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O som no espaço e o espaço no som: abordagens sobre a especulação da

performance na difusão eletroacústica da obra (Re)Canto de pássaros

Alvaro Henrique Borges

Introdução

Além do momento da concepção da obra, em que, buscando uma escuta musical do


espaço, o compositor é lançado a uma diversidade de procedimentos "cirúrgicos" do som
que estimulam sua imaginação, no momento da difusão, esta especulação também ocorre
a cargo do intérprete e na atitude perceptiva dos ouvintes. Tal qual o compositor, mesmo
dialogando com o jogo de características da acústica do local, o interprete lança mão de
gestos metafóricos, os quais se revelam e fazem parte fundamental da estrutura
composicional. Desta feita, os dados sonoros, irão ocupar os planos de dimensão espacial
da escuta da obra. Com este aporte, partindo-se de uma tipologia composicional da
espacialidade através de análises e levantamento de ferramentária teórico-prática,
investigaremos um espaço que pode ser aventurado pelo intérprete eletroacústico, ou seja,
as implicações do pensamento composicional espacialista que podem ser desvelados no
momento da difusão. Para discorrer sobre esta temática será estudada a obra (Re)Canto
de pássaros (2005) do compositor Alvaro Borges, como um modelo prático ao interprete
eletroacústico, por meio de descrição analítica do processo composicional, desde o
momento da concepção da ideia poética até sua realização de fato, seguida de um
levantamento teórico acerca da tipologia do espaço composicional eletroacústico.
Salienta-se que esta segunda etapa se respalda na revisão da pesquisa realizada no período
de 2012 a 2014 pelo autor com publicação na Revista Científica da FAP (2014 vol.1) e
no periódico Música Hodie (2014 vol. 2) aplicada à performance de (Re)Canto de
pássaros.

O desenvolvimento deste estudo ocorreu a partir de uma fase preliminar, na qual


foram realizados levantamento e categorização de ferramentária básica para análises
teóricas e práticas adequadas ao repertório escolhido, ou seja, a música acusmática. Estes
procedimentos constituíram ações técnicas para organização, delimitação e
direcionamento do material disponível para o estudo. A partir da definição desta estrutura,
e em paralelo, ocorreram estudos de textos correlatos, análise da obra e ações
interdisciplinares com grupos de estudo da comunidade acadêmica do Campus de
Curitiba II da UNESP AR, os quais puderam delinear de forma mais estrita esta fase de
investigação. Alguns exemplos a serem citados são as atividades de ensino em disciplinas
de graduação e de pós-graduação ao longo do período de 2014 a 2016 com concertos
ocorridos neste período por diversas ocasiões em espaços acadêmicos e culturais.

Numa segunda fase, com a solidificação de uma base estrutural, técnica-teórico-


musicológica, o desenvolvimento da pesquisa se assentou em uma intervenção mais
direta, por meio da abordagem histórico-reflexiva, por avaliação de leituras, análises de
obras diversas e dados levantados na etapa anterior que fossem modelares para a pesquisa.
Esta etapa contemplou também atividades diversas, durante a programação anual do
pesquisador, que complementaram o processo reflexivo, tais como os concertos didáticos
experimentais, palestras, seminários e outras atividades.

Após levantamento bibliográfico, leitura doxográfica dos textos e definição das


ferramentas de análise, que fossem coerentes para a performance eletroacústica, bem
como a escolha e análise da obra modelo, alcançou-se a seguinte estrutura que orienta
este texto:
1) Definição da obra acusmática de referência a ser analisada:
- A obra escolhida foi (Re)Canto de pássaros de Alvaro Borges (Duração 8 min.
16 seg.), composta na cidade de Pouso Alegre, Minas Gerais, e finalizada no
Stúdio PANaroma/Unesp, na cidade de São Paulo, em 2005. ,

2) Definição dos parâmetros de análise da espacialidade em concerto para a obra


escolhida:
- O recorte elegido para esta definição foi, espaço externo, o qual observa a
percepção e a postura especialista do compositor/intérprete, que estão descritos
em monografia apresentada em relatório final 2014 de pesquisa institucional com
publicação em periódicos (Revista Científica da FAP e Música Hodie).

3) Contextualização e análise de (Re)Canto de pássaros, primeiramente sobre o


processo composicional e posteriormente sob o ponto de vista da performance
como revelação da espacialidade proposta na concepção da obra.
1. (Re)Canto de pássaros: modelo e concepção composicional espacialista
(espaço sonoro-musical e espaço local-poético)

1.1 Memória da poética em (Re)Canto de pássaros

Durante a segunda fase da pesquisa, e após diversas experiências de audições da


obra Ciclo Mítico (2003-2004), originalmente cogitada para a presente análise, optou-se
pela revisão da escolha e substituição daquela peça pela (Re)Canto de pássaros (2005).
Esta alteração ocorreu pela justificativa de que, no caso da primeira peça escolhida, uma
obra com diversidade de movimentos, tempo de duração longo e concepção em formato
quadrifônico, ou seja, mantendo a prescrição dos aspectos de performance já introjetados
no fonograma, poderia limitar as análises possíveis da atuação efetiva do intérprete no
concerto ao vivo. Em contraponto, a segunda peça, então escolhida, demonstra aspectos
adequados para os objetivos da especulação empreendida por se tratar de uma obra
estereofônica, ter sua completude em uma parte única, ser de duração menor e também
por ter sido apresentada em público em público diversas vezes.
É relevante saber que, (Re)Canto de pássaros foi concebida durante um momento
significativo para o compositor e este período determinou todo o enredo poético da obra.
Em 2005 o compositor residia na cidade de São Paulo, onde estudava/trabalhava e
convivia com um cenário sonoro urbano-metropolitano, que foi trocado, por cerca de
sessenta dias, pela paisagem sonora da cidade de Pouso Alegre no interior mineiro, local
escolhido para o nascimento de seu primeiro filho. Nesta temporada, a influência do
cenário ambiental, somado à expectativa do nascimento do filho, motivaram certa
renovação em se escutar o meio que o cercava.
Ao migrar-se temporariamente para um bairro periférico daquela cidade de interior,
o qual se circundava por um bosque de mata nativa, que abrigava uma fauna de gama
ampla incluindo principalmente pássaros, surge o incentivo pela novidade sonora e uma
curiosidade pelos sons ali presentes. Considerando que, por não ter cogitado trabalhar em
nenhuma composição naquele momento, também não portava nenhum aparato
tecnológico além do seu computador portátil (Apple G4 modelo M9689LL/A). Desta
feita, partindo daquela curiosidade pelos sons do local, foi percebido uma quantidade
significativa de espécies de aves e o compositor empenhou-se em realizar um catálogo de
sons daqueles pássaros. Foram coletados cerca de 50 sons, que foram registrados de forma
precária, mas apenas com a intensão de garantir a memória dos sons ouvidos.

