal, não pode ser aceita enquanto arquitetura.

Essa disparidade de importância presumida por parte dos arqui-


tetos entre artista e público tem sua origem na supervalorização
da arquitetura e da arte como um todo. Paul Kristeller afirma:

A noção de que cinco “artes maiores” constituem uma área


própria, claramente separada por características em co-
mum do artesanato, das ciências e das outras atividades
humanas, tem sido defendida pela maioria daqueles escri-
tores que se dedicam à estética, de Kant aos dias de hoje. É
livremente empregada por críticos de arte e literatura (...)
e é aceita com naturalidade pelo público amador em geral
que atribui a “Arte” com A maiúscula aquela cada vez mais
estreita área da vida moderna que não é ocupada pela ci-
ência, religião ou assuntos práticos. (KRISTELLER, 1951
p. 498, tradução do autor)

Kristeller defende ainda que essa agremiação de diferentes ofí-


cios sob a nomenclatura Arte é recente: só em meados do século
XVIII temos essa associação mais próxima da moderna defini-
ção de Belas Artes, mas ainda com algumas diferenças como,
por exemplo, a inclusão de “óptica” e “mecânica” junto à pintura, 33
arquitetura, eloquência, poesia, música e escultura. Apesar de
ao longo da história estudiosos terem feito aproximações entre
duas ou mais dessas disciplinas, esse conjunto não teria sido for-
mado por uma identificação entre eles, mas antes por uma exclu-
são do conjunto das atividades humanas ao qual a ciência, por
exemplo, pertencia. Isso porque um indiscutível progresso nas
ciências naturais durante o século XVII havia separado aquilo
que poderia ser cientificamente provado e aquilo que dependia
do talento e do gosto, ou seja, aquelas disciplinas (artísticas) em
que não se podia confirmar o progresso perante os antigos. O
autor sublinha a distinção a respeito do significado de Arte dos
gregos em relação aos modernos. Originalmente a palavra não
denotava as Belas Artes, mas era aplicada a qualquer ofício ou
ciência. Significava ainda algo que podia ser aprendido e trans-
mitido, diferentemente da concepção moderna romantizada do
talento ou dom.
O agrupamento dos ofícios artísticos sob a nomenclatura Arte
teve como consequência a percepção de que elas fossem extre-
mamente próximas entre si e em pouco tempo esse foi o prin-
cipal fator para empregos errôneos de certas ideias. Termos es-
pecíficos de uma arte começaram a ser transplantados para as
outras artes sem as devidas ponderações. Kant ao tratar de Arte
como um todo acabou induzindo interpretações em que se teo-
rizava sobre arte sem o reconhecimento das especificidades de
cada campo. Para o campo da arquitetura – talvez a arte mais
distinta até mesmo pela especificidade de seu requisito funcio-
nal – essa generalização foi especialmente prejudicial. Grassi re-
conhece a confusão já durante o movimento moderno:

Quanto às vanguardas do movimento moderno, elas in-


variavelmente seguem os passos das artes figurativas (...)
34 Cubismo, suprematismo, neoplasticismo etc. são formas
de pesquisa que nasceram e se desenvolveram no domínio
das artes figurativas, e somente depois de repensadas foram
transpostas para a arquitetura. É realmente patético assis-
tir aos arquitetos daquele período “heróico”, e os melhores
deles, tentando a duras penas se adaptar a todos aqueles
“ismos”: fazendo experiências confusas por conta de um
fascínio pelas novas doutrinas, avaliando-as, só para de-
pois darem conta de sua ineficácia. (GRASSI, 1998, p. 393)

O texto sobre o que seria uma “arquitetura conceitual” de Ei-


senman segue a mesma lógica de transposição indevida. Apesar
de termos do aumento de complexidade de todas as atividades
humanas ao longo da história, a concepção grega de arte ainda é
útil para a construção de um discurso estético. O filósofo italia-
no Luigi Pareyson intenta reconciliar o recorte das “belas artes”
às demais atividades humanas. Diz:
Como em toda a operosidade humana a arte está presente,
no sentido de que nenhuma atividade atinge seu próprio
fim se não é exercitada com arte, não se deverá reconhecer
que também as outras atividades estão presentes na arte, de
modo que esta não pode alcançar o próprio fim sem a sua
intervenção e seu sustento? Eis o problema das relações da
arte com as outras atividades, que é um dos mais impor-
tantes da estética, e também dos mais complexos, dada a
variedade dos liames que, mais ou menos estreita e inex-
tricavelmente, instituem-se entre as atividades do homem.
(PAREYSON, 2001, p. 34)

E mais a frente:

Ora, esta concepção de autonomia (absoluta) da arte con-


duz a uma nova negação do valor artístico, ainda mais 35
dramática e definitiva do que a concepção da sua hetero-
nomia. Se de um lado a arte é negada quando se torna
propaganda, ou pregação, ou lenocínio, de outro lado a arte
é não menos negada quando, privada e sentidos, ou refe-
rências, ou finalidades éticas, teóricas, espirituais, reduz-se
a um puro jogo técnico, ou é vista num valor artístico ex-
clusivo absoluto. (...) Se, pelo contrário, autonomia da arte
é entendida como a própria especificação da arte, isto é, o
ato com o qual ela se afirma como atividade diversa das
outras, dando-se a própria lei e recusando subordinar-se
a fins diversos, satisfazem-se as exigências opostas, isto é,
entende-se como a arte se afirma na própria suficiência
sem, por isso, reivindicar uma independência impossível
ou cair num absurdo isolamento, e como pode desenvolver
a mais variada e multíplice funcionalidade sem, por isso,
rebaixar-se à subordinação ou negar-se na heteronomia.
(...) Seria absurdo dizer que a Divina Comédia consegue
ser poesia apesar da intenção explícita de Dante de exer-
cer, através dela, uma missão moral. Seria muito menos
absurdo dizer que ela é poesia justamente por isso, porque
essa intenção moral não é fim extrínseco, mas sim imanen-
te da obra, enquanto tendo sido ponto de partida, esteio
impregnado de poesia, assim é também seu significado, sua
função, seu êxito. E o Paraíso é poesia não apesar da filo-
sofia ou da teologia, mas precisamente na medida em que
a filosofia e a teologia, permanecendo tais na sua natureza
específica, são estímulo e ocasião de arte ou fazem-se, elas
próprias, poesia. (PAREYSON, 2001, p. 44-45)

Seu discurso nega frontalmente a reivindicação de autonomia


da arquitetura tal como promovida por Eisenman, em que o ob-
jeto arquitetônico negaria sua função e seria tão mais valioso
36 quanto fosse seu descolamento da vida prática. Por outro lado
parece completamente razoável reconhecer a artisticidade das
demais atividades e ainda a funcionalidade da arte, em especial
na arquitetura, em que sua funcionalidade é distintiva sobre as
outras artes. O filósofo britânico Roger Scruton faz sugestões a
respeito da grande particularidade que a arquitetura representa
ante as outras artes:

Quero sugerir que a existência e predominância de um ver-


náculo arquitetural é uma consequência inevitável da dis-
tância que separa a arquitetura das outras artes, da rela-
tiva ausência por parte da arte de um edifício de qualquer
autêntica autonomia artística, e do fato de que, na maior
parte das vezes, um construtor tem de adaptar a obra a
qualquer arranjo pré-existente de formas imutáveis, sendo
constrangido em qualquer questão por influências que lhe
proíbem o luxo de um objeto “artístico” autoconsciente. A
arquitetura é simplesmente uma aplicação daquele sentido
do que se “ajusta”, que governa todos os aspectos da exis-
tência diária. Pode dizer-se que, propondo uma estética da
arquitetura, o mínimo que se deve propor é uma estética
da vida de todos os dias. Afastamo-nos do reino da arte
superior para o da sabedoria prática comum. (SCRUTON,
1983 p. 25)

Posições como a de Eisenman poderiam ser encaradas como ex-


centricidade de um arquiteto qualquer, sem maiores consequên-
cias ao “homem comum”. No entanto a questão não se extingue
de forma tão simples quando consideramos outra característica
intrínseca da arquitetura: seu caráter público.

37
38
O caráter público do objeto arquitetônico

Diferentemente das outras artes, cuja apreciação em geral se


dá em um espaço interior, em âmbito privado, a arquitetura
se apresenta inevitavelmente no espaço público, aberto. Ela
é propriamente a produção de interioridades e portanto não
poderia ser de outra forma. Sobre a inevitabilidade da arquite-
tura, Paul Goldberg diz:

Pelo fato de a arquitetura estar presente no nosso entorno,


revelando-se mesmo quando não a buscamos, ou até quan-
do preferimos não tomar consciência dela, devemos pensá-
-la de modo ligeiramente diferente de como pensamos, por
exemplo, a música barroca ou a escultura renascentista,
isto é, não apenas em termos de suas grandes obras-primas,
mas também do ponto de vista da experiência cotidiana. 39
Queiramos ou não, a arquitetura faz parte do dia a dia de
todo mundo. (...) É perfeitamente aceitável debater litera-
tura sem falar sobre Danielle Steel, mas será possível lidar
com o impacto da arquitetura sem observar as ruas prin-
cipais das cidades pequenas? (GOLDBERG, 2011, p. 11)

