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Relações entre instrumentos e paisagens sonoras em Juegos miméticos, para

violino e eletrônica

Marcelo Villena (UNILA)

Introdução

Este trabalho faz parte de uma pesquisa que surgiu de uma pergunta final da minha tese
(VILLENA, 2017) que abordou as relações entre paisagens sonoras e composições feitas com meios
acústicos a partir de três perspectivas de trabalho: 1) composições para instrumentos acústicos
convencionais a serem apresentadas em ritual habitual de sala de concerto (peças para palco), 2)
composições em que são usados objetos do cotidiano presentes nos locais de estudo das paisagens
por sua capacidade referencial de sons característicos, 3) composições para serem executadas em
locais específicos, em que a paisagem sonora intervém e pode alterar os rumos da composição.
Dessas três propostas, a última originou as perguntas que motivaram esta nova pesquisa.

Antes que nada devo esclarecer que compreendo a participação dos sons ambientais
como elemento de indeterminação, isto é, como algo inesperado e imprevisível. Não temos como
prever quais dos sons característicos da paisagem surgirão no momento da performance, mudando
(em maior ou menor grau) os rumos da performance. No portfólio do doutorado realizei dois
experimentos para quarteto de flautas doce: Parquinho Cumbaca I1 e Parquinho Cumbaca II.2
Ambas peças foram concebidas para serem executadas no mesmo local: um parquinho com jogos
infantis numa praça do bairro Vila A, na cidade de Foz do Iguaçu. As peças apresentaram diferentes
tipos de indeterminação.

Previamente à composição das peças gravei a paisagem sonora do local em diversos


dias da semana e horários. A partir da escuta dessas gravações fiz uma seleção de sons
característicos que poderiam surgir espontaneamente no momento da performance no local. Em
Parquinho Cumbaca I o catálogo foi “traduzido” a ações musicais, isto é, compus materiais
musicais curtos que, na minha concepção, se “associavam" de alguma forma a sons ambientais
específicos, como por exemplo o som de um carro passando, relacionado a um multifônico tocado
en frullato. Esse catálogo de sons instrumentais ligados simbolicamente a um som ambiental foram
dispostos em partituras penduradas em um varal de roupa, à moda da literatura de cordel do
nordeste do Brasil. Os executantes, desta forma, tinham as “ações” musicais a disposição de forma a
poder responder no momento da performance aos estímulos ambientais.

Em Parquinho Cumbaca II pensei um procedimento diferente. Os materiais do catálogo


de Parquinho Cumbaca I serviram à composição de uma música mais "convencional", com
sequência de ações determinadas de forma precisa no tempo em uma partitura em formato
tradicional. O diálogo com a paisagem, a meu ver, se estabelece de duas maneiras: primeiro, pela
relação simbólica (e na maioria das vezes mimética) em que concebi os materiais musicais;
segundo, pelo uso de momentos de silêncio em que todos os executantes param de tocar. Nesses
pontos, os sons ambientais se manifestam de forma mais evidente (são, de certa forma, transferidos

1 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=fxrwjWRzXqk


2 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Fc-L1cSOY1Y&t=7s
de segundo plano para primeiro plano) e permitem que o ouvinte possa estabelecer vínculos entre
eles e os sons que executam as flautas.

Estas experiências foram satisfatórias dentro da pesquisa como ponto de partida, mas,
diferentemente das peças feitas dentro das outras propostas, não pareciam conter em si uma
capacidade de autogeração de ideias tão forte. A pergunta que surgiu foi: como enriquecer a
construção de relações entre sons ambientais e sons instrumentais para peças executadas em
ambientes específicos e que considerem a paisagem sonora como partícipe da obra? Imaginei que a
resposta viria de um estudo mais sistemático em um ambiente mais previsível, o estúdio digital.
Lembrei de trabalhos de eletroacústica mista que combinam uma parte eletrônica gerada a partir de
sons de paisagens sonoras com uma ou mais partes para instrumentos acústicos.

