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Nesse instante, eu não faço idéia do quanto este encontro será

determinante em minha vida.

A sala está cheia de gente. Eu acabo de penetrar em outra

atmosfera, um trânsito em segundos, um estado de vertigem sob a

pulsação forte de tantos instrumentos de percussão tocados ao mesmo

tempo.

Interessante! Não é a mesma porta que na infância descortinava

o imaginário de fantasias do balé. As fantasias se modificaram, mas a

sensação de trânsito, de mudança repentina para o universo das artes

se repete. Eu me sinto em outro lugar, ‘entre’ outras pessoas, ‘entre’

outras esferas, num contexto até então inédito.

Os músicos são quase todos negros. Um rastafari está no centro do

grupo de músicos. Seu corpo levemente envergado sobre quatro

tambores, vibra sem parar. Suas mãos pulsam como o coração da

música e dão a base rítmica que reverbera no movimento de sua cabeça,

acompanhando com os olhos atentos, os outros músicos e os dançarinos.

Transmite uma postura de maestro. Os quatro instrumentos grandes de

percussão estão presos a uma armação de ferro dispostos sobre um

tapete cinza.

Ilustração 6 – Fayee na foto do prospecto de atividades artísticas do Gebouw


Kostgewonnen exposto na ilustração 5
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O maestro tem amarrado nos dois pulsos, uma espécie de guizos,

que complementam o ritmo rápido, sincopado e cíclico da música. Na

cena que vejo, percebo instrumento e músico como extensão um do

outro, ou seja, instrumento-músico, músico-instrumento, através das

palmas gordinhas das mãos e dedos afilados nas pontas, daquela ‘figura’

acariciando de forma peculiar os quatro couros, cujos tamanhos são

distintos. A intensidade e qualidade rítmica com que suas mãos

diferentemente tocam os tambores, fazem ecoar destes, respostas sonoras

distintas e penetrantes. Um bate papo de peles. Pele de vaca com pele de

gente. Pele morta com pele viva. É exatamente o lugar, o estado, ‘entre’

as peles, que os une.

Ilustração 7 - Amarrados nos pulsos vemos os guizos (siwagness) a que me refiro no texto.
Foto do prospecto do Gebouw Kostgewonnen
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Nessa fissura está a magia que, ao reverberar no ar penetrou nos

sentidos das pessoas presentes, atravessou as paredes, chegou à rua e me

atraiu para aquela sala. E esta magia se instala em meus sentidos e

alarga a percepção sensorial mobilizando minha audição e visão, à

espreita de captar as mensagens indecifráveis que a música e a dança

despreocupadamente transmitem. Uma travessia territorial arrebatada

pelo fator cíclico do ritmo, momento único inscrito na memória. 3

Neste diálogo musical e corporal percebo que os olhares

indagadores de cada integrante do grupo sempre se voltam para ele e

pedem cumplicidade na atuação musical. Algumas vezes ele fala algo

que não ouço, mas consigo identificar que indica o erro de alguém. Na

maioria delas, balança a cabeça da direita para a esquerda num

movimento pequeno e continuo que executa dentro do ritmo e expressa

um gesto de afirmação.

O som me inebria e recordo a sensação de dilatação dos sentidos

ao observar os Orixás, particularmente Xangô nas festas do Portão e na

apresentação de Augusto Omolu, representando o Brasil no Theatrum

Mundi, no lago Igapó. Meu corpo se dilata.

À esquerda bem próximo ao músico, um negro magro e alto está

em pé, e com duas madeiras nas mãos dá a pulsação constante do

conjunto sonoro. Do seu lado esquerdo está sentado o único deles que se

3
Vislumbro aqui um diálogo entre o fator cíclico que marca o ritmo deste e de outros momentos inscritos
na memória das danças deste estudo com a performance Untitled Dance (1987) analisada no texto “The
Ontology of Performance: representation without reproduction”, (Unmarked: The politics of performance,
PHELAN, 1993), Angelika Festa tenta mostrar a analogia entre algumas oposições metafísicas tácitas
ocidentais como nascimento e morte, tempo e espaço, espetáculo e secreto, onde o presente para ser
presente, para existir, precisa estar suspenso entre passado e futuro. Uma mulher amarrada igual a uma
múmia, está suspensa numa diagonal. A condição em que se encontra mostra sua impossibilidade de
projeção, de reclamação. Ela está ali imóvel durante 24 horas, visível, para mostrar sua invisibilidade
como mulher, percebida pelo espectador através de sua dor, sua passagem liminal e sem fim. A
iconografia é auto-contraditória, cada posição é destruída com uma de sucesso, a exemplo dela como
múmia (morte), em contraste com a imagem de casulos na tela de uma televisão (vida). O importante não
era o rompimento do nascimento, mas a contínua repetição, o ciclo. O elo entre o encontro com aquele
ciclo rítmico percussivo e Angelika pendurada na performance Untitled Dance é o estado liminal, sem
fim, de arrebatamento, que as referidas oposições, imobilidade versus movimento gestual e rítmico,
conclamam pela condição cíclica de ambos.
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destaca por sua pele branca, olhos puxados, enfim, uma feição

indefinidamente ocidental e/ou oriental. Toca um djembé, 4


o único

instrumento que conheço até então, cheio de penduricalhos diversos,

como bonecas, assovios, panos coloridos e guizos, compondo um visual

bem cafona e por isso chamando a atenção.

Do seu lado direito, com muita concentração, está um gordinho

tocando duas percussões sobrepostas horizontalmente, amarradas entre

si a um instrumento de metal, o agogô. 5Com a mão esquerda ele tira o

som pontiagudo de elevada freqüência do agogô e com a direita

abrilhanta e dá a marcação grave do brinde polirrítmico que recebo e

desfruto nesse instante.

Entre os dois, um professor de sorriso largo, desempenha o papel

duplo de dançarino e músico, ensina e toca. Ora, ao lado dos alunos

explica os movimentos em inglês, em vias de arranhar o holandês. Ora,

está sentado tocando e marcando com suas mãos no couro do djembé, os

momentos enfáticos da dança, os pulos ou a marcação da pulsação dos

pés no chão. Fala uma linguagem específica de dançarino-

percussionista, ou seja, corresponde ao toque enquanto dança e

corresponde à dança enquanto toca. Dá cor à música e à dança. Os

detalhes das pisadas do seu pé largo acariciam e tiram um som estalado

do chão, pés que falam, tocam e cantam juntos com a pele viva do

4
“O djembé é um instrumento tradicional dos mandingas. Esculpido em um tronco em forma de cálice, de
aproximadamente 60 cm, sobre o qual se estica uma pele de cabra, antigamente de antílope. Ele é tocado
com as duas mãos, mais freqüentemente em pé, e com a ajuda de uma tira que prende o djembé ao corpo
do músico. Certos músicos fixam um objeto metálico ao redor do couro para engrandecer o som”.
(Tradução minha) http: // www.kassoumay.com/casamance/index.html
5
“Agogô é um instrumento musical composto de duas campânulas, geralmente de ferro, percutido por
uma haste de metal. As campânulas são de diferentes tamanhos, produzindo sons diversos e são unidas
por um arco soldado em suas pontas”. (BARROS, 2005, p. 235). O agogô é também um dos instrumentos
da orquestra ritual do candomblé e, por conseguinte, usado nas cerimônias de Xangô. Segundo J.
Kwabena Nketia a noção de referente de densidade – timeline – é chamada também de linha guia de
orientação, ou ainda, linhas de tempo que funcionam como fórmulas curtas e simples de organização
rítmica (agogô, sinos, palmas). Fonseca acrescenta que esta é a “linha rítmica que organiza o tempo
(metro) ou a notação de impacto, e são também as camadas em relação a “como” se dá a organização do
discurso musical”. (FONSECA, Colóquio 2002, p. 65). Na situação relatada acima, tanto o agogô, quanto
as duas madeiras utilizadas pelo homem magro, cumpriam o mesmo papel, o de linha guia de orientação.
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maestro acariciando a pele morta dos quatro instrumentos, num ciclo

que parece interminável. A comunicação entre eles expressa sintonia.

Percebo que tem gente de vários lugares do mundo. São profissionais?

Não creio. E a dança, de onde é? Africana, posso até reconhecer, mas de

que país será?... Algo me lembra Mamour Ba, mas nada claro e evidente

do Senegal.

Os dançarinos estão dispostos em duas filas, de frente para os

músicos e com os joelhos e cotovelos dobrados mantêm seus troncos

inclinados para frente. Os pés se arrastam no chão, acariciam o chão. O

direito dá um passo para a direita e o esquerdo vem num breve

encontro a esse. Retorna para a esquerda e agora é a vez do pé direito

ir de encontro ao esquerdo e retornar. E assim sucessivamente. Os

braços abertos, os cotovelos dobrados e as palmas das mãos voltadas

para baixo acompanham o movimento de vai e vem dos pés. Até que um

toque de assovio do professor anuncia uma mudança na seqüência de

movimentos. Mantendo as duas fileiras, os dançarinos da direita se

viram para a esquerda e os da esquerda para a direita ficando assim

frente a frente. Os olhares, cúmplices da precisão rítmica arriscada na

execução daquela pausa de movimento, se encontram numa fração de

segundos. Instantes em que o som fica suspenso no ar, os corpos parados

insinuam a imagem de uma foto e os olhares são cúmplices desse

momento. O músico que tem as madeiras nas mãos recomeça a pulsação

estalada que estas produzem, organiza o tempo e reinicia o discurso

musical cíclico que todos desfrutam.

Correspondendo à música, os dançarinos dão três pulos à frente

começando com a perna direita, depois a esquerda e novamente a

direita, aproximando as filas nesse avanço espacial. A cada um dos

pulos, as mãos e o antebraço desenham no ar um círculo em direção à

barriga e para fora, e se espalmam ao lado do corpo com as palmas das

mãos abertas para frente. Quando de volta do pulo, os pés tocam o chão.
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No terceiro pulo, todos fazem uma nova pausa musical e gestual. Desta

feita, os dançarinos congelam com a perna direita dobrada no ar, num

ângulo de 90º. Reconheço uma imobilidade em movimento suspensa no

ar, onde os olhares se encontram e conclamam, no silêncio, a convicção

daquele gesto preciso, em que o corpo pára e se pré-para no intuito do

próximo passo.

A seqüência sonora que invade o espaço e o tempo a partir de

agora impele àqueles corpos, movimentos de pernas e braços, fortes e

vigorosos. Principalmente quando começa a improvisação, no final da

aula. Neste instante, eles se espalham pela sala, em forma de círculo

junto aos músicos e cada um carrega duas madeiras nas mãos. Com elas

dão a marcação do tempo para quem entra na roda e se dirige aos

músicos na continuação do diálogo entre corpos e músicos, onde

perguntas e respostas são concomitantes. Neste movimento de

aproximação, o ritmo da música e dos pauzinhos vai acelerando em

harmonia com o dançarino até atingir o ápice. A sensação que o

intervalo desse fenômeno rítmico transmite, ou seja, entre a aceleração

e o ápice, é de algo interminável. Algo que extrapola os limites corporais

até acontecer, uma vez mais, aquela parada brusca que permite aos

olhos alegres conversarem no silêncio.

De repente, salta um dançarino no centro do círculo. Ele desenha

no ar movimentos precisos e fortes, com os braços e com as pernas quase

sempre dobrados, enquanto o tronco mais rígido demonstra ser o

suporte das intrincadas evoluções. O calor aumenta... Seus olhos

arregalados para os músicos puxam os olhares e atenção de todos para

ele. Os outros dançarinos dobram o tempo de batida das madeiras,

impingindo a aceleração dos seus movimentos até a exaustão!... Ele

segura e suspende o movimento no ar. A pausa apresentada na


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coreografia e nas improvisações se repete. 6


Entra outra pessoa, e outra

e mais outra...

Tenho vontade de me jogar, mas não vou, prefiro observar. A

memória traz a lembrança de Rosângela. Conseguir entrar no círculo

da dança é conseguir entrar no círculo da vida, na circularidade do

ritmo. Esquento por dentro. Fico entre as brechas, incertezas de ir ou de

observar. Afinal, é a primeira vez que estou aqui. Preciso de um tempo

de aclimatação, ou quem sabe, de um impulso repentino.

Um devaneio... Percebo que ali não sou negra, nem branca,

pensando em peles identifico o diferencial da minha pele vermelha, o

visual e o comportamento de todos são heterogêneos e se complementam.

Lembro do papo com minha avó sobre cores, peles, quando tinha dez

anos lá no Mato Grosso. Longe agora, no tempo e na distância, porém

visivelmente perceptível, exatamente por diferenciar daquele contexto,

me sinto estrangeira, me sinto parte e me sinto a parte.

Prossigo observando. E é quando tenho uma sensação de fogo, de

queimar, de ser fogueira, que me suplanta e me impinge a superar

limites invadindo o espaço e eu mesma que observo. Danço na

imobilidade... 7A aula acaba. Acontece o cool-down, o acalmar-se entre

suspiros e suores. Tenho certeza que vou voltar.

6
“Kubik assinala a inadequação da noção de compasso no registro dos ritmos de origem africana. Sua
escrita mostra um código que indica o número de valores mínimos que totalizam a fórmula integral, ou o
número totalizador de unidades métricas. É um tipo de escrita não “duracional”, na qual o que importa
são os pontos de articulação e não a duração dos sons. “Chama a grafia das linhas-guia pela
denominação de “notação de impacto”, em que “x” representa um som “e” . Representa ausência de som.
Nesse aspecto, o mais importante é o músico saber “em que pontos dentro do fluxo constante de uma
série das unidades menores, ou ‘pulsações elementares’, ele realmente bate.” (KUBIK, apud FONSECA,
Colóquio 2002, p.9) Crio uma associação entre a noção de sats de Barba e os pontos de articulação ou
notação de impacto de Kubik. O sats é esta energia suspensa na imobilidade do movimento, na qual a
intenção dá à ação um potencial diferente, por meio de um empenho muscular, nervoso e mental que
envolve o corpo inteiro, já dirigido a uma outra ação, descrito no texto acima como pausa, suspensão
(BARBA, 1994, p. 84, 85). Neste intervalo de tempo mudo a que chamei de pausa - dentro do qual se
localiza o sats para Barba - se inscreve o espaço preciso entre os pontos de articulação ou as linhas guias
indicadas por Kubik, executadas pelo agogô nas danças de Xangô e pelas duas madeiras ou claps no
Bugarabu.
7
Esta é uma situação que associo a duas circunstâncias de um momento posterior: a primeira se refere aos
mais ou menos 6 anos que trabalhei como modelo para escultores, desenhistas e pintores na Holanda
quando dançar na imobilidade passou a ser um exercício constante; a segunda é resultante da primeira,
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Naquela sala, conheci o Bugarabu, o dito instrumento composto de quatro

percussões que reverbera o som realçado pelos guizos, metais (siwagness em mandinga)

amarrados ao braço do músico. Este músico é Fayee Diona, o maestro do grupo, Sam

seu primo, toca os pauzinhos chamados em inglês de claps e Lamim Touray, é o

professor de dança. Os três são de Gâmbia. Tone, um holandês, é aquele que toca o

djembé cafona. Abukanu, músico e artista plástico de Serra Leoa, é quem tira das

percussões sobrepostas e do agogô, o chamado dumdum8, a pulsação grave da música.

O grupo chama-se África 2000 e posteriormente, entre outros africanos participou do

grupo o senegalês Elagé, excelente músico do instrumento característico do Senegal, o

sabar. 9 E por fim, Samuel da Nigéria que também toca dumdum. Embora se fixassem

mais em cada instrumento como relatei, constantemente os músicos faziam rodízios de

uma percussão para outra.

Durante as festas de candomblé, da mesma maneira, os alabés realizam essas

trocas. A pequena orquestra musical toca até atingir certo patamar de envolvimento dos

músicos entre si, e destes com todos os participantes religiosos e com a comunidade

presente, quando então uma pausa encerra esse diálogo. Durante os anos de contato com

as danças oeste africanas, pude perceber que esta característica é recorrente dentro desse

estilo musical. Este é exatamente o momento a que se refere Schechner no seu segundo

ponto de contato entre o teatro e a antropologia. O momento da decolagem do performer

pois, ficar parada, imóvel propiciou praticar alguns dos elementos da Antropologia Teatral, (BARBA,
1994) tal como a energia suspensa no ar, intervalo de tempo no qual, a percepção de equilíbrio, de peso e
dos esforços musculares, evidenciavam o estado de dançar na imobilidade.
8
“O dumdum é um cilindro grosso de madeira com as duas extremidades cobertas por uma pele de vaca.
Ele é tocado com um bastão em uma mão e uma pequena barra metálica que se bate com a outra mão
sobre uma campânula de metal, (este é o agogô) fixada no alto do tambor”. (tradução minha) http: //
www.kassoumay.com/casamance/index.html
9
O sabar é uma percussão utilizada no decurso das cerimônias dos wolofs, dos lébous e dos sérères. É
um tambor de madeira em forma alongada de cálice. A membrana em pele de cabra é esticada por pinos
de madeira e por cordas que dão a afinação. Atualmente, o sabar foi redescoberto nos grupos musicais
graças ao músico griot - músicos poetas e mestres da palavra que perpetuam a tradição oral e musical e
transmitem de geração em geração, a memória de um povo - Papa Doudou Ndiaye Rose. (tradução
minha) http: // www.kassoumay.com/casamance/index.html
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que toca a platéia e instaura uma "vida teatral coletiva especial". Assim me senti várias

vezes. Contudo, uma das primeiras e das mais especiais foi com Mamour Ba, em um

show no Teatro da Igrejinha em Florianópolis, quando ele estendeu as mãos em minha

direção, me suspendeu da platéia, e plantou meus pés no palco para dançar com ele.

