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12 – O corpo familiar como obra musical

Isabel Cristina Lopes / Júlio César Giúdice Maluf / Maria Inês Assumpção Fernandes

Foi num exercício de lembrança do nosso percurso para contá-lo na forma


trabalhamos: a polifonia da memória grupal numa constante e múltipla singular fala.
Agosto de 2013 - 20 anos de Coral Cênico Cidadãos Cantantesto, partimos da temática
da temporada 2013: "felicidade na roda", a roda da felicidade... a felicidade que roda
pois não é estática nem aprisionável... como um extrato que se oferece à análise-
reflexão de uma experiência que perpetua-repete um traço, uma marca: o repertório
da lembrança, do que faz sentido... não só passado para justificar o futuro, mas a
memória do presente, como aponta Ecléa Bosi em Memória e Sociedade: Na maior
parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, re- pensar, com
imagens e ideias de hoje, as experiências do passado. A memória não é sonho, é
trabalho. Se assim é, deve-se duvidar da sobrevivência do passa- do, "tal como foi", e
que se daria no inconsciente de cada sujeito. A lembrança é uma imagem construída
pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição. (Bosi,2004) O espetáculo dessa
temporada de 2013 se inicia com uma canção original interpretada ao violão por
Sergio Rivas, um rapaz espanhol, da Galícia, que foi trazido para o grupo por um amigo
boliviano. Envolvido afetivamente com o grupo, Sergio presenteia a todos com uma
canção de sua autoria, que fala da identidade dos Cidadãos Cantantes e logo a canção
passa a ser uma espécie de prefixo musical do grupo: ela abre o espetáculo e causa
estranhamento no público, que se surpreende com o sotaque, uma vez que em
seguida a música é cantada por todos mantendo a musicalidade do sotaque de seu
autor, situa-
cão esta que fielmente fala e representa um coletiva tão diverso como o dos
diversidade, a esquisitice, o que diferencia o priblico desse outro tão exposto na palco,
no fazer artístico despreocupado com conceitos estéticos hegemónico, de beleza. Para
Ranciére, a identificação da arte se faz pelo fato de se distinguir um modo de ser
sensível próprio dos produtos da arte. O estranhamento è produt. ido por esse sensível
habitado por uma potência heterogênea; a de um pensa.- mento que se tornou
estrangeiro a si próprio. Luiz Camillo Osório reflete que este sensível heterogêneo é a
desidentifica- ção própria ao juízo estético kantiano, uma vivificação da alma que
desperta a imaginação na direção das ideias estéticas. Produzindo, portanto, a
insubordi. nação do sentir em relação ao conhecer, a indeterminação do sentido que
vai se constituindo no transcorrer da experiência. O espetáculo A felicidade, desde o
seu prelúdio, parece provocar no artista cantante e no espectador essa [..] dimensão
política do juízo estético, no qual um prazer desinteressado, não pautado por
interesses particulares, por idiossincrasias, revela algo, de nós mesmos è do mundo,
que quer ser compartilhado. É da natureza do prazer estético, deste sentir
heterogêneo, essa projeção para fora, para a troca e para o discurso. O que interessa é
a possibilidade de sermos mobilizados pela pre- senca surpreendente de algo que
desloca nossas premissas de identificação, nos tira das certezas adquiridas, nos faz
buscar um novo modo de perceber, de falar, de pensar. (Osório, 2005) Onde reside a
singularidade dos Cidadãos Cantantes? Num canto coletivo em que o repertório é
tecido em tramas, costuras de narrativas, lembranças reconstruídas, pedaços de
ontem e de amanhã, numa espécie de temporalidade marcada pelo calendário
subjetivo. Sim, são subjetividades entrelaçadas que narram experiências, de maneira
que a lembrança do vivido evocada por um membro do grupo provoca no ou- tro o
reconhecimento, a empatia. Instaura-se o empréstimo da experiência do outro para
lidar com as próprias lembranças. Como nos diz Walter Benjamin: O narrador conta o
que ele extrai da experiência - sua própria ou aquela con- tada por outros. E, de volta,
ele a torna experiência daqueles que ouvem a sua história. (Benjamin,1994) Teo, um
homem com mais de quarenta anos, está de volta ao Coral depois de alguns anos de
ausência. Quando iniciou vinha num grupo do Hospital Psiquiátrico da Água Funda,
acompanhado e identificado como paciente. Re- tora em meados de 2013, autônomo
e espontaneamente, e logo passa a cone tribuir com sugestões à nossa pesquisa acerca