Após o registro sonoro daquele catálogo de pássaros, que consumiu a primeira


quinzena do período da estadia, surgiu o insight da possibilidade de se realizar uma
composição servindo-se da poética voltada àquela paisagem sonora vivenciada (cf.
Katerine Norman, 2012). Entretanto, sem nenhum recurso tecnológico para trabalhar
aqueles sons por meio de processamento e tratamento sonoro, para uma obra acusmática,
surgiu a ideia de trabalhar a síntese sonora, diretamente no computador, partindo dos
modelos sonoros catalogados. Foram assim definidas diversas diretrizes técnicas acerca
da viabilidade de uso da síntese em detrimento ao processamento sonoro: a) os sons a
serem utilizados seriam gerados eletronicamente (digitalmente via software); b) Os
modelos do catálogo seriam os objetos sonoros a serem recompostos artificialmente (por
meio de síntese sonora) para garantir a qualidade da amostra; c) O discurso proposto seria
uma recriação artificial da paisagem sonora do local, isto é, esteticamente seria aplicado
um procedimento técnico-metodológico de composição eletrônica (enquanto material) à
ideia acusmática de composição (enquanto discurso); d) A composição seria elaborada
inicialmente fora do ambiente de estúdio, com recursos mínimos de processamento e de
monitoração de áudio com finalização posterior em estúdio; e) O prazo hábil para o
término da etapa de pré-produção da obra teria cerca de 30 dias.

1.2 Pré-composição, estruturação da obra e organização das análises

Considerando o detalhamento do memorial apresentado acima será discorrida uma


análise geral do processo composicional de (Re)Canto de pássaros ressaltando os aspectos
revelados pela obra acerca do discurso harmônico, da direcionalidade, de elementos
micro e macro estruturais, dos materiais com suas derivações, da organização do discurso
composicional, sua poética e outros. Por fim, será realizada uma análise da espacialidade
latente do processo composicional da obra, seus desdobramentos e possibilidades em
concerto ao vivo.
1.2.1 Catalogando sons de pássaros - registro da paisagem sonora local

Para registrar os sons de pássaros ouvidos foi utilizado um Apple iPod mini (modelo
Al051) com captação diretamente de sua entrada integrada, ou seja, sem a utilização de
microfone externo. Como o registro foi realizado apenas para preservar a memória dos
sons sem a preocupação com a qualidade de definição e limpeza sonora. As gravações
duraram duas semanas com tomadas nos períodos da manhã e final de tarde. As
dificuldades relevantes encontradas neste processo foram: a) tomadas em momentos de
grande concentração sonora, o que não permitia a distinção clara dos diferentes emissores,
e b) sons provenientes de região mais profunda da mata, ou seja, distantes e com pouco
volume. Após finalização da gravação, os arquivos digitais foram baixados para o laptop
e ficaram disponíveis para visualização espectral e escuta das amostras.

Fig. 1 - Exemplo de amostra registrada de "caboclinho" 6 notas (espectrograma gerado por iZotope
RX Advanced v. 4.01.512)

1.2.2 Selecionando amostras

O número de amostras coletadas chegou próximo de 50 sons de diferentes pássaros,


no entanto, foram selecionadas para a composição apenas 14 sons provenientes das
seguintes espécies de pássaro: curió (Oryzoborus angolensis), coleiro (Sporophila
caerulenscens), Guaracava-de-barriga-amarela (Elaenia flavogaster), Pintassilgo
(Sporagra magellanica), Xexéu (Cacicus cela), Currupião (Jcterusjamacaii), Sabiá-do-
campo (Mimus saturninus), Casaca-de-couro (Furnarius leucopus), Sabiá-laranjeira
(Turdus ru.fiventris), Pássaro-preto (Molothrus Orysivorus), Cardeal-amarelo
(Gubernatrix cristata), Soldadinho (Antilophia galeata), Azulão (Cyanocompsa
brissonii) e Canário-do-campo (Sicalis jlaveola). O principal aspecto para elencar as
amostras, ou seja, os eventos sonoros candidatos a modelarem as sínteses, foi a variedade
com potencialidade de granulação e discreta presença harmônica preservada no som
original. Além dos 14 sons diferentes escolhidos foram agregados, posteriormente, dois
objetos sonoros disponíveis em banco de sons do compositor, a saber: a) som paradoxal
de Risset e Shepard e b) trama harmônica vocal em glissando canônico (sons previamente
elaborados para a peça "Pequeno nascer... grande morrer'', também composta pelo
compositor no ano 2015)

1.2.3 Síntese de modelos

Do total das amostras registradas foram extraídos 14 sons de maior interesse para o
projeto composicional considerando-se suas características de perfil granular e
preservação harmônica discreta, e serviram de modelo para a composição de sons
artificiais através do processamento de síntese de FM e síntese granular, por meio dos
softwares CSound (vers. 4.23f12) e processamento em Max/MSP (vers. 4.3.2). O
resultado categorizado dos modelos e amostras são apresentados na série de
espectrogramas (gerados em iZotope RX Advanced v. 4.01.512) a seguir:

Amostra O1 ("coleiro") - Modelo O1

Fig. 2: Rgistro da Amostra 01

Fig. 3: Síntese do Modelo 01


Amostra 02 ("curió") - Modelo 02

Fig. 4: Registro da Amostra 02

Fig. 5: Síntese do Modelo 02

Amostra 03 ("guaracava") - Modelo 03

Fig. 7: Síntese do Modelo 03


Fig. 6: Registro da Amostra 03

Amostra 04 ("pintassilgo") - Modelo 04

Fig. 9: Síntese do Modelo 04


Fig. 8: Registro da Amostra 04
Amostra 05 ("xexéu")- Modelo 05

Fig. 1O: Registro da Amostra 05

Fig. 11: Síntese do Modelo 05

Amostra 06 ("cardeal") - Modelo 06

Fig. 12: Registro da Amostra 06

Fig. 13: Síntese do Modelo 06


Amostra 07 ("casaca-de-couro") - Modelo 07

Fig. 14: Registro da Amostra 07

Fig. 15: Síntese do Modelo 07

Amostra 08 ("caboclinho") - Modelo 08

Fig. 16: Registro da Amostra 08


Fig. 17: Síntese do Modelo 08

Amostra 09 ("sabiá-larangeira") - Modelo 09

Fig. 18: Registro da Amostra 09 Fig. 19: Síntese do Modelo 09


Amostra 1O ("pássaro-preto'') - Modelo 1O

Fig. 20: Registro da Amostra 1O Fig. 21: Síntese do Modelo 10

Amostra 11 ("currupião") - Modelo 11

Fig. 22: Registro da Amostra 11 Fig. 23: Síntese do Modelo 11

Amostra 12 ("soldadinho")-Modelo 12

Fig. 25: Síntese do Modelo 12


Fig. Registro da Amostra 12
Amostra 13 ("azulão") - Modelo 13

Fig. 26: Registro da Amostra 13 Fig. 27: Síntese do Modelo 13

Amostra 14 ("canário") - Modelo 14

Fig. 29: Síntese do Modelo 14

Fig. 28: Registro da Amostra 14

O processo de síntese de modelos a partir das amostras ocorreu pela análise


espectral destas amostras utilizando o aplicativo AudioSculpt (vers. 2.4). Com a avaliação
dos sons catalogados e para modelar as sínteses o compositor pinçou fragmentos
específicos do total da amostra que apresentavam as características esperadas obtendo
assim os parâmetros para a reconstrução artificial dos objetos sonoros. Ao final do
processamento dos modelos foram considerados 7 sons, provenientes de síntese de FM e
os demais de síntese granular.

