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violino e eletrônica
Introdução
Este trabalho faz parte de uma pesquisa que surgiu de uma pergunta final da minha tese
(VILLENA, 2017) que abordou as relações entre paisagens sonoras e composições feitas com meios
acústicos a partir de três perspectivas de trabalho: 1) composições para instrumentos acústicos
convencionais a serem apresentadas em ritual habitual de sala de concerto (peças para palco), 2)
composições em que são usados objetos do cotidiano presentes nos locais de estudo das paisagens
por sua capacidade referencial de sons característicos, 3) composições para serem executadas em
locais específicos, em que a paisagem sonora intervém e pode alterar os rumos da composição.
Dessas três propostas, a última originou as perguntas que motivaram esta nova pesquisa.
Antes que nada devo esclarecer que compreendo a participação dos sons ambientais
como elemento de indeterminação, isto é, como algo inesperado e imprevisível. Não temos como
prever quais dos sons característicos da paisagem surgirão no momento da performance, mudando
(em maior ou menor grau) os rumos da performance. No portfólio do doutorado realizei dois
experimentos para quarteto de flautas doce: Parquinho Cumbaca I1 e Parquinho Cumbaca II.2
Ambas peças foram concebidas para serem executadas no mesmo local: um parquinho com jogos
infantis numa praça do bairro Vila A, na cidade de Foz do Iguaçu. As peças apresentaram diferentes
tipos de indeterminação.
Estas experiências foram satisfatórias dentro da pesquisa como ponto de partida, mas,
diferentemente das peças feitas dentro das outras propostas, não pareciam conter em si uma
capacidade de autogeração de ideias tão forte. A pergunta que surgiu foi: como enriquecer a
construção de relações entre sons ambientais e sons instrumentais para peças executadas em
ambientes específicos e que considerem a paisagem sonora como partícipe da obra? Imaginei que a
resposta viria de um estudo mais sistemático em um ambiente mais previsível, o estúdio digital.
Lembrei de trabalhos de eletroacústica mista que combinam uma parte eletrônica gerada a partir de
sons de paisagens sonoras com uma ou mais partes para instrumentos acústicos.
Neste primeiro artigo de uma pesquisa a longo prazo vou me debruçar inicialmente no
trabalho do compositor brasileiro Rafael de Oliveira, especificamente nas discussões presentes no
seu artigo (em parceria com João Pedro de Oliveira) Modelos de integração entre sons
instrumentais e paisagens sonoras (2012). Pretendo discutir as ideias elencadas pelos autores com
minhas próprias propostas estéticas em relação à composição baseada na ecologia acústica. Estas
discussões levaram a desenvolver estratégias de composição de uma peça mista, entendendo que
essa experiência, por sua vez, definirá propostas poéticas para a composição de peças para serem
executadas no mesmo local nas quais a paisagem sonora não será “formatada” por meu pensamento
compositivo, senão que agirá na obra de forma espontânea.
Um primeiro ponto que gostaria de apontar é a apresentação dos autores das possíveis
formas de integração entre as partes. Eles mencionam duas opções, inicialmente: os elementos das
duas partes podem ser colocadas em “paralelo” ou “criar diálogos sintáticos e musicais que se
integram no corpo da obra [de forma a expandir] as possibilidades sonoras dos instrumentos
acústicos” (OLIVEIRA & OLVEIRA, 2012, p. 223). A estas duas opções é necessário acrescentar
outras formas de relação entre os meios: (a) fusão - conceito bastante difundido em trabalhos de Flô
Menezes e Rodolfo Coelho de Souza - e (b) a convivência de sons sem integração - conceito
retirado de Ulises Ferrtti (2010).
A ideia de “fundir" as sonoridades vêm à tona quando discutem as relações espectrais
entre as partes (p. 225). Embora a semelhança no espectro possa servir a um propósito de “diálogo”,
é vinculada, geralmente, a estratégias de fusão e contraste.3 A “fusão” implica uma relação diferente
ao “diálogo”, já que num diálogo há muitas vezes oposição de ideias, divergência. No Dicionário
online de Português4 vemos definições diversas do termo, entre as quais a passagem do estado
sólido ao líquido (ponto de fusão), mas majoritariamente empregos do termo como sinônimo de
“fundir-se”, isto é, duas coisas diferentes que se tornam algo único. Um exemplo substantivo de
uma peça mista em que os meios se fundem é Estesia5 (2007) de Rodrigo Avellar de Muniagurria,
em que sons de clarinete (ao vivo) são misturados com o tape composto majoritariamente por sons
de onda quadrada. O espectro sonoro similar torna possível a “confusão” na cabeça do ouvinte, que
não consegue distinguir de forma clara quando os sons são eletrônicos e quando provém dos
clarinetes, já que tanto a onda quadrada quanto o som do clarinete destacam mais os parciais
ímpares da série harmônica. O outro conceito, denominado aqui de “convivência" foi sugerido
como tal pelo compositor uruguaio Ulises Ferretti:
Mais uma questão importante que se desprende da leitura do artigo de Oliveira &
Oliveira é a divergência e certa contradição entre os materiais sonoros dos dois meios. Entende-se
corriqueiramente que os sons instrumentais são materiais “abstratos" e os sons ambientais
“referenciais”. Enquanto os primeiros fazem alusão a si mesmos, a um suposto mundo “autônomo"
5https://soundcloud.com/rodrigo-avellar/estesia-2007
1. uma certa neutralidade destas unidades (vazio de significação), [...] 2. que estas unidades
preservavam suas propriedades independente do modo como estivessem combinadas
(independência do contexto). [...] 3. é a estrutura aquilo que confere coerência e unidade à
obra musical. Em outras palavras, a significação da obra se identifica com sua estrutura, o
que termina por supervalorizar a estrutura e conferir à obra uma perspectiva formalista.