da temática felicidade - e todas as imagens e canções que revelassem esse sentir, e a
roda - e todas as suas diversas expressões que agregam um coletivo, que une vozes,
que ritualiza e
duna uma batid® ale mossa cultura no imento, comum no reperório infantile
Prembranga que a va. Viena pai Tra ciarregada de diversão e ludicidade. .».Tao Ajouie
pouco talavaoxaVeca pai Ancia roda de catita Sou do inferior de vitico talais. Lembro
de todos dançando e caniand o catita, folia de reis e Viras (STA. D. Alice, do interior de
São Paulo, também se lembra das catitastras janga que lhe remexe o OPO, Que apenas
ouvia quando mocinna, que nun. da dançou, pois comenta que na época as mulheres
não participavam desas danças. são memórias tecidas e minunciosamente trabalhadas
com a "Catira do Pas- sarinho" trazida pelo regente que recolheu junto ao grupo Bola
de Meia de jau José dos Campos: Como criação coletiva os Cidadãos Cantantes
interpre- fam esta canção em uma roda de improvisos com batidas de pés e mãos que
poderia se situar numa região qualquer entre a atira do interior do Brasile o flamenco
espanhol. A lembrança de Teo nos fala da catira que seu pai cantava e dançava quando
ele era ainda pequeno, com uns cinco anos. A lembrança era do ritmo, da pulsação.
Depois da primeira apresentação em público, em que Teo muito vibrou, re- velou ao
grupo em nossos momentos de roda de conversa, o segredo, o não nomeado até
então, a dor, pois seu pai quando entoava e dançava a catira na sala de sua casa,
sozinho, era o prenúncio de seu descontrole e sofrimento psíquico... e internações que
se seguiam, invariavelmente e afastavam o pai do convívio familiar... E aquele menino
Teodomiro, tão pequeno e encantado pelo pai, Seu Miguel Arcanjo, na catira, vive a
implacável necessidade de parir um novo significa- do para espantar o que quebra o
ritmo, o que impõe uma nova rítmica e faz recordar e passar diferentemente pelo
coração - "meu pai me incorpora, é maravilhoso quando danço e canto a catira, faz
acalmar meu coração". Teo atualmente frequenta o hospital dia da Água Funda, não
mais o hospital psi- quiátrico. Depois da primeira apresentação pública, teve um
afastamento por problemas de saúde. Foi internado no hospital geral público com
arritmia cardíaca, logo se recuperou. Acompanhamos a construção coletiva de um
grupo polifônico. A música nos empresta esse conceito de polifonia para
compreendermos o fenômeno que ocor- re no grupo. A polifonia na música é a
manifestação de muitas vozes ao mesmo tempo, cada um na sua linha individual, mas
compondo um todo que prevê uma harmonia dentro de uma estrutura que pode ser
considerada caótica quando se quer ouvir todas as vozes ao mesmo tempo, porém
sempre temos a possibilidade perseguir uma voz em sua coerência interna como frase
musical. No grupo que denominaremos de polifônico, emerge uma prosa politonica
em que inúmeras vozes simultaneamente se manifestam, se atravessam ousam à
audição/audiência do outro.. instaura-se o caos, mas um caos nietschiano,
como potência criadora que subjaz a todas as possibilidades do mundo. O caos é
desordem, mas no sentido em que ainda não se deu à ordem, no sentido de ato puro
de criação. O necessário caos interno para parir uma estrela dançante, para parir o
improvável, parir a luz. Vivenciamos esse caos nas tempestades de ideias e livres
contribuições, desordenadas manifestações das pesquisas temáticas onde tudo cabe
para posteriormente ser experimentado, selecionado, arranjado em composição do
grupo. No grupo polifônico, uma voz por vezes se destaca por portar a palavra, a
memória do indizível, do que não se atreve nomear; a voz que porta o sonho, que
revela corpos desempoderados de gozo, o implícito, o prazer latente, o in- visível capaz
de fazer a roda girar e o grupo operar. Esse momento precioso que se manifesta
ciclicamente, em movimento contínuo revezando protagonis- tas, porta-vozes, exige
um manejo grupal que caracteriza parte importante de nossa metodologia de
trabalho: O manejo grupal na perspectiva pichoniana, que busca a compreensão de um
grupo em sua operatividade, identificando os papéis desempenhados e por vezes
rodiziado por seus membros e os vínculos que se estabelecem, a realização da tarefa a
que o grupo se propõe e os atraves- samentos para que ela ocorra, as forças que
conferem ao grupo sua identidade institucional e sua mobilidade. O agrupamento já se
dá pela tarefa que une a todos numa direção comum - o canto coral cênico.