Daquele dia de agosto de 1995 em diante, depois do primeiro encontro com o

Bugarabu, viajávamos quase todos os dias a outras cidades da Holanda, Almere,

Alkmaar, Den Helder, entre outras, quando eu acompanhava as aulas e performances,

nos eventos fixos e nos esporádicos. As idas e vindas ao som do silêncio ou do reggae

naquele microônibus, lotado de gente e instrumentos, eram como um aquecimento para

o trabalho de cada dia e serviam de relaxamento no final da aula. Nesses momentos,

havia muita troca de conhecimentos, informações culturais e filosofias de vida. Nossa

amizade estreitou-se, em especial com Fayee Diona quando descobrimos interesses

afins, em relação à arte, especialmente à música dançada, e também à vida. Na

realidade, os pensamentos que Fayee e eu compartilhamos em relação à vida não se

limitavam às nossas respectivas culturas. A disponibilidade de trocar, de interagir era o

fator predominante que alimentava nossas idéias e vontade de criarmos juntos, uma

troca única, em momentos únicos. Fayee dizia sempre: “uma das coisas de grande valor

que podemos ter são nossas idéias”. Com o tempo percebi ser esse um dos aspectos da

filosofia que emanava do seu Bugarabu.

Bugarabu é o nome dado ao instrumento de percussão e à dança do povo djola,

da região de Casamance no sul do Senegal, como já disse na apresentação, pg.20.

Nessa região o país é cortado em sua extensão horizontal pela Gâmbia. Ocorre que em

suas culturas interligadas historicamente ambos os países mantêm em comum, além da

manifestação ritual e popular do Bugarabu, algumas das línguas locais do oeste

africano, tais como o mandinga, djola e o wolof, conferindo a essa região o nome de
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Senegâmbia, assunto a ser tratado mais adiante, nos anexos. O contexto em que esta

manifestação se dá é dos mais variados, festas, comícios, celebrações, etc.

O Bugarabu é composto de quatro instrumentos feitos de troncos de árvores,

dois maiores e dois menores a fim de corresponderem aos sons graves e agudos que

compõem seus ritmos freqüentemente executados no compasso musical de 6/8. Os

instrumentos são da mesma altura, em torno de 1 m de comprimento, contudo, seus

diâmetros variam estimadamente de 25 a 40 cm ressoando distintamente a cada toque. A

mensagem que a música transmite com os instrumentos percussivos ressurge deste

diálogo ‘entre’ a pele viva do músico e a pele morta do instrumento. O dançarino, por

sua vez esboça a cadência em gestos, o que Edilberto J.M. Macedo (2002) considera

como a “materialização tridimensional do fenômeno sonoro”. 10

O tilintar dos guizos amarrados nos punhos do músico, junto ao canto de todos

os presentes, e aos claps tocados pelos dançarinos, dão um colorido místico especial à

composição musical, marcando a atmosfera da música e da dança do Bugarabu. Os

claps, como eu vim a conhecer no trabalho de campo em Gâmbia, são tirados do caule

da folha da palmeira de vinho (palm wine), cortados em pedaços de 20 cm, e para

tirarmos o som estridente adequado, batemos paralelamente com as costas das suas

concavidades.

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Além das palavras de Macedo, trago informações que emergem das experiências que adquiri em
procedimentos metodológicos enquanto dançarina, pesquisadora e adepta do candomblé, a partir da
vivência “in loco”, das leituras, dos aprendizados com alabés e músicos, e da audição de gravações. No
candomblé, os tambores tocados pelos músicos, os alabés, são poderosos veículos de diálogo com o
sagrado, atuam como mensageiros ‘entre’ os homens e os orixás, ‘entre’ os vivos e os mortos. Por sua
vez, Exu é o orixá mensageiro que transmite as mensagens entre os homens e os orixás e tem como seu
local as encruzilhadas. Portanto, os tambores e Exu, desempenham funções de comunicação. Dentro dos
códigos implícitos na tradição oral, a função comunicativa se estende ao fenômeno sonoro dos gestos, das
palavras, dos cantos, assim como às cores e aos objetos simbólicos. Contudo, vale ressaltar que “a
execução musical tem regras e normas observadas precisamente. Assim que o que é relevante dentro do
estudo só pode ser dado por aqueles que são detentores da tradição nesse fazer musical”. (MACEDO,
E.J.M. 2002, p.65)
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Ilustração 8 – Bugarabu com suportes de madeira na terra, comício, Brikama, Gâmbia, 13/01/1996.
Foto: Sandra Mascarenhas

4.2 África - A festa em Kanifing, Gâmbia, 06 de janeiro de 1996

Quatro de janeiro de 1996. Estou voando rumo à África, à Gâmbia.

Deixei a Bahia há oito meses, no dia 08 de maio de 1995 e quase esse

tempo todo só tenho enfrentado o frio europeu, que jamais

experimentara. Uma experiência gostosa por um lado, pelo contraste

climático ao que estou acostumada, e instigante por outro, pela saudade

do calor ao sentir essa diferença entre o Brasil e a Europa. A busca de

calor nas roupas de inverno e na calefação provoca uma lembrança

constante da Bahia. O calor do sol, o calor da terra.

Juntamente com o avião meus pensamentos voam. Tenho uma

sensação ambígua, enigmática: ao voar para a “África da minha


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imaginação” sinto os mesmos prenúncios daquela noite de fevereiro de

1979, ao ir para a Bahia dos mitos, cantos e encantos. A memória

mistura... Desejos de conhecer o lugar daquele som que penetrou meu

corpo em Amsterdã... Sonhos com o passado remoto dos nossos

antepassados desarraigados de suas terras... Lembranças de uma gente

mais espontânea que os europeus, com quem tenho convivido. O convívio

com Fayee e os outros africanos em Amsterdã, com Mamour em

Florianópolis, com Augusto Omolu na Bahia assinala convergências

filosóficas, onde a vida parece ser menos apressada, onde cada instante

é vivido com deleite... Uma voz feminina estanca os devaneios dizendo

em holandês: wij zijn aangekomen (nós chegamos).

Ilustração 9– Chegada em Gâmbia, aeroporto de Banjul, 04 /01/1996.

Finalmente, desembarco no aeroporto de Banjul, capital de

Gâmbia. Um grupo de dançarinos (as) e músicos nos recepciona com

canto, dança e música. Alguns deles tocam os claps. No impacto, do

espaço interno do avião para o ar livre lá fora, os prenúncios da


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chegada no aeroporto de Salvador se fazem presentes. Primeira

sensação em terra: o bafo quente do inverno úmido e acolhedor do ar

gambiano. As lembranças da chegada e da vida na Bahia estavam

apenas começando...

As experiências vividas com Fayee e sua família, desde essa recepção calorosa

no aeroporto, foi um grande estímulo para desenvolvermos uma abordagem técnica e

um ritual próprio para viver o Bugarabu. A intenção de Fayee foi mostrar - para

Sanjaya, Tone e eu - seus 45 anos durante as três semanas que estivemos em Gâmbia.

Compartilhar pouco mais de dois anos de sua vida era nossa brincadeira diária.

Tal cometimento buliu com uma quantidade imensa de emoções me levando a

fazer associações que, num fluxo de mão dupla, atravessavam especialmente da Bahia à

Gâmbia e, em certas ocasiões sobrevoavam o Mato Grosso. Nesse fluxo de

equiparações, onde diferenças e similaridades eram recorrentes, as dimensões temporais

e espaciais, pareciam se confundir. Minha preocupação não girava em torno de concluir

conceitos, e sim vivenciar o intercâmbio de valores, filosofias e costumes. Em outras

palavras, articular idéias, fossem elas convergentes ou divergentes, constituía tal deleite.

Retornar ao mundo acadêmico na intenção de analisar esta experiência,

sistematicamente, acordou uma reflexão crítica a respeito de uma história pessoal que se

estende a uma problemática histórica mais abrangente, muito bem articulada por Paul

Gilroy em, O Atlântico Negro. Os complexos culturais da história tornaram inevitável

que pensadores se voltassem para a problemática da diáspora. Gilroy explica como os

fluxos internacionais desde o tráfico de escravos têm gerado reflexões em torno de

ideais anti-racistas e processos de racialização, constituindo o suporte para a criação da

concepção de ‘negro’. O circuito deste intercâmbio híbrido de idéias alcança o Novo

Mundo, a Europa e a África e é chamado de ‘circuito transatlântico’. O autor lança um


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olhar sobre o pensamento negro e as idéias dominantes brancas, destacando que os

processos de modernização têm aberto espaços para uma reflexão mais ampla sobre as

culturas negras. Ao afirmar que conceitos como nação, etnia e raça sempre viajaram, ou

vieram de fora, esse movimento de ida e vinda através do oceano Atlântico têm alterado

o parâmetro de tais conceitos e da localização das culturas. Como determina Gilroy, as

culturas do Atlântico negro, são geradas e continuadas através de trocas e influências

que relativizam origens, não sendo nada difícil encontrar formas convergentes em

lugares diferentes. Representações geográficas, sociais, filosóficas e culturais se

encontram e se contaminam.

Reconheço que buscar a legitimidade ideológica dessa equiparação é uma das

tarefas deste estudo. Tarefa despertada exatamente nesse movimento de translados

realizados dentro da diversidade cultural brasileira, que por sua vez instigaram a

travessia do Atlântico que realizei para a Europa, a caminho da África e o retorno à

Bahia. Analisar as implicações que tais intercâmbios internacionais provocaram me

levou à compreensão de que identidade – e conseqüentemente raça, etnia e nação - é

uma noção que se move. Ela é fluida, líquida e adaptável como as águas do oceano

Atlântico que tantas vezes observei da Bahia, imaginando encontrar a África lá no

horizonte. Anos depois a posição geográfica se invertera, o horizonte parecia ocultar o

Brasil. Eu estava do lado oposto, na Ilha de Gorée, em frente a Dakar, no Senegal e

contemplava a pequena porta à beira d’água na casa rosa dos escravos, de onde eles

eram arrastados para os navios, em direção ao Novo Mundo. Na minha imaginação, era

como se as duas portas estivessem frente a frente. Esta, bem perto, ali em Gorée, e a

outra, muito semelhante, lá no Solar do Unhão, na Av. Contorno, em Salvador, por onde

os escravos entravam e ficavam diretamente confinados. Compreender o hibridismo de

idéias, inerente a esta experiência translocada, torna-se mais explícito com o diferente
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nível com que Gilroy aborda algumas questões acerca das “afinidades translocais”,

“complexos culturais”, ou ainda a “mútua interpenetração de civilizações”. Em outros

termos, existem problemas políticos que repousam nessas afinidades, complexidades e

interpenetrações, que ao contrário de serem percebidos como dificuldades que possam

ser controladas de forma homogênea ou plural...

Eles fornecem recursos para que se escrevam histórias, ainda não


escritas nem pensadas, sobre uma trans-cultura negra. Como tentei
demonstrar, esta abordagem cosmopolita nos leva necessariamente
não só à terra, onde encontramos o solo especial no qual se diz que as
culturas nacionais têm suas raízes, mas ao mar e à vida marítima, que
se movimenta e cruza o oceano Atlântico, fazendo surgir culturas
planetárias mais fluidas e menos fixas. A contaminação líquida do mar
envolveu tanto mistura quanto movimento. Dirigindo a atenção
repetidamente às experiências de cruzamento e a outras histórias
translocais, a idéia do Atlântico negro pode não só aprofundar nossa
compreensão sobre o poder comercial e estatal e sua relação com o
território e o espaço, mas também resume alguns dos árduos
problemas conceituais que podem aprisionar ou enrijecer a própria
idéia de cultura. Os ganhos potenciais aqui podem ser vislumbrados
até mesmo através de um contraste simplificado entre nações
estabelecidas e essencialmente sedentárias – baseadas num único
centro, mesmo que seus tentáculos imperiais se estendam muito mais
– e os padrões de fluxo e mobilidade que caracterizam a aventura
extra-nacional e a criatividade inter-cultural. (GILROY, 2001, pp.14,
15)

Refletir sobre a experiência vivida, criar a escrita e o movimento deste projeto

acadêmico, tem a ver com solidão, ou melhor, com solitude. Estar comigo se tornou

imprescindível para compreender que esta experiência pessoal está imbuída de um

passado histórico e tem uma probabilidade de expansão inerente à própria mobilidade

de tais fluxos intermináveis.

Tendo em vista essa aventura extra-nacional que recém começava em Gâmbia,

optei por transportar para cá dois momentos do diário sobre a viagem, entre tantos

outros que pudemos compartilhar, onde a dança e a música foram os principais


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elementos de expressão e de localização das diferenças e semelhanças desse encontro

cultural.

... A lua está cheia. Tem dois dias que cheguei a Serekunda,
Gâmbia. É dia seis de janeiro e depois de mais de 40 anos em recesso

acontece uma festa na vila de Banjulding cujo ‘chefe’, Erk Janneh é tio

de Fayee - toda vila tem um chefe. Reunidos num grande círculo

iluminado pela grande lua tem início o ritual aberto.

Personagens da cultura local como os mandingas e os djola

apresentam cada um, sucessivas encenações e eu, faço minhas relações

com os Orixás e com alguns elementos que compõem o hibridismo

brasileiro.11 O Kankurang coberto de folhas parece Oxossi ou Ossaim, as

divindades do candomblé que representam as folhas, as florestas; o

Mamapara lembrando o Zambiapunga, 12


de máscara e perna de pau; o

11
A sensação era de um desfile salpicado de imagens que lembravam e afirmavam o hibridismo
brasileiro, representadas naquela manifestação popular de Gâmbia. Por um lado, um cenário que parecia
voltar no tempo. Quando a cultura popular era mais amplamente transmitida e consumida através de um
processo empírico de acumulação de experiências e inovações transmitidas de uma geração a outra, pela
vivência e pela oralidade e baseado na proximidade. Tempo anterior à sociedade capitalista de consumo,
fruto da Revolução Industrial que provocou sérias mudanças no contexto global do século XX, dando
surgimento à Cultura de Massa. Bregues, cita José Marques de Melo num artigo publicado na rev.
VOZES (outubro de 1969, ano 63, nº 10) diz que “a cultura de massas atua como veículo de interação
entre a cultura clássica e a cultura popular estimulando o intercâmbio simbólico entre elas, e, ao mesmo
tempo, extraindo de ambas, códigos e elementos místicos que incorpora ao seu próprio acervo e os
retribui sob a forma de novas influências [...] A primeira é uma cultura própria das elites, dos grupos
privilegiados que detêm o poder uma sociedade, ou melhor as classes dominantes. A segunda é uma
cultura peculiar à grande massa populacional que constitui o pólo dos dominadores na estrutura da
organização social. Em Sabedoria Popular do Brasil, Edison Carneiro diz que as manifestações da vida
popular revelam uma maneira de sentir, agir e pensar diferente do sistema erudito, oficial e predominante
nas sociedades de tipo ocidental. E tal sistema reflete as diferenças de classes sociais (de educação, e de
cultura) que divide os homens”. (CARNEIRO apud BREGUES, Comunicação, folclore e globalização.
©Instituto Gutenberg Boletim Nº. 28 Série eletrônico Setembro-Outubro, 1999)
Por outro lado, aquele cenário era atual, manifestador das interpenetrações culturais conseqüentes do
processo diaspórico que detonaram a hibridez da cultura brasileira. Ali, especificamente associados aos
orixás Oxossi, Ossain e Omolu descritos no corpo do texto e, ao Zambiapunga e ao Bumba meu boi
explicados nas notas a seguir, todos ilustrados nas páginas 115 e 116.
12
Zambiapunga é uma das manifestações brasileiras da cultura popular de Nilo Peçanha, Valença e
Taperoá – BA. A figura representativa do Zambiapunga usa altos chapéus multicoloridos, máscaras e
trajes de cores vibrantes e é acompanhada de uma pequena banda de tradição banto da Angola ancestral,
tocando trompetes de búzios e lâminas de enxadas comuns que, percutidas com baquetas de metal,
ressoam um ritmo hipnótico. Depois dos anos 90 a opinião pública na Bahia passou a demandar uma nova
postura empresarial, identificada com as temáticas de interesse social. A TV Bahia promoveu o grupo do
Zambiapunga de Nilo Peçanha depois de identificá-lo na Caminhada Axé, uma das iniciativas de
116

Kumpoo, coberto de palhas presas num pau que serve de ponto de apoio

no chão e possibilitando os giros no ar para provocar um homem que

está à sua frente. Esta cena me remete à idéia de Omolu pela questão

estética das palhas que também são utilizadas por este orixá ou, no meu

imaginário, um Bumba meu Boi 13


africano, por causa da ação

provocativa do homem.

