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Philips Pavilion: Uma relação entre

Arquitetura e Música

Curso: Mestrado em Estudos e Gestão da Cultura


Unidade curricular: História da Arte

Docente: Professora Paula André


Discente: José Maria Da Costa Reis Duarte Vieira Nº 103347
Introdução

Na sequência do enunciado proposto para a disciplina de História de arte, optei pelo exercício
número dois. Escolhi então elaborar um ensaio que explore as complexas relações entre a
arquitetura e a música, utilizando uma obra que, como aqui argumentarei, possui fortes
analogias entre diversas dimensões artísticas, em especial com estas duas.

A arquitetura é muitas vezes encarada como a mais duradoura das artes. Mas para pavilhões
com desígnio expositivo, o paradigma é bem diferente. O Philips Pavilion foi uma obra
encomendada (pelo gigante tecnológico Philips) aos escritórios de Le Cobusier, com o intuito
de exibir os seus artigos numa configuração menos convencional. Ocupado com outro projeto
na Índia, Le Cobusier consagrou a ideia, mas designou o projeto arquitetónico a Iannis
Xenakis, seu protegido. Composta pela ideia inicial de conter um Poème électronique, o
projeto acaba por ser desenvolvido e exposto na feira de Bruxelas de 1958, e demolido um
ano depois. Hoje é uma das mais corajosas abordagens à arte conceptual, cruzando luz, som,
arquitetura, escultura, cinema e música; desafiando os limites e as relações de entre todas
estas.

Pretendo então traçar um paralelismo entre a arquitetura e a música, assente na ideia de


fenómeno: de um objeto ou uma ideia que aparece, ganha corpo, existe e é detetável aos
sentidos; até que deixa de existir.
Arquitetura e Música

“Architecture is frozen music”

Johann Wolfgang von Goethe

As relações e paralelismos entre o Som e a Arquitetura são objeto de atenção crítica há


diversas décadas, da perspetiva filosófica à perspetiva física, desde os processos de
construção do objeto artístico à conceptualização dos componentes onde assenta essa
construção. E embora sejam matérias constantemente separadas (especialmente pela obra de
arte), estes paralelismos são tão próximos que se influenciam (sendo o mais antigo exemplo
situado na Antiga Grécia, com a construção dos anfiteatros, as primeiras construções com
objetivo de enformar o som de forma deliberada) e se entreajudaram na sua evolução
(observe-se o avanço tecnológico nos meios de audição musical com o aparecimento da
imagem stereo, assente na espacialização dos elementos sonoros; ou a arquitetura de igrejas e
catedrais por toda a Europa, especialmente com os movimentos Gótico e Barroco, construídas
com o (também) intuito de abrigar a característica reverberação que identifica a música
religiosa).

São vários os integrantes empregues nos processos de criação que dois domínios partilham. A
relação (argumentativamente) mais exposta é a dualidade do ritmo e da simetria. Ritmo em
Música, entende-se pela colocação de sons numa determinada divisão temporal. Embora a
origem da palavra derive diretamente de “Rhein” (conceito grego que significa “fluir”), Ritmo
expressa a repetição e possui a aptidão de determinar as sensações que uma determinada peça
transmite (ao determinar um compasso de tempo, dividir esse compasso em mais repetições
resulta numa sensação de maior êxtase, ao passo que uma divisão com menos reproduções
transmite uma sensação mais sossegada). O mesmo pode ser utilizado em Arquitetura, mas é
referido à repetição de objetos que compõem um determinado plano através da simetria. A
simetria, por seu lado e contrariamente ao compreendido como apenas o resultado da reflexão
geométrica, trata-se da relação proporcional entre os objetos: “Symmetry to the Greeks
proceeded from proportion. Symmetry is the relationship by measurement between the
various elements of a building. It expresses the repetition of proportions or of columns,
beams, or any other building element. Today, symmetry in mathematics refers to many more
rhythmic devices other than reflection”1. Em ambas as áreas, o ritmo revela-se como uma
componente nuclear na forma como o objeto artístico se exprime. Um ritmo monótono,
equipolente e sem variação pode retirar vitalidade à obra. Associado a este, temos a
proporção. Em arquitetura, refere-se à relação entre os diversos integrantes que resulta no
efeito do todo. Em música está também relacionada com a relação entre as intensidades de
cada região de frequências. Em ambos os domínios, estes dois constituintes da obra destapam
a intenção da obra e ditam como nos relacionamos com a mesma.