1.2.4 Estrutura de (Re)Canto: discurso poético e micro-macro estruturas

A elaboração do discurso da obra (Re )Canto de pássaros tem corno ponto de partida
a proposta de recriação do ambiente local do bosque onde habitavam aqueles pássaros.
Considerando a cidade e o bairro periférico que representa um "cantinho" singular do
espaço geográfico do local, ou seja, também no sentido de canto-local e espaço-lugar. Em
contraponto, a recriação das amostras dos sons emitidos pelos 14 pássaros comporia a
imagem artificial da trama sonora ouvida pelo compositor, ou seja, uma espécie de
extração da musicalidade presente naquele local, que se revelou pela escuta atenta dos
elementos discretos de cada uma das amostras/modelos convertidas em objeto sonoro de
interesse compositivo. Desta feita, a proposta poética da obra estava colocada e a estrutura
micro-macro estava definida. Cada modelo, dos 14 objetos sonoros, somados aos dois
sons compostos anteriormente do banco de sons do compositor (som paradoxal e trama
vocal), abrigaria um gesto mínimo da estrutura geral que se definiria pela sucessão,
justaposição ou sobreposição do material lançado ao jogo composicional.
O gesto modelar escolhido para a construção espacial da peça foi o movimento
circular com discreto deslocamento no plano harmônico vertical (glissandi). Cada um dos
objetos em diálogo tem introjetado em sua estrutura, desde a pré-composição sonora pela
síntese, um movimento propício ao circular. A técnica básica adotada para este tratamento
espacial foi a movimentação lateral (L-R/R-L) pelo deslocamento panorâmico entre os
canais 1-2/2-1 com filtros de passa-banda congregados ao volume, o que proporciona
maior/menor sensação de presença na projeção, causando a impressõ de movimento de
aproximação/afastamento (LF/RF-LR/RR). Associando estes dois procedimentos
conseguiu-se um efeito circular do objeto sonoro em seu decorrimento individual ou em
conjunto com os demais, mesmo em uma escuta estereofônica da obra.

Fig. 30: (Re)Canto de pássaros (2005) síntese da análise estrutural.

Conforme detalhado pela figura 30 acima, a estrutura composicional de (Re)Canto


de pássaros pode ser analisada da seguinte forma:

a) Composição estereofônica com duração de 8 minutos e 16 segundos;


b) Definida por quatro seções e dividida em duas grandes partes:
ParteA(0'0"-2'19")1:·::··-~·5:·· :ParteB : ~:·-:·<." (5"43"'-8"16"")

c) Na primeira seção é desenvolvida a exposição dos modelos 02, 03 e 06 em


contraponto de superposição com a trama do primeiro som paradoxal
apresentando o primeiro gesto figurativo da peça. A partir deste início os
modelos 02, 03, 06 e 14 serão variados em todo o decorrimento da obra
preservando uma espécie de motivo variado. Em contraponto ao gesto inicial
foi composta uma trama, em segundo plano, sob o perfil do modelo 1:::, que
paulatinamente vai tomar o plano principal na medida em que fica mais
espaçada a recorrência do motivo inicial e quando é diluído o som paradoxal.
Estas duas figuras ocupam os dois planos espaciais em relevo e completam a
primeira seção apresentando o que poderia se chamar de Tema A.

d) O Tema B será apresentado na segunda seção num processo de crossfading.


Nesta seção são expostos o··· .~. ·,em tomo de 2'30", e variações de 02 e
03, também em formato de contraponto de sobreposição, porém evidenciando
o modelo 01 condensado com algumas de suas próprias variações. Nesta seção,
mantendo a direcionalidade de movimentação discreta em glissandi dos objetos
sonoros, será privilegiada a região mais aguda de toda a extensão da peça, que
se acomoda em tomo da banda frequencial entre 3kHz e 5kHz definindo-se um
ponto culminante.

e) Justapondo-se os temas A e B, também em crossfading, completa-se a Parte A,


que decorre até cerca de 3'51/4'14" e é articulada pela figuração do segundo
som pa:-acioxa.I, o qual cria um eco distante e oposto, por seu movimento
descendente, ao som paradoxal inicial, que era ascendente.

f) Inicia-se, portanto, a terceira seção, com o segundo som paradoxal em primeiro


plano. Aos 4' 15" em contraponto de relevo e utilização do perfil dos
observa-se uma nova trama harmônica, que preenche de forma plena
todo o âmbito espectral, tomando a seção a de maior densificação da obra. Esta
figura, comparada com as figuras da Parte A, desenvolve um material sonoro
com ênfase à síntese granular e com movimentação rítmica do deslocamento
entre os canais 1 e 2 do par estereofônico (L-R) mais rápida e mais perceptiva.
Ainda nesta seção, o compositor trabalha o contraponto dos micro-gestos, os
quais delineiam a figuração das texturas enfatizando seus relevos harmônicos.
Os modelos utilizados nesta construção são 05. 07. 08 e 13.

g) Em 5'40" apresenta-se uma articulação gestual do modelo 11. na qual percebe-


se um levare para o início da última seção em 5'43". Este fragmento final da
peça vai reexpor o material da seção anterior de forma condensada, além da
reexposição das figuras gestuais do motivo variado inicial, das figuras da seção
intermediária, retomando a fração da região mais aguda com a articulação de
todos os modelos já apresentados associando os modelos 09 e 1O. O material
novo apresentado pela única vez em toda a extensão da obra, a trama vocal
harmônica em cânone (em time stretching), estabelece um preenchimento do
centro harmônico bem definido com contornos em âmbito do intervalo de
quinta justa. A textura figurativa desta seção final denota um contraste
importante com primeiras seções gerando um interesse renovado pela escuta
dos elementos iniciais e suas variações em reexposição.