Essa analogia entre literatura e arquitetura levanta uma questão


que o autor deixa em aberto e não desenvolve ao longo do texto:
enquanto na literatura ele estabelece uma diferença qualitativa
categórica (reconhecendo Danielle Steel enquanto algo de baixo
valor dentro da literatura, desprezível ao ponto de ser “perfeita-
mente aceitável debater literatura” sem citá-la), a arquitetura é
entendida como um corpo massivo e inevitável, presente inclu-
sive nas “cidades pequenas” e na “experiência cotidiana”. Apa-
rentemente não houve a intenção de diferenciar na arquitetura
obra de qualidade de obra sem qualidade.
Isso é especialmente significativo sobre a percepção da arqui-
tetura e da cidade. A percepção inevitável referida não é a de
uma ou outra obra excepcional, que comumente é o que os ar-
quitetos entendem enquanto arquitetura, já que essa seria evi-
tável: para evitá-la bastaria dobrar a rua, mudar de caminho. O
que realmente é inevitável é o ambiente construído como um
todo, as massas de casas ou as séries de prédios, formando um
conjunto indiferenciado de “arquitetura” e “simples construção”.
Dessa forma o autor associa arquitetura ao sentido de ambiente
construído, diferentemente da maioria dos arquitetos, que ain-
da têm a imagem de uma urbanidade salpicada de arquiteturas,
ou seja, obras excepcionais dentre uma massa mais ou menos
uniformidade de construções banais. Scruton escreve sobre que
consequências pode ter esse entendimento:

40 Um traço distintivo importante da arquitetura é dado pelo


caráter de objeto público. Uma obra de arquitetura impõe-
-se, aconteça o que acontecer, e suprime de cada membro
do público a livre escolha de saber se deve observá-la ou
ignorá-la. Portanto, não há um verdadeiro sentido em que
o arquiteto crie o seu público; o caso é completamente dife-
rente dos da música, literatura e pintura, que são, ou se tor-
naram, objetos de livre escolha crítica. A poesia e a música,
por exemplo, tornaram-se autoconscientemente modernas,
precisamente porque foram capazes de criar audiências
afinadas com a inovação e ativas na procura dela. É claro
que o arquiteto pode mudar o gosto do público, mas só o
pode fazer dirigindo-se a todo o público e não apenas a
uma parte educada ou meio-educada dele. O modernismo
na arquitetura levanta, portanto, um problema especial,
que não é levantado pelo modernismo nas outras formas
de arte. (...) As artes privadas adquirem muito do seu cará-
ter expressivo pela maneira “pessoal” como nos aproxima-
mos delas, pela capacidade dessas artes para se dirigirem a
uma audiência específica e talvez altamente especializada.
(SCRUTON, 1983, p. 22)

Assim como Goldberg, Scruton não estabelece uma distinção


clara entre arquitetura e simples construção a priori e leva o ar-
gumento a frente: diferentemente de outras artes cuja audiência
é sempre voluntária, a arquitetura se impõe. Portanto não há,
na arquitetura, algum controle temporal sobre sua recepção, e
mais do que isso, nenhum controle social; não é possível esta-
belecer comunicação apenas com um grupo social específico.
Desejada ou não, a audiência será formada por qualquer grupo
que se apresente àquela localidade. Scruton ainda identifica a
capacidade de “criar audiências afinadas”, ou de se comunicar
mais especificamente com um determinado grupo social, com
a própria possibilidade de modernização. Seria essa “cisão” de 41
público e os choques provindos dessas diferenças entre audiên-
cias e suas expectativas em relação à arte – embates possíveis nas
outras artes – que seria próprio motor da modernidade.

Por outro lado, segundo Thierry de Duve, é exatamente a pos-


sibilidade cada vez menor de se direcionar a um público espe-
cífico que acabaria por fomentar o surgimento das vanguardas.
Vale abrir expor sua perspectiva:

O Salão era, em seus primórdios, mera ocasião de uma ex-


posição em que os membros da Academia mostravam seus
trabalhos uns para os outros em espírito de emulação. Logo,
porém, foi aberto ao público – na realidade, desde 1763 – e
a partir de então uma verdadeira bomba de efeito retarda-
do foi plantada na paisagem artística francesa. Na sequên-
cia, a produção dos artistas vivos, filtrada – isso também é
importante – por um júri de pares indicados pela Acade-
mia, foi regularmente exposta ao julgamento da multidão,
do povo, do recém-chegado. O povo foi ao Salão, aí está a
bomba, em número crescente de forma exponencial. Dide-
rot refere 20 mil visitantes no Salão de 1765. Para 1783,
a estimativa oscila, segundo as fontes, entre 100 mil e 600
mil. Estima-se em um milhão o número de visitantes de
1831, total que ultrapassa o da população inteira de Paris.
Desde o início, a mistura de classes sociais era espantosa, e
por volta de meados do século 19, quando surge a vanguar-
da em pintura, o acesso de todos ao Salão, todas as classes
misturadas, é fato. (DUVE, 2010, p. 188)

Isso é particularmente problemático em relação às convenções


de cada arte, já que

42 Não há arte sem convenção. Em qualquer civilização que


seja, o ofício dos artistas obedece a convenções: o ofício dos
pintores às convenções da pintura, o ofício dos escultores
às convenções da escultura, e assim por diante, ofício por
ofício, corporação por corporação. Essas convenções são re-
gras técnicas e estéticas que dão corpo ao savoir-faire pro-
fissional de sua corporação e que os artistas negociam com
a parte da sociedade que os sustenta e lhes faz encomendas.
Uma tradição artística é estável quando os artistas se sub-
metem de bom grado ao gosto da clientela e quando esta
cultiva o respeito ao artista, ou seja, quando as convenções
artísticas são o que deve ser toda convenção: um pacto, um
acordo assinado tácita ou explicitamente entre duas partes
que se conhecem e sabem o que são e o que desejam. A
vanguarda nasce – pode nascer, deve nascer – quando essas
condições não mais existem. (DUVE, 2010, p. 187)
Ou seja, a audiência cada vez maior que os salões angariavam
acabou por conduzir artistas a uma crise a respeito de qual seria,
nessa multidão multifacetada, o seu público alvo, e o pacto aí
envolvido. Essa diluição dos pactos cada vez mais intensa con-
duziu em dado momento a certa perda de poder do júri dos
salões: já não eram capazes de cobrir as expectativas do público,
nem dos artistas. A partir disso ocorre o surgimento do Salão
dos Recusados, em 1863, e mais adiante o Salão dos Indepen-
dentes, em 1884, cujo ingresso era livre a qualquer um que pa-
gasse a taxa de inscrição de seis dólares. Nesse momento já esta-
va clara a ideia de que

Não só não sabemos mais a quem a arte se endereça, como


também não sabemos mais quem é e quem não é legitima-
mente artista. A autoridade capaz de dizê-lo desmoronou.
(DUVE, 2010, p. 190) 43

E Bürger mesmo eleva essa perda de autoridade a principal feito


das vanguardas:

O significado da cesura que os movimentos históricos de


vanguarda provocaram na história da arte consiste, na ver-
dade, não na destruição da instituição arte, mas, sim, na
destruição da possibilidade de atribuir validade a normas
estéticas. (BÜRGER, 2012, p. 155)

Nesse momento Duchamp proporia o novo pacto: ao inscrever


um mictório como obra de arte no Salão dos Independentes, ele
estava não só enterrando a ideia de belas artes como a substi-
tuindo pela ideia de arte em geral. O novo pacto consistia em o
público aceitar qualquer coisa como arte. Ainda segundo Bür-
ger, contraditoriamente Beuys viu nesse momento a possibilida-
de de que, sendo qualquer coisa arte, haveria de se afirmar que
qualquer um pode ser artista (missão na qual Duchamp teria se
omitido). Mas o que teria acontecido era exatamente o contrá-
rio, foi por qualquer um poder ser artista que a mensagem de
Duchamp era de que qualquer coisa poderia ser arte.

Retornando ao argumento de Scruton de que certas artes só


conseguiram o seu desenvolvimento moderno pela sua forma de
apreciação por uma audiência específica, então estamos falando
dos próprios artistas da vanguarda enquanto um afunilamen-
to e não uma abertura do circuito das artes. Se por um lado é
indiscutível que no fim do século XIX e começo do século XX
a autoridade de quem pode dizer o que é ou não arte é questio-
nado, por outro é discutível que a maior parte do público tenha
ratificado o pacto de que qualquer coisa pudesse ser arte – e não
são raras as vezes em que ainda hoje flagramos o público de arte
44 categoricamente negando o seu mérito: “isto não é arte!”.

O que a perspectiva de Scruton sugere é que antes dos salões e


da ampliação do acesso às artes, estas tinham uma maior autori-
dade para se reafirmar enquanto tal. Isto porque as convenções,
tal como indica Duve, eram mais estreitas, com limitações mais
rígidas. Em uma situação em que a audiência ampliada aciden-
talmente tivesse acesso a obras de arte, apesar desta não fazer
parte do pacto envolvido, conseguiria ao menos situar a produ-
ção dentro do que então se considerava arte: o senso estético dos
mecenas e as convenções dos artistas não faziam parte da arte,
mas era a própria arte. Não era pressuposto que participasse das
convenções e por isso não haveria de existir vozes dissonantes
dentro da instituição.

A arte de vanguarda teria então aberto espaço para que as mais


diversas concepções de arte fossem acolhidas pelo termo. Por
um lado dificulta-se uma “desapegada” fruição da obra de arte,
visto que aumenta a responsabilidade da audiência sobre o sig-
nificado do que é arte, já que lhe compete o ato de ratificar o que
é ou não arte, aliviando, por outro lado, a responsabilidade das
instituições e artistas. Por outro o sentido da arte torna-se múl-
tiplo, uma vez que já não há uma legitimação ou júri a priori.