A festa continua com muita dança, comida e bebida. Ali e em um

casamento que fui ontem, a bebida, refrigerante ou cerveja, é servida ao

natural. Um homem carrega o engradado todo numa mão, o abridor na

outra e só abre quando entrega a garrafa para cada pessoa. O grande

círculo formado pela comunidade, chama-se tandbere e representa uma

característica entre as manifestações populares, sociais e políticas locais.

interação entre o poder veiculador da mídia e as expressões populares. (Jornal A Tarde, 08 de dezembro
de 2000)
13
Esse é o texto, Bumba meu Boi – Uma tradição que corre o Brasil de norte a sul. “O bumba-meu-boi é
uma espécie de auto em que se misturam teatro, dança, música e circo. Ele é representado sob os mais
diferentes nomes em localidades que vão do Rio Grande do Sul (como boizinho) e Santa Catarina (boi-
de-mamão) aos estados do Nordeste (boi-de-reis) e o Amazonas (boi-bumbá). Sua provável origem é o
Nordeste das últimas décadas do século XVIII, onde a criação de gado era feita por colonizadores com
mão-de-obra escrava. Nas fazendas, os cativos teriam misturado suas tradições africanas (como a do boi
geroa) a outras européias dos senhores (como a tourada espanhola, as tourinhas portuguesas e o boeuf
gras francês), numa celebração que tematizava as relações de poder e uma certa religiosidade, sendo,
inicialmente, alvo de grande repressão. O bumba-meu-boi encena o rapto, morte e ressurreição do boi —
uma história que, de certa forma metaforiza o ciclo agrário. A lenda pode ser contada de várias formas,
mas a história básica é a da escrava Catirina (ou Catarina), grávida, que pede ao marido Chico (ou Pai
Francisco) para que mate o boi mais bonito da fazenda porque quer comer a sua língua. Ele atende ao
desejo da mulher e é preso pelo seu feitor, que tenta a todo custo ressuscitar o boi, com a ajuda de
curandeiros. (ESSINGER, Silvio. http://cliquemusic.uol.com.br/br/Generos/Generos.asp?Nu_materia=3)
117

Ilustração 10 - (a) Kankurang, festa em Bandulging , Gâmbia, 1996 – foto Sandra Mascarenhas;
(b) Oxossi, cartão postal.

Ilustração 11 – (a) Mamapara, Brikama, Foto Sandra Mascarenhas; (b) Zambiapunga, Salvador,
Caminhada Axé, 2000
118

Ilustração 12 – (a) Kumpoo, festa em Bandulging, 1996, foto Sandra Mascarenhas; (b) Omolu (Verger e
Rego, 1993, p.80); (c) Bumba meu boi, Silvio Essinger.
119

As mulheres e os homens estão vestidos com imensas roupas

coloridas e um grupo de percussionistas com seus instrumentos - sabar,

djembé, dumdum e o Bugarabu - se organiza numa das extremidades do

grande círculo. Uns assistem e outros, dançarinos inatos em sua

maioria, vão esquentando internamente na mesma proporção que o

ritmo quando de repente, explodem no centro do círculo, de frente para

os músicos, como brasa. Os movimentos de pernas e braços são muito

rápidos como se não pudessem tocar o chão com seus pés. A assistência

batendo os claps (as madeiras) comunga com o espírito da dança no

qual, todos estão envolvidos. Um êxtase coletivo, que termina na

precisão do último toque no couro com o último movimento - vem na

memória a aula que dei com Mamour.

Os gestos corporais de algumas mulheres me convidam para

compartir, viver aquela sensação! Sinto-me inserida no mundo de Fayee,

pois, de certa forma, ele é a minha referência mais forte ali. Os

movimentos do Bugarabu brotam do meu corpo, os claps em uníssono,

batem tão rápido quanto meu coração. Minhas pernas em alternância

tocam o chão tão rápido como se pisasse em fogo. Os braços dobrados ao

lado do tronco inclinado para frente, batendo como se fossem asas no

alçar de um vôo. A dança atravessa fronteiras espaciais e temporais e

traz outros momentos de volta, como se eu os sentisse todos, em uníssono

na mesma entonação dos claps. Uma sensação de eterno enquanto dura.

Ao terminar aquele último movimento que junto ao som do Bugarabu

ressoa no ar, ouço: - You can dance!

Naquele exato instante, eu entendi o que era o Bugarabu naquele contexto de

Gâmbia, distinto daqueles vividos na Holanda. E mais, como isso reverberava em mim.

Experimento a emoção, não decifro, mas sinto, como uma quentura que vem de dentro.

Dançar é arder, é queimar. Diante daquele súbito chamado, desenhei como o fogo no
120

espaço, a improvisação narrada acima. Como fogo de Xangô, como fogo de Iansã.

Dentre as intensas programações diárias, o outro momento que elegi para

presentificar na dissertação foi a viagem para Candion, o lugar onde Fayee, durante

cinco anos, conviveu com a prática de tocar o Bugarabu. Entre os muitos detalhes

finais com o carro, as compras, o dinheiro, a feira (lembrando a feira de São Joaquim,

em Salvador) e a grande saca de arroz, chegava o momento mais desejado da viagem. O

fator mais importante de trazer para o texto as maneiras de sentir, pensar e agir dos

participantes das cenas a seguir, são as questões equiparativas que podem ser percebidas

nessa interpenetração de idéias e que sugerem valores e costumes distintos. Sem contar

que, além disso, medem a temperatura das sensibilidades desse convívio.

Estamos a caminho de Donsekunda, região de Candion, onde vive

Malan, propiciador de uma interação entre o gambiano rastafari,

Fayee, com os ritmos e filosofias que envolvem os rituais do Bugarabu.

Como sou a pessoa menor daquele grupo, fui eleita para sentar atrás no

carro, um tipo de perua vermelha sem janelas nos fundos. Ouvir só

holandês incomoda um pouco. Nossa! Que calor! Estamos entrando mais

e mais numa paisagem de vacas, cabras, bodes, cachorros, cavalos e

pássaros em bando coreografando o céu. A paisagem tropical é familiar

e inspira uma intimidade. Um bezerro está mamando na chegada do

pequeno composto de casas.

Ah! Encontramos Malan no caminho e chegamos com ele.

Começam as prolongadas felicitações, as apresentações. Kassoumay?

Kassoumay kepe! (Como está você? Eu estou bem! Em djola)... Fomos chamados

ao quarto do casal, dentro da casa mais próxima. Uma maneira de

acolher bem quem chega, um sinal simbólico de aceitação. Já fora da

casa, Martha, a mulher de Fayee, distribui o álbum de fotos do ano


121

anterior, pois a impossibilidade de revelar fotos naquele contexto, faz

com que todos esperem um ano, pacientemente, para desfrutar daquelas

que são tiradas a cada visita, de tempo em tempo.

Ilustração 13 - Apresentação das fotos na chegada de Donsekunda, Candion, 18/01/1996. Foto: Sandra
Mascarenhas

Um cenário híbrido no interior da pequena extensão territorial de

Gâmbia. Indícios da cultura de consumo adentram o espaço com: pessoas

vindas de diferentes lugares, talvez nunca imaginados antes, falando

outras línguas e vestidas com roupas diferentes dos locais; um carro

vermelho que invade a paisagem calma; e, por fim, um aglomerado de

plásticos bem dispostos dentro de uma capa, com imagens em papel, das

mesmas pessoas que, excitadas, admiram seu próprio semblante de um

tempo atrás e, em seguida, passam de mão em mão. O ponto forte da

comunicação, do entendimento acontece pela observação e troca atenta

de olhares e de gestos entre todos. As palavras surgem depois. Minutos

depois chegam dois meninos, segurando em uma das mãos, duas galinhas

de cabeça para baixo e vão passando por cada um de nós. Uma outra

atitude de receptividade acontece quando um chá muito doce, de nome

ataya, feito numa chaleira bem pequena, é servido em pequenos

copinhos de vidro.
122

Quando começa a anoitecer vou à cozinha, onde só mulheres

podem entrar. As galinhas estão banhadas pela água fervente, prontas

para serem depenadas. Num pilão, a mais velha delas, pisa os temperos

da comida. As crianças começam a cantar. Peço para me ensinarem e a

cozinha se transforma numa festa. Os sorrisos e a alegria dispensam

palavras. Comer é um ato de concentração e comemoração. Todos lavam

as mãos em um pote, antes e depois da refeição, e procuram usar

somente a mão direita para tocar a comida que está arrumada em duas

bacias colocadas sobre uma esteira. Depois da deliciosa galinha com

arroz retornamos à frente da casa, o lugar da chegada.

Ilustração 14 – A referida refeição em Donsekunda, dia 18/01/1996. Foto: Sanjaya

Sentamos no centro do terreno, entre as casas construídas com

material das árvores e plantações locais, principalmente da palmeira de

vinho. Deito numa espécie de estrado em frente à fogueira e olho para o

céu. Quantas estrelas!...

Os elementos triviais desse estilo de vida são: o arroz, o mingau

matinal, a fogueira, os claps, a dança e a música, em especial a

percussão e o canto. O som não pára o dia todo. Sanjaya e eu saímos


123

para um passeio e chegamos num lugar com três árvores imensas, onde

o Fayee costumava tocar, quando morava ali.

Ilustração 15 - Local onde Fayee estudava o Bugarabu. Tronco sobre o qual os instrumentos são
apoiados. Donsekunda, 19/01/1996. Foto: Sandra Mascarenhas

Novamente, se acende a fogueira e ao seu redor, batemos palmas,

cantamos e dançamos, improvisando, seguindo a aceleração das palmas

e acompanhando a parada final conjunta. Essa integração estreita a

relação entre todos. Sanjaya faz um parêntese e diz que a comunicação

que mantenho com as pessoas passa principalmente pelas vias

expressivas corporais antes das palavras. Todos os dias as crianças me

convidam para o café da manhã, sempre arroz. Nos passeios matinais,

visitamos diversas famílias para as quais levamos a cola (obi em iorubá)

como sinal de aproximação e agradecimento à boa receptividade.

Hoje é dia 20 de janeiro. Vamos à procura da árvore donde se tira

os claps para levar à Amsterdã. Andamos um pouco e Malan com um

machado na mão, escolhe no chão as folhas mais resistentes da palmeira

de vinho para retirar os claps.


124

Ilustração 16 - Malan confeccionando os claps em Donsekunda, Candion,


20/01/1996. Foto: Sandra Mascarenhas

Senta num toco de pernas abertas, apoia o caule grosso na terra e

tira toda a folhagem verde, uma a uma, e vai colocando no seu lado

esquerdo. Terminada essa etapa, Malan se acocora no chão, estira um

tronco para servir de apoio e com o mesmo machado, grande e rústico,

corta os caules numa quantidade imensa de pequenas madeiras para

serem transportadas para outras terras...

Lembro das aulas na Holanda. Lembro de Mamour que, embora

nunca tivesse esclarecido qual era a função dos pauzinhos, havia

inspirado meu pai a comprar alguns tacos que servem de piso para

serem utilizados nos trabalhos rítmicos de improvisação do grupo

Omalagô. Um dia de muitos pensamentos. O que significa tudo isso

agora em minha vida? Acho que preciso de tempo para digerir, pois

tenho vontade de estar aqui...

Chega a hora de ir embora. Pensamentos se misturam. A sensação

de ciclos que se encerram para dar início a outros se repete. A estrada


125

está cheia de buracos. O arroz deixa a paisagem sempre cor de palha.

Compartilho com Fayee, um sentimento gostoso de identificação em

mínimas situações, que nos parece não atingir os outros que estão aqui.

Todo mundo quieto no carro. Donsekunda fica para trás...

Novamente sinto um estado ‘entre’, “in between”. Possessão? Não.

Incorporação? Não. Transcendência? Sim. Os quatro bugarabu que Malan deu a Fayee

ficaram na Holanda, porém, primordialmente em Donsekunda, as questões filosóficas e

rituais que giram em torno do Bugarabu reverberavam no ar e geravam aquela sensação

de trânsito. Um deslocamento de posição e sensação corpórea, que oscila entre sujeito e

objeto, entre objetividade e subjetividade. Um estado de transe imerso na


14
transcendência. Uma suspensão, no tempo e no espaço. Todos os sentidos. O corpo

dilatado. Esse ‘entre’, esse trânsito, esse não lugar entrelaça várias vozes que se

expressam na transculturalidade deste trajeto.

Mulher. Passiva? Por ímpeto, não. Por imposição da sociedade falogocêntrica?

Com desgosto e sem achar saída, às vezes, sim.

Branca? Não. Negra? Não. Mestiça? Talvez. Depende de onde estou. No

trópico ou no frio? Através do olhar de quem estou sendo comparada? E com quem

estou sendo comparada?

14
Para corroborar este pensamento convido Maya Deren que em Divine Horsemen, ironicamente
objetiva, vê o transe através das próprias sensações do corpo no último capítulo do seu livro. Ela expõe,
propõe um mergulho nessas manifestações corporais, enquanto políticas e instigadoras de uma escrita que
tente as much as possible (o quanto possível) abrir, dar vozes. A descrição de Deren em Divine
Horsemen, da sua experiência de possessão é um exemplo singular de como ela faz esta transferência
entre o ponto de vista objetivo do observador (a posição do etnógrafo) e o ponto de vista subjetivo de
alguém que é observado (a posição do participante): “Como às vezes em sonhos, assim aqui eu posso
observar a mim mesma... (e ainda) não é mais a mim mesma que eu olho. Ainda, sou eu mesma, para
onde aquele terror ataca, nós duas somos uma novamente... Eu vejo a dança aqui e depois num outro
lugar, de frente para outra direção, e qualquer coisa traçada entre esses momentos está perdida, totalmente
perdida”. (Tradução minha) (DEBOUZEK, 1992, p. 13)
126

Estrangeira? Difícil responder, pois diante de tantas viagens e mudanças dentro

e fora do próprio país, em constante contato com costumes, lugares, falares e saberes

distintos, ser estrangeira tornou-se uma condição corriqueira. Afinal, como afirma

Gilroy, nós brasileiros, muito embora a história que nos foi passada tenha dissimulado

questões que, se levantadas, dificultariam os interesses políticos de manipulação,

sabemos dos absurdos básicos do racismo. Os contatos hetero, inter e transculturais são

importantes e inerentes à vida brasileira. São desafios profundos que têm acarretado

sérias questões políticas como, nas palavras de Gilroy,

[...] a extensão do fracasso em abalar a desigualdade social e


econômica e a hierarquia social. Esta é apenas um das várias maneiras
pelas quais os argumentos críticos baseados na história do
desenvolvimento brasileiro apontam para relações políticas, sociais e
culturais do futuro dos países desenvolvidos. (GILROY, 2001, p.11)

Observadora? Muitas vezes. Com muita satisfação, prazer. Contudo, mais uma

vez, a condição de mutante, a depender do contexto social, cultural, profissional e com

que propósito estou ali, induz à inversão de observadora para observada ou, mais

freqüentemente, embaralha as duas posições. Exemplo: Nas inúmeras idas ao Ilê Axé

Opô Afonjá, para festas, encontros, seminários ou o amalá de Xangô a intenção de

observar como primeira idéia, já deflagra que não pertenço àquela comunidade, sou

diferente, um motivo bem provável de ser observada ao mesmo tempo em que observo.

E ainda, aos olhos de outros estrangeiros à comunidade, a proximidade conquistada

trans-parece pertencimento. Depende de quem olha e de que lugar está olhando.

Participante? Em muito do que faço.

Exótica? Para mim não. Por vezes para os outros, como aconteceu em

Donsekunda, vila de Candion, dia 20 de janeiro de 1996:


127

Quando percebi estávamos aqui de volta. No almoço comemos o

delicioso (Domodah) 15. Fomos depois às várias famílias que compõem

Candion. Like a television for them, like life for us - como uma televisão

para eles, como vida para nós - disse Sanjaya.