Fig. 31: Visualização do envelope dinâmico de (Re)Canto de pássaros para observação da


articulação em as 4 seções proposta pelo adensamento e rarefação dos materiais da peça

1.2.5 Construção da imagem harmônica: som paradoxal de Risset-Shepard e


trama harmônica vocal em glissando

Os dois sons compostos previamente, armazenados em banco de sons, foram


agregados à obra com o intuito de definir a estrutura harmônica predominante da
composição. O primeiro deles foi uma variação do som paradoxal de Risset-Shepard, ou
seja, um som em glissando descendente que não se movimenta no âmbito das alturas e
que acaba, em seu decorrimento, soando muito mais agudo devido ao deslocamento do
centro gravitacional obtido pelo controle individual da amplitude dos seus parciais. Este
primeiro som é somado a outro ascendente, que tem seus harmônicos graves realçados à
medida que as notas ficam mais agudas reiniciando a figuração inicial (escala de
Shepard). A impressão auditiva deste som é o paradoxo de ouvir um movimento no
espectro que também parece não sair do lugar. Por manterem forte definição harmônica
estes sons formam uma espécie de balança formal em contraste com as camadas
granulares dos objetos sonoros extraídos dos modelos sintéticos dos pássaros.

Fig. 32: Espectrograma de excertos das sínteses dos sons paradoxais de Risset-Shepard

Um segundo objeto sonoro, composto inicialmente para obra Pequeno morrer,


grande morrer. .. (para octeto vocal e sons eletroacústico, encomendada pela educadora
Leila Vertamatti regente do grupo vocal infanto-juvenil CatorIA do Instituto de Artes da
UNESP, no mesmo ano de 2005), foi uma trama densa derivada de glissandi a partir de
clusters vocais improvisados e registrados em áudio. É importante ressaltar que este
objeto sonoro, e algumas de suas variações, foi o único som gravado, ou seja, acústico,
utilizado na composição. Esta trama vocal teve um papel significativo no contexto da
articulação das partes, e no realce do contraste do material utilizado, por suas
características de espectro sonoro discreto e harmonicamente rico. Na figura abaixo pode
ser observado um excerto em que se apresenta a trama vocal, com tratamento de time
stretching, como gesto harmônico de passagem para a seção final da obra.
Fig. 33: Espectrograma do excerto em que aparece a trama vocal harmónica com lime stretching.

Desta feita, na construção da direcionalidade da obra temos um crescendo contínuo


da presença harmônica com densificação espectral. Este caminho proposto à escuta ocorre
pela relação interna entre a textura harmônica inicial, senoidal, que será sucedida por
novas texturas granulares, fundindo-se com os sons vocais transfigurados pelo time
stretching (cf. fig.31 ), e a formação harmônica complexa da seção final da peça.

1.2.6 Construção da imagem espacial: diálogo dinâmico e imersivo dos


objetos sonoros a partir dos modelos de sons de pássaros

A obra (Re )Canto de pássaros toma como pressuposto a consciência de


que o espaço é vital em nosso cotidiano e que nele usamos principalmente a visão, mas
que os nossos sentidos sempre se interagem uns com os outros e ressaltam a percepção
das relações espaciais do ambiente quando estamos imersos no concerto acusmático, o
que nos obriga ter os alvos de atenção fora do campo de visão e assim buscamos
informações espaciais pela audição. Assim, o jogo composicional imersivo trás toda a
vivência e o relacionamento com o espaço ambiental mental do ouvinte e toma-se o fio
condutor de sua imaginação. Este é um tipo de escuta que se estende além da barreira
visual, que apela à memória e ao repertório de vivência do mundo sonoro espacialmente
sensível, que afeta o estado psicológico através dos sentidos instigando esquemas
racionais por consequência.
Neste sentido, o trabalho compositivo do espaço interno, ou seja, aquele inerente à
estruturação do (Re )Canto, portanto analisável, foi desenvolvido em todos os caracteres
dos objetos sonoros no tocante à sua plasticidade. Desde o momento da captação das
amostras pode-se vislumbrar uma predisposição espacial, cujos aspectos internos foram
levados ao discurso que integra a obra. Para tanto, foi relevante tomar consciência do
comportamento espacial dos eventos sonoros e da paisagem que se pretendia recriar, do
posicionamento no quadro dos autofalantes dos objetos sonoros sintetizados, dos
deslocamentos no eixo horizontal ou vertical, ou seja, do plano geométrico, da capacidade
de preenchimento ou dimensão espacial, do grau de profundidade e velocidade de
deslocamento e, por fim, do comportamento espectro-morfológico de cada som no espaço
da composição.
A constituição do espaço interno do (Re)Canto de pássaros ocorreu pela
especulação composicional do espaço sonoro por meio de três preocupações mais básicas:
o figurativo, o simbólico e o artificial (DHOMONT, 1998).

a. O figurativo
A ideia poética da reconstrução do espaço-local, ou seja, da paisagem do lugar
onde habitavam os pássaros das amostras, foi pensada e transportada para a obra de forma
que oscilasse entre o verdadeiro e a miragem, nutrindo-se do equívoco das imagens que
evocam as figuras tisicas ou as fictícias latentes em cada objeto sonoro. Esta impressão
apreendida pelo compositor revela um espaço real figurativo (cf. BORGES, 2014, p.102).
Este aspecto, também denominado por alguns compositores de espaço-paisagem, já tem
em si um propósito de espacialidade no qual suas formas de imagens dão uma ilusão fiel
da realidade, tendo em si forte carga dos simulacros de paisagem sonora e suas conotações
do espaço e da descritividade. Então, neste sentido, quase sempre temos equívocos entre
o reconhecimento das imagens reais e hesitações das imagens virtuais.
O (Re)Canto, portanto oferta um espaço como propósito, como fonte de inspiração,
para uma escuta metafórica. Neste sentido, o compositor percorreu uma leitura do espaço
interno presente desde a concepção do projeto, ou seja, desde a captação do material das
amostras, passando pela transposição sintética da recomposição de cada objeto sonoro
componente da obra até sua realização final em suporte. A partir daí ficaram inscritas
suas as ideias que irão dialogar diretamente com uma possível interpretação, no caso de
uma difusão espacializada, e a percepção representativa do ouvinte.

b. O simbólico
Um segundo aspecto, ainda em relação ao espaço interno presente no (Re)Canto, é
aquele que atua sobre a percepção simbológica do local onde foram coletadas as amostras.
Aquele lugar, portanto, distante do ouvinte no momento do concerto, toma-se um espaço
imaginário simbólico, que apela pela busca de uma captação mental da paisagem sonora,
de certa forma, mimética, ou seja, a imitação do real que pode ser definida por espaço-
metáfora.

c. O artificial
Por fim, observa-se um terceiro aspecto do espaço, que mesmo ensejado pelo
espaço figurativo e pelo espaço simbólico, é criado mecanicamente. Pela vontade criativa
do compositor, no caso do (Re)Canto, a síntese sonora é o ambiente onde ocorre a
simulação, a dilatação e a animação, dos perfis sonoros que foram escolhido
cuidadosamente para revelação da forma, da matéria, da figuração e das cores
espacializadas que foram confiadas ao suporte. Neste espaço-artificio dispô-se das
possibilidades de transformação de um dado pensado em realização sonora efetiva.