A partir daí podemos entender Scruton sobre a capacidade des-


sas artes para se dirigirem a uma audiência específica e talvez
altamente especializada enquanto promovedora de sua própria
modernização. Os artistas rejeitariam a ideia de se comunicar
com uma multidão multifacetada e decidiriam por responder
a parte desta audiência. Contentam-se com um círculo de ini-
ciados enquanto público, ignorando a dimensão ampliada de
sua audiência. As legendas e textos sobre as obras tornam-se,
para a parte do público “não especializado”, a principal “fonte
de apreciação” da obra, já que a obra em si não é propriamente 45
acessível. Não é difícil verificar a importância que essa formação
de círculo de iniciados tem no circuito artístico: basta relacio-
narmos o peso que as vanguardas têm para a história da arte e a
rejeição com que a maioria absoluta da audiência lhes recebia.

Interessante e curiosa é a forma como Duve termina o seu texto:

A única definição de arte contemporânea suscetível de mos-


trar que o futuro permanece totalmente aberto me parece
ser esta: uma obra de arte só será contemporânea enquan-
to permanecer exposta ao risco de não ser percebida como
arte. (DUVE, 2010, p. 192)

Esse panorama traçado trata essencialmente das artes “priva-


das”, como nomeia Scruton, já que praticamente nenhuma das
considerações de Duve sobre a audiência específica ou ampliada
pode ser associada à arquitetura. Se uma obra de arte qualquer
correr o risco de não ser percebida ou não enquanto obra de
arte, isso se deve à ambiguidade de sua “moldura”, ao fundo em
que está inserida. A perspectiva de que todos podem ser artistas
e tudo pode ser não afirma que tudo é arte. A arte no entendi-
mento de Thierry de Duve não está nos objetos em si, mas nas
ideias transmitidas a partir deles. E por isso não andamos por aí
esbarrando a qualquer momento em arte. É necessário um autor
e um espectador. Da parte da audiência é necessário atenção e
da parte do artista, intenção. E por isso o ambiente privado é
tão importante para a arte: ao adentrar no espaço a audiência
estará atenta. Pelo lado do artista, o espaço em que está disposto
(e suas implicações) é o que diferencia a Fountain de Duchamp
de um simples mictório, é o que a legitima enquanto arte.

No âmbito público a figura muda completamente. Em 1981 a


46 obra Tilted Arc de Richard Serra foi instalada na Foley Federal
Plaza, em Nova Iorque. A obra se constituía de uma chapa de
aço corten de quase 40 metros de comprimento e quase 4 me-
tros de altura. Situava-se no meio da praça, dividindo-a em duas
e obstruindo a passagem de pedestres. Essa obra faz parte de um
episódio polêmico que culminou com a sua retirada em 1989,
face aos protestos dos frequentadores da praça e até mesmo da
polícia local, reclamando sobre a barreira que ela representava à
vigilância da praça.

Podemos entender como mérito da obra o próprio enfrenta-


mento e questionamento do espaço público em que está situada.
A obra enquanto tal remete-se à linguagem Arte enquanto uma
narrativa e disciplina própria. Dentro disso as obras de Richard
Serra, incluindo o Tilted Arc, são reconhecidamente importan-
tes dentro do que podemos considerar a “grande narrativa” da
história da Arte, mais especificamente dentro da história da es-
cultura. No entanto, a obra em questão é uma obra pública e
47

Tilted Arc, de Richard Serra.


por isso não se reporta somente à narrativa Arte, mas priorita-
riamente à vida cotidiana, ou seja, não somente a um voluntá-
rio apreciador de Arte, mas ao cidadão. Trata-se de um objeto
permanente que interfere de modo permanente na vida de pes-
soas comuns que não requisitaram tal intervenção. Se em um
primeiro momento a alteração na percepção do espaço da praça
possa ser algo revelador para todos, e então uma possível justi-
ficativa, a permanência do objeto no contexto público faz com
que o dia-a-dia o desgaste (como referência a isso consideremos
a experiência do choque e o indivíduo blasé de Georg Simmel).

É inegável a importância que a novidade exerce em obras de arte


do tipo. E em algum tempo, ao frequentador habitual do espaço,
ela já não significará muito mais do que uma grande chapa de
metal que altera o trajeto de muitos todos os dias, e por mais
48 que retóricas sejam empreendidas para contornar as críticas, a
concretude da obra permanece presente, cotidianamente. Nesse
caso o espaço público, e o homem comum deveriam ter prio-
ridade, e apesar de artistas reivindicarem interferências nessas
escalas, devem entender que reações a elas são lógicas. Definiti-
vamente a narrativa Arte não deve sobrepujar a vida cotidiana,
e nesse sentido sua autonomia é relativa. A primeira tem início
historicamente e socialmente determinado, existe a partir da se-
gunda e não o contrário. A humanidade passa bem sem essa
Arte.

A diferença essencial entre a arquitetura e as outras artes é sua


presença pública. Nunca uma provável apreciação por audiên-
cia especializada excluiu a audiência ampliada. Independente
do conhecimento de certos códigos, a apreciação da arquitetura
sempre esteve aberta a qualquer pessoa. Otília se referencia à
arquitetura como a mais antiga arte de massas para expor essa
especificidade. Isso pode dar a impressão de uma arte mais “de-
mocratizada”, que desde sempre teve sua audiência em aberto,
nunca restrita a uma elite. No entanto, o fato é que a diferencia-
ção entre arquitetura e “simples construção” é a forma mais sutil
de institucionalização da arte.

A exaltação da Arte como algo distinto (e mais elevado) das


outras atividades humanas, como apontado por Kristeller e Pa-
reyson, foi e é particularmente problemática para o campo da
arquitetura. Isso porque pretende distanciar o fazer arquitetô-
nico do âmbito do artífice e aproximá-lo do âmbito do artista; a
contradição está na existência e predominância de um vernáculo
arquitetural (SCRUTON, 1983, p.25). A instituição arte ainda
mantém algum controle sobre a arte em si, e não basta acreditar
que o seu sentido está agora livre para ser apropriado por cada
um. A instituição arte passa a poder englobar novas esferas mas
jamais chega a negar aquilo que anteriormente já fazia parte de 49
seu corpo: o que constar nas galerias e museus é, a priori, arte.
Não há uma dissolução da instituição, mas antes a ampliação de
seus limites.

No entanto, pela sua própria natureza, inexiste na arquitetura


esse instrumento espacial de legitimação, o que torna muito me-
nos efetivo os julgamentos da instituição arquitetura sobre que
construções lhes dizem respeito. Os julgamentos são produzi-
dos pelo restrito círculo de iniciados, acadêmicos ou não, e se
propagam quase que exclusivamente por publicações, institutos
específicos e pela academia. Por isso é extremamente contradi-
tória a exaltação da arquitetura enquanto arte no sentido mo-
derno, autônoma e distinta das outras atividades. O limite do
que é e o que não é arquitetura permanece ambíguo.

Interpretações como a de Eisenman, em que a história da arqui-


tetura se resume a uma narrativa que relaciona obras-primas,
são consequência direta do destacamento espaço-temporal de
obras que inevitavelmente estão ligadas a sua localidade. As
simples construções são vistas como o necessário fundo banal
requerido para que as verdadeiras grandes obras se destaquem.
Eisenman, assim como outros artistas, aproveita-se da valoriza-
ção da arte perante as outras atividades humanas para promo-
ver sua genialidade e erudição, como se fosse, nas palavras de
Rorty, detentor de uma função sacerdotal, como aquele que nos
põe em contato com um reino que transcende o humano. O que é
especialmente crítico em sua disciplina, pois no espaço público
o cidadão comum não necessariamente ratificou esse pacto, não
necessariamente é simpático às questões da narrativa da arqui-
tetura, o que traz problemas não somente ao arquiteto, que teria
sua obra “incompreendida”, mas antes ao próprio cidadão co-
mum, envolvido literalmente em uma discussão que não neces-
50 sariamente lhe interessa. Enquanto o maior risco de um artista
que produza arte pública é, como Tilted Arc, sofrer um rechaço
público, o risco do público é ser excluído da possibilidade de
compreensão da obra e a partir disso, excluir todas as obras de
sua compreensão.

A obra de Eisenman requer certa iniciação para que seja apre-


ciada; aos olhos do cidadão comum pode parecer não mais do
que uma casa mal construída já que, em sua ânsia pelo deslo-
camento do habitar, Eisenman muitas vezes dificulta tarefas do
dia-a-dia. Scruton trabalha extensivamente sobre a apreciação
da arquitetura, inicialmente distinguido o prazer arquitetônico
do puro prazer sensual:

Especificamente devemos distinguir as relações causais en-


tre prazer e pensamento, das que são intrínsecas ou essen-
ciais. Um pensamento pode extinguir o meu prazer no que
como ou bebo; contudo, não tenho que estar a pensar no
que como ou bebo, para experimentar o prazer; nesse caso
devemos dizer que a relação entre prazer e pensamento é
“externa”. (...) No caso do agrado arquitetônico, um ato de
atenção, uma apreensão intelectual do objeto, é uma parte
necessária do prazer: a relação com o pensamento é interna
e, qualquer mudança no pensamento, levará automatica-
mente a uma redescrição do prazer. Pois ela vai mudar o
objeto do prazer, tendo aqui o prazer um objeto adicional
à sua causa. É meu modo de pensar (de prestar atenção
a) num edifício em especial, que define o que me agrada:
portanto, o edifício não é meramente a causa de sensações
de prazer (como quando corro a mão sobre uma magnífica
parede de mármore), mas o objeto de atenção que dê pra-
zer. (SCRUTON, 1983, p. 79)