Trabalhamos na construção de um repertório e seu desen- volvimento em ensaios
semanais que resultam de aprimoramento e transfor- mação contínua, ou seja, a
preparação inicial com aquecimento vocal, corporal, jogos de ocupação do espaço, o
compartilhamento do mesmo espaço alargado ou diminuído pelos vários corpos, as
interações de olhares, de vozes... A espacialidade em que ocorrem os encontros
semanais na forma de com- partilhamento da pesquisa, roda de conversa, ensaios...
provoca a mistura de vozes, olhares, e por vezes corpos dos que estão dentro da Sala
Vitrine da Dan- ça, na Galeria Olido, e os que estão fora e ora observam, ora interagem
dire- tamente e adentram a sala, e passam a fazer parte do grupo que ocupa esse
espaço institucional envidraçado na Avenida São João, centro velho e popular da
cidade paulistana de onde emerge uma ampla diversidade humana. Isidro, um corretor
de imóveis, o mais novo integrante, passa pela rua da Ga- leria e vê o grupo em
reunião na Vitrine, entra e assiste parte da reunião, na qual se discutia o repertório, a
pesquisa... ao se retirar sente-se acolhido por um membro do grupo que explica o
sentido do trabalho e o convida a voltar. Retorna. "O que me chamou a atenção é a
diversidade, a afetividade do gru- po.. é mágico! Tenho necessidade de expressar,
gosto de plateia. E ótimo o fato de ensaiar já com público numa sala de vidro em que
nos olham de fora. Será que escutam o que cantamos?" Como uma vitrine que expõe a
condição humana criativa, musical, cênica dos Cidadãos Cantantes, também atrai,
convida e provoca na pessoa que està do outro lado do vidro o desejo de ser visto, de
fazer parte, de empoderar-se
da consciência de sua existência como parte de um espetáculo, de um capitulo
especial da história da humanidade. O ato criador não é executado pelo artista
sozinho; o público estabelece o con- tato entre a obra de arte e o mundo exterior,
decifrando e interpretando suas qualidades intrínsecas e, desta forma, acrescenta sua
contribuição ao ato cria dor. (Duchamp, 2004) A tentativa de tornar público um
trabalho, uma pesquisa, o compartilha- mento de um processo, em ensaios
praticamente abertos, pela exposição de cor- pos, gestos, sons que a Vitrine
proporciona, revela a formação de um público, que mesmo diante de uma obra
inacabada, um espetáculo em construção, o espectador, tocado por essa experiência, é
convocado a expressar seus senti- mentos retirando-o da passividade. Não se trata,
contudo, de transformar o espectador de passivo a uma con- dição ativa. A arte não
quer conscientizar. O espectador associa todo tempo o que está sendo percebido com
aquilo que já foi vivido e sonhado por ele. Assim, assume para si parte relevante da
potência criativa que até então estava circuns- crita e reservada ao processo de
realização da obra. Muitas pessoas que param na Vitrine entram na sala, na qual
encontram dispostas algumas cadeiras para que possam assistir o ensaio, e
invariavelmen- te em algum momento são convidadas a participar ou a retornar para
uma par- ticipação mais ativa se desejarem, e comumente o desejam: o morador de
rua que entra alcoolizado com seu amigo e senta no chão e ao reconhecer a canção
que está sendo executada chora e refere uma lembrança de infância, fala alto e
choroso e esse quase canto solitário interfere e se mistura ao som do grupo; a
estudante de nível médio que procura emprego e resolve entrar para assistir e relata
que não pode participar pois está em busca de trabalho; ou o rapaz que em seu
