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Introdução do livro “A guide to musical analysis” (pgs. 1-4) de Nicholas Cook.

Existe algo de fascinante na própria ideia de se analisar uma música. Pois a música é
certamente uma das mais desconcertantes artes em seu poder de mover
profundamente as pessoas, independentemente de terem ou não conhecimentos
técnicos ou intelectuais. Ela move as pessoas involuntariamente, até mesmo
subliminarmente e, no entanto, tudo isso é feito por meio das técnicas mais
aparentemente precisas e racionais. Se somente algumas combinações de sons,
durações, timbres e dinâmicas podem destravar o conteúdo espiritual e emocional
mais oculto do ser humano, então, o estudo da música deve ser a chave para a
compreensão da natureza humana. A música é um código no qual estão inscritos os
segredos mais profundos da humanidade: esse pensamento inebriante assegurou aos
estudos musicais seu lugar central no pensamento antigo, medieval e renascentista. E
embora o estudo da música não ocupe mais um papel tão elevado nos círculos
intelectuais, algumas das tendências mais importantes de hoje nas ciências humanas
ainda lhe devem muito. O estruturalismo é um exemplo: você não precisa ter lido
muito da produção de Levi-Strauss para perceber a influência que a música exerceu
sobre seu pensamento.

Entretanto, este livro é muito mais modesto em seu escopo. É um livro a sobre o
processo prático de examinar peças musicais com o objetivo de descobrir, ou decidir,
como eles funcionam. E isso é fascinante, porque quando você analisa uma peça de
música, você a recria de fato; você acaba com o mesmo senso de posse que um
compositor sente por uma peça que ele escreveu. Analisar uma sinfonia de Beethoven
significa viver com ela por um dia ou dois de maneira semelhante a que um
compositor vive com um trabalho em andamento: acordando e dormindo com a
música você desenvolve com ela um tipo de intimidade que dificilmente poderá ser
alcançada por qualquer outro caminho. Você adquire um senso vívido de se comunicar
diretamente com os mestres do passado, o que pode ser uma das experiências mais
emocionantes que a música tem a oferecer. E você desenvolve um conhecimento
intuitivo sobre o que funciona na música e o que não funciona, o que é certo e o que
não é, e que excede em muito nossa capacidade de formular essas coisas em palavras
ou de explicá-las intelectualmente. Esse tipo de imediatismo confere à análise um
valor especial no treinamento composicional, em comparação com os antigos livros de
teoria e exercícios estilísticos, que reduziram as realizações do passado a um conjunto
de regras e regulamentos pedagógicos. Não é de se admirar, então, que a análise
tenha se tornado a espinha dorsal do ensino de composição.

Embora a análise permita que você se familiarize diretamente com as músicas, ela não
revela seus segredos, a menos que você saiba quais perguntas fazer. É aqui que
entram os métodos analíticos. Há um grande número de métodos analíticos e, à
primeira vista, eles parecem muito diferentes; mas a maioria deles, de fato, faz o
mesmo tipo de perguntas. Eles perguntam se é possível dividir uma peça de música em
uma série de seções mais ou menos independentes. Eles perguntam como os
componentes da música se relacionam entre si e quais relacionamentos são mais
importantes que os outros. Mais especificamente, perguntam até que ponto esses
componentes derivam seu efeito do contexto em que se encontram. Por exemplo,
uma determinada nota tem um efeito quando faz parte do acorde X e um efeito bem
diferente quando faz parte do acorde Y; e o efeito do acorde X, por sua vez, depende
da progressão harmônica da qual faz parte. Ou ainda, um motivo musical particular
pode não ser notável por si só, mas adquire um significado impressionante no
contexto de um determinado movimento como um todo. E se você conseguir
descobrir como isso acontece, então adquirirá um entendimento de como a música
funciona que você não tinha antes.

É difícil imaginar que poderia haver um método analítico que não fizesse perguntas
sobre essas coisas - sobre a divisão em seções, sobre a importância de diferentes
relacionamentos e sobre a influência do contexto. Mas, apesar dessa unidade de
propósitos, os vários métodos de análise são frequentemente buscados isoladamente
um do outro ou, o que é pior, em uma rivalidade amarga entre si. Muitas vezes, um
analista não adota um método e ignora ou denigre os outros: desta maneira temos o
analista motívico, o analista schenkeriano, o analista semiótico e assim por diante.
Cada um aplica seu método específico a qualquer música que surja e, na pior das
hipóteses, o resultado é o equivalente musical de uma máquina de salsicha: tudo o
que entra sai cuidadosamente embalado e com a mesma aparência. Isso acontece
especialmente quando o analista acredita que o objetivo de uma peça musical é provar
a validade de seu método analítico, e não que o objetivo do método analítico é
iluminar a música: em outras palavras, quando o analista se torna mais interessado na
teoria do que em sua aplicação prática. Eu não acho que se pode negar que isto seja
verdade no caso de alguns analistas. Rudolph Reti é um bom exemplo: ele está sempre
ansioso, acima de tudo, para provar que sua teoria está correta, independentemente
das qualidades particulares da música de que está falando. E você só precisa examinar
os jornais acadêmicos especializados de hoje para perceber o alto valor que é
geralmente atribuído à formulação de métodos analíticos cada vez mais precisos e
sofisticados, tidos mais ou menos como um fim em si mesmos. Nos últimos vinte anos,
a análise musical se profissionalizou: tornou-se em grande parte o lugar de analistas de
música, e não simplesmente de músicos que, por acaso, analisam.