2. Aspectos relevantes para interpretação da espacialidade na difusão de


(Re)Canto de pássaros em concerto

2.1 Aspectos Composicionais a serem analisados pelo intérprete

Ilusão espacial
Como a maior parte das obras acusmática a composição (Re)Canto de pássaros
apresenta uma escuta peculiar em que o interprete eletroacústico poderá analisar
previamente em um processo de estudo em prol da estruturação do programa de difusão.
Alguns elementos elencados a seguir nos convidam a refletir que, nestas obras,
aparentemente percebemos um espaço que nos parece real, mas se trata de uma ilusão
causada pelas imagens fantasmas do estereofônico dos alto-falantes, ou seja a ilusão
espacial (cf. BARRET, 2002). Será nesta percepção que o interprete atuará, por meio da
espacialidade, compreendendo o que ocorre no espaço dos projetores alto-falantes.
Embora o efeito de transmissão sonora envolva absorção do ar, difração e refração; a
absorção coeficiente (filtro low-pass) é o único elemento útil como parâmetro a ser
abordado na difusão eletroacústica. Isto, pois difração e refração, bem como absorção do
ar, somente são entendidas quando acontecem no local real da fonte sonora. Portanto
poderão, estas últimas, serão úteis para uma análise do comportamento da obra na sala
de concerto.
Para melhor definição, e nos salvaguardar de distorções acústicas causadas pela
localização do ouvinte em relação à disposição dos projetores, o intérprete eletroacústico
buscará sempre lidar com uma condição ideal de escuta (num espaço acusticamente o
mais similar possível ao do estúdio). Também será relevante considerar duas notas
técnicas: (i) primeiramente, a relação da posição e disposição dos alto-falantes no local
determinarão a distância da ilusão espacial (no entanto, como quase sempre o ouvinte se
desloca da posição ideal de escuta esta imagem pode ser parcialmente quebrada e o
intérprete pode jogar com este fato) e (ii), a condição de que nossa percepção aural tem
maior facilidade de localizar freqüências mais agudas e variações de texturas do que
material estático e freqüências mais graves (MENEZES, 2004). Sobretudo, as estratégias
de espacialização podem partir dos elementos do material utilizado na composição que
apresentam maior predisposição a se destacarem na difusão.
A identificação das características do espaço é dada pelas reflexões na superficie
formando o campo reverberante. Com a combinação das reflexões diretas e do campo
reverberante e a absorção coeficiente (filtro low-pass) pode-se jogar com a proximidade
do dado sonoro no quadro dos alto-falantes. Desta forma, o tipo de sala influirá
diretamente nas relações percebidas do objeto sonoro, bem como o tamanho desta sala
poderá determinar o tamanho do objeto sonoro pelas relações entre suas características e
o espaço percorrido pelo som. Quanto mais próximo o objeto sonoro do ouvinte, maior
será sua imagem percebida. Porém, as relações dos objetos sonoros uns com os outros
poderão definir melhor o tamanho de sua imagem. Isto pois quando o tamanho da fonte
não é reconhecível, então se reconhece o tamanho da imagem fisica do som e pode-se
restringir a composição de uma possível distorção da imagem cognitiva da fonte.
O tamanho do espaço também pode ser indicado pela relação dos movimentos
entre os objetos sonoros (com restrições a um local muito reverberante no qual pode-se
perder a referência parcial ou total do deslocamento de um objeto sonoro, bem como suas
características espaciais intrínsecas). O movimento, ou deslocamento, dos sons no espaço
está relacionado com o tamanho da sala, com a velocidade de deslocamento, seu gesto e
com o efeito doppler. Sem considerar estes aspectos seria impossível, num trabalho
estereofônico, por exemplo, conseguir ilusão de profundidade e movimentação no espaço
frontal-traseiro FL-FR/RL-RR (combinação de efeito doppler com ajustes de filtros
band-pass).
A ilusão espacial dependerá sempre de um ou mais aspectos citados acima
levando em conta o grau de referencialidade ou abstração de cada dado sonoro.
Entretanto, a ilusão espacial não precisa necessariamente obedecer todas as leis acústicas
da espacialidade sendo, desta forma, uma aproximação do real (imagem real do mundo
ou como vimos anteriormente o figurativo). Este aspecto importante será levado em
conta quando o compositor utilizar de técnicas como time stretching, delays, filtros de
ressonância e granulações para criar ilusão do espaço, cujo trabalho será voltado para
uma certa quebra da ilusão espacial e à implicação desta quebra no resultado esperado.

Alusão espacial
Falamos de alusão espacial quando o espaço sonoro não tem conotação direta de
ilusão ou não mantém conexões com as leis acústicas do objeto sonoro. A alusão espacial
se coloca mais aberta a interpretação imaginativa do que a ilusão espacial. Considerando
a referencialidade do dado sonoro (reconhecimento da fonte) ou a impressão do
reconhecimento desta referência (sons que se parecem com ... ) já não estamos mais no
nível da ilusão, mas sim de alusão espacial. Então, espaço reconhecido não é o espaço em
que o som realmente está soando, porém, uma projeção imaginária de onde estaria a fonte
sonora. Neste aspecto, o compositor trás de forma artificial a recriação da paisagem
sonora do bosque onde habitavam os pássaros e esta imagem vai se recriar
individualmente na escuta de cada um dos ouvintes.
Observa-se momentos em que na obra o compositor desenvolve efeitos de
transformação de ilusão para alusão espacial. Esta informação é crucial para o intérprete
pois a distância aparente da fonte sonora poderá mudar de conotação um mesmo dado
sonoro. Assim, a combinação de ilusão e alusão espacial implica num grande potencial
de gestualidade espacial que pode ser abordado na difusão em concerto.

Ocupação espacial
O volume sonoro sugerido pela textura, amplitude e massa dos objetos implicaram
na ocupação do espaço acústico. Também a gestualidade e movimentação dos sons
agregados aos aspectos citados anteriormente completarão a inteligibilidade das imagens
sonoras, as quais poderão preencher em diversos graus o espaço sonoro do campo
tridimensional. Para lidar com estes elementos o intérprete precisa avaliar alguns dados
técnicos importantes como: quantidade de alto-falantes, disposição na sala, tamanho e
formato da sala e grau de reverberação.