horário de almoço passa e dá um tempo para apreciar de perto e diz: 'Quem sabe
consigo voltar"; o aposentado que sabe cantar as cirandas nordes- tinas e seus olhos se
enchem de brilho e sentencia: "Na quarta que vem eu esta- rei aqui pra ficar.… .". Há
aquele espectador que, ao assistir o espetáculo pronto, num teatro, refere o desejo de
fazer parte, como uma senhora de mais de 70 anos: "E tanta energia que vocês passam
pra gente, uma felicidade mesmo, que eu quero estar com vocês nesse palco, nos
ensaios". Assim, esta senhora tem vindo em quase todos os ensaios, chega sempre no
final, para ficar um tempo pequeno, como se fosse para beber dessa "energia de
felicidade" ... Assistimos essa prontidão surpreendente e que mobiliza atitudes
inesperadas provocadas pelo fenômeno artístico que, como postula Luiz Camillo
Osório, tem muito em comum com a noção de ação em Hannah Arendt, para quem o
"fato de que o homem é capaz de agir significa que se pode esperar dele o inesperado,
que ele é capaz de realizar o infinitamente improvável' O manejo grupal nos implica a
todos cuidar dos efeitos da criação: os solos que dividem a história de cada um no
coletivo, a tornam pública; em contra- partida, os que se perdem como vozes na
multidão, e supostamente se prote Sem da exposição, se veem expostos pela
experiência coletivizada no grupo e
experimentam a possibilidade de projeção e direito ao prazer. São frequentes nos
Cidadãos Cantantes as disputas pelos solos musicais e poéticos que causam atritos
incendiários e dificultadores de ingresso na tarefa e que nos impulsiona a identificar o
que atravessa, o que paralisa, o que impede, por vezes, "a roda girar". Dar voz a essas
dificuldades favorece o emergir do atrito, do atravessa- mento para ser nomeado e
significado para facilitar o grupo operar. Como um corpo que se mostra ao mundo em
sua ampla subjetividade e carece do olhar da audiência, do aplauso para reconhecê-lo
corpo, para lhe con- ferir, como nos sugere Merleau Ponty, o "corpo como obra de
arte" e assim restaurar nesse corpo a umidade necessária ao prazer (Merleau-
Ponty,1994). A experiência é de uma produção-processo continuo, na qual a arte é a
meta, o horizonte, o caminho e o que facilita o caminhar; assim, vivencia-se a arte
como bem comum, ao acesso de todos. A Arte assume o status de essencial à convi-
vência, ao cotidiano, cria hábito, valor, a ponto de implicar desconforto aos que se
familiarizam com sua expressão e força criadora quando da impossibilidade em
desenvolvê-la. Deixar de desenvolver a linguagem artística provoca uma sensação de
quase lesa-cidadania no cidadão que dela se alimenta e se recoloca no mundo com
novos e reparadores papéis existenciais. Vitor, com mais de 30 anos, é um cidadão
cantante há alguns anos. Chega muito descrente de suas possibilidades e marcado pela
dor das sequelas neu- rológicas por um acidente de trabalho sofrido, quando ainda
muito jovem, na rede McDonald's. Vitor desperta não só o gosto pelo canto coral
cênico como o gosto pela vida, pela crença em si. Passa a cuidar melhor de sua saú- de,
a frequentar com assiduidade a fisioterapia, a psicologia e a neurologia. Experimenta
sucesso em seus tratamentos que o auxiliam na postura, dicção, equilíbrio. Entretanto,
o que mais chama a atenção é a percepção cidadà desse moço em reconhecer que
suas sequelas não poderiam justificar a ausência de sonhos, de projetos de vida. Inicia
uma delicada trajetória de pacto com a felicidade. Neto de uma cozinheira, há mais de
cinquenta anos, de uma tradicional família paulistana, moradora do bairro nobre dos