Esta frase em inglês se refere a um momento em que sentamos - Sanjaya, uma

holandesa bem branca e eu - em um dos bancos de madeira como tantos outros que são

colocados debaixo das árvores, do tipo Baobab e mangueiras, para o usufruto

confortável de suas sombras. Segundos depois, várias crianças sentaram no chão ao

nosso redor e concentradas começaram a nos observar como se estivessem assistindo a

uma de televisão, a uma cena. Uma delas tocou com gestos delicados no meu cabelo,

sentiu a textura lisa dos fios e sorriu surpresa. Para aquelas crianças, nós éramos

exóticas, pois naquele contexto, representávamos a diferença. Da posição de

observadoras das crianças que acreditávamos ser, passamos a ser observadas por elas.

Em outras palavras, a observação era mútua, a diferença também dava ao caráter

exótico, um sentido mútuo.

Retirar esse exemplo do diário da viagem à Gâmbia foi com a intenção de

refletir sobre a validade e legitimidade desse registro espontâneo, à luz das

argumentações de Hastrup e Dumont, a seguir. Muito embora não tivesse um propósito

acadêmico na época, o trabalho de campo carregava uma urgência intuitiva de registro,

e que hoje, são notas preciosas, que podem ser classificadas como escritas no estilo

write-down - uma anotação espontânea, feita no instante da observação. Para uma

15
Domodah - É uma comida feita de carne, peixe ou frango imersa num creme de amendoim pilado num
movimento concatenado entre duas mulheres. São dois pilões em um só pote e enquanto uma pila fazendo
um som a outra suspende, quando esta desce a outra levanta e assim trabalham fazendo ritmo.
128

reflexão afirmativa do referido registro, trago Sally Ann Ness, com a nota 10 do texto -

Dancing in the field: notes from memory, 2001, p. 81 - quando Sally se refere à

argumentação de Kirsten Hastrup “Writing Ethnography: State of Art”, em

Anthropology and Autobiogragraphy: “o que não é perdido na exposição do material de

nota em si, é sua influência na ‘forma de vida’ do trabalhador de campo, sua

contribuição para a performance de interações de cruzamentos culturais”. Em que

saliento no exemplo acima, em Candion, a constatação de um exotismo que navega num

sentido de cruzamento mútuo. Faço um contraponto a Hastrup, com a argumentação de

Jean-Paul Dumont, in Visayan Vignettes: Ethnografic traces of a Philippine Island,

1992, quando coloca que, o que é salvo e produzido na impressão das notas é a

especificidade da função do autor do trabalho, que continuamente ocorre na pesquisa de

campo. Neste caso, uma função que visa especificamente, a partir das manifestações

dançantes, especialmente de Xangô e do Bugarabu, um intercâmbio cultural entre a

Bahia e Gâmbia, que possa esbarrar em questões políticas e reflexões críticas, acerca

dos movimentos do Atlântico negro. Além da validade única desta experiência em si,

expressa por Hastrup da seguinte maneira:

[...] o que é salvo na particular instância da escrita do trabalho de


campo é alguma coisa salva da representação lingüística junto, algo
salvo para se tornar parte do writing-up (redigir). O que não é perdido
é uma variedade de memórias da experiência vivida que irão
permanecer parcialmente incorporadas exatamente por que elas nunca
serão totalmente redigidas ou anotadas. Elas não serão completamente
expressas por palavras na página, a completa expressão necessitaria
uma desencarnação da experiência vivida, um esquecimento absoluto.
Algum tanto ou alguma memória permanecerá conhecida de cor, ainda
ocupando e afetando meu corpo, ainda potencialmente e
dinamicamente corporal. Muito, de qualquer modo será dado ao texto
[...] (Tradução minha) (HASTRUP; DUMONT apud NESS, 2001,
P.81)
129

Sob uma outra perspectiva, enquanto professora na Holanda, experimentei a

sensação de ser exótica na visão dos alunos. Certamente, o motivo não se restringia à

maneira de se comportar e de ser ‘brasileira’, era uma mescla disso com o repertório de

informações a respeito da cultura brasileira e da dança inspirada nos orixás que eu

trazia. Portanto, essa relação professora/alunos, alunos/professora culminava com uma

observação mútua outra vez. Vale ressaltar que independente da questão do exotismo,

essa condição mútua é comum tanto no transmissor quanto no receptor de

conhecimentos. Eu, para colher em seus movimentos as dificuldades e facilidades em

prol de estudar de que forma orientá-los, e eles, para captar meus gestos e intenções,

além das influências externas do contexto no qual estávamos inseridos.

Subalterna? Sim, ao morar na Europa, muitas vezes sentia o peso da

colonização e manipulação sobre os ombros. No Brasil convivo com pessoas de

condições sociais díspares, e em situações das mais diversas em relação à posição que

ocupo. Isto acaba por alternar meu lugar – em trânsito - e servir de exercício e auto-

reflexão para as atitudes que tomo, no sentido de entender, que a importância está em

como lidar com as situações onde somos detentores do poder, ou com as que somos

vítimas dele. Já na Holanda, ainda que cosmopolita, por vezes era traída pelas

contingências opressoras e discriminatórias do imaginário coletivo, quanto a um biótipo

estereotipado, de latina do terceiro mundo. Termo carregado de questões colonialistas

de dominação, condição paradoxalmente utilizada para subverter uma imagem

generalizada e universalista e se posicionar criticamente. Exemplo: uma das

manifestações populares brasileiras, o samba, é um dos carimbos da nossa imagem

estereotipada que traz consigo um dos mais significativos rótulos, a mulher como objeto

de uso e de consumo na sociedade capitalista. Os alunos em Amsterdã requisitavam

freqüentemente que o samba fosse ensinado nas aulas. Apesar de estarem impregnados
130

pela referida imagem que esta manifestação popular brasileira ressoa e provoca questões

polêmicas, ficavam inebriados com o ritmo envolvente e com os chamados por eles

mesmos, truques dos pés. Refleti sobre as questões que o tema samba envolve e com o

tempo, vislumbrei estar exatamente nessa brecha, a oportunidade de utilizar a suposta

condição de subordinada para dar voz à pessoa crítica em ebulição interna, e atuar como

mensageira da diversidade cultural que caracteriza o Brasil, expondo criticamente

pensamentos plurais. As músicas escolhidas foram a ferramenta principal de tal

empenho. Transitar por tempos e espaços distintos que constituem o universo musical

do samba, significou perpassar por uma infinidade de tons, de vozes e composições

musicais, que refletiam em si a complexa sociedade brasileira, repleta de contradições e

preconceitos. Uma maneira de veicular valores, concepções de vida e focos de

resistência, desde os eruditos aos mais populares segmentos musicais brasileiros.

Artista, dançarina. Opção? Afinidade. Com que? A princípio, com o

movimento e sua poesia. Com o passar do tempo, a vertente poética do movimento

tomou um sentido mais amplo. A dança passou a figurar como âncora e possibilidade de

movimento, de trânsito entre tempos e espaços, segmentos nacionais e internacionais de

dança, com uma tendência pouco a pouco, maleável e convergente às danças inspiradas

nas culturas, dos orixás e do oeste africano. Não nasci na Bahia, nem na África, nem na

Holanda, contudo no trânsito de um lugar a outro, inquietações a respeito da expressão

do movimento, inevitavelmente, transbordaram em perguntas, como as apresentadas

anteriormente. Perguntas difíceis? Muito! Enquanto pessoa, enquanto mulher. Enquanto

postura. Enquanto atitude. Enquanto luta. Enquanto resistência. Enquanto vigor.

Enquanto ritmo. Perguntas preciosas? Também! Porque este é o lugar confortável dessa

encenação - expressão de diversidade e distinção, de contradição e convergência - das

experiências vividas e marcadas por deslocamentos de um entre tantos outros corpos


131

viventes e mortais. Enfim, expressar uma voz, expressar várias vozes, com a escrita, e

com a marca da dança. Marcadamente a partir do trabalho desenvolvido em Amsterdã,

no encontro com o Bugarabu, passei a perceber os ‘enquantos’ nas cenas da vida. As

vozes encontradas no trânsito representado pelas águas do Atlântico negro, pediram

passagem no fluxo de suas mobilidades para transporem o discurso deste estudo, pelo

fato de serem tratadas aqui, importantes questões como as lançadas por Gilroy, acerca

das “afinidades translocais”, dos “complexos culturais”, ou ainda da “mútua

interpenetração de civilizações”. (GILROY, 2001)

4.3 O processo de trabalho com Fayee – 1995 a 2002

Para analisar o processo de trabalho com Fayee destaco suas repetidas palavras,

sempre que me via com um papel e caneta na mão: “Viva, não perca momentos

importantes escrevendo.” Ao contrário de perder momentos, eu sentia que ao escrever

as inúmeras sensações afins, comparações, particularmente, com a cultura baiana era

uma forma de registrar aquele momento efêmero para revivê-lo mais tarde. Foi um

valioso trabalho de campo para a atual pesquisa, guardado na memória. Para justificar

tal mérito, pontuarei mais alguns momentos do diário de Gâmbia, no estilo write-down,

relacionados com questões de aprendizagem dessa experiência em torno, eu diria, da

‘cultura’ do Bugarabu, instigantes para serem comparativamente analisadas com a

tecnologia da informação, veiculadas nos anexos, por CD e sites. Tais questões

evidenciam o arroz, a fogueira, o vinho de palma (bunnuk), a dança, a música

percussiva, a resistência, as características das relações humanas nesse contexto, para


132

que o leitor possa perceber e fazer conexões pertinentes a este trabalho de pesquisa,

num sentido amplo e variável de experiências que se deslocam em tempo e espaço e

fazem história.

a) Gâmbia

Kanifing, Gâmbia, 03/01/1996. Chegamos ao hotel. Essa noite foi difícil

dormir. O som do silêncio como lá em casa em Floripa. Pensamentos mil.

Iana deixando o Nordeste no outro dia. Uma felicidade indecifrável,

cheia de mistérios e reconhecimentos paradoxais, como tentar teorizar

essa experiência o é também.

Kanifing, Gâmbia, 04/01/1996. Depois de extrair o vinho da palmeira,

como se tira o coco do coqueiro, os catadores da bebida sentam debaixo

desta árvore, conversam e fazem a sesta. Há muita água por baixo

daquele solo, o que facilita o cultivo do arroz para comer e pendura um

ramo fresco dele na porta de casa para atrair a fartura.

Kanifing, Gâmbia, 04/01/1996. Três semanas em que não podíamos

mostrar cansaço, tínhamos que aproveitar todos os momentos. Fayee

disse: ‘você tem que ser forte’. Eu sentia dor de barriga por causa do vinho

de palma e ser forte acho que posso identificar como transmutação de

energia... (minutos depois estávamos num casamento)... Foi então que

uma das mulheres me chamou para dançar ao som de 3 percussões e um

sax. Por efeito da música e da dança a dor dava seus últimos sinais...

Kanifing, Gâmbia, 07/01/1996. Domingo fomos ver a finalização do

drum (um Bugarabu), cuja pele de vaca colocada de molho há dois dias,

estava agora exposta ao sol para secar. Depois de fixada a pele no

drum, faz-se cortes nas laterais e com uma fita feita da própria pele,

termina-se a amarração, de maneira especial, com a ajuda de um

grande grampo de arame, como as agulhas que usamos em costura.


133

Ilustração 17 - Fayee confeccionando o Bugarabu em sua casa, Kanifing, Gâmbia, 07/01/1996. Foto
Sandra Mascarenhas

Kanifing, Gâmbia, 13 e 16/01/1996. Depois de uma polêmica, criada

entre o cunhado de Fayee e Tone sobre a White África (Marrocos)...

Pensamentos em discordância confrontando-se, tivemos um instante só e

falamos sobre choque cultural novamente.

Bakao, Gâmbia, 14/01/1996. Finalmente uma menina me chamou pra

dançar, a única por sinal entre os homens. Depois um garoto que

dançava seguindo a base do som, com movimentos muito lindos

redondos ora embaixo, ora em cima, me chamou pra dançar. Amei. Ele

realmente contraria a tradição de se tocar o mesmo ritmo e dançar os

mesmos movimentos como Fayee explicou: “always the same”. Agora

compreendo a semelhança entre uma aula e outra de Lamin.

Donsekunda, Gâmbia, 19/01/1996. A fogueira novamente. O som. Logo

começaram a cantar e foi uma noite linda de canto, dança. Fayee

gravou as meninas cantando e todos batendo palmas. A fogueira no

meio. O leite na cabaça... Joguei um pouco de dominó com eles debaixo

da árvore e fui dormir.

Avião de Banjul para Amsterdã, 24/01/1996. Sono e a certeza de que

muito tenho para fazer de agora em diante. Melhor dizendo, continuar.

Assentar a poeira e planejar com calma, num ciclo que não termina, se

repete.
134

b) A volta para Amsterdã – 1996 a 2002

Na introdução da dissertação lancei gradativamente, os aspetos cruciais que

deram corpo ao objeto de estudo em questão, e apresentei o que há de maior interesse na

presente reflexão, o ponto de conexão do transatlântico entre o Brasil e a África, ou seja,

Amsterdã, uma acidental estratégia para criações. Esta cidade serviu como local de

exercício para o convívio e conquistas transculturais que me trans-portaram à Gâmbia,

realizando um sonho antigo despertado ao conhecer Mamour Ba: atravessar limites e

experimentar o fogo.

O convite de Fayee para trabalharmos juntos quando retornamos a Amsterdã foi

o impulso efetivo no desencadeamento deste objeto de estudo. Mais uma vez eu estava

‘entre’, entre culturas, pessoas e decisões que não eram fúteis. A responsabilidade de

atuar como trans-missora e trans-portadora, de tendências culturais de um território a

outro era grande e, inevitavelmente, trans-formadora, já que a influência era mútua e

complexa. E ainda, fora da própria área territorial de onde vim? Situação difícil! Por

esta razão, desafiante e sedutora! Ocasião propícia também para labutar com minhas

habilidades e dificuldades enquanto mulher, latina e artista diante da comunidade

holandesa e do suposto tradicionalismo que Fayee exercitava ao sustentar os costumes

cotidianos de sua terra natal. Nessa empreitada de relações transculturais, a paciência, a

persistência e o jogo de cintura foram as maiores aliadas. As características rítmicas

comuns, entre o alujá 16


de Xangô e o ritmo 6/8 do Bugarabu, marcaram a dança e a

16
O alujá é um toque rápido com características guerreiras, dedicado a Xangô. Alujá em ioruba significa
perfuração, orifício. Segundo alguns zeladores de santo, é o orifício ou o buraco que Xangô abriu na terra,
por ele entrando, deixando de ser rei e transformando-se em Orixá. (LIMA, F. 2004)
135

música de nossas transculturas pela sensação de fogo, ponto de convergência

determinante para trocas favoráveis.

Fayee costumava dizer: “You look like fire when you dance!” Você parece fogo

quando dança! As duas fotos abaixo mostram esse momento onde o elemento fogo atua.

A foto 18(a) é de uma gambiana dançando em Brikama (1996) e a 18(b) sou eu num

workshop com a professora Tukuru, no Senegal (1998). Esta vigorosidade é o ápice da

dança do Bugarabu. Fayee trazia esse momento com a sua música e o identificava no

diálogo com a minha dança.

Ilustração 18 - (a) comício, Brikama, Gâmbia, 1996, Foto: Sandra Mascarenhas; (b) Sandra, Dakar,
Senegal, 1998, Foto: Iana Mascarenhas

Esse diálogo era ‘o ponto’, a partir dele foram comemoradas as exaltações de

nossos encontros e desenredados os nós de nossos desencontros. Da centelha ao fogo.

Assim havia sido percorrido o caminho da dança até então. Com o mesmo desenrolar

crescente procedia na metodologia das aulas e no encalço das conquistas pretendidas


136

com Fayee. Sem falar das performances, nas quais, a princípio, quando quis marcar

ensaios com ele para uma apresentação que iríamos fazer no Tropenmuseum de

Amsterdã, ele encarou como falta de confiança nele enquanto músico. As

transformações, ao contrário do ápice do ritmo do Bugarabu foram acontecendo pouco

a pouco até um dia em que...

Nossos alunos de Almere, uma cidade próxima a Amsterdã eram os responsáveis

em confeccionar nossos panfletos das aulas que aconteciam em blocos de dez vezes.

