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METAGON – TEMPO MUSICAL ESPIRAL

Luigi Antonio Irlandini


cosmofonia.lai@gmail.com
UDESC – Universidade do Estado de Santa Catarina

Escrita para shakuhachi1, Metagon (2008) é uma composição solística


de cerca de quinze minutos de duração nascida da colaboração com o artista
plástico Jean-Pierre Hébert e associada mais especificamente à sua
escultura de areia do mesmo nome, Metagon (ver Fig. 2, abaixo). Trata-se
aqui de uma concepção poiética da composição e performance musicais na
qual elementos de Zen budismo, geometria e simbologia arquetípica
confluem para tornar presente o próprio processo criativo. O devir/processo
instaurado multissensorialmente (musical e visualmente) por uma
estrutura espiral (sonora e escultural) apresentam, na performance, a
cosmogonia2 como evento gradual, por meio de uma música cujo código
formativo não é abstrato, mas algo passível de ser percebido estesicamente,
que se torna efetivamente presente e experienciável pela audição e pela
visão, música e escultura, ao mesmo tempo.
Em sua série de litografias 15 Variationen über ein Thema (1938), o
designer suíço Max Bill (1908-1994) compôs um “tema” que explicita a sua
própria essência construtiva (Fig. 1), e cuja natureza é a espiral; a obra
consiste em quinze variações sobre este mesmo princípio formativo. Hébert,
inspirado em Max Bill, tomou o mesmo tema para compor seu portfolio de
desenhos One hundred views of a metagon3 (1998), cunhando o tema de Bill
com o nome metagon, metágono ou “metapolígono”, e definindo-o como “uma
linha poligonal regular, aberta e possivelmente infinita desenvolvida em
duas ou mais dimensões seguindo uma regra serial de
expansão .”(HÉBERT, 2012, p. 1).
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Trata-se de uma escultura que se manifesta gradualmente à frente do


expectador tornando visível, ao vivo, a sua própria construção. Isto se dá
com a ajuda de um computador que, comandando um plotter localizado
debaixo de uma caixa de areia, move, por magnetismo, uma esfera metálica

1 Shakuhachi é a flauta de bambu japonesa ligada às tradições zen budistas. A primeira


execução de Metagon teve lugar no recital “Mantra e Espiral: Música de Luigi Antonio
Irlandini” realizado no Teatro SESC Prainha em Florianópolis, Santa Catarina, em 10 de
outubro de 2012.
2 Composição como cosmologia e cosmogonia, gênese de um universo sonoro ou acústico,

conforme desenvolvido anteriormente (IRLANDINI, 2012).


3 O título faz menção tanto ao trabalho de Max Bill quanto ao de Katsushika Hokusai

(1760-1849) “Cem Vistas do Monte Fuji” (1835-1847).


4 “Metagon – a regular, open, possibly infinite polygonal line developed in two or more

dimensions following a serial rule of expansion.”(tradução do autor)


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que se encontra inicialmente no centro da superfície de areia e a faz


percorrer uma trajetória espiral conforme o software/algoritmo gerador da
espiral/metágono. A música é executada ao vivo e em sincronia com o
“caminhar” da esfera metálica sobre a areia. O universo sonoro da
composição segue regras análogas às da figura do metágono. Ao concluir-se
a música, conclui-se também o rastro espiral deixado na areia pela esfera
metálica. A música pode ser tocada independentemente da escultura,
embora isto não corresponda à proposta completa inicialmente desejada pelo
compositor.

Fig. 1 Fig. 2
A espiral como estrutura dinâmica, princípio construtivo ou processo
musical tem sido objeto de pesquisa composicional do autor desde 1988,
iniciando com Pralâya, para piano solo. Desde então, diversas outras
composições realizaram diferentes temporalidades espirais: organizações do
tempo musical que seguem o desenrolar cíclico em contínua e intensificada
transformação característico da espiral. Assim como é possível criar diversas
linhas espirais definidas por diferentes geometrias e matemáticas, são
inúmeros os modos pelos quais a temporalidade musical pode expandir-se ou
contrair-se como uma espiral.
A macroforma de Metagon, como a de outras composições anteriores5,
determina um único segmento finito de uma tendência espiral melódica,
rítmica e textural possivelmente infinita. É neste sentido que se pode dizer
que a música não termina, mas simplesmente pára, pois o processo teria
continuado ad infinitum6. Além disto, esta identidade macroforma/espiral
resulta num devir musical de tipo processual e gradual. A concepção de
música como processo gradual remonta às primeiras teorizações do
compositor Steve Reich (n. 1933) que, em seu pequeno ensaio de 1968, Music
as a Gradual Process, propõe uma música que é, literalmente, o processo.
Para ele, este processo deve ser perceptível, ideia que, de modo parecido,
também importa em Metagon, pois busca-se a estrutura ou o processo

5 Alguns outros exemplos de macroforma espiral são as composições, Pythagoras (2000),


para flauta doce tenor, e Trail of tears (2005), para dois violinos e piano, mas não a de Luna
(2006), para coro a cappella, que contém duas ocorrências da espiral dupla.
6 Aqui o compositor age como um mediador (um demiurgo ou trickster), que tenta tornar

possível a experiência do ilimitado , mas só pode fazê-lo por meios limitados.