E logo mais à frente: 51

Os amantes da arquitetura retiram prazer dos edifícios e


não das experiências obtidas de edifícios. O prazer deles é
um prazer fundado na compreensão, prazer que tem um
objeto e não apenas uma causa. E aqui o prazer é dirigido
para fora, para o mundo, e não para dentro, para o estado
de espírito da pessoa. O prazer da experiência estética é
inseparável do ato de atenção em relação ao seu objeto; não
é o tipo de prazer característico de mera sensação, como o
prazer de um banho quente ou de um bom charuto. Por
outras palavras, os prazeres estéticos não são apenas acom-
panhados pela atenção a um objeto. Estão essencialmente
ligados a essa atenção e, quando a atenção para, qualquer
prazer que continue já não pode ser um exercício de gosto.
Isto é parte do que pode levar alguém a dizer, que aqui o
prazer não é tanto um efeito do objeto, como um modo de
compreender. (SCRUTON, 1983, p. 114)
A obra de Eisenman é radicalmente intelectual, a ponto de o
próprio arquiteto afirmar que arquitetura seria o processo e
não o objeto arquitetônico em si. A dependência entre objeto
e raciocínio fica invertida: o objeto se torna apenas um índi-
ce do pensamento do arquiteto e não podemos nos ater a ele.
Isso se torna problemático quando nesse exercício de abstra-
ção a apreciação do objeto e sua percepção imaginativa não são
capazes de dar parâmetros ao próprio objeto. Tal obra sempre
dependerá da legenda, inexistente na disciplina arquitetônica.
O conhecimento prévio da teoria de Eisenman é requisito para
a apreciação de sua obra, o que delineia a divisão da audiên-
cia entre o círculo de iniciados e o cidadão comum, incapaz de
compreender a obra independente da atenção dispendida e dos
seus conhecimentos práticos. Essa compreensão impossível tem
como prejuízo a exacerbação das diferenças entre os graus de
52 instrução, numa perspectiva que Jacques Rancière dá à própria
ideia de compreensão como habitualmente entendida:

Compreender: infelizmente é essa pequena palavra, exata-


mente essa palavra de ordem dos esclarecidos a causadora
de todo o mal. É ela que interrompe o movimento da razão,
destrói sua confiança em si, expulsa-a de sua via própria,
ao quebrar em dois o mundo da inteligência, ao instaurar
a ruptura entre o animal que tateia e o pequeno cavalheiro
instruído, entre o senso-comum e a ciência. A partir do mo-
mento em que se pronuncia essa palavra de ordem da du-
alidade, todo aperfeiçoamento na maneira de fazer com-
preender – essa grande preocupação dos metodistas e dos
progressistas – se torna um progresso no embrutecimento.
A criança que balbucia sob a ameaça das pancadas obede-
ce à férula, eis tudo: ela aplicará sua inteligência em outra
coisa. Aquele, contudo, que foi explicado investirá sua in-
teligência em um trabalho do luto: compreender significa,
para ele, compreender que nada compreenderá, a menos
que lhe expliquem. (RANCIÈRE, 2012, p. 25)

E mais adiante indica um outro entendimento do compreender:

É preciso entender compreender em seu verdadeiro sentido:


não o derrisório poder de suspender os véus das coisas, mas
a potência de tradução que confronta um falante a outro
falante. É essa mesma potência que permite ao “ignoran-
te” arrancar o segredo do livro “mudo” (...) Toda palavra,
dita ou escrita, é uma tradução que só ganha seu sentido na
contra-tradução, na invenção das causas possíveis para o
som que ouviu ou para o traço escrito: vontade de adivinhar
que se apega a todos os indícios, para saber o que tem a lhe
dizer um animal racional que a considera como a alma de
um outro animal racional. (RANCIÈRE, 2012, p. 95) 53

Nessa perspectiva uma obra pretender dialogar com toda a au-


diência e não se destinar a um circuito fechado deixa de ser uma
qualidade que poderia indicar modéstia do artista: é antes re-
quisito mínimo para que a obra seu significado de fato se efetive.
A contra-tradução é intrínseca na produção do seu significado.
E se hoje instituições conseguem ter autoridade para investir a
qualidade de arte a algo que não necessariamente é publicamente
reconhecido enquanto tal é porque tem o respaldo de uma elite.

Sabemos que é precisamente isso que define a visão em-


brutecedora de mundo: acreditar na realidade da desigual-
dade, imaginar que os superiores na sociedade são efeti-
vamente superiores e que a sociedade estaria em perigo se
fosse difundida, sobretudo nas classes mais baixas, a ideia
de que essas superioridade é tão somente uma ficção con-
vencionada. (RANCIÈRE, 2012, p. 151)
Podemos assim verificar a ficção da instituição arte trabalhar a
favor do status quo, de uma imposição do significado de arte, de
cima para baixo, numa circular autolegitimação completamente
ligada a uma elite financeira que se alimenta do que a instituição
faz de melhor: decretar valor. Interessa a essas partes a diferen-
ciação de trabalhos, de atividades humanas. Isso não somente
exclui o comum da construção do sentido da arte, mas exclui a
elite de apreciar a arte em outras atividades.

O que embrutece o povo não é a falta de instrução, mas a


crença na inferioridade de sua inteligência. E o que embru-
tece os “inferiores” embrutece, ao mesmo tempo, os “supe-
riores”. Pois só verifica sua inteligência aquele que fala a
um semelhante, capaz de verificar a igualdade das duas
inteligências. Ora, o espírito superior se condena a jamais
54 ser compreendido pelos inferiores. Ele só se assegura de sua
inteligência desqualificando aqueles que lhe poderiam re-
cusar esse reconhecimento. (RANCIÈRE, 2012, p. 65)

Se pretendemos não nos associar a essa lógica, investindo nosso


próprio trabalho em um horizonte de igualdade, em que a re-
lação entre as pessoas e as coisas possa se dar de forma direta e
não mediada por instituições, devemos partir da premissa da
igualdade das atividades:

A fabricação de nuvens é uma obra da arte humana que


exige, nem menos, nem mais, tanto trabalho, tanta atenção
intelectual quanto a fabricação de calçados e de maçanetas.
(RANCIÈRE, 2012, p. 61)

Pois qual é a diferença entre arquitetura e simples construção se-


não o quebrar em dois o mundo da inteligência, dividir o mundo
entre inferiores, que construiriam como animais, como abelhas
que constroem colmeias, limitando-se às necessidades animais,
e os superiores, autoconscientes de sua condição, e que não se
limitam às simples construções, mas antes a buscarem suprir as
necessidades espirituais. Superiores e inferiores, comuns e ar-
quitetos, a verdade é que o ambiente construído não distingue
aquele que o construiu, nem suas intenções. O que fica são a
pertinência da obra, o sentimento de ser apropriado ou não ao
lugar, de serem legíveis ou não as razões que levaram a tal dese-
nho e, acima de tudo, a qualidade da vida que se ela comporta e
induz. Todas as partes envolvidas com construção só têm a en-
riquecer sua visão de mundo quando se propõem resgatar o sig-
nificado de arte enquanto o fazer com excelência, no sentido de
Pareyson em que toda a operosidade humana a arte está presen-
te, no sentido de que nenhuma atividade atinge seu próprio fim se
não é exercitada com arte. Os parâmetros de valoração de uma
construção já não estão ancorados a uma narrativa qualquer, 55
mas antes à si mesma e, por ser uma obra vivida, por consequ-
ência lógica, a vida de todos os dias, ao verificável por qualquer
um. Grassi e Scruton interpelam por isso:

Em primeiro lugar a Arquitetura deve ser coerente consigo


mesma, isto é, com suas características específicas; mas ao
mesmo tempo deve ser coerente com sua responsabilidade
social particular. E neste ponto a questão de sua relação
com o público torna-se impossível de ignorar. Por essa ra-
zão a linguagem da Arquitetura é – ou deveria ser – uma
linguagem acessível! Além disso, a partir do momento em
que a Arquitetura entra diretamente na vida cotidiana
(por exemplo, pelas funcionalidades extra-artísticas), cria
um vínculo permanente a partir do qual é possível formar
uma base crítica para julgar as “boas intenções”. (GRASSI,
1998, p. 398)
A tarefa moral, que deduzimos da nossa “estética da vida
de todos os dias”, não pode ser realizada por qualquer lapso
na originalidade, na procura da “experiência envolvente”
que é tantas vezes proposta como o único ideal sério da
arte. A autoexpressão mais não é do que a tentativa do in-
dividualismo para se perpetuar na esfera estética. É claro,
ninguém duvida que a compreensão estética requer um
tipo especial de liberdade; mas a liberdade tem o sentido
que lhe é dado nas adequadas palavras de Spinoza: a “cons-
ciência da necessidade”. O arquiteto tem de ser limitado
por uma regra de obediência. Tem de traduzir a sua intui-
ção em termos que sejam publicamente inteligíveis, tem de
unir o edifício a uma ordem que seja reconhecível não só
pelo perito, mas também pelo homem vulgar não instruído.
(SCRUTON, 1983, p. 245)
56
Parte da glória e da desgraça da arquitetura moderna deve-se a
uma estridente busca pela linguagem acessível, que descambou
para a pura retórica. A tabula rasa de valores que os arquitetos
pregavam na época reduziu a arquitetura àquilo que era possível
de se discutir a partir dos fatos, como se estes existissem por si,
sem nenhum juízo de valor. Assim como na arquitetura de Ei-
senman, o problema foi a completa fé no logocentrismo, agora
sob a crença da suficiência dos argumentos científicos. E contra
isso críticos demoraram ao menos até a metade do século, du-
rante o CIAM IX para decantar um vocabulário que desse conta
de entrar nas discussões resgatando valores que estiveram im-
plícitos nas cidades tradicionais e que, ausentes no urbanismo
moderno, foram uma das causas de seus fracassos. Mas em que
propriamente consistiria a linguagem acessível?
Tópicos da produção arquitetônica

A arquitetura se nos apresenta como uma resposta signifi-


cativa, ou seja, poética, ao problema do habitar, projetando
e construindo todo o ambiente físico de acordo com este
objetivo. Não é verdade que o nosso modelo de cultura atri-
bua grande importância, na escala de seus valores, a esta
operação de formação do sentido geral do próprio ambiente
físico mediante a figura; antes, quase todos os indícios que
podemos recolher nos induzem a crer no contrário; mas se
queremos ser arquitetos, este é o nosso âmbito e esta a nossa
tarefa.