Certa feita, cada um de nós recebeu uma mensagem pela internet para dar nossa opinião

quanto ao texto criado por Janete, uma das alunas. Ali continha o histórico de Fayee e o
17
meu, com a afirmação de que as aulas eram compostas de ‘percussão africana’ e

dança afro-brasileira em diálogo. Para quem anteriormente tinha a intenção de

‘preservar’ a dança de Gâmbia, mesmo com uma professora vinda de outro trajeto, foi

interessante ouvir o seu parecer quanto à denominação transcultural relativa ao nosso

trabalho, quando disse: “It is true” (Isto é verdade). O que significou uma maior

aceitação de sua parte em torno das nossas diferenças. Em pouco tempo, Fayee dizia

estar orgulhoso do nosso trabalho, pois achava nossa criação algo ímpar, tanto no que se

refere à raridade que é o instrumento do Bugarabu, quanto aos possíveis

desdobramentos que essa conexão com a cultura brasileira advinda do candomblé, em

especial, a dança de Xangô, pudesse incitar.

Da centelha ao fogo também é a característica do andamento das aulas que dou.

As formas de fazê-lo mudam de acordo com os objetivos a serem alcançados e a

flexibilidade requerida, contudo, o suporte metodológico é o mesmo. No caso das aulas

com Fayee, o procedimento iniciava a partir de relaxamentos e alongamentos no chão

17
Cabe lembrar que o uso do termo generalizado ‘percussão africana’ pretende provocar
questionamentos, pois os eventos do continente africano eram pronunciados dessa maneira em suas
divulgações, por uma estratégia atrativa à unidade exótica de um mundo diverso, aos olhos de quem o
observa. As especificidades de tais eventos ocupavam um lugar mais discreto no mundo da propaganda,
assim como nos panfletos.
137

com músicas brasileiras que variavam das instrumentais à música popular,

destacadamente aquelas tranqüilas, em alternância com as músicas africanas que

seguissem o mesmo estilo. Após, propunha uma improvisação que contribuísse para:

estimular a capacidade criativa dos alunos, soltar os nós de tensão musculares e facilitar

a integração do grupo, além de ser um momento para observar suas habilidades e

limitações. Entre os músicos destaco os brasileiros Egberto Gismonti, Hélio Delmiro,

Agbeokuta, e Inaicyra Falcão, o senegalês Ismael Lo, entre outros. O aquecimento

abrangia de Naná Vasconcelos a Omom Engoma, Ilê Aiyê, Muzenza, Malê de Balê e

Guem e nesse momento era quando Fayee com os sinos (siwagness) nos braços,

adentrava a sala em direção ao Bugarabu, já colocado sobre os metais que lhe serviam

de suporte. Eu ‘escutava’ a sua presença.

Algumas vezes Fayee começava a acompanhar a música que tocava quando

entrava na sala e com o tempo percebi que esta era uma chance de incentivá-lo a

desfrutar das variações rítmicas que eu trazia. Como estratégia, quando ele se encaixava

com o ritmo que tocava eu desligava o som. Ele continuava só. Só não, quero dizer com

os outros músicos, porque eram vários deles que acompanhavam Fayee nas aulas,

inclusive os alunos da aula de percussão que acontecia após a aula de dança, da qual eu

participava tocando, para ter uma compreensão mais aguçada de ritmo. Daí em diante

era percussão ao vivo até o momento final da aula.

Depois do aquecimento em círculo, eu introduzia uma grande variedade de

movimentos básicos de ambas as danças na diagonal para familiarizá-los com os

movimentos novos e com aqueles que faziam parte da partitura a seguir. Essa era a parte

da aula onde eu dedicava específica concentração no ‘como’ os alunos executavam, os

movimentos e até que ponto eles captavam as nuances de uma linguagem corporal

distinta daquela a que estavam acostumados. Depois de me ater aos detalhes de


138

transferência de peso, qualidade de movimento, tempo, ritmo e o que se tornou uma

tônica em meu discurso de professora, o ‘i’,18 eu apresentava minuciosamente os

movimentos a serem ‘coreografados’. Era interessante essa necessária adaptação com os

europeus, que só com uma seqüência aprendida com as dez sessões saíam satisfeitos e

acreditando conhecer um pouco das referidas culturas. Segundo os alunos, tinham que

levar em sua bagagem de conhecimentos, uma seqüência coreográfica.

Seguíamos. As danças do oeste africano, em sua maioria, trazem cantos na

introdução. Pois bem. Integrei essa prática às nossas danças, porém, ao invés de canções

africanas eu cantava canções brasileiras. Este fato agradava Fayee e os dançarinos, além

de funcionar como fator de coesão e veículo de informação de cultura. A conformação

do espaço era mesclada com as coreografias do oeste africano e as evoluções próprias.

Além do círculo, a mais usual das formas, empregava filas, diagonais, que avançavam,

retrocediam dentro de trabalhos de grupo, em sua maioria. A divisão em duplas, trios ou

grupos reduzidos era realizada em certas circunstâncias. Os trabalhos individuais

aconteciam mais assiduamente na parte da improvisação, no começo e no final da aula.

Os movimentos criados eram inspirados nas danças dos orixás e nas experiências

com as danças que aprendera até então, em que destaco das danças oeste africanas, o

Bugarabu. Vale acrescentar outra influente fonte de inspiração para a criação de

movimentos, que sobrevinha das mãos de Fayee e dos meus pés, primeiro impulso de

expressão para o diálogo que desencadeavam entre a dança e a percussão. Do intervalo

de tempo desse prazer intenso despontavam movimentos novos, outras combinações

ressurgiam com acentos rítmicos e gestuais distintos, outro exemplo da referida

atmosfera, onde os corpos se dilatam, se expandem. É importante explicar que embora

18
O ‘i' seria o que Barba chama de sats, ou seja, a preparação, o impulso, o estar pronto para uma ação,
que na música corresponde ao up beat demonstrado claramente nos comentários e na ilustração 4, p.81.
As mãos de Fayee um pouco acima do Bugarabu e meus pés um pouco acima do chão, deflagram esse
instante.
139

fossem momentos imprevisíveis, eram procedentes. Por esta razão, as coreografias eram

criadas reservando os movimentos mais ‘quentes’ da criação para serem realizados

quando a atmosfera de corpos dilatados se instalava na sala.

E então eu dedicava ao fogo. Ao Bugarabu. O que significa dizer que era o

momento da improvisação, do círculo, dos claps, das palmas se estes faltassem, mas de

qualquer forma este funcionava como o momento de expressão máxima de cada um.

Um a um. Seus anseios, suas vergonhas, suas forças, suas alegrias se tornavam visíveis.

Momento de acertar e de errar. Fayee acompanhava um a um na percussão e eu nos

claps. A aceleração dos claps eu empreendia, a depender da leitura de movimentos que

captava na dança de cada um. Sem restrições das expressões dos dançarinos. Acelerar

os claps era sinal de que o silêncio se aproximava. A exaustão pedia o silêncio das

conversas mudas, dos corpos imóveis por fração de segundos e dos olhares cúmplices se

encontrando. O intervalo tempo para usufruir do prazer do último toque... Depois de

marcada a presença de todos, dançávamos juntos frente aos músicos e todos seguiam

minha pequena improvisação que culminava no usual movimento do Bugarabu. Até a

última faísca acesa. Parada total. Para depois então deitarmos no chão e relaxarmos.

Muito embora, poucos falassem o português, eu alternava entre instrumentais e músicas

brasileiras confortantes, relaxantes como a de Virginia Rodrigues. Era o instante de

registrar as sensações, fossem quais fossem. Elas não podiam ser jogadas fora. O

propósito desse tempo era sentir a sensação quente do fogo e dar tempo para ela se

esvair, evaporar no espaço, fora e dentro de cada um.

Não era a fogueira de Donsekunda, nem a fogueira de Xangô no Ilê Axé Opô

Afonjá, mas a sensação quente e o conforto são comparáveis. O entendimento ‘entre’

Fayee e eu se consumava. Na cumplicidade do nosso olhar podíamos agora... Beber


140

uma cerveja. O aftermath como assinala Schechener nos pontos de encontro entre o

teatro e a Antropologia. 19

Exercício de memória. Escrever no presente sobre o passado é uma tentativa de

aproximá-los. Uma tentativa que esquenta as emoções e eleva o tempo a um patamar

ilusório. Uma tarefa que requisita o ato de pensar, lembrar, olhar, refletir que por sua

vez, circunscreve a especificidade de ‘uma’ experiência, e o entendimento, portanto, de

que ela é única, e ainda pode instigar reflexões. Reflexões sobre a vida naquele tempo.

Interferências e interações sociais, culturais e políticas de um universo cosmopolita que

estávamos todos ali sob este jugo. A intensidade com que esse universo operava na vida

das pessoas variava, dependia da posição que cada um se encontrava dentro da

sociedade ‘livre’ de pensamentos e atitudes que a estratégia política do país pregava. A

minha posição era de certa forma confortável, pois até nesse lugar ocupava uma posição

‘entre’. Entre a legalidade e a ilegalidade. Em outras palavras, a configuração da dança

que criara e o método aplicado (uniek = único, em holandês) eram os trunfos através dos

quais conquistei este lugar, de certa forma, privilegiado.

Durante sete anos tinha um visto ‘provisório’ com o qual podia entrar e sair do

país quando quisesse, além de ter a permissão para trabalhar. Em contrapartida, não

tinha seguro-saúde, não podia ter uma casa em meu nome, mas vantajosamente estava

isenta de impostos sobre qualquer cachê ou salário recebido, por não ter o cartão de

identidade holandesa. Havia outras maneiras de conseguir a permissão de residência,

como casar com alguém, fosse uma união heterossexual ou homossexual ou, mais

19
Enfoco nesse caso, o quarto ponto de contato entre teatro e antropologia proposto por Schechner. Este
se refere a ‘toda a seqüência da performance’, sob uma visão distinta do entendimento estético ocidental,
o show, para uma composição mais abrangente, isto é, uma seqüência de ocorrências. O treinamento, os
ensaios, os rituais para dar início e após o término da performance, warm-up e cool-down (aquecimento e
relaxamento ou volta ao cotidiano habitual) e o aftermath depois da performance, explicados
anteriormente. Com intensidades de maior ou menor importância em cada cultura, o cool–down, segundo
Schechner na América é de costume, os artistas saírem para beber e comer depois da performance e
acrescenta que esse período de celebração não é ‘o depois do teatro’ mas ‘parte dele’, um tipo de cool-
down. (SCHECHNER, 1985; SCHECHNER, 1990)
141

raramente, por meio de um contrato longo de trabalho. De qualquer modo, tinha orgulho

da condição social e econômica que alcançara através da dança. Morar e trabalhar na

Holanda deu muito trabalho para mim e com certeza trabalho para eles também. A

dança era o ambiente, o meio através do qual, os entrecruzamentos de idéias eram

articulados. Um corpo exausto de dançar era um corpo disponível a se expressar. Tão

intenso quanto é o exercício de memória nesse instante para escrever, era o exercício de

maleabilidade e sensibilidade que eu despendia para fazê-los dançar e pensar sobre

aquela dança.

A dança trazia consigo o seu contexto, o que implicava em refletir sobre outras

questões que principalmente, atingiam realidades sociais e econômicas da existência

brasileira caracterizada pela ‘hesitação’, como diz Gilroy. O mito da malandragem, seja

no futebol, no carnaval, no samba ou na capoeira constituem a história brasileira e

deixam seus rastros nas manifestações populares e artísticas. Tais discussões justificam

a existência e o registro desse trabalho a fim de provocar reflexões a respeito de outras e

desta dança. Por exemplo: o que a proliferou? E o que pode proliferar dela? Desse

entrelaçamento de duas danças, ambas referentes à questão do negro que tanto tem

interessado e ocupado os pensadores alertas à intervenção histórica que tiveram no

Novo Mundo, na Europa e naturalmente, no próprio continente africano.

A título de comparação e análise crítica, trago a carta de Machteld, uma das

alunas da Holanda, a respeito de suas sensações em relação à sua experiência com o

trabalho que Fayee e eu desenvolvemos entrelaçando nossos trajetos transculturais.

Vale esclarecer que a aluna, nem brasileira, nem africana, está ‘entre’, na sua

desterritorialização ao refletir sobre o estado que esta dança a faz alcançar,

simbolicamente chamado aqui de fogo, especificamente agora de: o fogo de cada um.

O fogo de Machteld.
142

Dear Sandra
Through your lessons I learned to develop the free dance, which is the greatest part,
you give the space to develop our own creativity. I know about the communication between
drummer and dancer, but it is so good that you teach about that and give it an important place
in the class. Thanks to you and your collaboration with Fayee, who is as important in this.
Your class is complete, with a slowly build up, warming up, time to relax and to come
into the body. Exercises (steps) moving forward to learn the steps, in general and those for the
dance, and than the dance. Your way of teaching is clear and directed to human beings not to a
number of legs and arms.
You are involved with your heart into the teaching and with the people you teach, so
you create a relationship which makes class more than learning something. And so was the
great birthday party and the festige at the Beyers weg. You radiate the energy for people of the
warm and the sunny areas of the globe.
And than personally I can say, that first I felt and later I recognized common
experiences with you, as our connection with the third theater, the Anthropological School and
of course the passion for African Culture and people.
So in short, it was nice, thanks and I see you back again, for sure, some where.
Love Machteld20

Machteld, enquanto eu relia sua carta e tentava selecionar as

frases ou parágrafos mais pertinentes à representação etnográfica a que

me proponho aqui, percebi a abrangência de seus comentários e a

necessidade de analisá-la no seu todo. Por quê? Vamos lá! Seu

comentário inicial já levanta pontos importantes para a análise das

aulas, ou seja, a metodologia aplicada, e sob seu olhar, os efeitos dela: o

exercício da criatividade por meio da improvisação, calcada no diálogo

entre o dançarino e o músico e ainda aponta a colaboração mútua entre

Fayee e eu. Digo mútua porque quando diz “tão importante quanto”,

20
Querida Sandra
Através de suas aulas eu aprendi a desenvolver a improvisação, a qual é a melhor parte. Você dá
espaço para desenvolvermos nossa própria criatividade. Eu entendo sobre a comunicação entre
percussionista e dançarino (a). Mas é tão bom que você ensina sobre essa comunicação e dá um lugar
importante a isto na aula. Obrigada a você e sua colaboração com o Fayee que é tão importante quanto
nisso.
Sua aula é completa, com um desenrolar lento, aquecimento, tempo para relaxar e entrar no
corpo. Exercícios, passos para frente, na diagonal, para aprender os movimentos (eu chamaria) em geral,
e os da dança, e então a dança. Sua maneira de ensinar é clara e direta para seres humanos e não para um
número de pernas e braços.
Você está envolvida com seu coração quando ensina e para quem ensina, assim, você cria uma
relação que faz da aula mais do que aprender alguma coisa. Assim foi a ótima festa de aniversário e a
festa na Beyers werg. Você irradia energia para as pessoas das áreas quentes e ensolaradas do globo.
E então pessoalmente eu posso dizer, eu primeiro senti e depois reconheci experiências comuns
com você, como, nossa conexão com o terceiro teatro, a escola antropológica e naturalmente a paixão
pela cultura e o povo africano.
Então, em resumo, foi ótimo, obrigada e te vejo de volta, com certeza em algum lugar.
Amor Machteld (Tradução minha)
143

você me faz reviver a reciprocidade que caracterizava nossa relação.

Essa colaboração é um dos aspectos mais determinantes e relevantes

desta pesquisa acadêmica. É um discurso de memória que se faz

presente quando opto olhar e repensar sobre o significado dessa

experiência na transformação do meu corpo, gesto, visão e atitude, em

contraponto com o trabalho de campo. Estes são elementos geradores da

etnografia, e inspiradores da encenação no palco e no texto, empenho e

propósito desta pesquisa. 21

Um número de pernas e braços: descrever os passos da aula um a

um, assinalando a metodologia direta e clara onde eu lido com o todo

das pessoas e não com um número de membros fragmentados reverbera

duas sensações contraditórias. Primeiramente, tenho uma sensação de

conforto pela efetividade do caminho metodológico criado e, por outro

lado, certo desconforto que tive durante os anos que vivi na Holanda.

