Você está na página 1de 5

1 UNIDADE 1: FORMA, ORGANIZAÇÃO E MEMÓRIA

1.1 Forma Musical e organização

Em diversos trechos de seus textos, Schoenberg sugere a associação


entre forma musical e organização dos materiais musicais: “Em um sentido
estético, o termo forma significa que a peça é “organizada” (SCHOENBERG,
1990, p. 27). Já estudamos, em Análise Musical II, a abrangência do conceito de
forma musical e a insuficiência de interpretar o conceito de forma como análogo
ao conceito de estrutura.
De qualquer maneira, é importante observarmos que, consideradas estas
limitações, a visão de forma como uma estrutura implica em observar como os
diversos elementos constituintes de um objeto musical exercem funções
relativas tanto ao seu posicionamento na forma como ao seu conteúdo
específico, de maneira que a forma faria referência não apenas à organização e
à ordem dos elementos no todo, mas à reunião das funções que estes elementos
ocupam entre os limites de um determinado objeto. Estas funções dizem respeito
ao sistema musical utilizado e constituirão um assunto a ser debatido
futuramente.
Logicamente, se a forma é vista como a organização das ideias no tempo,
a proposição de ao menos dois elementos já institui uma informação a ser
percebida e decodificada como uma inter-relação em que um elemento
ressignifica o outro. Este ponto de vista sintático da proposição de sentidos em
uma música traz um novo elemento para a discussão a respeito da comunicação
musical.
Afinal, a comunicação vem a se colocar neste contexto não apenas no
que se refere ao elo comunicacional instituído entre intérprete, compositor, obra
e ouvinte, mas também no que se refere ao interior da própria obra. A cada
instante de uma peça, os elementos anteriores se reequilibram em torno de uma
nova estrutura que só se fecha no momento em que a peça se encerra e de
forma retroativa.
Trata-se apenas de uma metáfora, no entanto, pois os elementos de uma
música não têm autonomia para se reequilibrarem ou modificarem sua relação
uns com os outros sem a interferência humana. São os ouvintes que
reinterpretam a obra à medida em que a escutam.

1.2 A memória em música como repetição

Schoenberg propõe a repetição como uma solução para a memorização


de um enunciado musical. Para ele, a repetição equivaleria, em música, ao
trabalho com a memória, ao mesmo tempo em que é produtora de formas. Do
ponto de vista da escuta, relacionar pressupõe a memorização e a comparação
entre elementos distintos e o emprego da repetição pode favorecer o
estabelecimento destas relações. Quer dizer, a reiteração de um elemento
qualquer favorece sua escuta como um elemento estrutural, para o qual os
outros elementos tendem a remeter, enquanto um elemento que aparece
somente uma vez, tende a ser ouvido como ornamental.
É importante salientar que o grau de trabalho entre repetição, variação e
contraste estão ligados à vontade criativa e à fantasia do compositor (e não à
normas!) e existem formas diversas de articular os materiais musicais. Alguns
gêneros musicais enfatizam a repetição, enquanto outros enfatizam o contraste.

1.3 Repetição e Contraste na Micro e Macroestrutura

Dando continuidade à sua reflexão a respeito da forma musical,


Schoenberg afirma em Fundamentos da Composição que as relações entre os
materiais musicais podem assumir frente a nossa percepção duas naturezas
distintas: por contraste ou por semelhança. A semelhança se manifestaria tanto
como repetição literal quanto como variação. Ou seja, mediante um alto grau de
repetição dos elementos dispostos anteriormente ou acrescida de novas
informações e/ou suprimindo aspectos do material original. Já o contraste se
manifestaria quando a maior parte das informações originais são alteradas e
uma minoria se mantém, de maneira que não se percebe a relação entre esta
ideia e aquela que ocorreu anteriormente de uma maneira evidente. É importante
observar que, tanto no contraste quanto na repetição, podem existir elementos
comuns entre materiais.
Na teoria formal de Schoenberg, o motivo seria equivalente a menor
unidade de uma ideia musical ou, mais precisamente, ao “germe” da ideia:

“Visto que quase todas as figuras de uma peça revelam algum tipo de
afinidade para com ele, o motivo básico é frequentemente considerado
“o germe” da ideia: se ele inclui elementos, em última análise, de todas
as figuras musicais subsequentes, poderíamos, então, considerá-lo
como o “múltiplo comum”; e, como ele está presente em todas as
figuras subsequentes, poderia ser denominado “máximo divisor”
comum.” (SCHOENBERG, 1990, p. 35)

Como se pode perceber, o motivo básico constituiria precisamente o


elemento recorrente nos desenvolvimentos subsequentes do material musical.
Por outro lado, a percepção global da forma dependeria não da maneira como o
motivo básico é apresentado, ou seja, de suas características originais, mas sim
da maneira como ele será trabalhado e desenvolvido. A repetição do motivo se
manifestaria como uma necessidade para o estabelecimento de uma referência
auditiva para a percepção das relações sintáticas entre as partes de uma peça.
No entanto, “a pura repetição” – diria Schoenberg – “engendra monotonia, e esta
só pode ser evitada pela variação” (1990, p. 35). Sobre a variação, ele afirma
ainda, que:

“Variação “significa mudança: mas mudar cada elemento produz algo


estranho, incoerente e ilógico, destruindo a forma básica do motivo.
Consequentemente, a variação exigirá a mudança de alguns fatores
menos importantes e a conservação de outros mais importantes”
(SCHOENBERG, 1990, p. 36).