Vittorio Gregotti

No meu outono, tornei-me mais esperançoso quanto ao 57


animal humano no trabalho. O conteúdo da caixa de Pan-
dora pode efetivamente tornar-se muito menos assustador;
podemos alcançar uma vida material mais humana, se
pelo menos entendermos como são feitas as coisas.

Richard Sennet

Temos de reconhecer que os conhecimentos arquitetônicos não


constam propriamente na história da arquitetura, mas antes
correm em paralelo, pela linguagem não-verbal das formas. Este
trecho do trabalho não diz respeito a “temas” que poderiam ser-
vir como inspiração ao fazer arquitetônico, mas antes a tópicos
sobre os quais a arquitetura, pela sua própria natureza (concreta
e pública), pode ser avaliada. Independem, portanto, da inten-
ção do arquiteto em expressá-los, já que a arquitetura acontece,
bem ou mal, por estes tópicos. É uma exposição esquemática
da minha forma pessoal de avaliar a arquitetura e que não tem
caráter de receituário projetivo, e sim de instrumento avaliativo.
Estão estruturados em três eixos: o corpo do edifício (tectôni-
ca), o corpo humano (os sentidos, incluindo o sentido espacial)
e a vida de todos os dias (anti-Gemstkunstwerk).

A expressão coerência em si mesma de Grassi não deve ser en-


tendida como referência a um formalismo compositivo, mas
antes como uma das implicações da concretude da arquitetu-
ra. Talvez nunca estivemos tão alienados a respeito da cultura
materialidade do mundo como hoje em dia. Não apenas a ima-
terialidade do mundo virtual nos induz a sermos menos aten-
tos à materialidade do mundo concreto, mas o crescimento ex-
ponencial da divisão do trabalho e a revolução eletrônica nos
afastaram cada vez mais de experienciar e compreender os obje-
tos. Em maior ou menor grau, uma casa rural inglesa, tal como
58 apresentada por Bill Bryson em seu livro Uma breve história da
vida doméstica, era praticamente autossuficiente em seus insu-
mos básicos. Todos os ofícios tinham alguma correspondência
na casa, de modo que se os moradores não possuíam todas as
habilidades e conhecimentos para exercê-los, a verdade é que
não havia nada que fosse um mistério. Nos centros urbanos, em
que as corporações de ofício organizavam o meio produtivo, era
mais ou menos clara a competência de cada um e portanto um
cidadão comum de uma cidade qualquer possuía um mínimo
conhecimento de como as coisas eram feitas, ou ao menos a
quem competia fazê-las. Porém, com a revolução tecnológica e
o crescimento da especialização, tornou-se cada vez mais difícil
entender a lógica por trás de cada objeto. A tecnologia invisí-
vel ou microscópica dos circuitos eletroeletrônicos nos afastou
da manipulação direta do objeto mecânico, do verificar com as
mãos. Nessa complexidade cada vez maior que as coisas tinham,
a nossa percepção sobre os objetos foi se ficando cada vez mais
superficial, e a imagem parece ter tomado lugar a matéria.
Neste brevíssimo resumo podemos colocar em perspectiva a
ideia que a coerência em si mesma de Grassi pode contemplar.
Por mais que avanços tecnológicos tenham possibilitado cada
vez mais formas novas e fomentado o surgimento de tipologias,
a verdade é que a arquitetura mantém, inevitavelmente, a sua
materialidade. Sua natureza intrinsecamente vinculada ao lugar,
no contínuo do ambiente construído, tende a dificultar sua re-
dução à imagem, já que diferentemente dos objetos, cada vez
mais autônomos, a arquitetura muitas vezes sequer é percebida:
como nota Walter Benjamin, o fruir arquitetônico acontece por
distração.

No entendimento de Scruton, no entanto, esse viver distraida-


mente uma construção não deve ser confundido com o prazer
arquitetônico propriamente dito, que requer uma percepção ati-
va, imaginativa. É verdade que mesmo distraidamente estamos 59
condicionados pela construção envolvente, mas nos atermos a
esse efeito físico é nos enxergarmos como animais, numa prática
fisiológica a que dificilmente poderíamos atribuir a ideia de arte.
Não estaríamos levando em consideração o lugar da arquitetura
na cultura. Aqui é útil a diferenciação entre percepção vulgar
e percepção imaginativa feita por Scruton. A percepção vulgar
diz respeito a como, enquanto animais, percebemos os estímu-
los: não é possível dizer que um pássaro aprecie música mesmo
não tendo dúvidas de que ele ouve os seus sons. A percepção
imaginativa remete à contra-tradução de Rancière, que aconte-
ce quando, por exemplo, enxergamos uma massa de alvenaria
como catedral, identificamos manchas de tinta sobre uma tela
enquanto rostos humanos, ou, de forma mais complexa, vemos
ritmo em uma linha de colunas.

Isto explica a natureza ativa da experiência arquitetural,


mesmo no que tem de mais involuntário. A vulgar expe-
riência perceptiva – a experiência dos animais e a nossa
própria experiência no dia-a-dia (quando não é sujeita
a autorreflexão) – é determinada pelo seu objeto. Somos
passivos em relação a essa experiência como somos passi-
vos no que toca às nossas crenças. Mas não somos passivos
em relação à experiência da arquitetura que nasce apenas
como o resultado de uma certa espécie de atenção. As nos-
sas crenças não se mudam quando mudamos o “agrupa-
mento” de uma sequência de colunas, nem precisam de ser
mudadas por qualquer dos atos de atenção que dirigimos
à arquitetura. O nosso objetivo não é o conhecimento mas
o gozo da aparência de uma coisa já conhecida. (SCRU-
TON, 1983, p. 99)

Não raro arquitetos, não contentes com a possibilidade da per-


60 cepção atenta por parte do público, buscam a garantia desta a
qualquer custo. Na ânsia de serem ouvidos, produzem objetos
que necessariamente teriam que ser vistos enquanto arquitetura,
que pretendem se autodeclarar arquitetura destacando-se estri-
dentemente do seu contexto. Acreditam que desta forma esta-
riam obrigando o público a perceber a arquitetura. Neil Leach
escreve longamente sobre como essa arquitetura espetacular se
torna anestesia (an-estética em seu trocadilho em castelhano).
A longo prazo é, portanto, a anti-propaganda da arquitetura, a
promoção do ignorar a arquitetura. Não é difícil ouvir do pú-
blico de uma obra espetacular qualquer que tal edificação seria
coisa de arquiteto, em tom jocoso, como se já não lhes dissesse
respeito e pouco interessasse compreender.

Uma arquitetura serena, desejável e coerente em si mesma,


passa por saber aproveitar a experiência desatenta do público
de certa forma a induzir, mas jamais obrigar, uma experiência
atenta. Para isso trabalham pequenos deslocamentos daquilo
que intrinsecamente lhe constitui, sem nos tentarmos a adições
arbitrárias ao corpo constituído. Scruton indica sutilmente isso
quando declara que:

O nosso agrado por uma fachada é afetado quando ficamos


a saber que, tal como a fachada das Escolas Antigas em
Cambridge, é uma peça separada de cenário. A mudança
no agrado é, aqui, uma reação à ideia: a ideia de que o
que vemos não tem um significado real como arquitetura.
(SCRUTON, 1983, p. 77, tradução do autor)

A ideia de tectônica de Kenneth Frampton vai ao encontro dessa


ideia de poesia da arquitetura enquanto própria arquitetura. Em
seu livro Studies in Tectonic Culture o crítico britânico produz
uma espécie de história da arquitetura paralela, já que seu viés é
essencialmente sobre a forma com que as concepções construti- 61
vas e estruturais estão ligadas a uma concepção de mundo. Em
textos em que defende a ideia de regionalismo crítico transpa-
rece a ideia de uma arquitetura que faça poesia em suas juntas
(joints): na relação entre materiais, na transferência de esforços,
no modo como a construção encontra o solo, na forma como a
estrutura se mantém perante as intempéries e perante o tempo,
enfim, tectônica no sentido amplo.

Levando em conta a arquitetura enquanto obra concreta, o ape-


lo de Frampton parece razoável: se há fatores imutáveis a que a
arquitetura tenha que responder, estes são a gravidade e as in-
tempéries. Nada mais lógico que ao menos parte da poesia da
arquitetura se dê pelo seu modo de lidar com esses dois fatores,
e de tornar expressivo o seu funcionamento, enfatizando sua
realidade material e feitura, de modo que minimamente con-
siga nos resgatar da inebriante atmosfera virtual e nos revelar
o material inevitável. Na expressão de Sennett, alcançar uma
vida material mais humana. A arquitetura pode funcionar como
campo de resistência perante a redução da cultura material à
imagem e, em certo sentido, reverter seus efeitos sobre nós, tra-
zendo à tona a concretude das construções.