Pessoalmente, não gosto da tendência de a análise se transformar em uma disciplina


quase científica por si só, essencialmente independente das preocupações práticas de
performance, composição ou educação musical. De fato, não creio que a análise
resista a um exame minucioso quando vista dessa maneira: simplesmente não existe
uma base teórica suficientemente sólida. (O capítulo 6 aborda isso com mais
profundidade.) Acho que a ênfase que muitos analistas colocam na objetividade e na
imparcialidade só pode desencorajar o envolvimento pessoal que é, afinal de contas, a
única razão sensata para alguém se interessar por música. E não vejo mérito intrínseco
no desenvolvimento de métodos analíticos cada vez mais rigorosos e sofisticados:
embora existam áreas analiticamente subdesenvolvidas (a música antiga é uma das
mais importantes), em geral acho que nossas técnicas analíticas atuais são bastante
bem-sucedidas. Na minha opinião, o importante não é tanto inventar novas técnicas,
nem aperfeiçoar incessantemente as que já existem, mas sim fazer o máximo uso
possível delas. Uma maneira pela qual as técnicas podem se tornar mais úteis é
empregá-las em combinação umas com as outras, e alguns passos importantes foram
dados nesse sentido nos últimos anos (me lembro, por exemplo, da síntese das
técnicas schenkerianas e motívicas empreendida por Epstein, da formalização de
Lerdahl e Jackendoff de técnicas extraídas de Schenker e Meyer e no tratamento
schenkeriano de Forte e Gilbert das formas tradicionais da música tonal: não é por
acaso que a análise schenkeriana é o fator comum em tudo isso). Mas a maneira mais
importante pela qual as técnicas de análise atuais podem se tornar mais úteis é através
do seu uso por mais pessoas. Eu gostaria que as habilidades analíticas descritas neste
livro se tornassem parte do equipamento profissional dado como garantido pelo
musicólogo histórico e pelo etnomusicologista. E isso é algo que só pode acontecer se
a análise for vista como um componente central da educação musical e não como
algum tipo de especialidade esotérica.

Este livro, então, é essencialmente pragmático em sua orientação. É quase um guia


prático para a análise musical, ao invés de um tratado teórico sobre análise musical,
como poderia ser. E isso significa que o livro reflete os preconceitos e as
irregularidades da prática analítica atual. Por exemplo, reflete o interesse primordial
que os analistas de hoje possuem naquilo que dá unidade e coerência às obras-primas
da música, sendo que as respostas vêm sendo procuradas principalmente nas
estruturas temporais e harmônicas das composições individuais. É possível argumentar
que esses preconceitos e limitações são perfeitamente justificados; por exemplo, se os
analistas estão menos interessados na estrutura timbrística do que na harmonia e na
forma, isto ocorre simplesmente porque a estrutura timbrística é menos interessante,
ou, o que acaba dando na mesma - menos passível de compreensão racional. Mas é
inegável que existem afirmações tácitas aqui a respeito da natureza da análise musical,
e este livro é lançado mais ou menos dentro da estrutura dessas suposições (ver nota
1, abaixo).

A orientação pragmática do livro também se reflete na maneira como ele é


organizado. A primeira parte define o que considero os métodos analíticos mais
importantes atuais no mundo de língua inglesa, lidando com cada um por sua vez. A
apresentação se dá método após método (ao invés de ser organizada, por exemplo,
por parâmetros musicais), porque cada profissional envolve um conjunto característico
de crenças sobre a música e os objetivos analíticos. E é importante esclarecer quais são
essas crenças: caso contrário, é provável que você aplique as técnicas associadas a
qualquer método de maneira indiscriminada e, portanto, enterre-se sob um monte de
dados que, na verdade, não significam nada para você. Se as crenças pertinentes a
cada um dos métodos analíticos são verdadeiras, no sentido teórico, não importa: o
que importa é quão útil é o método que se baseia nelas, e em que circunstâncias.

A questão de como decidir qual método adotar em qualquer circunstância específica -


ou, até mesmo, se você deve improvisar uma nova técnica - é abordada na segunda
parte do livro, em que determinadas composições ao invés de métodos analíticos
formam o ponto de partida. As análises nesta seção são projetadas para destacar
aspectos diferentes do procedimento analítico e a ideia é que cada capítulo seja lido
como um todo.
Nota 1: Para visões críticas da análise em relação a todo o campo dos estudos
musicais, consulte “Musicology” de Joseph Kerman (Fontana / Collins 1985), capítulo 3,
e "Structural and Critical Analysis" de Leo Treitler, em Holoman e Palisca (eds.),
“Musicology in the 1980s”, Da Capo Press, 1982, pp. 67-77.

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