Muitos aspectos importantes e “normativos” da vida cotidiana na

Holanda se baseavam em números: da conta, do cartão de visto, das

datas previstas com muita antecipação, do preço, das liquidações, das

horas, dias e meses de trabalho, enfim éramos todos “números” e

igualmente dependíamos de “números”. Pensando bem, a globalização e

a padronização da vida, a crescente quantificação em detrimento da

qualificação a que ficamos sujeitos não é algo específico holandês. A

minha experiência num país de primeiro mundo, naquele momento é

que me saltava aos olhos por esse viés do número e do dinheiro,

recorrente na cultura daquele povo. Contudo, a luta por um cartão de

permanência, cujo “número” garantiria eu ser uma “pessoa normal”,

enfim, com direitos de cidadania como todos dentro daquela sociedade,

talvez fosse uma causa considerável desse desconforto. De qualquer

21
Ao refletir sobre a interpretação de Machteld, trago para o presente estudo, um exemplo de atividade
interativa e intersubjetiva de aproximação entre ‘texto e corporeidade’ e entre ‘escritura e performance’
como propõe Fernando Passos em seu texto - Fronteiras do Gênero e Gêneros de Fronteira da revista da
Fundarte, Ano IV, vol. IV. N.7. (PASSOS, 2004)
144

forma, eu recordo que essa percepção de gente, representada por um

número de pernas e braços, também te incomodava não é Machteld? Por

isso enfatiza o tipo de relação que eu estabelecia nas aulas quando

coloca: “você cria uma relação que faz da aula mais do que aprender

alguma coisa”. Essa alguma coisa acredito que você se refere ao

movimento, mas se pensar bem, esse “mais do que” está dentro do

movimento. Era ele, o movimento, contudo, num sentido mais amplo, no

modo de conduzir, no agir com os alunos e na dança que geravam essa

sensação em você, fazendo você escrever: “Você irradia energia para as

pessoas, das áreas quentes e ensolaradas do globo.” Quem são, como são, e

como vivem essas pessoas das áreas quentes e ensolaradas do globo que

irradiam calor? Que calor é esse? A relação Bugarabu-Xangô está

presente em suas palavras e nos movimentos executados nas aulas,

através das percepções corporais e sensitivas que emanavam dali.

Pernas que se movem numa velocidade estonteante, braços que se

agitam, com movimentos igualmente rápidos e vigorosos, tronco

inclinado “conversando com as pernas” como eu costumo dizer, pulos e

precisão. Suas palavras conduzem meus pensamentos para outras

palavras de:

Mãe Detinha, primeira informante da pesquisa etnográfica e filha de santo de

Xangô do Ilê Axé Opô Afonjá: “Xangô é fogo, vida, vermelho, afasta a morte”.

E insisto com as palavras de Fayee: “Sandra, when you dance you look like a

fire”. Sandra, você quando dança parece fogo.

Neste exato instante efêmero da dança o fogo dispersa ou dissimula as

diferenças e os problemas, e garante certa unidade e cumplicidade de sensações que os

traços dos movimentos amalgamados (Bugarabu-Xangô) expressam.


145

4.4 A experiência do Bugarabu na volta à Bahia

Adotei a estratégia de me ater a Salvador para tratar da experiência do Bugarabu

no Brasil, por duas razões principais. Primeiramente, porque a dissertação ganharia

proporções demasiadas se estendesse o propósito desta análise comparativa de dança,

aos diversos lugares e pessoas do país com os quais trabalhei. Por exemplo: workshops

em Florianópolis, 1998 e 1999, e em Londrina, 1999 e 2000. E ainda, a Noite Brasil-

África em São Paulo, em 2002, um encontro transcultural idealizado junto com o

músico-baterista Duda Neves. A programação teve início com uma palestra sobre as

nossas experiências individuais, quando realizei uma exposição das fotos que tirei

durante o convívio com a cultura de Gâmbia. O ambiente exalava no ar, cheiros da

culinária africana (Nhassa - frango temperado com cebola e mostarda) misturados com

cheiros da comida brasileira (moqueca), anunciando com o jantar e o acarajé que

preparei o caráter interativo daquela noite. Para finalizar, apresentamos a performance

que criamos, Duda e eu, a partir das expressões rítmicas do Bugarabu, desta vez trans-

criados na bateria.

A segunda razão contém dois motivos. Primeiro, porque a cidade de Salvador é

um dos lugares do Brasil de maior expressividade das conexões transculturais do

Atlântico negro, que junto ao Recôncavo Baiano, tem uma característica própria e de

destaque no cenário do país. E segundo, porque é o lugar onde desde 1979 eu convivo

com as culturas africanas remanescentes, que aqui foram transformadas e recriadas.

A aplicação da dança do Bugarabu na Bahia conta com passagens que afirmam

o movimento constante e interminável com que as culturas podem se interpenetrar, e

conseqüentemente, sinalizar expressões artísticas.


146

Dentre uma série de workshops ministrados, como por exemplo, na UFBA pelo

NEAB (Núcleo de Estudos Afro-brasileiros) e na quadrilha Terra Viva, em 2000; na

ONG IAÔ (Ilê Augusto Omolu), em 2003; na Convívio (Centro Especializado para

portadores de necessidades especiais), em 2005; e na Escola do Circo Picolino em 2006,

passo a salientar e analisar duas outras oportunidades e os respectivos desdobramentos

deste intercâmbio transcultural.

A primeira ocasião abordada aqui, se trata do convite do dançarino e professor

Augusto Omolu, para substituí-lo em suas aulas, durante uma temporada de três

semanas com as crianças e adolescentes do Projeto Axé, em 2002. Um encontro que

implica numa tríade cultural envolvendo meninos da cultura popular baiana, em contato

com a dança de Gâmbia, sob a interpretação de um olhar mato-grossense. A juventude

do Projeto Axé porta a cultura local salpicada de traços do candomblé que, entrelaçados

com outras manifestações culturais do seu dia a dia, injetam alegria e vigor nos

movimentos da dança e da música que executam. Quando sensibilizados pelo

cruzamento de percepções no vigor deste intercâmbio, compartilhávamos do elemento

simbólico fogo que desprendia dos nossos corpos. Era assim a efemeridade que ecoava

dos nossos movimentos.

Vale salientar que os aspectos históricos, sociais, de raça e gênero desses

meninos e meninas ‘carentes’ estão intimamente vinculados às suas valiosas expressões,

percepções e manifestações artísticas e culturais, manipuladas pelas influências do

domínio econômico, social e político, a que estão submetidos. Tais aspectos são

considerados nesse capítulo que trata da memória, especialmente no que concerne às

possíveis contribuições afirmativas da transculturalidade das danças aqui analisadas.

Dos cruzamentos culturais produzidos nas aulas do Projeto Axé, eu apontarei

dois aspectos importantes relacionados ao estudo sobre o qual me debruço, na


147

justificativa e valência das especulações rítmicas e gestuais da dança de Xangô e da

dança do Bugarabu.

Primeiramente, tratarei do ritmo. O artefato utilizado com os músicos para criar

uma analogia entre o ritmo do Bugarabu e de Xangô foi feito da seguinte maneira:

dentre as cuidadosas investigações musicais que integram pertinentemente meu

trabalho, há um Cd de Ádama Dramé - Percussions mandingues, mandingo drums - que

apresenta na segunda faixa a música Dougouba Dya, o ritmo do Bugarabu que se

assemelha ao alujá de Xangô, como já dito. Eu compreendia que falar sobre o alujá era

falar a língua dos meninos, em sua maioria envolvidos com o candomblé, alguns

inclusive com o cargo de alabé (tocadores). A partir dessa premissa, eu mostrava essa

faixa do Cd de Adama Dramé e pedia que aguçassem seus ouvidos para se certificarem

da proximidade entre os dois ritmos mencionados e assim os deixava confortáveis,

analisando e fazendo suas próprias reflexões e interpretações. Tocavam juntos com o Cd

uma primeira vez e depois incorporavam o ritmo em suas peculiares interpretações.

Dessa maneira o ritmo que havia atravessado o atlântico aportava no território baiano,

nos corpos que se sentiam então em casa, em sua nação. Refiro-me aqui à nação

religiosa do candomblé, localizando essa cultura no tempo do agora, na interpretação e

vivência atuais.

É uma tarde quente de fevereiro de 2002. Estou de costas para os

músicos, concentrada nos movimentos dos dançarinos durante uma aula

na sede do Projeto Axé, no Comércio, na Cidade Baixa de Salvador. De

repente, ouço um toque que devolve à memória sensações muito

similares aos experimentos de dança vividos com os africanos já

especificados anteriormente. Um toque pontiagudo, certeiro que impele

um corpo em movimento a replicar. Olho. Vejo um percussionista que

não conhecia. É um menino tocando o djembé apoiado entre as pernas,


148

com o mesmo sorriso largo de Mamour. Espalha felicidade ao tocar,

assim como uma criança quando se delicia com um brinquedo que

acabou de ganhar de presente. Outra cena fustiga minha lembrança

naquele instante. Parece Baba tocando na praia, o filho do Issa,

professor de dança senegalesa, com quem eu tive o prazer de ir para o

Senegal, em 1997. São exatamente essas interconexões que a memória

aguça, que acabam por conferir certa forma e conteúdo, específicos

desse estudo. São identificações que alimentam uma vontade de

perpetuar e presentificar momentos que justificam o ato da criação

artística.

Esse menino é o percussionista Augusto Santana, com quem reconheci uma

afinidade rítmica para a dança, a partir de onde acreditei e criei um desejo de dar

continuidade aos experimentos desenvolvidos com as danças africanas do Senegal,

Gâmbia e Guiné, particularmente acerca da dança do Bugarabu. Assim, depois de

empenhos que geraram encontros e desencontros, desde 2005 conseguimos finalmente,

aproximar nossos conhecimentos e vivências, para trabalharmos juntos e dedicarmos

nossos esforços em direção aos experimentos iniciais de criação da performance que

esta pesquisa abriga.

Augusto é ogan (protetor civil do candomblé) e alabê, tendo cumprido sua

iniciação no Terreiro Uzokuna Lembenikosi situado na Fazenda Grande. Ele costuma

dizer: “nasci e fui criado por minha vó Maria Luiza, Mametu Mukambu dentro da

camarinha. Ela era mãe de santo do terreiro”.

Augusto fala com muito prazer de sua vida em constante contato com o

candomblé. Fala ioruba e mantém grande interesse pela cultura baiana imbricada de

traços e rastros estéticos dos orixás. Das relevâncias das investigações que

desenvolvemos juntos, o que há de grande pertinência é a percepção de arte integrada -


149

dança, canto, música e teatro - que Augusto criou durante sua vida, a partir da

percussão, como ele mesmo confirma. Esse foi o grande viés que uniu nosso trabalho e

que funcionou como ponto básico de nossas criações. Augusto tocava a percussão e eu

os claps. Nesse diálogo reconhecemos a nossa interdependência a partir da

interdependência sonora dos dois instrumentos.

Em segundo lugar, ressalto o movimento dos meninos do Projeto Axé que, em

sua maioria já sofrem a decorrência histórica que envolve a dança afro em Salvador.

Uma influência da ‘dança moderna’, que encarada pelo movimento desses corpos, acaba

por restringir uma espontaneidade inicial por meio de uma disciplina motora

enganosamente confundida com rigidez de movimento. O conceito ou noção de dança

moderna é por vezes apresentado a eles como um pacote pronto de contemporaneidade

a ser consumido. Sem questionamentos, sem um prévio conhecimento de sua história e

premissas ou uma contextualização. Se algo lhes é oferecido vem numa roupagem de

técnica necessária, longe do que vivem, e por fim, só acalenta os seus sonhos, os seus

anseios. O que aconteceu foi que essa onda do ‘moderno’ envolveu o meio artístico da

dança por alguns anos, que acabou por lhes devolver um estereótipo pronto, sobre o

qual não sentiram nenhuma necessidade de refletir, mas simplesmente reproduzir para
22
assim se sentirem ‘atuais’. As conseqüências de tal fato resultaram em troncos mais

rígidos, com uma flexibilidade de coluna mais controlada, quadris sensivelmente presos

e ombros destituídos de seus anteriores jinká, em outras palavras, ginga ou swing.

Sendo assim, no papel de transmissora de outra vertente cultural eu provocava a

espontaneidade escondida neles e num momento perspicaz de observação, quando

22
A cultura de massa é veiculada de forma a atender à produção requisitada pela mídia e pelos modismos
do consumo capitalista. Dessa maneira são aplicados mecanismos de controle social que nesse caso,
padronizou o dançar sob o estigma de dança moderna, como sendo mais valoroso. Esse fator que passou a
rondar o universo da dança a partir dos anos 80, foi de grande influência na arte de dançar e de pensar a
dança em Salvador e por conseguinte, no projeto Axé.
150

soltos acompanhavam um momento de improvisação dos meninos na percussão,

incentivei e pedi que utilizassem daquele sentimento para executar a coreografia que

praticávamos. Dessa maneira pude ver brotar desde então, movimentos menos contidos

em sua expressão, mais vigorosos e, conseqüentemente, mais coincidentes com o clima

da dança de Xangô e da cultura de Senegâmbia. O fogo. Não tinha nenhuma pretensão

de homogeneizar e igualar os movimentos dos dançarinos, mas com certeza tinha a

intenção de tornar expoentes suas singularidades, como as labaredas disformes, mas que

em seu conjunto incendeiam. Esses são os momentos felizes de identificação.

No andar dessa carruagem, vou a caminho da segunda ocasião, sobre a qual me

debruço para uma análise mais minuciosa. Destrinchei detalhes do Estágio Docente

Orientado realizado em 2005, com o intuito de fisgar aspectos que se somem às

afirmações comparativas e analíticas relacionadas com as manifestações dançantes que

geraram a curiosidade e o desejo de realizar essa pesquisa. Na ocasião, tive a chance de

dividir com os alunos do quarto semestre da Escola de Dança da UFBA os prazeres e

inquietações que o desconhecido nos causa e intercambiar noções críticas a respeito do

fazer artístico nos seguintes módulos: I - Técnicas e Práticas Corporais; II - Processos

Criativos e Processos Crítico Analíticos. O grupo de sete professores era composto por:

Fernando Passos, Ivani Santana, Edileusa Santos, Firmino Pitanga, Nadir Nóbrega,

Adailton Araújo e Sandra Mascarenhas. A maioria das proposições bibliográficas e a

supervisão do módulo II foram feitas pelo meu orientador Fernando Passos, o que

privilegiadamente contribuiu para a orientação do meu mestrado, a exemplo de Paul

Gilroy.

Nadir e eu éramos estagiárias e aproveitamos a oportunidade para

experimentarmos elementos e aspectos concernentes ao nosso objeto de estudo, assim

como às nossas experiências profissionais, uma vez que o tema central do semestre era,
151

23
Identidade e Diversidade, baseado na lei 10639/2003 , com diretrizes e bases para a

educação. Portanto, esta lei foi um incentivo à mudança curricular da Escola de dança

da UFBA e nos possibilitou, com esse grupo de professores, contemplar distintas

expressões de movimento e refletir sobre a maneira como elas se auto-afirmam.

Nessa oportunidade pude constatar a receptividade dos alunos que, dotados de

considerável capacidade de argumentação e troca atuaram como multiplicadores das

reflexões sobre identidade e diversidade dentro e fora da escola.

Muitas discussões foram realizadas sobre as tensões entre ciência e arte,

inspiradas, em especial nos textos referentes aos Estudos da Performance e aos Estudos

Culturais, como Paul Gilroy. Entre outras questões, as discussões foram úteis para

verificar o aspecto científico – sócio-político, filosófico e artístico – desta investigação

acerca da dança do Bugarabu e suas implicações dentro do universo acadêmico.

Ainda, a compreensão da transculturalidade metodológica aplicada no ensino da

dança do Bugarabu, instigou discussões críticas em relação ao momento contemporâneo

das danças. Com o termo transculturalidade metodológica me refiro à reinterpretação

dos vários procedimentos experimentados e as inevitáveis transformações em suas

aplicações durante o estágio. A ênfase dada à importância da relação de diálogo

constante entre eu, os percussionistas e os alunos, durante a execução da dança ocupou

um lugar de destaque durante as aulas.

Um dos resultados úteis à academia, às escolas, aos projetos sociais e às artes da

sociedade baiana, da qual esses alunos fazem parte e atuam ao desenvolver seus

23
Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se
obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.
§Iº - O Conteúdo Programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da história da África
e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade
nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política, pertinentes à
História do Brasil.
§2º - Os Conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo
currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística, de Literatura e de História Brasileira.
152

trabalhos foi o aspecto levantado durante as aulas acerca das manifestações tradicionais.

Elas foram tratadas não como uma repetição invariável, mas como um estímulo à

inovação das identidades suscetíveis a processos de mudança variáveis. Esta é uma

noção a respeito da instabilidade e mutabilidade das identidades condizente com a de

Paul Gilroy em - O Atlântico Negro – e a liquidez das mesmas, de acordo com Zigmunt

Bauman em – Modernidade Líquida, ao tratarem da Modernidade.

Para concluir, devo salientar que o trabalho do Estágio Docente Orientado

dentro do tema Identidade e Diversidade, apoiados pelos textos teóricos despertaram

reflexões que ampliaram o entendimento da complexa nacionalidade. As teorias da

performance ampliam nosso olhar em direção à nossa própria transculturalidade, onde a

dança passa a ser uma atitude cênica além da rigidez das estereotipadas e fixas

identidades.