Neste primeiro artigo de uma pesquisa a longo prazo vou me debruçar inicialmente no
trabalho do compositor brasileiro Rafael de Oliveira, especificamente nas discussões presentes no
seu artigo (em parceria com João Pedro de Oliveira) Modelos de integração entre sons
instrumentais e paisagens sonoras (2012). Pretendo discutir as ideias elencadas pelos autores com
minhas próprias propostas estéticas em relação à composição baseada na ecologia acústica. Estas
discussões levaram a desenvolver estratégias de composição de uma peça mista, entendendo que
essa experiência, por sua vez, definirá propostas poéticas para a composição de peças para serem
executadas no mesmo local nas quais a paisagem sonora não será “formatada” por meu pensamento
compositivo, senão que agirá na obra de forma espontânea.

Críticas estéticas aos princípios norteadores dos "modelos"

O artigo em questão deve ser compreendido em seu objetivo de buscar metodologias


composicionais fundamentadas teóricamente. O termo diálogo (entre parte eletrônica e parte
instrumental) vem à tona, derivado talvez da própria prática compositiva de João Pedro de Oliveira,
que faz uso desse princípio como procedimento estruturador de suas composições à maneira em que
grandes compositores da tradição da música de concerto europeia fazem dialogar dois instrumentos
acústicos (por exemplo Brahms ou Beethoven). Numa peça para flauta e tape, por exemplo, as
relações dialógicas não são diferentes: as partes se retroalimentam, variam materiais, criam
contrastes, continuidades, etc. O trabalho de Rafael de Oliveira parece consistir em compreender
como os mecanismos empregados por João Pedro de Oliveira podem ser empregados a materiais
divergentes dos usados pelo seu orientador (João Pedro gera a parte eletrônica por meio de síntese).
Ou inclusive descobrir formas particulares (de cunho próprio) de estabelecer esses vínculos com os
materiais sonoros ambientais em seu trabalho. Um interrogante inicial aponta para a divergência
entre as duas práticas: enquanto João Pedro emprega materiais ditos “abstratos" em ambos os
meios, Rafael emprega materiais supostamente abstratos para a parte instrumental dialogando com
os materiais de cunho “referencial" do registro ambiental.

Um primeiro ponto que gostaria de apontar é a apresentação dos autores das possíveis
formas de integração entre as partes. Eles mencionam duas opções, inicialmente: os elementos das
duas partes podem ser colocadas em “paralelo” ou “criar diálogos sintáticos e musicais que se
integram no corpo da obra [de forma a expandir] as possibilidades sonoras dos instrumentos
acústicos” (OLIVEIRA & OLVEIRA, 2012, p. 223). A estas duas opções é necessário acrescentar
outras formas de relação entre os meios: (a) fusão - conceito bastante difundido em trabalhos de Flô
Menezes e Rodolfo Coelho de Souza - e (b) a convivência de sons sem integração - conceito
retirado de Ulises Ferrtti (2010).
A ideia de “fundir" as sonoridades vêm à tona quando discutem as relações espectrais
entre as partes (p. 225). Embora a semelhança no espectro possa servir a um propósito de “diálogo”,
é vinculada, geralmente, a estratégias de fusão e contraste.3 A “fusão” implica uma relação diferente
ao “diálogo”, já que num diálogo há muitas vezes oposição de ideias, divergência. No Dicionário
online de Português4 vemos definições diversas do termo, entre as quais a passagem do estado
sólido ao líquido (ponto de fusão), mas majoritariamente empregos do termo como sinônimo de
“fundir-se”, isto é, duas coisas diferentes que se tornam algo único. Um exemplo substantivo de
uma peça mista em que os meios se fundem é Estesia5 (2007) de Rodrigo Avellar de Muniagurria,
em que sons de clarinete (ao vivo) são misturados com o tape composto majoritariamente por sons
de onda quadrada. O espectro sonoro similar torna possível a “confusão” na cabeça do ouvinte, que
não consegue distinguir de forma clara quando os sons são eletrônicos e quando provém dos
clarinetes, já que tanto a onda quadrada quanto o som do clarinete destacam mais os parciais
ímpares da série harmônica. O outro conceito, denominado aqui de “convivência" foi sugerido
como tal pelo compositor uruguaio Ulises Ferretti:

As novidades assim criadas modificam a paisagem sonora com irrupções de intensidades


diversas de sons tais como músicas e sons naturais ouvidos como sinais, e músicas ouvidas
como música, gerando convivências de eventos com significações diversificadas –
individuais e coletivas –, muitas delas sem mais relação entre si que a de compartilhar lugar
e momento. (FERRETTI, 2010, p. 23).