Para além da lógica do corpo arquitetônico, o corpo humano, ou


seja, seus sentidos, é fator fundamental para arquitetura. Pode-
mos vinculá-lo à apreciação distraída da arquitetura, em que a
percepção vulgar tal como coloca Scruton, é a dominante. Juha-
ni Pallasmaa escreve sobre as relações entre corpo e espaço em
seu livro Los ojos de la piel:

A arquitetura é o instrumento principal de nossa relação


com o tempo e o espaço e de nossa forma de dar uma medi-
da humana a essas dimensões; domestica o espaço eterno e
62 o tempo infinito para que a humanidade o tolere, o habite
e o compreenda. (PALLASMAA, 2006, p. 18, tradução do
autor)

Seu texto se desenvolve como uma denúncia do ocularcentrismo


do mundo, da preponderância da visão sobre os outros sentidos
ao longo da história da humanidade, inclusive da arquitetura.
Bastaria capitularmos que boa parte dos livros e tratados de ar-
quitetura diz respeito a regras compositivas ligadas estritamente
à visualidade para confirmar a centralidade da visão na história
da arquitetura. Pallasmaa contrapõe a isso uma arquitetura que
estimule todos os sentidos, que explore a relação arquitetura-
-corpo integralmente, reivindicando a riqueza das superfícies,
dos cheiros, temperaturas, etc. Fala ainda sobre autores diversos
que listavam não apenas cinco, mas dezenas de sentidos do cor-
po humano, extrapolando o tato, visão, olfato, gustativo e au-
dição. É possível incluir entre esses outros sentidos um sentido
espacial, ligado diretamente à vivência dos espaços propriamen-
te ditos, algo tão fundamental para a arquitetura quanto pouco
explorado pela teoria arquitetônica.

A fenomenologia teve um papel especialmente importante no


avanço da arquitetura, no sentindo de entendê-la como um todo
percebido, escapando do espaço cartesiano moderno e abrindo
espaço para o aparecimento de uma série de sentidos reprimidos.
Por volta da década de sessenta Gaston Bachelard, Otto Bollnow
entre outros começam a escrever sobre o espaço propriamen-
te dito. É extremamente curioso que os autores tenham sofrido
com restrição de vocabulário, muitas vezes tendo que recorrer
a metáforas para conseguir explicar sobre o que ou que sensa-
ção específica estão descrevendo. Parece ser algo que só recen-
temente se desenvolveu enquanto tema a ser pensado. Se de lá
pra cá uma “poética do espaço” tenha se tornado uma questão
cada vez mais central para uma série de arquitetos, as palavras 63
disponíveis ainda parecem insuficientes.

Bollnow em seu O homem e o espaço descreve curiosas experi-


ências espaciais e busca a partir delas forjar algum vocabulário:

É natural que sobrevenham acontecimentos que tornem a


habitação limítrofe repentinamente muito mais próxima.
Por exemplo, quando os moradores da habitação estranha,
com martelos ou outros ruídos incômodos, penetram o cír-
culo de minha atenção. Constato quem é o causador dis-
so, e isso se embasa, novamente, na distância concreta. A
habitação estranha se mostrou mais próxima ao penetrar
meu âmbito vital por meio do incômodo. Mudança revolu-
cionária, de todo, seria então abrir um furo na parede, ou
instalar uma porta entre os espaços antes incomunicáveis,
pois isso basicamente mudaria todo o esquema de distân-
cias. (...) Algo equivalente ocorre ainda com as relações en-
tre os andares de uma casa. Eu lembro de minha infância
com que consternada indignação eu (numa temporada de
férias) despertara pelo ruído de meu avô, que dormia no
quarto acima de mim. Eu não tinha sequer pensado que
aquilo fosse possível, pois para mim os outros quartos esta-
vam muito longe um do outro para que o ruído pudesse ser
transmitido, atravessando vários recintos, então as escadas
e até o dormitório do meu avô. Foi somente um estalo, uma
real descoberta, quando repentinamente se me tornou claro
que o ruído tinha um caminho muito mais curto através
do teto que aquele que minha distância vivenciada definia.
(BOLLNOW, 2008, p. 208)

Mais a frente:

64 Neste aspecto, mostra-se muito esclarecedor e frutífero o


conceito do espaço hodológico e da distância hodológica, in-
troduzido por Lewin e desde então adotado por Sartre. De-
rivado do grego, denota o espaço aberto pelo caminho, assim
como nós anteriormente dizíamos no tratamento do cami-
nho, que este conquista o espaço, e as distâncias a percorrer
no caminho. Esse espaço, já por princípio hodológico, é con-
traposto ao espaço matemático abstrato. Neste, a distância
entre dois pontos é determinada somente pelas coordenadas
de ambos; é logo, uma grandeza independente da estrutura
do espaço existente entre ambos. O espaço hodológico sig-
nifica, em contraposição, a mudança que ocorre no espaço
concretamente vivido e vivenciado por meio daquilo que
nós até aqui já denominamos a acessibilidade diferenciada
dos objetivos espaciais. (BOLLNOW, 2008, p.209)

A partir disso o filósofo alemão desenvolve as relações entre


espaço (hodológico) e som, dia e noite, humor e várias outras
variáveis na percepção do espaço. Apesar de uma ou outra vez
as relações parecerem abstratas, o autor tenta sempre clarificar
sobre o que fala a partir de experiências concretas. Não temos
dúvida, por exemplo, que exista em um salão de um restaurante
qualquer um lugar melhor para se sentar; não é acaso sentirmos
um maior conforto em uma sala de estar em remanso, fora de
qualquer trajeto habitual da casa; ou ainda termos certo con-
tentamento, em vivenciarmos um espaço percorrível em três
dimensões, como na FAU.

Em diversas obras o arquiteto Álvaro Siza, por exemplo, dei-


xa claro sua intenção em explorar as possibilidades de criação
espacial. É somente com muito esforço que conseguimos dese-
nhar o percurso das rampas e corredores suspensos da Funda-
ção Iberê Camargo: as inclinações, as reentrâncias das passagens
exteriores se sobrepondo às interiores e as inclinações criam um 65
circuito complexo de se compreender, mas fácil de circular. As
passarelas suspensas exteriores são quase completamente en-
clausuradas, o que dá a ideia de penetrar um maciço, como se
a partir do edifício penetrássemos a encosta de pedra vizinha
ao edifício. A circulação por elas dá uma dimensão do edifício
maior do que realmente é, já que foi apropriada pelo edifício ao
abraçar o vazio.

Essas são experiências conformadas por um desenho específico,


que intencionalmente estimulam esse sentido espacial. Estímu-
los que dificilmente podem ser concebidos em uma prática pro-
jetiva baseada somente em desenho de corte e planta. Surgem
quando arquitetos se preocupam menos em formatar um mo-
delo fechado do objeto arquitetônico e mais em imaginar a pers-
pectiva de um transeunte, sua circulação, seu contexto, seu estar.

Apesar de podermos nos crer capazes de compartilhar nossas


66

Fundação Iberê Camargo, de Álvaro Siza.


sensações de uma forma como antes simplesmente não era pos-
sível, temos que ter claro quais são os limites de tal pesquisa.
É um tanto inocente por parte de Pallasmaa acreditar que, por
exemplo, uma arquitetura integral poderia aproximar a impor-
tância do paladar na apreciação da arquitetura da importância
que, por exemplo, a visão tem. Se por um lado podemos reco-
nhecer que a exacerbação da visão e visualidade da arquitetura
tenha induzido a certa ignorância sobre os outros sentidos, por
outro temos que reconhecer a especificidade de cada sentido:
assim como Kristeller desconstroi a ideia de arte enquanto uni-
dade formada por partes iguais, devemos enxergar que a própria
abertura do número de sentidos nos mostra como modos com-
pletamente diversos de se sentir estão incluídos sob mesmo ter-
mo. Temos que reconhecer a especificidade de cada um e suas
possibilidades. A escrita e a fala, consideradas as tecnologias da
comunicação humana, se dão pela visão e audição. Na arquite- 67
tura obviamente a visão será central na hora de projetar, pois é
instrumento não apenas de percepção, mas de comunicação. A
visão será a via pela qual nossa percepção imaginativa recolhe-
rá a maior parte da informação. É por ela que mantemos uma
comunicação pública e intermitente, é por ela que a arquitetura
melhor comunica.