(ZAMPRONHA & CORADINI, 2005 p. 2).
7 Por exemplo: várias pessoas que ouviram minha peça Xon ahuiyacan pensaram que a batida na harpa do piano era
produzida por um instrumento de percussão.
8 Ver CAMACHO (2010).
9 Sobre estes autores recomendo a leitura do trabalho de GILMURRAY (2012).
O grande problema ao me deparar com a proposta do meu trabalho é que ele transcende
a questão dessa relação no meio eletroacústico. Se a ideia fosse compor exclusivamente dentro da
proposta de Oliveira esta discussão seria meramente estética e implicaria uma forma de se expressar
particular de dois compositores. Contudo, quando observamos que a peça eletroacústica mista serve
também como estudo que cimenta as bases para peças em que os sons instrumentais se relacionam
de forma direta com sons ambientais a opção mais apropriada parece ser a procurar a
referencialidade e se afastar da abstração, a não ser que queiramos “interferir” com sons no meio
ambiente em vez de ouvir e “dialogar”, procurando “falar a língua” da paisagem sonora.
Após uma revisão de literatura inicial os autores propõem três tipos de modelos de
integração: 1) integração rítmica, 2) integração de alturas e 3) integração gestual. Vou analisar os
aspectos mais relevantes destas propostas para avaliar quais delas podem ser empregadas em meu
trabalho compositivo.
Outro aspecto abordado, a alteração de ritmos na parte da paisagem sonora para criar
relações de semelhança com a parte instrumental, embora muito válida para a proposta dos autores
(e para esta relação paisagem sonora / instrumentos na música eletroacústica mista), não é muito útil
a minha pesquisa por dois motivos: a) sendo que minhas peças mistas servem de laboratório para
peças que usam a paisagem como elemento de indeterminação, de que serviria, neste caso, mudar a
paisagem?, b) adaptar os sons da paisagem aos sons instrumentais pode levar a trabalhá-la a partir
de critérios de estruturação abstratos que não considerem seus materiais em suas relações
contextuais do local de onde foram retirados ou, em um caso extremo, acabar tratando os materiais
ambientais como materiais “neutros” (lembremos Zampronha & Coradini). Se bem na obra em
questão os materias não perdem seu caráter simbólico, deve-se advertir esse risco no uso deste
procedimento.
Finalmente, apresentam a integração gestual, na minha opinião o modelo mais útil a esta
integração entre sons ambientais e sons instrumentais. O gesto, segundo Sullivan (1984) é uma
configuração de caráter híbrido (diferentemente do motivo) que é composta por elementos
provenientes de diversos materiais sonoros e parâmetros. Os sons de uma paisagem geralmente não
são sons “puros”, senão que apresentam misturas de sonoridades periódicas e aperiódicas, com
comportamentos espectro-morfológicos diversos. O gesto musical, de qualquer forma, não se reduz
a sonoridades curtas, e nesse sentido é muito relevante que os autores mencionem a aplicação do
conceito a um nível macro-formal (Oliveira & Oliveira, p. 229-230). Gestos musicais podem definir
o comportamento de uma trama sonora em trechos que duram vários minutos, como se observa em
peças de Iannis Xenakis ou de Júlio Estrada, por exemplo.
A composição de Juegos miméticos iniciou com uma gravação da paisagem sonora matinal
do bairro Vila A. Registrei uma caminhada que iniciou dentro da minha casa, com os barulhos de
abrir porta, os sons presentes na rua, na caminhada, até chegar a um bosque, onde permaneci
sentado num tronco caído. O bairro Vila A tem como característica ser bastante silencioso por ter
sido planejado como bairro residencial. O traçado de suas ruas impede o trânsito rápido em algumas
regiões por ter praças que obrigam os motoristas a se deslocar às avenidas. Como podemos ver no
mapa embaixo o motorista que pretender ir no sentido leste-oeste necessariamente terá que ir pela
av. Gramado ou a av. Sílvio Sasdelli.
Figura: mapa do bairro Vila A (Foz do Iguaçu), na região de captação da paisagem sonora.