Essa convivência de eventos nas paisagens está presente em obras do repertório


eletroacústico como Roaratorio (1979), de John Cage, em que há superposições de sons ambientais,
música e declamação de textos que não se fundem nem dialogam se não que convivem de forma
independente, embora criando relações entre si. É importante ter presente esse conceito ao trabalhar
com ecologia acústica de forma a abranger a riqueza de possibilidades do objeto já que num meio
ambiente existem relações de causa efeito e relações meramente casuais (embora estruturalmente
integradas). Qual a relação lógica entre o som de um carro e o canto de um sabiá a não ser o fato de
compartilharem um espaço?

Outro aspecto divergente da proposta dos autores é pensar a composição de uma


paisagem sonora eletroacústica como algo que implica necessariamente a transformação (via
processamento) dos sons. Há inúmeros exemplos de peças com processamento mínimo, por
exemplo as “peças anedóticas” de Luc Ferrari.6 Modificar os sons (e sua temporalidade) pode
implicar se distanciar da paisagem em questão e deve ser pensado com cautela. Para alguns de nós,
compositores fundamentados no estudo do meio ambiente, não se trata de criar relações arbitrárias
geradas por uma escolha pessoal, senão de empregar a multiplicidade de situações das paisagens
sonoras para renovar a arte da composição, tanto em suas relações sintáticas quanto semânticas,
além do objetivo maior de compreender de forma mais profunda o meio ambiente em que vivemos.

Mais uma questão importante que se desprende da leitura do artigo de Oliveira &
Oliveira é a divergência e certa contradição entre os materiais sonoros dos dois meios. Entende-se
corriqueiramente que os sons instrumentais são materiais “abstratos" e os sons ambientais
“referenciais”. Enquanto os primeiros fazem alusão a si mesmos, a um suposto mundo “autônomo"

3 Ver Souza (2013, p. 31).


4https://www.dicio.com.br/fusao/

5https://soundcloud.com/rodrigo-avellar/estesia-2007

6 Principalmente o ciclo Presque Rien (1967-70).


denominado “música”, os outros aludem ao mundo externo. Pode-se dizer que o som de um
instrumento, para quem está familiarizado com seu som, alude à imagem mental desse instrumento,
mas ao usarmos técnicas expandidas o som “convencional" é transfigurado, criando confusões no
ouvinte7 ou deixando abertas possibilidades de novas associações, e entre estas, as relações icônicas
com o som ambiental. Com isto quero afirmar que não é tão simples esta equação e que sim, o som
de um instrumento, embora em menor medida, pode ser também “referencial" aos sons de uma
soundscape. Soma-se a isso que a ideia dos sons musicais como algo abstrato está longe se ser
unanimidade: em outras culturas que não a europeia há usos de instrumentos acústicos para aludir a
fenômenos ambientais. Os astecas, por exemplo, tinham um repertório organológico muito vasto.8
Não seria reducionista dizer que a parte de tape da paisagem sonora é referencial e que a parte
instrumental é abstrata?

Também é importante apontar a divergência entre os materiais tradicionais na música de


concerto, dentro dessa concepção “abstrata" e “autorreferente" e os materiais próprios de uma
paisagem sonora. No artigo Considerações sobre formalismo e referencialismo na composição
musical contemporânea (2005) Zampronha e Coradini assinalam uma importante divergência nos
materiais musicais dessa tradição formalista e a composição de paisagens sonoras. Usando como
exemplo os materias empregados na música de pós-guerra (se referem evidentemente ao serialismo)
apontam as seguintes características:

1. uma certa neutralidade destas unidades (vazio de significação), [...] 2. que estas unidades
preservavam suas propriedades independente do modo como estivessem combinadas
(independência do contexto). [...] 3. é a estrutura aquilo que confere coerência e unidade à
obra musical. Em outras palavras, a significação da obra se identifica com sua estrutura, o
que termina por supervalorizar a estrutura e conferir à obra uma perspectiva formalista.
(ZAMPRONHA & CORADINI, 2005 p. 2).