Jardins, onde ocupa a edícula do casarão que vive desde pequeno na companhia da
avó. Muito comum são os saraus anuais no casarão entre as senhoras da sociedade
paulistana, os quais Vitor acompanhava à distância anos a fio. Vitor, muito querido da
família, arrisca sugerir que em um dos saraus poderia levar par- te dos amigos
Cidadãos Cantantes para se apresentar... Um dia foi aceito, e testemunhamos uma
significativa conquista desse moço alto, forte e robusto negro, vestido para festa,
adentrar a sala da Casa Grande e ser reconhecido em sua arte e talento, em sua
ousadia cantante... Construir a Felicidade, como a temática em questão, e a roda como
mani- festação desta felicidade, levou o grupo a percorrer narrativas individuais, que
se coletivizaram. O grupo elegeu a Felicidade, que é apresentada como uma menina
que percorre as histórias de cada um. E qualquer menina que quer ver desabar a
felicidade para desvendá-la, uma espécie de brincadeira de esconde- esconde, a
menina de cada um, a menina do grávido do grupo que gira a roda
da vez, do improvável nevavastai a m casal uma familia, aja mãe prenha e 175 d
menina psicótica que aliciaya Mal tua que gera uma menina e se esparamhae.
alicidade no choro de felicidade do frágilhomem pai Pai e mae, quase sem ade receber
a menina que nasce. nem beira, que encontram no grupo referência para montar o seu
canto para Buscando um tema unificador para a construção do repertório do ano de
2013, deparamos com a pergunta: O que é a felicidade para voce? Renata, que trouxe
uma canção do Tom Zé com este tema para o grupo, diz: "Não estava bem e acordei
com esta música no rádio": Menina amanhã de manhã quando a gente acordar quero
te dizer que a felici- dade vai desabar sobre os homens, vai desabar sobre os homens
vai, desabar sobre os homens.. (Perna, Tom Zé, 1976)17 Brincamos com o texto da
canção e com os corpos. Que felicidade é essa que irá desabar (cair) sobre nós feito
tempestade, bomba ou um prédio e que teremos de nos proteger, nos esconder para
não morrer de felicidade? O ritmo ligado com as imagens rápidas do texto faz com que
haja um cres- cendo de intensidade e movimento até chegar ao ápice: "vai desabar
sobre os homens. " e repetindo essas palavras volta a decrescer como um movimento
inevitável de ida e volta. Muitos falaram do medo de ser feliz. De vivenciar este estado
de felicidade. Na roda de conversa surgia: "menina a felicidade é cheia de: Choro, Cor,
Abra- Ço, Roda, Som, Dança, Paz, Sexo, Liberdade.... ." (depois tivemos referências que
essa canção foi composta por Tom Zé na época em que o Brasil vivia uma dita- dura e
uma quase ausência da possibilidade da felicidade. Anos de chumbo). Cantar a
felicidade dessa menina é cantar o improvável, é dar à luz o invisi- vel, o bizarro... o
segredo, a surpresa revelada no conteúdo que recheia a felici- dade de cada um: de
sexo a bolo de chocolate... que circula no grupo de maneira a surpreender a felicidade
de um poder ser apropriada pelo outro como sua. A Roda na rua é uma canção que
evoca a memória das canções de roda, ciran- das, brincadeiras com pneus, aros e
varetas, roda de pia... rua de terral/barro, roda de carro; Evoca a roda medieval em
volta do fogo... O diálogo que se estabelece entre a poesia e a música é o encontro
improvável entre Cecilia Meireles - poeta brasileira - e o compositor húngaro Bela
Bartol; suas composições de épocas e espaços tão distintos criam a materialização da
harmonia de diversidade artística, oferecendo aos Cidadãos Cantantes uma rara
experimentação.