A terceira componente, resultante das duas anteriores, trata-se da dinâmica. Em arquitetura,


falamos de dinâmica quando a obra exprime um movimento, um senso energético de ação
(como abóbadas ou linhas curvilíneas). Em música, falamos de como o volume trabalha em
função da narrativa musical (a forma como uma secção, como um refrão ou um verso, se
eleva em volume por um determinado espaço de tempo).

Um quarto conceito que intercepta as duas matérias é a textura. A textura é o tato, a


consistência ou a compreensão de uma dada superfície. Em música, trata-se do arranjo de
sons por timbre e tipologia, como ritmos, melodias, harmonias, instrumentos, etc… Em
arquitetura, a textura é diretamente relacionada com os materiais. Ambas possuem um papel
vital na forma como compreendemos a intenção da obra, ou como nos relacionamos
emocionalmente com o espaço ou a paisagem sonora.

A última e mais importante componente, muitas vezes afirmada como a responsável pela
qualidade do que é belo, é a harmonia. Abordar a harmonia em tão pouco texto não lhe faz
justiça, visto que se trata de uma matéria há muito estudada. Em arquitetura, harmonia é o
resultado da disposição dos diversos elementos e sensações. É o equilíbrio da obra, a
combinação dos integrantes que formam um todo e criam a sensação, inclusive a disposição
dos diferentes espaços e como interagem. Em música falamos da justaposição de notas
musicais, que em várias combinações possuem resultados diferentes: podem ser consonantes e
produzem harmonias agradáveis e familiares; ou podem ser dissonantes, conhecidas como

1
Petreski, Marko, in “The Architecture of Music” (2016), pp.35
desagradáveis porque as noas possuem estranhas e complexas relações quando tocadas em
uníssono.

Embora estes sejam alguns conceitos utilizados nos processos de criação de obras tanto
arquitetónicas como musicais, eu afirmo que a dualidade vai mais longe. Toda a obra artística
resultante de ambas as áreas resulta de uma tradução de convicções, códigos e sensações que
o artista pretende deslocar. Tentando não me focar muito na interpretação da criação artística
(pois é uma matéria consideravelmente complexa que não consigo explorar aqui), eu
argumento que um arquiteto usufrui estas ferramentas que aqui referi, e estas são aplicadas
aos contextos espaciais em que assenta a obra, para o resultado emotivo que se traduz pela
visão do espectador. O mesmo se aplica à música. A composição musical serve-se destes
instrumentos para um determinado resultado auditivo e emocional. Mas, é possível traduzir
uma obra musical para uma obra arquitetónica?

Xenakis, Le Cobusier e Vàrese

Uma das grandes diferenças entre a arquitetura e o som trata-se da questão da temporalidade.
Um som funciona como um fenómeno, é criado pela vibração de partículas, interage com o
espaço por meios de transferência de energia (do material que vibra para o ar, depois para os
materiais do espaço, onde se reflete e refreta), e deixa de existir. A obra arquitetónica não
funciona da mesma forma: um edifício deixado ao abandono é tomado pelo ambiente que o
rodeia, mas não deixa de existir. No entanto, há obras arquitetónicas que possuem curta
duração, de forma deliberada.