Simulação do campo sonoro tridimensional


Nossa capacidade de localizar dados sonoros num campo criado virtualmente é
similar àquela do que ocorre num campo sonoro real. Porém, esta simulação em terceira
dimensão ainda é mais eficaz através de fanes-de-ouvido do que no campo externo dos
alto-falantes. Para uma reprodução tridimensional sonora é necessária a melhor definição
espacial sonora possível e isto implicará ao interprete o estudo minucioso da construção
da estrutura composicional. Tal estruturação, quando vai em direção a uma realidade
mimética, trabalha com o limiar de nossa percepção, entre o real (experiência) e o virtual
(imitação do real). Podemos neste sentido associar a imagem sonora com a discreta
localização do som à realidade comparando espacialmente os diferentes materiais e
sublinhando as relações entre eles. Mais uma vez, a relação entre os objetos sonoros tem
papel predominante para definir perceptivamente o espaço. Partindo da proposta
composicional o intérprete pode criar um contraponto bem variado ao jogar com esta
relação entre objetos, suas imagens, para definir, para mais ou para menos, o campo
tridimensional. Desta forma, as imagens sonoras podem ser ampliadas, diminuídas ou ter
sua distância distorcida, sem causar grande prejuízos para o discurso musical por manter
estáveis suas relações em tempo real.

Movimento espacial sonoro no tempo


A percepção de movimento sonoro está relacionada com a comparação entre os
objetos sonoros em jogo, com nossa memória espacial do contexto musical ou das
experiências gerais de nossa vivência e a velocidade do deslocamento do som. Desta
forma, observando a proposta do compositor, o intérprete jogará com a auto-
referencialidade e a não-referencialidade espacial no decorrer do discurso da obra. No
sistema 3D a localização do ouvinte em relação ao ponto ideal de escuta será fundamental
para uma percepção mais favorável da movimentação de um objeto sonoro sendo que,
quanto maior o grau de deslocamento da posição ideal de escuta as distorções espaciais
podem ser maiores ou até ocorrer a anulação total do movimento. Desta maneira, um
aumento de velocidade de deslocamento e uma constância na duração do movimento
(obtidos quase sempre apenas pela variação de amplitude e efeito doppler) podem sugerir
a distância do deslocamento do som. Para isto, deve-se levar em conta as modificações
ocorridas no espaço tridimensional virtual e sua correlação ao espaço real dos alto-
falantes. Este espaço tridimensional pode ser quebrado quando um deslocamento (físico
do objeto sonoro) causa um desequilíbrio nos ângulos frente-trás e/ou esquerda-direita
dos alto-falantes (e isto pode ser intencionalmente causado pelo intérprete).
Por fim é importante lembrar que as características espectro-morfológicas de um
objeto sonoro influirão na possível movimentação ou deslocamento espacial do mesmo.
Por exemplo, freqüências graves, por natureza, responderão muito menos ao
deslocamento do que objetos sonoros que possuam uma banda de freqüência mais
intermediária ou aguda. Da mesma maneira que nossa percepção de frequências mais
agudas e camadas menos estáticas será sempre mais favorecida do que frequências graves
e transformações mais demoradas de um dado sonoro.

2.2 Aspectos da difusão eletroacústica a serem explorados pelo intérprete

Espaço externo
A obra instrumental tem, grosso modo, a estabilidade garantida pela partitura.
Entretanto, esta obra não está livre das causalidades interpretativas que comumente
ocorrem na obra fixada em suporte e é executada por meios eletroacústicos. Em ambas o
jogo intrínseco, garantido pela partitura (suporte) e sua revelação externa se fundem e são
imediatamente ligados às constituições particulares de cada escuta de uma mesma obra.
Com efeito, uma peça acusmática sofre interferências da acústica da sala, da quantidade
e natureza dos alto-falantes empregados na difusão, de seu posicionamento, do uso ou
não de filtros, de pequenos ajustes durante o concerto, da intervenção a mercê do som, do
intérprete ou de um sistema automático de espacialização e do posicionamento do público
em tomo de uma posição ideal de escuta. Digamos que, o espaço externo atua como
revelação-desdobramento do espaço interno da obra.
Na espacialização (difusão ou projeção sonora), ocorre uma soma das
causalidades, às vezes podendo até ser controladas, do aspecto externo ao dado fixo da
composição. Como uma lupa do espaço interno, muitas vezes, amplia sua existência,
complexifica, sublinha, redobra, multiplica, recobre os efeitos espaciais internos por um
acontecimento do meio externo, tomando-o mais latente através do sistema de difusão.
Contudo, poderá também ao contrário deturpar e contrariar o projeto real da obra sendo
esse um risco ao qual se corre similarmente à música instrumental (o risco da
interpretação). Sobretudo, a espacialização traz a música registrada em suporte fixo face
à mesma dualidade inerente à música tradicional instrumental, ou seja, da
partitura/execução.
Lembrando que, após o surgimento da estereofonia a realização espacial de uma
composição toma-se mais viável. O passo inicial foi seguir os padrões estereofónicos
(esquerda-direita) para a construção de novas maneiras de perceber o espaço e do seu
movimento na música eletroacústica. Com o aumento das experiências os compositores
adotam um sistema quadrifônico para difusão (consiste em dois alto-falantes dianteiros e
dois traseiros dispostos ao redor da platéia), o qual tem grande adequação até hoje e é, de
certa maneira, considerado o mínimo para uma execução em concerto. Surgem então,
atrelados ao desenvolvimento tecnológico, demandado pela necessidade musical,
sistemas mais complexos (octofônicos e grupos de alto-falantes de diferentes tamanhos,
timbres e disposições) que virão constituir as orquestras de alto-falantes.
É importante ressaltar que, em uma análise da história da música eletroacústica, é
possível observar duas posturas básicas de difusão. Na primeira, de perfil alemão, a
atitude do operador do console é mais passiva, acreditando-se que os parâmetros espaciais
já concebidos estão introjetados na obra, portanto sem a necessidade de intervenções em
tempo real e na segunda, de perfil Francês, revela-se uma pesquisa mais aberta às
possibilidades de espacialização em concerto. Estas posturas influem diretamente o
pensamento criativo e as estratégias a serem adotadas na composição da espacialidade de
uma determinada obra. Com efeito, influenciam também a maneira de pensar a
espacialidade e os conceitos de espaço em música.