Em seu livro História Crítica da Arquitetura Moderna, Kenne-


th Frampton traz dentre diversos temas, uma discussão entre
Adolf Loos e Henry Van de Velde que talvez não tenha se repeti-
do de forma tão clara e direta como então. O cúmulo do embate
se dá na publicação por parte de Loos de sua fábula A história
de um pobre homem rico, em que relata o destino de um próspe-
ro negociante que havia contratado um arquiteto secessionista
para projetar-lhe uma casa “total”, o que significava que além da
casa, o arquiteto desenharia mobiliário e as roupas:
Certa vez, ele estava comemorando seu aniversário. A mu-
lher e os filhos haviam lhe dado muitos presentes. Ele apre-
ciou muito a escolha deles e estava desfrutando-os ao má-
ximo. Logo, porém, chegou o arquiteto para pôr as coisas
em seu lugar e tomar todas as decisões sobre os problemas
mais difíceis. Entrou na sala. O proprietário recebeu-o com
grande prazer, pois tinha a cabeça cheia de ideias, mas o
arquiteto nem pareceu tomar conhecimento dessa alegria.
Tinha descoberto algo muito diferente e ficou lívido. “Que
chinelos são esses que você está usando?”, perguntou como
se a dúvida o enchesse de dor. O dono da casa olhou para
os seus chinelos bordados, mas em seguida respirou alivia-
do. Desta vez, sentiu-se sem culpa alguma. Os chinelos ha-
viam sido confeccionados segundo a concepção original do
arquiteto. Ele então respondeu, assumindo ares superiores:
68 “Ora, senhor Arquiteto! Já se esqueceu de que foi o senhor
mesmo quem os desenhou?” “Claro que não me esqueci”,
trovejou o arquiteto, “só que foram feitos para serem usa-
dos no quarto! Aqui, não dá para perceber que essas duas
manchas impossíveis de cor acabam completamente com
a harmonia da sala?” (LOOS, 1908 apud FRAMPTON,
2003, p. 103)

Frampton assinala que o senhor Arquiteto a quem se referia


Loos era Henry Van de Velde, que de fato havia desenhado para
sua esposa vestidos específicos que harmonizariam com as for-
mas e desenhos de cada cômodo da casa. Enquanto Loos enfati-
zava nos seus projetos a liberdade dos clientes em decidirem por
preferências pessoais que mobiliários deveriam comprar, Van de
Velde fazia questão de levar os seus desenhos até as últimas con-
sequências. Ele tinha fé absoluta no poder do design enquanto
disseminador de valores; funcionariam quase como mensagens
que homeopaticamente seriam absorvidas pelos moradores de
seus edifícios, promovendo uma mudança social a partir das
formas. A feiura corrompe não apenas os olhos, mas também o
coração e a mente, dizia, e como contraposição lógica, a beleza
poderia produzir a bondade, no coração e na mente.

Van de Velde foi fortemente influenciado pelas teorias de Alois


Riegl e Theodor Lipps, que se complementavam na construção
de uma visão romântica em que o “desejo da forma” do gênio
tinha primazia enquanto objeto da arte. E a partir dessa ideia se
enxergava com a missão da disseminação da beleza. Sua visão
totalizante se traduzia muitas vezes em uma posição totalitária.
Não sem demora o próprio arquiteto começou a se questionar:
Até que ponto tenho esse direito de impor ao mundo um gosto
e um desejo que são tão pessoais? De repente, não mais vejo as
ligações entre meu ideal e o mundo. (FRAMPTON, 2003, p. 114)
69
A ideia de obra de obra de arte total (Gesamtkunstwerk) não é,
no entanto, uma ideia circunscrita ao início do século XX. Tal
concepção suscitou debates no campo de teoria da arte em es-
pecial no teatro. Na arquitetura a ideia de obra total teve algum
apelo desde Michelangelo, que em seus projetos não distinguia
os ofícios: arquitetura, escultura, pintura e engenharia, todos
trabalhavam de maneira continuada por um único propósito.
O surgimento do termo no sentido moderno está associado ao
romantismo alemão, especificamente na figura de Richard Wag-
ner, que pretendia conjugar todas as artes (plásticas, música, te-
atro, arquitetura, canto e dança) em uma só performance. Era
completamente crítico em relação às óperas de sua época, em
que toda a ênfase era dada à música em si. Ele buscava uma re-
lação mais orgânica entre as artes.

Wagner idealizou uma construção específica para suas óperas,


executada em Bayeruth e inaugurada em 1876. A distinção mais
radical do edifício em relação a outras casas de ópera da época
era o fosso em que a orquestra se instalava, completamente es-
condida da plateia. A intenção era que a atenção do público não
focasse nos músicos, mas apenas nas músicas. Os olhos deve-
riam estar direcionados à encenação.

Henry Van de Velde seria um dos primeiros arquitetos moder-


nos a ansiar transpor a ideia da performance wagneriana para
a disciplina arquitetural. Os problemas de tal transposição são
evidentes de partida: enquanto a ideia de experiência imersiva
de Wagner acabaria por se restringir temporalmente, na disci-
plina arquitetônica o tempo não é limitado. Arquitetos como
Van de Velde acabariam promovendo uma total teatralização da
vida, incluindo a inserção de novos “rituais” cotidianos como,
por exemplo, a troca de “figurino” a cada ambiente. Essa tea-
70 tralização significa a estetização do cotidiano, o repensar o dia-
-a-dia a partir de um ponto de vista primordialmente estético,
imposto de fora. A arquitetura se torna uma espécie de etiqueta
a que seu habitante estaria obrigado a seguir. A caricatura de
Loos não parece afinal tão distante da realidade.

É surpreendente, portanto, o grande número de arquitetos que


ainda hoje têm como horizonte a criação de uma obra arquitetô-
nica total no mesmo sentido de Van de Velde – e apesar de seus
motivos serem completamente distintos, não é difícil imaginar
que a atitude de Eisenman se aproxima disso. Na perspectiva de
um gênio com vontade expressiva que perpassa todos os âmbi-
tos da cultura material indiferentemente, parece possível resol-
ver todas as demandas de projeto a partir de um único princípio:
o visual. Boa parte dos star architects criam alguma “identidade”
nesse sentido, de modo que o traço de sua arquitetura remeta à
assinatura do arquiteto envolvido.
A arquiteta Zaha Hadid é um desses casos. De joias a cidades
inteiras, a lógica do desenho é uma só: são linhas orgânicas e
sensuais, modelagens tridimensionais somente possíveis graças
à computação gráfica de última geração aliada a um canteiro de
obras altamente automatizado. Seus projetos em geral se desen-
volvem por meio de um desenho expressionista que parece pre-
tender engolir tudo, praticamente todas as peças fixas, incluindo
sistema de iluminação, sinalizações, etc, dando a impressão de
se tratar de uma massa contínua que aqui e ali teria tomado uma
forma mais apropriada para isto ou aquilo. Esse excesso de de-
senho cria situações próximas ao do conto de Loos. A imagem
torna-se tão forte a ponto de repelir presenças que não sigam o
seu traço. Elementos mais normatizados, como vasos sanitários,
sprinklers, escadas rolantes, e etc. acabam sendo redesenhados
ou disfarçados pela arquiteta. Apesar de Hadid nunca ter de-
monstrado incômodo pela ocupação de suas obras por parte 71
dos clientes, os próprios ambientes parecem rejeitar os hábitos e
resquícios do dia-a-dia, como se tratasse de uma contaminação.
Esse desenho obsessivo ocupa as formas que a vivência diária
deveria ocupar, expele a cultura material da vida cotidiana.

Em seu livro O Artífice, Sennet relata um encontro ocorrido em


Viena entre Wittgenstein e Loos e especula sobre o que um teria
falado para o outro. Aconteceu logo antes de Wittgenstein deci-
dir projetar e construir sua famosa casa para a própria irmã. Sua
irmã deu total liberdade quanto à criação arquitetônica, e a ri-
queza da família garantia também uma total liberdade orçamen-
tária. Dispondo de tantos meios, Wittgenstein foi, ao longo do
processo, se tornando obcecado pela criação de uma edificação
absoluta, em suas próprias palavras: Não estou interessado em
construir um prédio, mas em apresentar a mim mesmo os alicerces
de todos os prédios possíveis. (WITTGENSTEIN apud SENNET,
2012, p. 284). Suas decisões chegaram ao ponto de, estando a
casa pronta para ser limpa e ocupada, ordenou que levantassem
o teto em três centímetros, o que obviamente envolvia um mo-
vimento de reconstrução enorme. E apesar de toda a dedicação
e meios dispendidos, ao fim da vida declarou que apesar da casa
exibir “boas maneiras”, casa carecia de uma “vida primordial”.
Não é difícil associar a atitude obsessiva de Hadid e Wittgens-
tein a um trecho do livro de Scruton:

Um edifício é essencialmente um objeto público, para ser


olhado, viver-se nele e caminhar para lá em qualquer al-
tura, em todas as condições e com todas as disposições. O
observador não se coloca normalmente a si mesmo num
estado de espírito, nem o olha, como o pode fazer a um
livro, uma pintura ou uma escultura, como um objeto de
atenção privada e pessoal. Há, de certo, portanto, qualquer
72 coisa de inerentemente anti-arquitetural na perspectiva –
conhecida por vezes como expressionismo – que vê a ar-
quitetura como um termo médio num processo de comu-
nicação pessoal, o processo de passar a emoção (ou seja,
emoção imaginada) do artista para o público. Encontrar
um edifício expressionista na vida do dia-a-dia é como ser
constantemente incomodado por um maçador gabarola,
que deseja urgentemente que se saiba que o que ele sente e
que sente exatamente o mesmo todos os dias. (SCRUTON,
1983, p. 188)

O autor contrapõe o relativo fracasso de Wittgenstein ao sucesso


de Loos: seriam exatamente as limitações diversas e imprevistos
incontornáveis em uma obra que lhe permitiram soluções óti-
mas, afastando-o de soluções abstratas e enfatizando as vincu-
ladas diretamente a razões práticas, ao diálogo essencial entre
acerto e erro, inerente a todo ofício. E aqui estariam expostos os
dois lados da obsessão: a obsessão desvairada de Wittgenstein e
73

Hotel SAS, de Arne Jacobsen.


a obsessão produtiva e sadia de Loos. As limitações tornavam
as obras mais de rua e menos cosa mentale do arquiteto, dificil-
mente apropriada para comportar os imprevistos do dia-a-dia.
De certa forma alguma abertura deve ser mantida.