Existe outro aspecto implícito na ideia de uma repetição sistemática e


variada de um motivo inicial pela extensão de uma obra. Este aspecto é a
chamada “liquidação motívica” (para usar um termo do próprio Schoenberg),
termo que significa a repetição e variação de um motivo até o ponto de sua
exaustão:

“Uma ideia musical consiste principalmente na relação dos sons uns


com os outros. Mas toda a relação que foi usada muito frequentemente,
não importa o quão extensamente modificada, deve finalmente ser
considerada como exaurida. (...) Desta forma, todo o compositor é
obrigado a inventar novas coisas, a apresentar novas relações sonoras
para a discussão e lidar com suas consequências” (SCHOENBERG,
1975, p. 269).
Relegando momentaneamente o caráter impreciso relativo a qual seria o
ponto em que um motivo é “exaurido”, outro fator que se encontraria oculto nesta
ideia, seria a pressuposição de que os materiais musicais encerram
potencialidades de desenvolvimento musical. No entanto, para autores como
Schoenberg, este potencial de desenvolvimento motívico não é autônomo, no
sentido que não existe para além do contexto da escuta.
Nas artes plásticas certamente seria muito mais concreto falar-se em um
potencial expressivo inerente ao material, visto que este potencial se refere muito
mais às dificuldades e facilidades técnicas que ele impõe, do que à percepção.
Segundo Huyghe (1986), as condições geológicas podem até mesmo determinar
algumas direções do desenvolvimento artístico de uma sociedade como, por
exemplo, no caso dos primeiros impérios agrários.
Como ele aponta, no antigo império Egípcio o trabalho com matérias
sólidas se reflete no seu gosto pela nitidez das formas grandiosas, enquanto o
mesopotâmio, privado das pedras, mas com amplo acesso à argila e ao barro,
conserva um sentido de forma mais maleável:

“Da mesma maneira que o Egípcio tira os seus efeitos plásticos da


articulação dos planos firmes e recortados, o Mesopotâmio
desenvolve, nas massas sempre um pouco inconsistentes, a arte de
cinzeladura fina dos pormenores, reflexo naturalmente oferecido pela
terra dócil, e recusada ao Egípcio devido à sua matéria rebelde. Esta
habilidade de mão, tão peculiar, encontrará o apogeu na época assíria
com a prática do baixo-relevo em calcário” (HUYGHE, 1986).

Em música, uma das dificuldades que surgem quando se fala de um


potencial de desenvolvimento formal do material é precisamente o fato de que
ele, quando proposto efetivamente, já possui uma forma, já estabelece relações
internas acabadas. Não existe um intermediário entre imaginação e
concretização da ideia como no caso das artes plásticas. Lá, a ideia de forma
preexiste em potência no material escolhido para expressá-la artisticamente. Na
música, o que preexiste à concretização da ideia vai ser a imaginação do
compositor que, por sua vez, é condicionada pelo Sistema de Referências – ou
o método – escolhido para organizar o som.
Em outras palavras, é impossível opor forma e matéria em música a não
ser que se considere o sistema de referências como matéria musical, o que
configura um contrassenso visto que ele existe in absentia (em ausência!). O que
se poderia pensar, partindo da ideia de um potencial do material proposta por
Schoenberg, é que o compositor seja capaz de conceber e propor que um
determinado conteúdo sintático-musical (um tema!) reapareça nos
desenvolvimentos sonoros subsequentes em uma peça, sempre considerando a
existência de um ouvinte e de suas capacidades. Neste caso, o relacionamento
entre as ideias se baseia na busca pela igualdade de termos diferentes e,
sobretudo, em uma opção criativa frente a diversas outras possibilidades de
concepção criativa.

2 BIBLIOGRAFIA

DUDEQUE, N. Forma Musical como Processo. Anais da Simpom, v. 1, n. 1,


2010.
HUYGHE, R. Sentido e destino da arte. Lisboa: Edições 70, 1986. v. 1.
SCHOENBERG, A. Style and idea: selected writings of arnold schoenberg.
Los Angeles: University of California Press, 1975.
______. Arnold schoenberg's letters. Los Angeles: University of California
Press, 1987.

______. Fundamentos da composição musical. São Paulo: EDUSP, 1990.

______. Harmonia. Tradução M. MALUF. São Paulo: UNESP, 2001.

______. Funções estruturais da harmonia. São Paulo: Via Lettera, 2004.

______. Exercícios preliminares em Contraponto. São Paulo: Via


Lettera, 2001.
SCHOENBERG, A.; NEFF, S. Coherence, counterpoint, instrumentation,
instruction in form. Lincoln: University of Nebraska Press, 1994.

Você também pode gostar