Difusão estática e cinemática


A acústica do espaço fisico onde serão dispostos os alto falantes influenciam
diretamente o resultado das informações espaciais da obra. As características de absorção
da sala devem ser intimamente avaliadas para que se obtenha uma melhor aproximação à
ideia compositiva do espaço prescrita pelo compositor, e assim, da composição para com
o ouvinte. A disposição do público na sala também será relevante para uma melhor
audição. Deste modo, podemos ressaltar duas formas básicas de difusão: (i) estática e (ii)
cinemática.
Por uma difusão estática tomamos a postura na qual a disposição dos alto-falantes
no local é feita ao redor da plateia e sofre o mínimo de interferência do músico
responsável pela difusão. Mantém assim, as características inscritas pelo compositor, na
hora da composição da obra. Quase sempre apenas se dobra o par de pistas do
estereofônico ou se envia os sinais sonoros diretamente de um suporte multipista (ADAT
ou arquivo quadro direto do computador por uma interface multicanal, preservando a
disposição prevista pelo compositor). A homogeneidade dos alto-falantes e a equalização
de todo o sistema de difusão é importante para manter a integralidade da composição em
jogo.
Para uma difusão cinemática a disposição e a escolha dos alto-falantes, bem como
a repartição das pistas (duplicação, quadruplicações, etc.) e a diversidade qualitativa dos
alto-falantes podem variar segundo o interesse do compositor ou do intérprete. A postura
adotada aqui é mais a de espacialização em concerto onde a intervenção por parte do
local, dos alto-falantes (dispostos em diversos lugares e suas diferenças de timbre e
amplitude) e do intérprete (que espacializa a obra, mantendo a imagem estéreo, segundo
seu esquema previamente estudado) são elementos que serão admitidos para uma
concretização do espaço pensado em estúdio.

Composição estereofônica e multicanais


Mesmo em um trabalho estereofônico pode-se pensar em uma simulação
tridimensional do espaço sonoro. Porém, como na composição multicanais, a obra
estereofônica está sujeita as mesmas causalidades fora do estúdio (ou fora da posição
ideal de escuta) já que a limitação em dois canais permitirá uma manipulação mais
concentrada dos elementos espaciais. Para se obter um certo controle na exploração
espacial estereofônica o compositor deve ter consciência do processo da projeção sonora
nos alto-falantes e da captação sonora.
Em 1931 o cientista britânico Alan Dower Blumlein encheu o Histórico Britânico
de Patentes com uma lista de setenta observações, com cerca de vinte e duas páginas,
sobre uso de dois canais para gravações em disco e movimento de imagens (HUBER;
WILLIAMS, 1998). Desta maneira, é importante lembrarmos que desde a captação
sonora (quando o material a ser tratado não provem de sínteses) pode-se buscar um
trabalho espacial de determinados sons. Para isto, serão utilizadas técnicas de gravação
estereofônica (tais técnicas envolvem a disposição de dois microfones em diferentes
pontos do local afim de capturar a imagem sonora). De tal modo, que o compositor pode
explorar os aspectos intrínsecos do som (BARRET, 2002) e também simular, através do
âmbito direita-esquerda, a localização ou movimentação dos objetos em jogo.
Quanto à projeção sonora estereofônica, esta se dá basicamente pelo ajuste das
proporções de alimentação do par de alto-falantes, cujas diferenças de intensidades dos
canais variam causando a ilusão do posicionamento da fonte sonora nos pontos desejados
entre os alto-falantes ((HUBER; WILLIAMS, 1998). Para explorar a profundidade
sonora, o uso de filtro low-pass e da taxa reverberação podem ser algumas das estratégias.
Com efeito, como já visto acima, o ouvinte está exposto à projeção dos alto-falantes (que
são aqui a fonte sonora) e assim está sujeito a às condições acústicas do ouvido de ter ou
não predisposição espacial de escuta. Isto é diferente quando se ouve por headphones,
pois a fonte está sempre na 'cabeça' e não sofre influências acústicas do lugar.
Por fim, três questões técnicas devem ser observadas tanto para reprodução
estereofônica quanto multicanais: 1) Para uma melhor fidelidade de reprodução sonora,
bem com para manter a imagem sonora intacta (em questões qualitativas do espectro e do
espaço inerente ao som) o sistema de difusão, ou o de captação, devem ser os mais
equalizados possíveis. 2) As diferenças de origem dos alto-falantes, dos microfones, dos
cabos, enfim, podem influir diretamente nos dados espaciais desejados. 3) Também forma
de mixagem será crucial para um resultado positivo, visto que, muitas vezes por questões
até de viabilidade, muitas obras são apresentadas em uma versão reduzida de multicanais
para estereofônica.

3. Impressões virtuais e interpretação estereofônica de (Re)Canto de


pássaros

3.1 Implementação do espaço virtual para interpretação da obra em sistemas 3D

Durante a experiência de diversos concertos em que a obra (Re)Canto de pássaros


foi apresentada o compositor desenvolveu um patch em Max!MSP para colaborar com o
intérprete na espacialização em concerto. A elaboração e o uso deste patch revelam
algumas necessidades técnicas e define algumas estratégias que são demandadas para o
processo de difusão da obra.

-------- - Spat-Player 3.0

= •
M.l.S.T.

111111111 ••
~~ ~;i~·BR

Munk:hlnMI S u b -

• •
- 1-8 LSP - F/R Snu•co Nn ,t .....

NO!>l' wt u ... f •UfH ai "'

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MID1oontrol- lowpolo

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IOICF2000

• •
OnlOllAudlo

• • liilli•lll'IHllNlll11

Fig. 34: Patch "Spat-Player 3.0", de Alvaro Borges, elaborado em 2015 para difusão multipistas
diretamente do computador para os alto-falantes passando por uma interface multicanais.

O ponto inicial para uma boa difusão considera o estudo dos aspectos gerais da sala
de concerto, ou seja, como são características acústicas e como elas se diferem ponto a
ponto no lugar, as zonas de dominância de frequências, o tipo acústico da sala (de seca
ao reverberante), o tamanho da sala, sua forma geométrica, a espessura e a superfície dos
materiais das paredes, teto e assentos. Este estudo irá influenciar a escolha do
posicionamento dos alto-falantes e do console de controle. O Setup dos alto-falantes deve
ser definido de forma que mantenha um ângulo considerável entre a plateia, pois a
percepção do movimento espacial dos sons não ocorrerá se este ângulo estiver fechado
em demasia.
1

Depois de definido e disposto em apropriadamente o rol dos alto-fiantes o passo


seguinte será ajustar a equalização da potência dos projetores para que não haja diferenças
de volume entre nenhum deles. Caso algum alto-falante esteja com alguma diferença de
volume o público perceberá um tipo de quebra especial dos sons que se movem no espaço.
Esta precaução, também é um parâmetro primário para o intérprete encarregado da
difusão em relação aos faders do console o que poderia causar um erro de projeção
ocasionando até mesmo uma modificação do áudio original.

.........
----· .........

Fig. 35: Na figura a percebe-se o movimento no sentido horário do som no eixo horizontal em passagem
frente-trás, ou seja alternação equilibrada do canal FR para RR, enquanto na figura b observa-se também
um vazamento no canal RL, o que pode ofuscar a passagem desejada.