Na composição de paisagens sonoras os materiais são, pela intencionalidade estética


explícita, radicalmente opostos: 1) não apresentam neutralidade, são cheias de significado
referencial ao mundo externo, 2) as unidades são consideradas em seu contexto ambiental, 3) a
estrutruração da peça (ver por exemplo os trabalhos de Burtney e Monacchi)9 não parte de um
pensamento autocentrado em valores musicais (valores afirmados por uma tradição musical), senão
das observações de um ecossistema em específico. O engano dos autores, a meu ver, é usar o som
ambiental para reafirmar procedimentos musicais ligados a uma tradição em vez de propor novas
formulações a partir da observação da paisagem em si. Neste sentido pode-se objetar se o conceito
de sound imagery (Oliveira & Oliveira, 2012, p. 224) ao tratar os sons ambientais de forma
ambígua (nessa relação abstração/referencialidade) não acaba pendendo a balança para o lado da
abstração haja vista a longa tradição nessa direção que condiciona nossa forma de pensar e ouvir
música.

7 Por exemplo: várias pessoas que ouviram minha peça Xon ahuiyacan pensaram que a batida na harpa do piano era
produzida por um instrumento de percussão.
8 Ver CAMACHO (2010).
9 Sobre estes autores recomendo a leitura do trabalho de GILMURRAY (2012).
O grande problema ao me deparar com a proposta do meu trabalho é que ele transcende
a questão dessa relação no meio eletroacústico. Se a ideia fosse compor exclusivamente dentro da
proposta de Oliveira esta discussão seria meramente estética e implicaria uma forma de se expressar
particular de dois compositores. Contudo, quando observamos que a peça eletroacústica mista serve
também como estudo que cimenta as bases para peças em que os sons instrumentais se relacionam
de forma direta com sons ambientais a opção mais apropriada parece ser a procurar a
referencialidade e se afastar da abstração, a não ser que queiramos “interferir” com sons no meio
ambiente em vez de ouvir e “dialogar”, procurando “falar a língua” da paisagem sonora.

Propostas de diálogos entre os meios segundo Oliveira & Oliveira

Após uma revisão de literatura inicial os autores propõem três tipos de modelos de
integração: 1) integração rítmica, 2) integração de alturas e 3) integração gestual. Vou analisar os
aspectos mais relevantes destas propostas para avaliar quais delas podem ser empregadas em meu
trabalho compositivo.

O modelo de integração rítmica se baseia a princípio em relações de semelhança entre os


ritmos da paisagem sonora e ritmos compostos para a parte instrumental. Na peça analisada pelos
autores, Construção (de Rafael de Oliveira), essa estratégia é relativamente fácil de aplicar, já que a
paisagem apresenta sons de um prédio em construção, com sons de marteladas, por exemplo. Os
autores propõem também o estabelecimento de complementaridade entre os ritmos da paisagem e
dos instrumentos: “Assim, ritmos presentes em uma das partes complementam os ritmos presentes
na outra, fazendo com que a combinação de ambas projete um ‘todo rítmico’, estruturalmente
coerente.” (IBIDEM, p. 226).

Outro aspecto abordado, a alteração de ritmos na parte da paisagem sonora para criar
relações de semelhança com a parte instrumental, embora muito válida para a proposta dos autores
(e para esta relação paisagem sonora / instrumentos na música eletroacústica mista), não é muito útil
a minha pesquisa por dois motivos: a) sendo que minhas peças mistas servem de laboratório para
peças que usam a paisagem como elemento de indeterminação, de que serviria, neste caso, mudar a
paisagem?, b) adaptar os sons da paisagem aos sons instrumentais pode levar a trabalhá-la a partir
de critérios de estruturação abstratos que não considerem seus materiais em suas relações
contextuais do local de onde foram retirados ou, em um caso extremo, acabar tratando os materiais
ambientais como materiais “neutros” (lembremos Zampronha & Coradini). Se bem na obra em
questão os materias não perdem seu caráter simbólico, deve-se advertir esse risco no uso deste
procedimento.

A integração por altura é considerada, sobretudo dentro da ideia de fusão espectro-


morfológica. Os autores destacam que o espectro da paisagem sonora pode ser alterado por meio de
filtragem. Desta forma, se cria um ambiente mais homogêneo entre ambos meios, tornado-os mais
“próximos”, agregando coerência à estrutura da peça. O risco, como em outros casos, é alterar a
paisagem para adaptá-la às sonoridades instrumentais com critérios abstratos. Por outro lado, não
há menção a cantos de pássaros, alarmes ou música reproduzida ou tocada na paisagem sonora,
eventos estes que possibilitam estabelecer outras relações dialógicas com os instrumentos musicais
e permitem detalhar diversos aspectos do contexto ambiental e social do local de estudo da
paisagem sonora.