O estudo revelou preciosas atribuições ao conceito de corpo, instigantes e úteis

para o trabalho dos alunos que se debruçam sobre as prementes questões da

representação cultural das diversas comunidades da diáspora africana na

contemporaneidade. Para aqueles que são envolvidos com outras vertentes culturais da

dança, ficaram gratificados com a possibilidade de pensar a dança a partir de um

horizonte mais amplo aplicável às suas práticas. Em outras palavras, um corpo que

dança é um corpo que pensa e se articula conceitualmente.


5. CAPÍTULO III – A Etnografia do Fogo

Esse corpo que é meu. Esse corpo que não é meu. Esse
corpo que é, portanto meu. Esse corpo estrangeiro. Minha
única nação. Minha casa. Esse corpo a ser readquirido. 1
Odette Aslan

5.1 A Fala

Dou seguimento a uma das tarefas desta escrita que é induzir o leitor a caminhar

pelos deslocamentos que marcam a transculturalidade e o elemento fogo. Absorver sua

atenção, gerar reflexões e propiciar liberdade para as considerações do leitor, tem sido o

alvo na escolha das palavras e na maneira de utilizá-las, a fim de instigar um

pensamento reflexivo e indicar na atividade etnográfica, uma atitude própria dentro da

pesquisa acadêmica.

De tal modo, traçarei os seguintes passos: situar quem, para que e para quem fala

o sujeito/objeto da pesquisa; pontuar a correspondência entre a circularidade da escrita e

a circularidade rítmica, trazendo como estratégia metodológica, as reflexões e

contribuições teóricas para dialogarem com o Bugarabu e o Xangô, no corpo e nas

notas do texto, do começo ao fim; fazer uma retrospectiva histórica, a título de

contextualização, sobre o surgimento do candomblé e do terreiro do Afonjá, em

Salvador, além dos elementos rituais que envolvem o Orixá Xangô; analisar, num

1
A repetição da epígrafe no Capítulo I e no Capítulo II tem o propósito de localizar meu corpo dentro de
inquietações que são análogas, seja na memória ou na etnografia.
154

recorte espacial e temporal, os aspectos mais relevantes do trabalho de campo no Afonjá

durante o ciclo das festas de Xangô, nos anos de 2005 e 2006. E finalmente, abordar os

dois encontros com Mãe Stella de Oxossi, que foram de suma importância para perceber

que a reflexividade da filosofia que envolve a ialorixá desse terreiro se localiza além de

suas palavras e se acentua em seu silêncio.

Quem fala? Um corpo, uma mulher de vivências transladadas e distintas.

Alguém que detectou ‘entre’ as brechas das danças de Xangô e do Bugarabu, um estado

corpóreo arrebatado pelas sensações de se sentir viva, impetuosa e inspirada, ou seja,

um corpo incandescente. O lugar onde consegui ouvir a própria voz. Voz de negro? De

branco? De índio? Alguma outra voz? Não importa. Voz ativa e impetuosa. Voz de

muitos! Voz latente! Voz do fogo!

Para que fala? Para desafiar a noção de estabilidade. Para transcriar os

elementos performativos culturais do encontro rítmico dessas danças, onde, atuando

como sujeito-objeto possa - através das satisfações, insatisfações, constatações, análise e

auto-reflexões em torno dessa experiência - aguçar outras vozes latentes, outras vozes

de fogo.

Para quem fala? Para ouvidos abertos e fechados. Para os ‘entre’-abertos e

‘entre’-fechados também. Para vozes dominantes e para vozes dominadas. Para vozes

deslizantes, escorregadias, permissivas, ‘que se dão direito ao erro’, à instabilidade. Não

importa! O importante é que no instante da leitura, de, e em acordo com Derrida, o

leitor desconstrói a escrita através de uma interpretação própria. A compreensão do

leitor pode ser modificada por ele mesmo, exatamente no momento dos seus deslizes

interpretativos. Paradoxalmente, tais escorregões por entre as brechas do pensamento,

podem provocar entre o leitor e a escrita, uma sensação fervente de cumplicidade, que
155

denomino de voz do fogo! Analogamente, é a compreensão do elemento fogo

metaforicamente simbolizado nas danças e na escrita deste estudo. Uma voz!

“Está tudo aí, sua escrita é circular”. Este foi um dos comentários do

doutorando Adailton Santos (Dadao) sobre este projeto, na disciplina Seminário de

Pesquisa em Andamento, no dia 27 de abril de 2006. Reconhecer a circularidade em

minha escrita foi uma contribuição útil para as reflexões deste estudo, pois a qualidade

do que é circular também está relacionada com o ritmo, com o movimento e com o

fogo, conteúdos fundantes do arcabouço teórico-empírico desta pesquisa.

Os círculos estão presentes em nossa vida das mais diversas maneiras, entre as

quais se encontra o ritmo. Reitero o pensamento do músico Fayee Diona, ao dizer que o

ritmo flui e é agradável quando sentimos sua roundness, sua circularidade e para isso

acontecer é preciso que acentuemos as polaridades do compasso rítmico, ou seja, seu

impulso e sua tônica, em outras palavras, seu beat e seu up-beat.

Além de fazer parte da concepção rítmica, encontra-se o círculo em inúmeras

(con)centrações onde o deslocamento espacial é alcançado pelo movimento das

pessoas, voltado para um ponto central: brincadeiras de roda, cerimônias e rituais

religiosos, manifestações políticas e artísticas, entre as quais incluo os rituais de Xangô

e do Bugarabu.

Esse movimento concêntrico é atraído por raios de ação que reúnem,

intensificam e concentram ‘energias’ (fogo) que são emanadas pela força centrífuga.

Após esse passeio por tais conteúdos relacionados com a circularidade, é oportuno

reiterar estas considerações através da análise de Schechner quando se refere a um dos

procedimentos das concentrações sociais em círculo, a erupção (eruption), caracterizada


156

pelas ações: reunir-performar-dispersar, em suas palavras, gathering-performing-

dispersing. (SCHECHNER, 1988)

Criar diálogos e instigar questões em torno de concepções e noções artísticas,

suscitou meu interesse em reingressar no meio universitário. O universo acadêmico é

um terreno fértil para o fomento de auto-reflexões acerca de pensamentos e de atitudes,

local onde a possibilidade de trocas e de contribuições teórico-práticas impulsiona a

elaboração de conhecimento. Concordar, discordar, fomenta, esquenta. Essa fricção de

pensamento - nesse caso, entre o meu e o de Adailton - ‘esquenta’, e é exatamente desse

espaço vazio, dessa fenda escorregadia que emerge um ambiente propício para criar,

desvelar, movimentar e compor outras noções teóricas, outras perspectivas

epistemológicas, e analogamente, outras performances2.

Círculo, calor, movimento, ritmo, fogo, são palavras que se estendem, se

entrecruzam e persistem em se manifestar na dança, na escrita e na feminilidade desta

performance. Enquanto ‘ser em trânsito’, circulo e viajo por teorias instigadoras de um

espírito crítico na composição desta atividade etnográfica.

Destaco as duas palavras acima em negrito para costurar e corroborar noções

teóricas do texto. A primeira é o termo composição, usado por Matteo Bonfito para

sugerir a organização do trabalho do ator, transposto aqui para a atividade da escrita

performativa, onde como autora-atriz, crio uma composição etnográfica. (BONFITTO,

2002).

2
Na oportunidade da defesa pública, dia 23 de maio de 2007 na Casa do Benin, o Dr. Renato Ferracini
me perguntou se não considerava a circularidade tão mencionada no corpo do texto da dissertação, como
algo que restringia, porque o círculo fecha, enquanto meu trabalho abre para tantas questões. Depois de
parar para refletir e revisar toda a escrita, acredito que esta circularidade tão presente atua como pedrinhas
que jogadas num líquido formam círculos que se espalham subseqüentemente e portanto, abrem e
reverberam em novas direções e composições.
157

Com a palavra viajo passo a refletir sobre o texto de James Clifford “Notes on

Travel Theory” (1998)3. Ao criar uma escrita, crio uma ação. A atividade de teorizar

que, de acordo com Clifford, leva a ver além do local, leva nessa circunstância a ver

além da experiência de vivenciar as danças de Xangô e do Bugarabu, nos percursos

validados durante este estudo. Deslocar-se foi a chave para ver além, para exercitar a

observação. E na tentativa de me localizar no deslocamento, escorreguei na questão de

perceber a diferença que faz diferença em situações concretas. Exemplo: esteticamente

nem negra, nem branca. Eu era diferente no universo holandês. A diferença produzia

uma visibilidade. A própria aparência física – morena, pequena, latina, meio índia -

parecia induzir imediatamente às noções generalizadas e ‘chapantes’ daquele contexto

de primeiro mundo colonizador recheado por povos colonizados que é Amsterdã. No

papel de transmitir e de representar a cultura dita ‘brasileira’ sentia o peso da

responsabilidade que as atitudes que tomava passavam a ter.

A globalização já tinha embrulhado o Brasil no pacote dos exóticos, dos

preguiçosos, dos inferiores e dos alegres, prontos para serem consumidos pelo mercado

internacional do capitalismo. Pacote dentro do qual, brasileiros(as) estavam incluídos e

igualmente se incluíam. A tarefa era difícil, porém urgente, e exigia reflexão: idéias pós-

estruturalistas reivindicavam entrar em cena e sacudir, através de atitudes, as idéias

generalizadas e absolutas do pensamento ocidental estruturalista na confusão pós-

colonial. Os imigrantes do terceiro mundo ocupavam de forma crescente o primeiro

mundo, e vice-versa. Fluxo e refluxo compunham a história. (CLIFFORD, 2002)

A partir dali, o trabalho artístico passou a ser cada vez mais, o caminho por onde

minhas atitudes tinham espaço para transgredir rótulos nacionalistas. A dança ‘afro-

brasileira’ e o samba figuravam no papel de veículos dessa articulação de idéias que

3
Texto do site. humwww.ucsc.edu/Cult Studies/PUBS/Inscriptions/Vol_5/clifford.html
158

viajaram e sofreram uma interpenetração mútua com o novo território encontrado, e de

onde posteriormente surgiu entre outros segmentos, a ligação entre Xangô e o

Bugarabu, tarefa que procuro destrinchar nesta pesquisa. A princípio, as questões

trabalhadas envolviam os aspectos religiosos, artísticos, sociais e políticos da sociedade

brasileira, cuja cultura aparecia vestida de exotismo e subjugada ao invólucro da

imperiosidade das noções positivistas, determinantes e absolutistas do pensamento

ocidental. (CLIFFORD, 2002)

O tempo passou e de volta à Bahia, eu já entendera a importância do movimento

que James Clifford transmite convenientemente com seu pensamento crítico:

O tempo passaria, velhos impérios cairiam e outros novos tomariam


seus lugares, as relações entre países e as relações de classe tiveram
que mudar, antes de eu descobrir que não é a qualidade de bens e
utilidades que importa, mas movimento: não onde você está ou o que
você tem, mas de onde vem, para onde vai e o motivo porque você
busca estar lá. (Tradução minha) (CLIFFORD, 2002, p.17)

Esse movimento me levou a refletir sobre a complexidade das questões que

Clifford aponta e que surgem e ressurgem no decorrer das (trans)andanças da vida: De

onde venho? Para onde vou? E por que busco estar lá? As duas perguntas iniciais têm

sido tratadas em vários momentos do trajeto que induziu ao projeto desta pesquisa de

mestrado. O porquê de procurar estar em algum lugar, como por exemplo, no meio

universitário foi explicado anteriormente. Os motivos da escolha e da efetivação do

trabalho de campo no terreiro do Afonjá serão abordados na composição da etnografia

do fogo no presente capítulo, e cujo campo de investigação foi anunciado e será

contextualizado a seguir.

Esse terreiro é uma casa de Xangô, situada atualmente no bairro do Cabula em

Salvador, e está sob a liderança da ialorixá Mãe Stella de Oxossi. Ressalto que esta

composição etnográfica foi tecida por uma associação freqüente com a memória do
159

Bugarabu inscrita na vivência do meu corpo e transcriada nos movimentos que dele

brotam. O período de relevância para a observação e reflexão sobre a dança de Xangô

transcorreu como já dito, durante os anos de 2005 e 2006, com início no dia 28 de junho

e término no dia 11 de julho para a posterior criação do corpo desta escrita etnográfica,

uma escrita-dança.

A companheira, amiga e informante Dona Naná, em diferentes níveis

hierárquicos da crença que compõem esses rituais festivos, oportunizou uma

observação-participante, relações e inter-relações dentro do Afonjá que muito

contribuíram para uma constante autocrítica e auto-reflexão a respeito desta memória-

etnografia-encenação.

Para tanto, devo pontuar o trajeto da crença africana dos orixás que atravessou

mares, e se aportou fortemente no Brasil, predominantemente na Bahia, local onde foi

inaugurada a religião brasileira chamada candomblé e cuja história das primeiras casas

em Salvador revela a relevância do orixá Xangô, rei de Oyó 4na Nigéria. Xangô é o

orixá da guerra e da justiça, e por esta razão, pólo de resistência desde os tempos da

escravidão, período de desestruturação da economia na África, em que o negro era mais

um produto rentável. Daí aconteceu a resistência negra, representada pelos primeiros

terreiros que num pacto civil e religioso lutavam pela cidadania. Esse foi o tempo do

Candomblé da Barroquinha. Primeiro grande terreiro do Brasil, redefinido com a Casa

Branca no final do século XIX que, por sua vez foi ramificada no Terreiro do Gantois

de Mãe Menininha, e no Ilê Axé Opô Afonjá de Mãe Stella de Oxossi, todas elas, casas

de adoradores de Xangô. 5

4
Capital da nação Yorubá (nagô). Nome da primeira tribo descendente de Oduduwá. Fundada por
Oranian, filho de Okanbi e neto de Oduduwá (foi a primeira cidade fundada pessoalmente por Oduduwá),
passando a ser a capital política da Nação. (FONSECA, 1995, p. 502)
5
A força dos orixás, o culto ao vermelho centrado em Xangô, a flexibilidade necessária para resistir, tudo
isso o escravo bebeu na cultura de resistência do terreiro. Sob a liderança de Xangô, que empunha o seu
160

Cabe salientar aqui, o pensamento relacionado à tradição, modernidade e pós-

modernidade do artista plástico e antropólogo Renato da Silveira6:

Comecei a me aproximar da cultura afro-baiana como artista plástico.


Os artistas de influência pop sempre tenderam a imitar a vanguarda do
hemisfério norte, porque nossa cabeça é colonizada. Mas à medida
que fui amadurecendo, descobri que existe uma riqueza cultural aqui
que não é apenas folclórica, é uma cultura viva que dá respostas para a
modernidade e para a pós-modernidade também. Apesar de ter um pé
dentro da tradição, a cultura africana é muito adequada para pensar a
modernidade dentro de um contexto de crise da civilização ocidental,
que conduz o planeta para a destruição e tende a homogeneizar tudo.
(SILVEIRA, entrevista Folha da Bahia, 10/01/2007)

A partir de informações e avaliações sobre a história e fundamentos dos terreiros

constituí a metodologia da coleta e análise de dados, caracterizada por linhas de

pensamento voltadas à filosofia que dialogassem com as idéias de Mãe Stella, ou seja,

preservação e mudança. Como horizonte teórico e opções metodológicas mesclei a

vivência e a intuição com os aprendizados adquiridos em Etnografia e Estudos da

Performance e Pesquisa em Artes Cênicas. Por ora, anuncio os dois autores, Lüdke e

André (1986), que apresentam dois tipos de pesquisa qualitativa voltadas para a

educação: a etnográfica e o estudo de caso. Particularmente, nesta pesquisa de cunho

artístico em que a observação, a coleta de dados, as entrevistas e a análise documental

transitam entre as condições de sujeito-objeto, e por isso os métodos da etnografia e do

estudo de caso se embaralham. Seus pressupostos e etapas igualmente se embaralham,

no entanto, não se excluem, ao contrário, arriscam uma complementação mútua.

Sendo assim, a maleabilidade, a capacidade de travar diálogos entre elementos

antagônicos, a identificação de ambigüidades, a sensibilidade, a ética, a interação, a

paciência, a atenção, a perspicácia, a observação e a descoberta de algo novo,

oxé (machado duplo), ora inclinando-se para a paz, ora para a guerra, seguem os orixás o ritmo natural
das coisas. (TAVARES, 2002)
6
Autor do livro, O Candomblé da Barroquinha: processo de constituição do primeiro terreiro baiano de
Keto,lançado na Casa Branca, 10/01/2007. (SILVEIRA, 2007)
161

específico, cujo conhecimento não se engessará foram os pressupostos indispensáveis

da pesquisa.