A caminhada de gravação da paisagem percorreu tres quadras de uma rua interna até
chegar a um bosque plantado pelo homem na avenida Gramado (ver mapa), com uniformidade de
espécies, o que implica na definição de duas seções de características diferentes. A parte do bosque
evidentemente terá mais presença de pássaros e irrupções de trânsito mais intensas. No entanto, a
captação no bosque foi feita em um local com um grau considerável de afastamento em relação à
avenida e os árvores criaram uma barreira acústica. Fiquei imaginando a paisagem do bosque no
amanhecer com uma maior intensidade de cantos de pássaros.
Entendo pelo exposto, que a captação dos áudios é um processo pré-compositivo em que se
estabelece, de certa maneira, a forma musical que a peça terá. No caso de Juegos miméticos, a
deriva sonora10 foi planejada com um alto grau de consciência sobre os sons que poderia registrar. A
ideia de incorporar o fluxo de sons próprio da paisagem não deixa de ser idiossincrático a outros
10“As derivas sonoras são uma adaptação das derivas cartográficas, com o objetivo de voltar a atenção para as
sonoridades urbanas: ambos procedimentos estabelecem um trajeto no espaço urbano que será percorrido e registrado –
no caso da deriva cartográfica, com o auxílio de gravadores digitais de som.” (MARRA & GARCIA, 2012, p. 50).
trabalhos meus. Poderia captar os sons e editá-los modificando a localização dos eventos dentro do
fluxo temporal. Minha escolha tem a ver com duas questões: a) que a peça se assemelhe o máximo
possível à paisagem estudada, b) usar a sequência de eventos do cotidiano como uma forma de
geração de formas musicais.
Acredito que esta decisão não implica em desvio sobre a ideia original da peça ser um
laboratório para uma peça a ser executada no local de estudo porque as relações de semelhança
ainda existem, já que os processamentos não modificaram o áudio original ao ponto de não ser mais
reconhecível.
A parte do violino foi composta após ter sido composta a parte do tape. A estratégia
principal (explícita no título) foi procurar relações de semelhança entre os materias ambientais e os
materiais instrumentais. Para tal, seguindo práticas de trabalhos anteriores, fiz uso de técnicas
expandidas. Os materiais instrumentais foram escritos de forma a ficar próximos ou ter seu ataque
simultâneo com os sons da paisagem que pretendiam evocar. Por ser uma peça para instrumento
sólo os gestos foram compostos de sonoridades simples mas do que híbridas. En geral, há
predomínio de sonoridades aperiódicas ou mistura de som e ruído. Apresento a seguir a lista das
técnicas empregadas (expandidas ou não) relacionando-as aos sons do áudio ambiental, seja em
“estado puro” ou processadas por meio de plug-ins:
Estas associações simbólicas entre um som ambiental e uma técnica ou gesto foram feitas
seguindo diferentes critérios de semelhança paramétrica: altura, timbre, ritmo, rugosidade, ação
física similar. Em alguns casos as técnicas conseguem uma proximidade satisfatória com os som
real, em outras evocam mais o que definiríamos como um “impulso” parecido. Quando na escuta do
áudio mais de um som captava a atenção optei por intercalar mais de uma técnica ou escolher algum
dos sons da trama da paisagem para estabelecer a relação de semelhança.
Considerações finais
BARRA DA LAGOA. Postal sonoro de Marcelo Villena. 7’50”. Disponível em: https://
rederadioarte.com/ricardo-villena/
CAMACHO, Gonzalo. Culturas musicales del México profundo. In: A tres bandas, mestizaje,
sincretismo e hibridación en el espacio sonoro iberoamericano. Madrid: Edições Akal, 2010.
MARRA, Pedro S.; GARCIA, Luiz H. Ouvir música na cidade: experiência auditiva na paisagem
sonora urbana do hipercentro de Belo Horizonte. In: Contemporânea. Rio de Janeiro, Vol. 10, n. 2,
2012, p. 43-57.
OLIVEIRA, Rafael; OLIVEIRA, João Pedro. Modelos de integração entre sons instrumentais e
paisagens sonoras. In: IV Seminário Música Ciência e Tecnologia: Fronteiras e Rupturas, 2012,
São Paulo, USP. p. 223-230.
PARQUINHO CUMBACA II. Composição de Marcelo Villena. 6’55”. Disponível em: https://
www.youtube.com/watch?v=Fc-L1cSOY1Y
SOUZA, Rodolfo Coelho de. Abstração e representação na música eletroacústica. Revista Vórtex,
Curitiba, n.1, 2013, p.23-35.
SULLIVAN, Mark Valentine. The performance of gesture: musical gesture, then, and now. Tese
de doutorado. University of Illinois at Urbana-Champaign, 1984.
TRUAX, Barry. Genres and Techniques of Soundscape Composition as Developed at Simon Fraser
University. Disponível em: <http://www.sfu.ca/~truax/OS5.html> Acesso em: 21/03/2011
VILLENA, Marcelo Ricardo. Paisagens sonoras instrumentais. Um processo compositivo
através da mímesis de sonoridades ambientais. Dissertação de mestrado. UFPR, 2013.
________________________/. Escuta e referencialidade. Composição em diálogo com o meio
ambiente. Tese de doutorado. UFMG, 2017.