Finalmente, apresentam a integração gestual, na minha opinião o modelo mais útil a esta
integração entre sons ambientais e sons instrumentais. O gesto, segundo Sullivan (1984) é uma
configuração de caráter híbrido (diferentemente do motivo) que é composta por elementos
provenientes de diversos materiais sonoros e parâmetros. Os sons de uma paisagem geralmente não
são sons “puros”, senão que apresentam misturas de sonoridades periódicas e aperiódicas, com
comportamentos espectro-morfológicos diversos. O gesto musical, de qualquer forma, não se reduz
a sonoridades curtas, e nesse sentido é muito relevante que os autores mencionem a aplicação do
conceito a um nível macro-formal (Oliveira & Oliveira, p. 229-230). Gestos musicais podem definir
o comportamento de uma trama sonora em trechos que duram vários minutos, como se observa em
peças de Iannis Xenakis ou de Júlio Estrada, por exemplo.

Memorial do processo de composição de Juegos miméticos.

A seguir descrevo alguns aspectos relevantes do processo criativo de Juegos miméticos.


Os três tipos de integração propostas por Oliveira & Oliveira participaram, em certa medida, do
pensamento que guiou a composição. Houve, porém, uma preocupação em preservar a qualidade
referencial dos sons da paisagem, encontrar técnicas instrumentais referenciais a estes sons e,
sobretudo, incorporar o fluxo espontâneo dos eventos da paisagem gravada como base para a
organização formal. Juegos miméticos traz, de alguma maneira, uma forma musical (uma
fotografia) “capturada” de um momento único e irrepetível.

1) O local de captação dos áudios da eletrônica.

A composição de Juegos miméticos iniciou com uma gravação da paisagem sonora matinal
do bairro Vila A. Registrei uma caminhada que iniciou dentro da minha casa, com os barulhos de
abrir porta, os sons presentes na rua, na caminhada, até chegar a um bosque, onde permaneci
sentado num tronco caído. O bairro Vila A tem como característica ser bastante silencioso por ter
sido planejado como bairro residencial. O traçado de suas ruas impede o trânsito rápido em algumas
regiões por ter praças que obrigam os motoristas a se deslocar às avenidas. Como podemos ver no
mapa embaixo o motorista que pretender ir no sentido leste-oeste necessariamente terá que ir pela
av. Gramado ou a av. Sílvio Sasdelli.
Figura: mapa do bairro Vila A (Foz do Iguaçu), na região de captação da paisagem sonora.

Esta peculiaridade da organização espacial do bairro definiu de alguma forma os rumos da


composição. Empregando um termo de Murray Schafer, a paisagem da Vila A é uma paisagem
sonora hi-fi, isto é, com pouca poluição sonora, o que permite reconhecer de forma clara os sons
presentes, apresentando uma textura clara, com “poucas vozes” na sua polifonia. No áudio,
reconhecemos geralmente entre dois a cinco sons simultâneos, o que permite que se estabeleçam
focos de escuta com facilidade. A escolha do local tem a ver com a possibilidade concreta de
compor uma peça para ser interpretada no local e que esta consiga ser ouvida pelo público,
diferentemente de outros bairros de Foz do Iguaçu (sobretudo a região central ou a Vila Portes). Em
comparação com bairros populares (Vila C, por exemplo), há menor presença de sons de música
tocada por aparelhos mecânicos. Isso tem a ver com o costume da classe média (ou média alta) do
estado do Paraná, que prefere permanecer dentro de casa e não faz suas atividades de lazer em
espaços públicos.

A caminhada de gravação da paisagem percorreu tres quadras de uma rua interna até
chegar a um bosque plantado pelo homem na avenida Gramado (ver mapa), com uniformidade de
espécies, o que implica na definição de duas seções de características diferentes. A parte do bosque
evidentemente terá mais presença de pássaros e irrupções de trânsito mais intensas. No entanto, a
captação no bosque foi feita em um local com um grau considerável de afastamento em relação à
avenida e os árvores criaram uma barreira acústica. Fiquei imaginando a paisagem do bosque no
amanhecer com uma maior intensidade de cantos de pássaros.