a composição grupal que se esuga a ta planta de ecreinaia de pensa, experimentar a
"Felicidade na Roda" '"'rota na poesia de Glenda Vilek, uma cidadà cantante, sem
autoria assinada, porque é do grupo, as 'garatujas a uma cidada candimo"uma licenga
poctica para a forpiçao de 'norlos; Vinculos opta menilhao para uma homogeneização
de sujeita inversistamente criancie parado indo de para a pingularzação c a inseriasg
da diversidade A perspectiva pasulaitianinha relação dos lagos entre os sujeitos e dos
Jaços entre as tAlLi*a palAvras em um grupo, Imprimem o caráter dialógico e
polifónico desta conj Picadao, constituindo assim um caminho interessante para
pensarmos a livre ¡issociação no grupo. Narra a vida e a morte de papéis existenciais
de cada sujei. 2o no gripo; como escreve Mia Couto "a morte é como o umbigo: o
quanto nela existe é a sua cicatriz, a lembrança de uma anterior existência" (Couto,
2003). Garatujas a uma menina Htá tanto tempo que não te via? Te olhava brincar,
correr, dormir e balançar na rede. Te via cochichar baixinho fazendo bonecas
dormirem. Via pintar alguns desenhos pequeninos, algumas casas, um sol... uma
menina. O rabisco virava vestido, laços, sorrisos, linha, virava vento, virava tempo.
Quantos desenhos jogados fora, quantos desenhos guardados dentro? Quantas
imagens fazia? Dançava escondido, cantava escondido... Menina, te vejo agora na
roda, cantando sobre felicidades, construções que de- sabam e escapam. Da boca, no
cantar... no passo em direção ao outro, num gesto, num traço que permanece... e
derrete. Menina, há quanto tempo dançava no escuro. Sentia medo de entrar na roda.
Encontra um olhar conhecido. Um olhar amigo... um olhar que canta. E agora a roda
gira. Menina, encontrou um homem, um coração. Alguém que escuta da janela gri-
tos, canções latentes. Civil é o coração que canta, esbraveja docilmente. Uma
docilidade gritante. Menina esta carta é dissonante e dissoante, são tantas pontas,
tantos laços, tan- tas fitas... e no final alguns abraços. O que desenha e o que procura?
Traços, ga- ratujas, redes confusas, intrincadas, extasiantes... encontros de olhares,
beijos, meninas, meninos, homens, mulheres... vozes. Vozes, baixas, vozes grandes,
não são altas, mas são fortes. Alguns gritos cantados. Vozes formam linhas, fluxos, que
esbarram nas vitrines, nos pequenos fragmentos de espelhos e de encontros. Espaços
de vitrine fazem historias se entrecruzarem e disparem ou- tras trilhas e canções. Rios,
margens no caminhar dos homens no encontro das salas e das ruas. O que procuram?
O que vislumbram? O que querem ver? No corpo, na cidade, um sabor, um vidro, um
corte, um asfalto, uma espera, uma fila imensa, as luzes e a gente... gente, gente,
gente, gente..." existencial O lugar da felicidade - a Maracangalha"® de cada um, a
poética do lugar passa a existir segundo um novo script, um novo olhar a partir
pambém do olhar que o espectador lhe proporcionou se.r... "toda posição de
espectador já é uma posição de intérprete, com um olhar que desvia o sentido do que
é apresentado" (Rancière,2005). Quando cheguei aqui eu lembrei de minha infância,
do jeito que meus avós e parentes me tratavam. Aqui fui bem recebido. Nunca digo
quê é um Coral Cè- ver o livro mais. Tive preconceito até na família... Minha família é o
Coral... Antes eu queria a morte, mas aqui encontrei pessoas que me entendiam e
davam valor à minha vida. Aqui me descobri ser humano. Eu não acreditava mais em
mim. Antes não tinha esperança, não adiantava fazer um plano. Hoje procuro levar a
frente. Venho buscar força aqui no Cora.... Eu não tenho estrutura para deixar o Coral
ainda. Descobri no Coral que o ser humano foi feito para viver em comunhão. Amor
compreensão e entendimento, aqui encontrei isso. José Ivan de Lima - ex-coralista
deixou o grupo há alguns anos e passou a viver no interior de São Paulo, onde planta,
produz artesanato e vende suas produções em feiras livres tocando sua gaita para
atrair seus fregueses, que o conhecem como o vendedor artista). Vivenciamos no
tecido desse trabalho uma prosa com o mundo do outro, da memória do outro em
cada um... A prosa que cria uma narrativa própria e passa a ser a narrativa do grupo.