O Philips Pavilion2 foi um pavilhão construído para a feira de Bruxelas de 1958, criado por
Le Cobusier, Iannis Xenakis e Edgard Vàrese. Foi encomendada pela Philips aos escritórios
de Le Cobusier que concebeu a primeira ideia: um Poème Eletronique. Como já referido,
ocupado com outros projetos, entregou a tarefa de desenhar o edifício a Xenakis, seu

2
Figura nº 1
protegido na altura. A ideia seria uma composição cinematográfica ao som do que viria a ser o
Poème Eletronique (peça composta por Vàrese) num pavilhão com apenas uma ideia inicial:
um estômago de uma vaca3. A obra viria a conter uma narrativa sobre a evolução tecnológica
do Homem.

Embora Le Cobusier tenha concebido a ideia, foi na seleção fotográfica e na projeção de cor
do espetáculo de oito minutos onde foi mais interventivo. Xenakis, por seu lado, foi um
arquiteto e compositor de música eletroacústica, e o autor arquitetónico neste projeto. É na
liberdade criativa dada por Le Cobusier (que apenas exigiu que fosse um edifício capaz de
conter a obra) que Xenakis encontra a possibilidade de conceber pela primeira vez uma obra
arquitetónica inteiramente da sua autoria. É em “Music and Architecture”4 que o autor
“explica não só o processo, mas a “necessidade interior” do Philips Pavilion5.

A arquitetura da peça é consideravelmente complexa. É composta por nove paraboloides


hiperbólicas compostas assimetricamente para criar contornos dinamicamente angulares de
cimento. Para melhor suportar a estrutura, foram utilizados cabos de aço, que criam uma
imagem ainda mais retiforme6. Em “Music and Architecture”7 Xenakis explica que conduziu a
ideia através de uma das suas composições: “Metastasis”, de 1955. “Metastasis” é uma obra
musical atonal (em que as notas não se encontram na configuração da escala musical
ocidental), composta maioritariamente por glissando (passagens suaves de uma frequência
para outra mais aguda). À semelhança do termo médico, o glissando vai de um ponto a outro
sem quebrar continuidade. Aplicado à obra de Xenakis, a ideia foi semelhante 8, procurando
desenhar um edifício com linhas bastante compridas, e que transmitissem uma dinâmica
fluida: “In the Philips Pavilion I realized the basic ideas of Metastasis (sic): as in the music,
here too I was interested in the questiono f whether i tis possiblee to get from one point to
another without breaking the continuity. In Metastasis this problema led to glissandos, while
in the pavilion it resulted in the hyperbolic parabola shapes” 9. Durante a entrada de
3
Figura nº 2
4
Xenakis, Iannis “Music and Architecture- architectural projects, texts, and realizations”” (1971), Pendragon
Press, Hillsdale, New York
5
Xenakis, Iannis “Music and Architecture- architectural projects, texts, and realizations”” (1971), Pendragon
Press, Hillsdale, New York, pp. 98 (traduzido pelo autor)
6
Figura nº 3
7
Xenakis, Iannis “Music and Architecture- architectural projects, texts, and realizations”” (1971), Pendragon
Press, Hillsdale, New York, pp. 99
8
Figura nº 4
9
Xenakis, Iannis “Music and Architecture- architectural projects, texts, and realizations”” (1971), Pendragon
Press, Hillsdale, New York, pp. 99
espectadores, antes da peça começar, podia-se ouvir outra composição de Xenakis, composta
ela também pela ideia de glissandos: “Concrete PH” de 1958.
Várese, em 1966, escreve para a revista “Perspectives of New Music”10 sobre as dimensões da
música (verticais, horizontais e a dinâmica “swelling or decreasing”11), e refere : “ I shall add
a fourth, sound projection – that feeling that sound is leaving us with no hope of being
reflected back”12. É aqui, no Philips Pavilion que vê este desejo ser realizado: o de incorporar
esta “quarta dimensão” através de um sistema de 11 canais com uma estimativa de 300 a 400
amplificadores, que criaram 9 “Sound Routes”13. Esta organização espacial do som foi talvez
um dos aspetos mais revolucionários do pavilhão, pois praticamente submergia o público na
peça.
“Poème Eletronique” foi uma mistura de sons eletrónicos, ruído e notas musicais composta
num estúdio providenciado pela Philips em Eindhoven. É uma peça de oito minutos que se
revela como uma das pioneiras do movimento avant-gard, unificada maioritariamente no
desenvolvimento tecnológico que permitiu a revolução e posterior ascensão da “música
espacial”, centrada nesta conceptualização do espaço como característica essencial na
composição: “This poetics was firmly grounded within Euclidean and Cartesian models of
space, concerned with such elements as: the location of sound objects within three-
dimensional space; the movement of sounds along sound routes or trajectoires sonores; the
segmentation of (absolute) space for the purposes of serialisation; and the idea of time–space
as an empty container wherein sounds can develop”14. No que toca à receção, a peça recebeu
críticas dispares. O que melhor descreve este efeito de “quarta dimensão” disse : ”one no
longer hears the sounds, one finds oneself literally in the heart of the sound source. One does
not listen to the sound, one lives it (Ouellette 1968: 201–2; in Born, G. (2013: 75))15.