Outro exemplo é o projeto de Arne Jacobsen para a Scandi-


navian Airlines System Royal Hotel, em meados da década de
cinquenta. O arquiteto teve a chance de desenhar praticamente
tudo: o edifício, os quartos, os móveis, talheres, tecidos, etc. É
um projeto único, já que nos dias de hoje a fabricação sob me-
dida de todos esses itens seria inviável em qualquer escala de
projeto. De qualquer forma é impressionante o equilíbrio que as
peças mantêm: os ambientes são coerentes de uma forma sutil,
em que uma peça exterior não aparenta ser uma intrusão. Aten-
dem a uma lógica comum, mas não a um traço comum. Ao con-
74 trário da arquitetura de Hadid, os ambientes criam a sensação
de pertencimento e não de exclusão.
Considerações finais

Este trabalho parte da igualdade entre os homens e seus ofícios


para deslocar o arquiteto de seu posto privilegiado enquanto
artífice de uma arte maior e trazê-lo de volta junto ao homem
comum. Duas características da arquitetura foram tidas como
intrínsecas: sua concretude e seu caráter público. Foram distin-
guidos dois tipos de apreciação arquitetônica: a distraída, base-
ada na percepção vulgar, e a atenta, baseada na percepção ima-
ginativa. Em seguida foram levantados como hipótese avaliativa
da arquitetura três tópicos: a tectônica (ou a potência da arqui-
tetura de explicitar a lógica constitutiva da cultura material), o
estímulo sensível e a abertura da obra (enquanto o inverso do
Gesamtkunstwerk). Isso indica certa objetividade na discussão
estética da arquitetura. Para admitirmos essa possibilidade, vale
refazer o trajeto de Scruton em seu texto conclusivo “Arquitetu- 75
ra e moralidade”.

Haveria um certo e errado em arquitetura? Este tipo de questio-


namento frequentemente está condenado à negativa, acompa-
nhada da confiança de que o gosto é subjetivo. E em certo senti-
do é, já que parte essencialmente de uma experiência individual.
Mas por outro é objetivo, pois ao contrário do ditado popular, a
verdade é que em geral acreditamos ser possível defender o nos-
so gosto com argumentos, ao menos até certo ponto. É comum
deixarmos de gostar de uma fachada ao descobrir que é mera-
mente cenográfica. A causa disso não se dá de forma sensitiva, já
que nesse caso os sentidos enganam, mas de forma estritamente
racional

Na afirmação de que a apreciação estética (da arquitetura) é


objetiva temos uma história rica em arquitetos pretendendo
estabelecer ou descobrir regras e leis universais da prática ar-
76

Casa Z, de Peter Zumthor.


quitetônica. Por outro lado, a facilidade com que essas leis são
derrubadas nos sugere o oposto, de que a apreciação estética é
subjetiva e portanto limita-se ao âmbito da experiência indivi-
dual. Essa sugestão deve ser deixada de lado se quisermos es-
capar ao binarismo objetividade e subjetividade, já que, como
vimos, ambos empenham papéis na conformação do gosto. Para
situar melhor esse entre, Scruton faz um paralelo com as apre-
ciações morais:

Em algumas perspectivas, a moralidade consiste num


conjunto de regras de conduta e o problema filosófico é
simplesmente como se podem justificar essas regras. Esta
abordagem legalista da moralidade não registra muito exa-
tamente as reflexões reais dos homens morais, a maioria
dos quais teria relutância em especificar regras absolutas de
conduta, mesmo que não encontrem dificuldade em reco- 77
nhecer atos que merecem louvor ou censura. E a capacida-
de de reconhecer as ações corretas provém em parte de uma
capacidade para reconhecer os bons homens – para reco-
nhecer a virtude moral em ação, para reconhecer que uma
determinada ação exprime disposições que se devem imitar
ou elogiar, disposições pelas quais nos “entusiasmamos” à
maneira característica unicamente de seres morais. Se este
pensamento é verdadeiro – e há certamente desde Aristó-
teles uma longa tradição de filósofos morais que com ele
concordaram – podemos então compreender o que está cer-
to ou errado não porque possuímos um catálogo de regras,
mas porque compreendemos os motivos e os sentimentos do
homem de virtude. Ao compreendermos o homem virtuoso,
podemos, quando surge a ocasião, imaginar o que ele faria.
Mas o preceito subsequente, mesmo alcançado assim indi-
retamente e em desafio de qualquer lei universal, pode ser
ainda objetivo. Será tão objetivo como a noção de virtude
78

Escritório Novartis, de Peter Märkli.


de que provém e, se se pode mostrar (como Aristóteles ten-
tou mostrar) que o nosso ideal de virtude não é arbitrário,
mas, pelo contrário, nos é imposto pela própria natureza
da escolha racional, todas as apreciações morais são, então,
em certa medida, objetivas. Todas as apreciações morais
derivam a sua validade do raciocínio que nenhum homem
pode razoavelmente rejeitar. (SCRUTON, 1983, p. 234)

No trecho citado de Scruton fica exposto o ponto crítico da re-


lação binária entre objetividade e subjetividade: sua falta de re-
lação com a verdade. Os arquitetos modernos podem, na nossa
história da arquitetura, serem associados àqueles que buscaram
desvelar ou instituir leis e regras universais do fazer arquitetô-
nico. Cometeram assim uma pequena confusão: não buscavam
objetividade, mas sim verdade. Ao construir eles ignoraram o
possível diálogo com os outros homens, negando as tradições e 79
preferindo pela busca de deus – e não há dúvidas de que muitos
arquitetos se viam em uma verdadeira missão sacerdotal.

No outro extremo, os arquitetos pós-modernos tentaram, a par-


tir do desfacelamento das “verdades” modernas, intuir a sub-
jetividade total à qual a arquitetura estaria condenada. Surge a
figura do herege, aquele gênio que não fará mais do que dar a
vida para provar que não há autoridade senão a do indivíduo. A
única pesquisa se dá no âmbito pessoal, com motivações estrita-
mente pessoais. A vida do autor começa a fazer parte da obra e
logo não temos sacerdotes, mas celebridades..

Seja na afirmação ou na negação da verdade, boa parte dos ar-


quitetos deixou de dialogar com o outro. Não entenderam que as
tradições não existem por alguma pretensão à verdade, mas gra-
ças à possibilidade de consenso entre os homens. Ante a riqueza
de uma construção coletiva ao longo do tempo acumulada en-
80

Renovação Millbank para Tate, de Caruso St John.


quanto tradição, aquilo que os arquitetos ofecerecem enquanto
uma nova arquitetura é muito pouco - e basta lembrarmos de
Pruitt-Igoe para vermos que às vezes pode ser pouco o suficien-
te para sequer se sustentar.

Tão mais interessante se torna a arquitetura quanto reconhece-


mos seu potencial didático: o de retirar a percepção da vulga-
ridade e torná-la atenta. Por outro lado, sua perenidade torna
qualquer “chamada” mais pretensiosa em sinais de uma arquite-
tura estridente. Se, no entanto, negarmos uma diferença de par-
tida entre arquitetura e simples construção, é possível alcançar
uma arquitetura que em vez de se isolar de seu contexto pela
excepcionalidade, torna-se contagiosa pela banalidade. Uma
construção aparentemente banal que consiga se apresentar en-
quanto poesia não estará se relegando à exceção, mas antes pro-
movendo todas as construções banais enquanto possibilidade 81
de apreciação estética. Reconhecendo a arte em todos os ofícios
humanos, reconhece-se qualquer ofício enquanto possível de
apreciação estética: a arquitetura não necessariamente se limita
a estimular a percepção atenta à sua disciplina específica, mas
amplia a atenção perante a cultura material como um todo.

Considerando o caráter habitável da arquitetura, deve-se com-


preender que para além de nos induzir a uma percepção atenta
sobre a matéria, a arquitetura pode conformar a vida de diferen-
tes modos, tornando a percepção atenta à própria existência. O
século XX foi excepcionalmente prolífico em experimentação
sobre modos de viver - situação em que quase sempre a mudan-
ça para um novo estilo de vida se deu de modo involuntário. Foi
muitas vezes devastador, já que o positivismo era causa maior
do que qualquer tradição ou costume. As soluções “lógicas” e
funcionais deveriam ser impostas.
82

Habitação social em Gavá, de López-Rivera.


Não há dúvidas sobre o quão nociva pode ser as conformações
da arquitetura no cotidiano, mas talvez consigamos, depois de
percorrido o trajeto deste trabalho, vislumbrar uma outra rela-
ção: a de reafirmação. A reafirmação da igualdade, a reafirmação
da possibilidade de consenso entre os homens, a reafirmação de
nosso pertencimento ao mundo, o habitar. Enquanto suporte de
identidade e memória a arquitetura pode ser capaz de promover
para nós mesmos o nosso melhor.

Sua resistência ao tempo, seu caráter público, sua vivência co-


tidiana: tudo indica como apropriado uma arquitetura serena,
da vida de todos os dias. No entanto, se uma estética supõe uma
moral, o contrário não é válido. Não há tradução possível a par-
tir das considerações feitas. Cabe então, como sempre foi, nego-
ciarmos o comum desejável.
83
84

Residência Scharans, de Corinna Menn.


Of course there remains the excitement, the desire for chan-
ge, the intensity of experimentation, and so on, the concern
for lifestyle, the conflict of polemics, factions or “tenden-
cies”; but all of this exists only in the pages of books.

Giorgio Grassi
85
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Banca: Prof. Dr. Luiz Recamán (orientador)


Prof. Dr. Jorge Bassani
Profa. Dra. Vera Pallamin

Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo


Novembro de 2013

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