Espera-se que o intérprete eletroacústico tenha realizado também um estudo bem


detalhado da obra, inclusive tendo os perfis de comportamento tipo-morfológicos do
material e, se possível tenha elaborado uma partitura de realização, ou um guia de escuta,
o que se toma uma ajuda considerável. Em geral, este tipo de áudio-partitura é feita por
meio da descrição minuciosa dos eventos e objetos sonoros da peça ou mesmo da
transcrição gráfica destes eventos a partir de um espectrograma. Existem alguns softwares
para que podem assessorar neste trabalho. Pode ser citado o eAnalysis desenvolvido pelo
pesquisador Pierre Couprie na Universidade de Montfort em 2015.

Fig. 36: Fragmento da áudio partitura da trama vocal harmônica, desenvolvido no eAnalysis detalhando o
espectograma e o envelope dinâmico com um gráfico de representação do som.
Para o processo de estudo e ensaio da peça é importante considerar também o
número de canais em que ela foi composta (esterofônica, quadrifônica, octofônica ou mais
canais). Uma obra de dois canais, como no caso do (Re)Canto, sendo espacializada em
um sistema de oito canais permite uma gama de flexibilidade significativamente maior se
comparada com uma outra de oito canais sendo projetada no mesmo sistema, já que para
esta última nenhuma variação poderá deverá ser feita pelo difusor, por causar
desequilíbrio, uma vez que o compositor já resolveu todas as prescrições espaciais em
estúdio. Desta feita, observa-se uma regra simples e funcional: para que ocorra uma
interpretação efetiva o difusor deve dispor sempre de um número maior de alto-falantes
do que o número de canais de entrada da obra em execução para que se tenha condições
de sublinhar os elementos da peça pela movimentação e posicionamento dos sons nos
diferentes locais da sala de concerto.
Esta regra leva a atenção que deve ser dada também equilíbrio da imagem
esterofônica dos pares de projetores, ou seja, mesmo que se cruze os canais, invertendo
os lados da estereofonia, não se deve anular totalmente um dos lados L ou R dos canais.

Fig. 37: Diagrama de posicionamento dos alto-falantes na sala de concerto (canais esquerdos 1,3,5 e 7 -
canais direitos 2,4,6 e 8)

Considerando a peça (Re )Canto de pássaros temos a possibilidade de duplicar,


quadruplicar, etc, os canais para um sistema de difusão multicanais podendo, então, jogar
com o deslocamento no espaço local sublinhando o discurso do espaço interno
predisposto pelo compositor.

Fig. 38: Patch no modo editável para visualização da quadruplicação do sinal estereofônico possibilitando
oito controles com oito mandadas de sinal de saída.

Um gesto arquetípico utilizado na difusão de obras esterofônicas pode ser o


cruzamento alcançado pela manipulação dos faders da seguinte forma:

-------- --------
iiiiiiii iiiiiiii
Fig. 38: Simulação de estereofonia cruzada em sistema octofônico.

Nas duas situações do exemplo acima temos a modificação da sonoridade geral


obtida. Na primeira posição apresenta-se um relevo gerando um cruzamento sobre a
plateia pela alternação cruzada do volume entre os canais frontais-trazeiros e
intermediários. Na primeira o centro de predominância está entre os canais 1 e 8, enquanto
na segunda ocorre um deslocamento acentuando os canais 4 e 5 criando um efeito de
proximidade que na configuração anterior não ocorria.
Aconselha-se, por fim, a realização de diversos ensaio no local para aprender qual
será o tipo de resposta da sala, considerando que a obra já tem sua predisposição espacial
predefinida anteriormente pelo compositor e o intérprete irá jogar com estes perfis de
forma a sublinhar sua espacialização.

Considerações finais

Na música eletroacústica, que é o termo que resume, hoje, grande parte da música
feita em estúdio dentro da linguagem erudita, a possibilidade de dispor os sons no espaço
é viabilizada pelo início da multifonia e sua apresentação ocorre em sala de concerto pela
manipulação de gestos a cargo do difusor, que por sua vez, assume o papel de intérprete,
inclusive, no sentido clássico do termo. Este executante fará uma tradução dos elementos
espaciais definidos pelo compositor no momento da concepção da obra, em que, buscando
uma escuta musical do espaço, lança o ouvinte à uma diversidade de movimentos do som
que estimulam sua imaginação, que no momento da difusão esta especula à atitude
perceptiva do público. Tal qual o compositor, mesmo limitando-se ao jogo com as
características da acústica do local, o interprete lança mão de gestos metafóricos, as quais
se revelam e fazem parte fundamental da estrutura composicional. Desta feita, os dados
sonoros, irão ocupar os planos de dimensão espacial da escuta da obra. Com este aporte,
partindo-se de uma tipologia composicional da espacialidade através de análises e
levantamento de ferramentária teórico-práticas, investigamos um espaço aventurado pelo
intérprete eletroacústico ilustrados aqui pela abordagem da peça (Re)Canto de pássaros
do compositor Alvaro Borges.

Salienta-se foi de fundamental importância o suporte dado pelo Laboratório de


Linguagens Sonoras e Música Eletroacústica - LiSonME, pelo Estúdio de Música da
FAP, Musical Immersive Sound Theater - M.I.S.T. (implementado pelo CV1146/12,
concedido pela Fundação Araucária ao pesquisador/FAP), ambos atrelados a produção
acadêmica do pesquisador. Da mesma forma que, o apoio do NatFAP, grupo ao qual as
atividades ocorridas se vincularam oportunizando a difusão acadêmica e institucional
deste projeto.
Referência Bibliográfica

BARRET, Natasha, Spatio-Camposition strategy. Organised Sound, vol. 07 n.03 p. 325-


336, Reino Unido: Cambridge, 2002

BORGES, Alvaro Henrique. Espacialidade sonora: abordagens composicionais da


Música Eletroacústica. [Relatório de pesquisa]. Curitiba: UNESP AR/FAP, 2014

_ _ _. Elementos composicionais da espacialidade sonora: uma tipologia do espaço


interno componível. Goiânia: Revista Música Hodie, vol.1, 2014

_ _ _ . Elementos composicionais da espacialidade sonora: apontamentos para uma


tipologia do espaço na Música Eletroacústica. Curitiba: Revista Científica da FAP, vol.1,
2014

CAMPOS, Ignácio de. Espacialização Multicanal a partir da Variação de Intensidade de


um Som. [Anais] Campinas: UNICAMP/Seminário de Música, Ciência e Tecnologia,
2005
DHOMONT, Francis. Navigation a L'ouie: la projection acousmatique: Belgique: LIEN,
1998.
FARIA, Regis Rossi Alves. Auralização em ambientes audiovisuais imersivos. [Tese de
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HOWARD, David M. e ANGUS, James. Acoustics and Psychoacoustics. [2nd. Ed.].


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MENEZES, Flo. A Acústica Musical em Palavras e Sons. São Paulo: Ateliê Editorial,
2004.

MOONEY, James et al. Sound spatialization, free improvisation and ambiguity. ln: 5th
Sound and Computing Conference. [Proceedings]. Berlin: SMC, 2008.

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