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reconhecíveis/perceptíveis audivelmente. No entanto, aqui não há


minimalismo nem repetitivismo, já que Metagon almeja justamente o
retorno diferente, de efeito acumulado, espiral. Tampouco se busca um
“processo que, uma vez inicializado e carregado, prossegue por si próprio 7”
(REICH, 1974). O compositor de Metagon tem intenções, cria e intervém no
processo, no entanto, sem alterá-lo essencialmente.
Em Metagon, a macroforma é uma monodia cuja tendência espiral é
expansiva, partindo de um som único e, gradualmente abarcando a maior
multiplicidade de sons disponível no instrumento. A centricidade tonal (o
centro é o Dó do terceiro espaço da pauta) não implica em tonalismo mas
simplesmente no ponto central de um espaço textural e de alturas que se
expande gradualmente. As alturas vão se acrescentando e acumulando uma
a uma a cada ciclo fraseológico8 (um giro ou ciclo da espiral), por semitom
acima e abaixo da última nova nota ou, explicado diferentemente, com
relação ao Dó central, primeiro acrescenta-se o semitom superior – Dó# -
depois o inferior – Si – depois o tom superior – Ré – e assim por diante,
expandindo a tessitura melódica e o espaço textural. Ao mesmo tempo os
ciclos (fraseológicos) vão progressivamente se expandindo, tornam-se mais
longos, na mesma razão do princípio sugerido na figura do metágono:
inicialmente um polígono de três lados, depois de quatro, depois de cinco,
etc. Esta relação ocorre aqui com o número de compassos que, desprovidos
de qualquer significado métrico, simplesmente servem como unidade de
medida dos ciclos: ao início duram dois compassos, depois três, depois
quatro, até o último, com vinte e sete compassos. A espiral macroformal de
Metagon tem vinte e seis ciclos.
A espiral é um símbolo arquetípico da grande força e processo
criativos, da emanação, etc (COOPER, 1978). A obra musical como forma
formada, forma sensível, ao tomar a espiral como princípio construtivo,
coincide com ela, e reenvia ao arquétipo (forma formante, não sensível),
(ZOLLA, 1988), tornando-o presente. A espiral se torna tempo musical ao
instaurar, nos sons, a sua trajetória cíclica intensificante. A música passa a
ser um símbolo da espiral e, consequentemente, também do arquétipo.
Metagon propõe um envolvimento profundo com as tradições ligadas à
prática da meditação Zazen, não só por meio da simples escolha do

7 “once the process is set up and loaded it runs by itself.” (Reich, 1974) (tradução do autor)
8 A expressão “ciclo fraseológico” tenta colocar as “frases” musicais no contexto de tempo
cíclico, em contraste com o que tradicionalmente se entende por “frases” no estudo da
fraseologia ou morfologia musical, que, pelo menos na música clássico/romântica ocidental,
as contextualizam num tempo linear e dialético. A expressão passa a ser abreviada para
“ciclo”, simplesmente, e indica, na música de temporalidade espiral, uma estrutura do
discurso (melhor dizendo, do decurso) que tem, como a frase, um sentido completo. Este
sentido completo é, justamente, o completar-se de um giro da espiral.
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instrumento musical diretamente ligado a ela, o shakuhachi, como também


por buscar elementos comuns à estética honkyoku9 a ele relacionado: a
simplicidade da monodia desacompanhada, o som dinâmico e internamente
vivo, o tempo circular de suas melodias, e seu caráter de ferramenta para a
meditação, como disciplina do controle da respiração, suizen, ou Zen do
sopro. A escultura de Hébert aproxima-se do Zen não só pela semelhança
paisagística da escultura de areia com o karensansui (o jardim de pedras
japonês), como também por aceitar e cultivar sua própria efemeridade
musical, desprendendo-se dela: a escultura é desmantelada, como uma
manḍala de areia tibetana, para ser reconstruída novamente noutra
performance.

9Honkyoku (“peças originais”) é o repertório solístico do shakuhachi ligado à prática da


meditação Zen. (BLASDEL, 1988)
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICA

BLASDEL, CHRISTOPHER YOHMEI. The shakuhachi – a manual for


learning, Tokyo, Ongaku no Tomo Sha Corp, 1988. 162 p.
COOPER, J.C. An illustrated encyclopaedia of traditional symbols. Londres:
Thames & Hudson, 1978. 208 p.
HÉBERT, JEAN-PIERRE. “One Hundred Views of a Metagon”. Dasta de
publicação: 23 de outubro de 2012. Disponível em:
http://jeanpierrehebert.com/docs/HVall%20121023.pdf., 2012. Data do
acesso: 15 de julho de 2013.
IRLANDINI, LUIGI ANTONIO. “Cosmologia da composição e suas
interações com a teoria e análise musicais”. In: IV Encontro de Musicologia
de Ribeirão Prêto, 2012, Ribeirão Preto, SP. Anais do IV Encontro de
Musicologia de Ribeirão Prêto, 2012, ISBN 9788577470396, pp. 239-245.
REICH, STEVE. Writings About Music. Halifax: Press of the Nova Scotia
College of Art and Design, 1974. 77 p.
ZOLLA, ÉLÉMIRE. Archetipi. Venezia: Marsilio Editori, 1988.160 p.

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