Entendo pelo exposto, que a captação dos áudios é um processo pré-compositivo em que se
estabelece, de certa maneira, a forma musical que a peça terá. No caso de Juegos miméticos, a
deriva sonora10 foi planejada com um alto grau de consciência sobre os sons que poderia registrar. A
ideia de incorporar o fluxo de sons próprio da paisagem não deixa de ser idiossincrático a outros

10“As derivas sonoras são uma adaptação das derivas cartográficas, com o objetivo de voltar a atenção para as
sonoridades urbanas: ambos procedimentos estabelecem um trajeto no espaço urbano que será percorrido e registrado –
no caso da deriva cartográfica, com o auxílio de gravadores digitais de som.” (MARRA & GARCIA, 2012, p. 50).
trabalhos meus. Poderia captar os sons e editá-los modificando a localização dos eventos dentro do
fluxo temporal. Minha escolha tem a ver com duas questões: a) que a peça se assemelhe o máximo
possível à paisagem estudada, b) usar a sequência de eventos do cotidiano como uma forma de
geração de formas musicais.

2) A composição da parte eletrônica

O processo de composição da parte eletrônica pode ser dividido em duas partes. Na


primeira fiz uma “limpeza” de ruídos desnecessários, como sons de manipulação do gravador
portátil ou de vento. O processo é demorado porque devem ser trabalhados cada um dos cross-fade
de forma cuidadosa, já que um áudio de paisagem sonora pode mudar sua sonoridade de fundo em
questão de segundos e a “costura” dos diferentes trechos pode ficar exposta, o que tiraria “realismo”
do retrato da situação representada na composição. Alguns sons “indesejáveis”, no entanto, podem
ser suprimidos sem corte nos áudios com equalizadores que eliminem as faixas de frequência
específicas ou com plug-ins do tipo noise reduction.

De qualquer forma, no processo de montagem há diversas tomadas de decisões. Quais


áudios escolho? Qual a duração dos momentos? Por mais fiel que pretenda ser à situação real há
alterações feitas pela necessidade de supressão de ruídos e decisões que são tomadas pelo fato de
ouvir o fluxo de sons no ambiente virtual: momentos “dramáticos”, momentos de vazio que podem
gerar expectativa, em fim, uma infinidade de pensamentos que atravessam esse momento do
trabalho. No meu postal sonoro Barra da Lagoa,11 por exemplo, decidi juntar dois momentos
diferentes do áudio, a captação dos sons do canal da Barra quando deságua no mar e as captações
no ponto de entrada da água da Lagoa no canal. Na peça há uma transição suave de um momento a
outro que não retrata a realidade da captação, que foi interrompida por não ter uma rua que
acompanhe todo o trajeto a beira do canal. Se tivesse captado essa caminhada entre os dois pontos
que me interessavam a peça teria uma duração muito maior. A decisão do evento sonoro que
encerraria a peça também foi pensada expressivamente: a passagem de uma lancha de pescadores
que gerou ondas maiores no canal. Esse evento foi identificado como uma boa “cadência” final.

Em Juegos miméticos, no entanto, trabalhei de forma diferente no que se refere ao


tratamento dos áudios do que nos postais sonoros. Se o postal tem como premissa deixar o som o
mais inalterado possível, em Juegos miméticos houve uso de diversos plug-ins: compressão, filtros,
delay e reverb. Houve uma mixagem de áudios originais (ou levemente modificados) com áudios
processados, de forma a destacar a expressividade de alguns eventos pontuais, porém, preservando
uma sensação de imersão na paisagem, seguindo a prática habitual da soundscape composition:
"The soundscape composition always keeps a clear degree of recognizability in its sounds, even if

11Disponível em: https://rederadioarte.com/ricardo-villena/. O termo “postal sonoro” tomo emprestado do


compositor uruguaio Ulises Ferretti. Nestas peças a ideia é registrar um ambiente característico (e que
pode ser um local turístico) com o intuito de ser uma “lembrança sonora”.
some of them are in fact heavily processed, in order that the listener's recognition of and
associations with these sounds may be invoked.” (TRUAX, 2002, html).

Acredito que esta decisão não implica em desvio sobre a ideia original da peça ser um
laboratório para uma peça a ser executada no local de estudo porque as relações de semelhança
ainda existem, já que os processamentos não modificaram o áudio original ao ponto de não ser mais
reconhecível.