Grupo confidente e restaurado dessa prosa- memória que apresenta a
inesgotabilidade da vida. Compor um repertório e cantá-lo é ir em direção a essas
prosas do mundo, é sair e entrar no mundo, é a lembrança do que não houve, mas
possui um som, uma cadência que faz resso- ar no corpo como lembrança vivida.
Quando se diz prosa do mundo, uma das leituras que podemos fazer dessa expressão
que vem de Hegel é que o mundo, o real, a vida, não está simples- mente disponível aí,
visível a todos. E preciso que ele seja construído, formado - ou seja, ganhe forma e
sentido, para que deixe de ser invisível. "Minha memória é Luiz Gonzaga'". Esta música
tem muito a ver com minha história. A mulher nordestina tem que ser forte e
batalhadora, mulher macho. Eu fui e sou". Assim D. Iva se define. "Quando lama virou
pedra e mandacaru secou, quando ribação de sede bateu asas e voou, foi aí que eu
vim me embora, carregando a minha dor, hoje eu mando um abraço prà ti pequenina.
Paraiba masculina, mulher macho sim senhor.. ". Chico completa: "Minha família veio
do Nordeste. Meu pai ouvia muito o Gonzagão e eu cresci ouvindo ele" O Cidadãos
Cantantes, como um grupo politônico, pesquisa a memória que adormece e a que
ainda não dormiu, que ainda não se réconhece como memória
pelo frescor de sua audiência... um estado polifônico que persegue a singulari- dade de
seu caos som e faz o grupo acordar. "Acordar não é de dentro, acordar é ter saída"
João Cabral de Melo Neto, citado por Mia Couto em sua obra Um Rio Chamado Tempo
Uma Casa Chamada Terra",2013).

Comentários de Maria Inês Assumpção Fernandes


O trabalho que nos é apresentado por Cristina e Júlio mostra a relevância. do projeto
Coral Cênico de Saúde Mental Cidadãos Cantantes. Diante das no- vas questões que
nos desafiam a repensar a clínica atual, o que se revela aqui solicita-nos a ampliação
de um caminho teórico, apoiado talvez em outros pa- radigmas, para dar conta dessas
superfícies sociais e psíquicas que demarcam as subjetividades contemporâneas. O
que se desenha nessa experiência vai mostrar que a palavra e a voz que a recita, o
corpo e o movimento que fabrica o gesto, juntos, implicam delinear um outro
contorno ao sofrimento. De fato, a importância desse projeto resi- de em sua
capacidade de construção de um novo lugar / continente capaz de
conter e transformar nesse tramas. .. canto coletivo em que o repertório é tecido em
outras "costuras de narrativas.. lembranças.., pedaços de ontem e de amanhã. O
essencial pode encontrar-se aqui: A lembrança de Teo nos fala da catira que seu pai
cantava e dançava quando ele era ainda pequeno, com uns cinco anos. A lembrança
era do ritmo, da pul- sação. Depois da primeira apresentação em público, em que Teo
muito vibrou, revelou ao grupo em nossos momentos de roda de conversa, o segredo,
o não nomeado até então, a dor, pois seu pai quando entoava e dançava a catira na
sala de sua casa, sozinho, era o prenúncio de seu descontrole e sofrimento psí- quico...
e internações que se seguiam, invariavelmente e afastavam o pai do convívio familiar..
