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da escuta
Falo aqui de uma relação entre escuta e paisagem. Não se trata, entre-
tanto, de paisagem sonora no sentido de ambiente acústico natural
ou de sons da paisagem natural combinados entre si para gerar um
tipo especial de música (Schafer, 1993), ou ainda das origens imaginá-
rias das fontes sonoras percebidas (Wishart, 1996, p.139), mas de uma
escuta musical que revela uma paisagem interior. Trata-se de uma
escuta da música que constrói, progressivamente, um território/pai-
sagem através de uma organização dos traços expressivos deixados
pelos eventos sonoros na memória1.
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1 É importante ressaltar que há muitas “músicas” diferentes, cada qual com seus
contextos particulares de produção e com suas práticas específicas de escuta.
Quando falo de “música” neste texto, faço isso a partir de uma perspectiva
pessoal, sem com isso pretender estabelecer qualquer quadro de valores fixo
ou absoluto. As “músicas” que tenho em mente quando discuto a experiência
O sonoro é evanescente, dissolve-se continuamente à medida em
que vibra. Para se tornar material musical, é preciso que deixe suas
marcas na memória. Só assim pode se sustentar no tempo e permitir
que o que passou continue e se relacione à sensação presente, assim
como às expectativas que se insinuam do futuro. A memória, por sua
vez, trabalha com blocos de tempo, integração de sensações díspa-
res que alcançam uma espécie de consistência ou unidade. Mesmo
a escuta de um gesto breve — por exemplo, uma sequência rápida
de notas progressivamente mais agudas — exige da memória uma
síntese da sucessividade — de modo a relacionar as notas em uma
direção ascendente e a capturar toda a sequência como uma gestalt.
A escuta musical requer concentração e sustentação das sensações
sucessivas, para que uma forma musical possa constituir-se no tempo.
Mas não se pode reduzir as operações da memória à formação de
blocos temporais imediatamente sucessivos. O tempo musical é labi-
ríntico, e as formas percebidas ocorrem em diversos níveis, de modo
que, para além dos blocos imediatos do presente, formam-se tam-
bém conexões com elementos surgidos há muito mais tempo, mesmo
àquilo que havia se perdido do foco do pensamento. O tempo musi-
cal retorna frequentemente a seu passado, relacionando os elementos
percebidos com eventos anteriores, como se ramificasse e, ao invés
de traçar uma linha única, pudesse tecer toda uma teia de conexões
entre seus diversos instantes.
A tradição fenomenológica apoia-se no princípio de que a mente
utiliza processos de retenção (memória) e protensão (expectativa) 257
II
III
4 Deleuze (1992, p.213) fala da obra de arte como “um bloco de sensações, isto é,
um composto de perceptos e afectos”.
sivamente neutra, mas sim carregada de sensações diversas que a
compõem enquanto conjunção de qualidades expressivas.
Há diferentes formas de se considerar a dimensão expressiva na
música. Ela pode estar relacionada ao poder de certas sonoridades
nos afetarem de um modo instintivo, o que faz, por exemplo, com que
um som forte desperte habitualmente sensações completamente dife-
rentes de um outro som de baixa intensidade. Da mesma forma, os rit-
mos e as velocidades têm sua expressão diferenciada e característica,
o que pode ser observado, por exemplo, nos nomes de movimentos
das sinfonias clássicas — Allegro, Largo, Presto etc. —, que indicavam
não apenas uma velocidade, mas também um caráter.
O afeto também pode estar relacionado a uma herança histórica,
que associa certas sonoridades a contextos que as utilizavam no pas-
sado. Assim, por exemplo, uma caixa clara executando padrões rítmi-
cos regulares pode evocar música militar, mesmo quando ouvida em
uma peça de concerto. De modo similar, trompas executando quintas
vazias nas sinfonias clássicas traziam ecos das antigas caçadas, pois
esses instrumentos tinham função de orientar os grupos de caçado-
res nas florestas. Há uma grande variedade de situações onde esse
tipo de referência a contextos musicais mais antigos pode ser obser-
vada. Os compositores frequentemente lançaram mão desse tipo de
associações na escolha de seus materiais sonoros. A elaboração do
material musical envolve, portanto, não apenas a dimensão acústica
imediata, mas também essas camadas de referências mais sutis. De
262 um modo amplo, pode-se dizer que toda música alimenta seus sen-
tidos possíveis da história e que, por mais que os contextos musicais
se renovem, sempre trazem sombras de seu passado.
IV
6 Uma discussão sobre esse tema pode ser encontrada em Serres (2001, p.241).
Este texto destacou a necessidade de se sustentar a percepção conec-
tando sensações distintas, para se construir um plano de continuidade
da escuta. Abordou, também, a organização do bloco de sensações
em linhas de força, assim como o tecido textural que captura as dife-
rentes situações sonoras e envolve seus fluxos internos em permanên-
cias temporárias. Tratou, ainda, da dimensão expressiva do material
musical para, finalmente, descrever as narrativas formais estabeleci-
das na sucessão de diferentes situações/paisagens, assim como algu-
mas estratégias para conectar as dimensões local e global da forma.
A aproximação da escuta musical à ideia de paisagem procurou
evidenciar a busca de consistência na construção de um sentido para a
experiência. Para isso, foi necessário dissolver a nitidez das fronteiras
entre a sensação sonora e as cadeias simbólicas que se tecem a partir
de sua emergência. O objetivo foi, de algum modo, desvelar algumas
dobras misteriosas desses mundos interiores da imaginação musical.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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