3) A composição da parte do violino

A parte do violino foi composta após ter sido composta a parte do tape. A estratégia
principal (explícita no título) foi procurar relações de semelhança entre os materias ambientais e os
materiais instrumentais. Para tal, seguindo práticas de trabalhos anteriores, fiz uso de técnicas
expandidas. Os materiais instrumentais foram escritos de forma a ficar próximos ou ter seu ataque
simultâneo com os sons da paisagem que pretendiam evocar. Por ser uma peça para instrumento
sólo os gestos foram compostos de sonoridades simples mas do que híbridas. En geral, há
predomínio de sonoridades aperiódicas ou mistura de som e ruído. Apresento a seguir a lista das
técnicas empregadas (expandidas ou não) relacionando-as aos sons do áudio ambiental, seja em
“estado puro” ou processadas por meio de plug-ins:

Técnica Som imitado Tipo de integração

chicharra ranger de porta gestual

batida col legno battuto batida da porta com delay gestual

glissandi carros passando (efeito por alturas e gestual


Doppler)
pizzicato cantos de pássaros rítmica e gestual (com variação)

ricochet cantos de pássaros rítmica e gestual

batida na caixa harmômica batida de porta procesada gestual

battuto nos microafinadores barulho de chaves mexendo rítmica

battuto no cavalete porta batendo (seco) gestual

pizzicato Bartok estalido gestual

chicharras do c. 53 ao 59 graznido de ave gestual e rítmica


escalas de harmônicos naturais cantos de aves gestual

harmônicos artificiais cantos de aves gestual


gesto de duas notas em vocalização de pombos por alturas, rítmica e gestual
segunda maior descendente
Técnica Som imitado Tipo de integração

arco raspando col legno frequência grave de fundo de por alturas


carros
arco (crinas) passando no objeto de papelão sendo integração gestual
borde da caixa harmônica raspado
trinados motor de carro ou camionete por alturas e gestual

glissando descendente canto de pássaro por alturas e gestual

Tabela: análise dos tipos de integração.

Estas associações simbólicas entre um som ambiental e uma técnica ou gesto foram feitas
seguindo diferentes critérios de semelhança paramétrica: altura, timbre, ritmo, rugosidade, ação
física similar. Em alguns casos as técnicas conseguem uma proximidade satisfatória com os som
real, em outras evocam mais o que definiríamos como um “impulso” parecido. Quando na escuta do
áudio mais de um som captava a atenção optei por intercalar mais de uma técnica ou escolher algum
dos sons da trama da paisagem para estabelecer a relação de semelhança.

Considerações finais

Das três possibilidades de integração mencionadas inicialmente (diálogo, fusão e


simultaneidade) em Juegos miméticos trabalhei a ideia de diálogo. Os sons criados para a parte do
violino foram derivados da escuta dos eventos sonoros da paisagem, procurando, antes que nada,
relações de semelhança. A análise nos revelou o uso dos três tipos de integração apresentadas por
Oliveira & Oliveira trabalhadas de forma a preservar a identidade da paisagem. Porém, essa
classificação, embora seja útil analiticamente, não me parece estar de acordo com o que me levou à
tomada de decisões. O fator principal para assumir o emprego de uma técnica nesta peça foi a
semelhança tímbrica entre o evento da paisagem e a técnica instrumental. Por outro lado, devo
destacar que meu trabalho apresenta uma postura estética particular que me levou à preservação da
referencialidade nos sons do tape, à procura por sons miméticos nos instrumentos acústicos e ao uso
do fluxo temporal de eventos sonoros da paisagem como modelo formal. Algumas reflexões se
fazem presentes para a composição das próximas peças: 1) a necessidade de uso de um instrumento
com maior faixa de frequências (piano, por exemplo), ou um ensemble de forma a estabelecer
relações mais amplas; 2) a possibilidade de aplicar processos de variação musical mais complexos
sobre os materiais instrumentais (observando o comportamento dos eventos na paisagem real de
forma que estas variações não se desviem de sua função referencial); 3) testar as outras formas de
relação entre meios (fusão e simultaneidade); 4) avaliar o uso de outras formas de estabelecimento
de semelhança ou procedimentos de integração como, por exemplo, os campos indiciais catalogados
por Denis Smalley.12

12 Sobre os campos indiciais de Smalley ver Quaranta (2013).


Bibliografia

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