10
Varèse, E., & Wen-chung, C. (1966). The Liberation of Sound. Perspectives of New Music, 5(1), 11–19.
11
Varèse, E., & Wen-chung, C. (1966). The Liberation of Sound. Perspectives of New Music, 5(1), pp. 18
12
Varèse, E., & Wen-chung, C. (1966). The Liberation of Sound. Perspectives of New Music, 5(1), pp. 18
13
Trieb, M. 1996 Space Calculated in Seconds: The Philips Pavilion, LeCorbusier, Edgard Varèse, Princeton
University Press
14
Born, G. (Ed.). (2013). Music, Sound and Space: Transformations of Public and Private Experience.
Cambridge: Cambridge University Press, pp.76
15
Born, G. (Ed.). (2013). Music, Sound and Space: Transformations of Public and Private Experience.
Cambridge: Cambridge University Press, pp.75
Conclusão

Estas conceptualizações das relações e campos partilhados entre a Arquitetura e a Música são
hoje bastante estudadas e analisadas. Mas nem sempre foi assim. Embora a arquitetura se
tenha sempre relacionado com o som, como é o caso dos anfiteatros gregos, catedrais
europeias nos movimentos Barroco e Gótico, mais recentemente equipamentos culturais como
teatros e cineteatros; a relação inversa sempre foi limitada. Com a ascensão da música
eletroacústica e do movimento avant-gard composto, nesta matéria, por artistas como Vàrese,
Xenakis, John Cage, Neuhaus, Stockhausen e Steve Reich (para nomear alguns); que se
debruçaram muito sobre estas questões da música como matéria plástica, refém do local de
onde nasce (som como fenómeno); e com a ascenção de meios tecnológicos que destruíram
diversas barreiras na materialização da música; hoje, creio eu, que esta relação é ainda mais
evidente.
Bibliografia

Born, G. (Ed.). (2013). Music, Sound and Space: Transformations of Public and


Private Experience. Cambridge: Cambridge University Press, pp. 73-111 e 151-169

Trieb, M. 1996 Space Calculated in Seconds: The Philips Pavilion, LeCorbusier,


Edgard Varèse, Princeton University Press

Varèse, E., & Wen-chung, C. (1966). The Liberation of Sound. Perspectives of New


Music, 5(1), 11–19

Xenakis, Iannis “Music and Architecture- architectural projects, texts, and


realizations”” (1971), Pendragon Press, Hillsdale, New York, pp. 90 -110

Petreski, Marko, in “The Architecture of Music” (2016), pp.11-60


Anexos
Figura nº1 - Philips Pavilion
Figura nº3 - Philips Pavilion – cabos de
aço
Figura nº4 – Metastasis (1954) de Iannis
Xenakis - Pauta

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