Assim como no manicômio, lugar para onde o pai partia, não há relógios nem
calendários, o Teo, aprisionado fora dele, precisa reencontrar seu tempo, pois sofre,
sob estranhamento, os efeitos daquilo mesmo que recalcou e do qual é portador,
mensageiro de uma letra secreta, destinado a ser contemporâneo de uma estória que
o constitui, embora a desconheça (Fernandes, 1991). O que encontramos nesse relato
remete-nos à clínica do indizível, do incon- fessável. Remete-nos à falência do corpo
familiar de Teo, expresso pelo corpo abalado do pai, em sua capacidade de
metabolização dessa dor. O que Teo en- contra, pelo trabalho do grupo no Coral, são
as condições necessárias para que seja suportável mexer nessa ferida e dela emerjam
as possibilidades de elabo- ração e transformação. O coral e a voz, a música e o ritmo
cadenciado das palavras e dos corpos constituem, no Coral, um novo cenário em que o
som e o sentido entrelaçam-se e marcam outros encontros abrindo-se a novos
caminhos, criando novas passa- gens e outra narrativa. E, "L….] aquele menino
Teodomiro, tão pequeno e encantado pelo pai, Seu Miguel Arcanjo, na catira, vive a
implacável necessidade de parir um novo significado para espantar o que quebra o
ritmo, o que impõe uma nova rítmica e faz recor- dar e passar diferentemente pelo
coração - "meu pai me incorpora, é maravi- lhoso quando danço e canto a catira, faz
acalmar meu coração" "É necessário curar a alma que sofre - em particular a alma que
sofre do tempo, do spleen - por uma via rítmica; por um pensamento rítmico, por uma
atenção e um repouso rítmicos... e desembaraçá-la das falsas permanências, dos
intervalos malfeitos, desorganizá-la temporalmente... ." e caminhar não somente de
um sentido a outro mas dos sentidos à alma, como diria Bachelard (1966).
Efetivamente, o que se constrói no Coral Cênico é o trabalho psíquico de remalhagem
de um tecido familiar esburacado incapaz de sustentar qualquer
coisa que nele se deposite. As imagens recuperadas por Teodomiro mostram o corpo
estraçalhado de um pai incapaz de regular os movimentos de seu corpo qué
encontrava, na música, os restos de alguma organização, a catira. O segredo revelado
na roda de conversa testemunha a capacidade de continência desse novo grupo
familiar - "o coral é minha família" - e a transformação da narrativa oficial: "Eu / Nós
que, na feliz metáfora de Aulagnier, é aprendiz de historiador, inventor infatigável de
uma versão oficial da sua história libidinal, é também repressor - inconsciente - de uma
parte de sua estória que rejeitou / foi rejeitada ou proibiu / foi proibida" (Fernandes,
1991). A história de Teo é a história de sua família, é a história das internações e do
afastamento do pai. É a história das alianças, dos acordos inconscientes desse grupo
familiar. Mudar essa história oficial exige um ato de incorporação - meu pai me
incorpo- ra -; exige ceder seu corpo para outro movimento, com o suporte do grupo, e
impri- mir-lhe um novo ritmo, isto é transformá-lo. O Teo já pode dançar a catira. No
canto coletivo e pelo ritmo, o Coral opera nas dimensões do ambíguo e do
ambivalente no psiquismo, nos níveis intersubjetivo e transsubjetivo. Aqui- lo que
deixou marcas não acessíveis ao sujeito, herdeiro e portador de uma história que
desconhece, exige, no campo da clínica, a construção de novas es- tratégias de
intervenção. Essas novas estratégias interpelam o vínculo e dizem respeito à
malhagem genealógica (Benghozi,2010). A remalhagem do continente familiar
permitiu, pelo trabalho dos Cidadãos Cantantes, a reconstituição desse corpo familiar
e individual de Teo, filho de Miguel Arcanjo. Por esse trabalho percebemos que "a
continuidade psíquica não é um dado, mas uma obra. Dura aquilo que recomeça;
somente perdura o que se retoma. Recomeçar é o movimento fundamental" (Faria,
1991).

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