A descrição, a interpretação do contexto, a narrativa mnemônica e a reflexão

crítica foram etapas sustentadas pelo caráter subjetivo de percepções, sensações e

intuições que permearam a análise crítica dos dados. Estes foram apoiados no campo

teórico para ampliar a própria visão e o conhecimento, dentro de um processo dinâmico

de confrontações que aguçaram a criatividade, estimulando assim, novas idéias e

noções. Em outras palavras, uma reavaliação, um repensar das idéias para dar um

‘salto’, expressão de André e Lüdke (1986), na tentativa de abstrair, conectar e dar

margem a novas interpretações e explorações não necessariamente definidas, mas que

abram novos elos de possibilidades.

A análise de dados qualitativos é um processo criativo que exige rigor


intelectual e muita dedicação. Não existe uma forma melhor e mais
correta. O que se exige é sistematização e coerência do esquema
escolhido com o que pretende o estudo. (PATTON apud LÜDKE;
ANDRÉ, 1980, p. 42)

5.2 Os Orixás atravessam o Atlântico

5.2.1 Mãe Stella de Oxossi narra o candomblé7 em Salvador.

Apesar de ter obtido diversas informações a respeito do surgimento do

Candomblé em Salvador, em bibliografias preciosas de antropólogos e historiadores

como: Vivaldo da Costa Lima, Fábio Lima, Waldeloir Rego, Pierre Verger, Ildásio

7
Candomblé termo usado para designar os grupos religiosos afro-brasileiros caracterizados por um
sistema de crença em divindades chamadas de santos ou orixás. (LIMA, 2003, p.17)
162

8
Tavares, Ruth Landes e Vera F.A. Campos, optei por oferecer a versão histórica

reflexiva na voz de Mãe Stella de Oxossi. A razão é que esta versão, afirma a presença

da oralidade nos ambientes desta religião até os dias de hoje. Trata-se de uma entrevista

contida em Expressões de Sabedoria – educação, vida e saberes, que a ialorixá da

comunidade religiosa do Ilê Axé Opô Afonjá, concedeu a Nelson De Lucca Pretto, autor

deste livro, além de professor e diretor da Faculdade de Educação da Universidade

Federal da Bahia.

A mulher tem primazia no Candomblé, porque é mais


charmosa!!! Mas principalmente aqui na Bahia essa primazia se
dá, porque o candomblé, essa crença, chegou aqui em Salvador
através de três senhoras negras, ex-escravas ou escravas, só sei
que eram africanas e que, depois da bendita Lei Áurea, elas
conseguiram ter a sua casa lá na Barroquinha. Elas abriram a sua
primeira casa de Axé numa ladeira que tem ali.
Ali o candomblé foi crescendo, o conjunto foi crescendo, e elas
tiveram que sair dali para outro lugar que se chama Vasco da
Gama. É onde está a Casa Branca atualmente. Nesse tempo, era
por causa, creio eu, daquele ‘machismo do africano’. O africano
sempre valorizou a mulher, porque a mulher na África é ‘livre’.
É ela quem sai, quem compra, quem mantém a casa, ela tem o
dinheiro dela, e ele tem o dinheiro dele.
Eu penso muito nisso, que as questões morais colocaram as
mulheres no lugar onde estão. Aquelas mulheres tinham um
senhor chamado Martiniano. Ele veio do Bonfim. Ele ajudou
elas a abrirem idéias para muitas coisas, porque ele andava pela
sociedade. Havia um outro o senhor Joaquim. Ele era um
babalaô, uma profissão só para homens. Antigamente eles
jogavam um negócio chamado Ifá. Somente homem pega. Isso é
para vocês verem como o ‘homem também já teve o tempo
dele’.
Mas, voltando às mulheres africanas, elas fizeram a casa e ali só
iniciava mulher, o porquê eu não sei. Depois de certo ponto, a
coisa quando cresce tende a expandir e atualmente não, as
8
Nesses livros versões diversificadas tratam sobre o candomblé assinalando a complexidade de sua
história caracterizada pelo cruzamento de culturas e pela resistência dos povos transatlânticos da
Diáspora: LIMA, Vivaldo da Costa. A Família de Santo nos Candomblés Jejes-Nagôs da Bahia.
Salvador, Corrupio, 1977; LIMA, Fábio. As quartas feiras de Xangô – ritual e cotidiano. Salvador: Ed.
UNEB, 2004; VERGER, Pierre Fatumbi; REGO, Waldeloir. Os Deuses Africanos no Candomblé da
Bahia. Salvador: Bigraf, 1993; TAVARES, Ildásio. Xangô. Rio de Janeiro: Pallas, 2002. LANDES, Ruth.
The City of Women. New York: Institute for the Study of Man, 1994. CAMPOS, Vera F.A. Mãe Stella de
Oxossi – perfil de uma liderança religiosa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2003.
163

pessoas vão, por livre e espontânea vontade, vão por vocação,


vão porque querem abrir as suas casas, mas antigamente uma
casa só era aberta, quando tinha um desafeto. Minha mãe não
me agradou por aquilo ou aquilo outro, eu vou e abro a minha
casa.
Foi o que aconteceu com a Casa Branca. As três senhoras
morreram, veio uma mais velha e ficou tomando conta. Quando
essa morreu, na hora da substituição, todo mundo queria ser mãe
de santo. Então aí teve a separação, uma saiu e a abriu a casa do
Gantois, outra saiu e foi abrir o Opô Afonjá, e ficou a velha lá.
Agora, lá continua só a iniciar mulher, na matriz onde é a Casa
Branca. Lá no Opô Afonjá inicia-se homem, como no Gantois
também.
Existem essas rachas no candomblé, mas é uma coisa que é para
engrandecer! Na sua casa, você faz os detalhes diferentes! O
número de homens para serem iniciados é menor por isso a
mulher tomou mais a frente. Existem casas aí ‘governadas’ por
homens também, mas a maioria é mulher mesmo. (STELLA
apud PRETTO, N.L.; SERPA. L.F.P. 2002, pp. 43,44) 9

O conceito de machismo de Mãe Stella é peculiar, pois indica a valorização da

mulher, relacionada a uma liberdade no sentido de ‘poder’ fazer, sair e comprar que, ao

mesmo tempo, acarreta a respectiva responsabilidade pelos seus atos e pela manipulação

do próprio dinheiro. Essas relações estreitas entre poder e dinheiro estão diretamente

relacionadas com uma questão política, ainda que dissimulada, mas que acaba por

conceder privilégios e responsabilidades, no caso às mulheres, instituidoras do

candomblé em Salvador, como revela Mãe Stella acima. O termo usado ‘governar’ um

candomblé já faz alusão ao seu aspecto político, assim como a uma realidade social

marcada por rastros e traços de uma monarquia, baseada numa hierarquia que concede

privilégios àquela que ‘governa’.

A história narrada por Mãe Stella denota sinais trazidos e aqui traduzidos da

tradição oral africana. A circulação desses sinais no meio da classe negra, oprimida e

marginalizada foi, e ainda é, um elemento de extrema importância, tanto para as lutas de

9
As aspas no decorrer do texto de Mãe Stella de Oxossi são pontuações que apontam para reflexões feitas
nos parágrafos seguintes.
164

resistência como para a transformação cultural das comunidades religiosas do

candomblé e da sociedade baiana.

No dia 19 de março de 1976, Mãe Stella de Oxossi foi escolhida para ‘governar’

o terreiro do Afonjá, ou seja, ser a ialorixá (mãe de santo) da casa. Desde então, ela tem

participado freqüentemente de seminários, encontros e conferências, no Brasil e no

exterior. Em 1981 foi para a Nigéria e em 1987 foi para Benin. Suas impressões sobre o

universo feminino além do influxo da tradição oral apresentam possíveis associações às

vivências e aos contatos diretos com a mulher africana em suas viagens para Nigéria e

para Benin.

Além destes aspectos, outras percepções proporcionadas por tais encontros e

outras vivências e convivências da ialorixá, denotam quem é Mãe Stella de Oxossi.

Uma mulher, uma liderança feminina de atuação expoente na comunidade religiosa do

candomblé baiano, ressaltada de forma perspicaz no livro de Vera Campos, de onde

busco algumas referências a seguir.

No livro intitulado, Mãe Stella de Oxossi - perfil de uma liderança religiosa,

Vera Campos levanta três atributos para descrever suas características que são:

estabilidade, flexibilidade e coragem. Campos expressa os atributos desta ialorixá pelas

seguintes palavras: “é o ofá (arco e flecha) de Oxossi, inteiro, forte e estável, ao mesmo

tempo flexível, sempre pronto a disparar a seta”. (CAMPOS, 2003, p. 39)

Considerei de suma importância trazer para o conteúdo de transculturalidade

dessa dissertação assuntos relacionados à mulher. Os assuntos femininos nas narrativas

de Mãe Stella vêm intermediados à negritude, à prática do candomblé e ao sincretismo,

pertinentes à pós-modernidade em que vivemos. Escolhi entre eles, um momento da

escrita expressiva de Mãe Stella, tirada do livro de sua autoria, Meu tempo é agora, para

demonstrar a maneira mágica e corajosa com que a ialorixá articula e transita entre
165

paradoxos, tais como: preservação e mudança. Como afirma Vera Campos, Mãe Stella

deixa bem explicitada nas palavras a seguir, essa relação entre estabilidade e

flexibilidade:

Religião é cultura. A religião estática perecerá. Daí a necessidade de


palestras, debates, viagens e outros movimentos que “sacudam” o
povo do candomblé. Como sinal dos tempos, não é mais possível a
prática da Crença Orixá sem reflexões, estudos e entrosamentos. Não
podemos ficar confinados no Axé. A tradição somente oral é difícil.
Os olorixás (filho de orixá, iniciado) têm que se alfabetizar, adquirir
instrução para não passar pelo dissabor de dizer sim à própria
sentença. (MÃE STELLA apud CAMPOS, 2002, p.42).

Campos ainda dispõe de algumas considerações em relação à postura de Mãe

Stella, como mulher e como líder de sua comunidade, que julguei pertinente e precioso

mencionar abaixo, pois suscita questões que ocorrem dentro de outras comunidades

religiosas, assim como se dilatam na sociedade externa à esta esfera:

Mãe Stella vê paradoxos e antinomias como labirintos: quando bem


equacionados, indicam a própria saída. (CAMPOS, 2002, p.43). E
ainda... Entender críticas e restrições, mesmo de seus filhos-de-santo,
como um direito do outro é uma atitude freqüente em seu cotidiano.
(CAMPOS, 2002, p.49). E mais... O resultado da estabilidade flexível
de Mãe Stella é a coragem enquanto mulher, líder, negra e Ialorixá.
Ficam bastante nítidas as marcas do caçador nas suas atitudes, em que
o arco é a estabilidade, a flexibilidade, e a flecha é a coragem, o pulo
no abismo. Uma vez disparada a flecha, há o salto de alegria de dizer:
“Iansã não é Santa Bárbara”. (CAMPOS, 2002, p.54).

É este o ponto de vista de Mãe Stella quando se refere ao sincretismo religioso

ocorrido a partir dos entrecruzamentos - em especial entre negros, brancos e índios - no

período da colonização do Brasil, sob o poder dos portugueses. Para ela o sincretismo

foi uma dissimulação propícia durante a escravidão que possibilitou a existência do

candomblé, uma crença de menos poder diante do catolicismo, num momento político

de manipulação do mais fraco que acabou se estendendo por anos. Uma atitude de
166

colocar a roupa do escravocrata para ser aceito, o que hoje se tornou um esforço

desnecessário. Atualmente, diz Mãe Stella, “os religiosos sabem que tanto para o santo

quanto para o orixá não existe barreira para a crença; então o diálogo e não o

sincretismo deve imperar”. (MÃE STELLA apud CAMPOS, 2002, p.59)

Uma evidência disso está no fato de que, atualmente, o diálogo entre religiões e

seus temas polêmicos é a própria razão da realização de encontros, debates, seminários


10
e conferências. A II Conferência de Intelectuais da África e da Diáspora,

recentemente realizada em Salvador, de 12 a 14 de julho de 2006, com a participação de

países africanos e da diáspora é um exemplo. Nessa conferência Mãe Stella de Oxossi

integrou a mesa do plenário, “Gênero e Igualdade na África e na Diáspora” marcando

sua presença e a de sua comunidade religiosa, o Terreiro do Ilê Axé Opô Afonjá.

Como já dito, o chamado Afonjá, foi o local de realização do trabalho de campo

desta etnografia. Para refletir sobre as pertinências da dança de Xangô no estudo e na

criação performática são necessárias, a permissão e a orientação da ialorixá Mãe Stella,

sob a benção de Xangô. E concordando com os fundamentos históricos e mitológicos da

religião, pedi licença à Mãe Stella para colocar nomes de pessoas e transcrever suas

palavras para a dissertação. Na elaboração da etnografia ainda durante o trabalho de

campo, considerei indispensável que sua abrangência se desdobrasse em três etapas:

contextualizar a história do terreiro, estudar os aspectos simbólicos e etimológicos do

Orixá do fogo e observar o ciclo de festas em homenagem a Xangô.

10
O presidente da Ilê Ifé University da Nigéria e professor da Universidade de Boston, Felix
Ayoh’Omidire, vive entre os Estados Unidos e a Nigéria e foi um dos membros da conferência referida
acima. Participou do painel “Religião, Arte e Cultura” em que eu estava presente. No debate final, a
primeira questão a ser levantada foi relacionada ao termo – intelectuais - presente no título da
conferência. O professor Félix argumentou que talvez a definição de intelectuais tivesse sido entendida de
forma resumida e restrita. No seu entender intelectual deveria ser considerado num sentido mais amplo,
como ‘inteligências’, despertadas tanto por experiências relacionadas aos estudos acadêmicos quanto aos
saberes da vivência religiosa e da tradição oral, ambas tão imbricadas na cultura e na arte africana. (II
Conferência de Intelectuais da África e da Diáspora, Painel Religião, Arte, e Cultura, Museu de Arte
Sacra da Bahia, Salvador, 13 de julho de 2006).
167

5.2.2 Mãe Stella de Oxossi conta a história do Afonjá 11

Ainda era ialaxé (cargo de zeladora dos axés) da Casa Branca


Maria Júlia Figueiredo, quando Aninha – Obá Biyi – completando sete
anos de iniciada, recebeu a ordem de ser mãe-de-santo, tendo como
primeira filha-de-santo Paula de Ogum, da própria Casa Branca. Com
a morte de Maria Júlia, assumiu Marcelina, surgindo divergências que
culminaram com o afastamento de um grupo liderado por Aninha. A
Ialorixá foi para a Rua do Camarão, numa roça no Rio Vermelho onde
funcionava o terreiro de Pai Joaquim – Obá Sanyà – Essa Oburo. Daí
Aninha foi para sua própria roça, no bairro do Nordeste, à Rua Santa
Cruz.
Embora houvesse a roça do Axé, Aninha fazia iniciação de
iaôs em sua residência, como foi o caso de Rosalina de Oxalá,
iniciada na Rua dos Capitães. Em 1903 ela já morava à Rua
Corriachito, onde iniciou mais duas iaôs: Salu de Airá e Maria das
Dores de Oxossi. Mudou-se então para a Ladeira da Praça, onde foi
iniciada Mãe Senhora – Oxum Müyiwa – e mais cinco outras, no dia
cinco de novembro de 1907.
Já residindo no Pelourinho, no nº 77, com a inspiração de
Xangô e Iemanjá comprou a roça do nosso Axé, em 1909,
inaugurando-o com a iniciação de Agripina de Xangô Aganju. Deu ao
Axé, numa escolha inteligente, o nome de Ilê Axé Opô Afonjá, cujo
significado é “Casa de força sustentada por Afonjá”.
Aninha esteve à frente de seu Axé com muita dignidade até o
dia 3 de janeiro de 1938. Com o seu falecimento, por pouco espaço de
tempo reinou Mãe Bada, de 1939 a 1941, substituída por Mãe Senhora
em 1942. Com o falecimento de Mãe Senhora em 1967, foi sua
sucessora Mãe Ondina, que guiou o destino do Axé de 1969 a 1975.
Ela faleceu e um ano depois me foi confiada pelos orixás a
continuidade e a preservação deste Axé, que eu, Maria Stella de
Azevedo Santos, passei a dirigir no dia 17 de junho de 1976.
(CAMPOS, 2002, pp.72,73).

11
Existem muitas referências bibliográficas que tratam do assunto, contudo, uma vez mais optei pela voz
de Mãe Stella.
168

Ilustração 19- (a) Mãe Aninha, primeira Ialorixá do Ilê Axé Opô Afonjá em 1909 (b) Mãe Stella
de Oxossi, atual Ialorixá deste Terreiro. Foto do site do Ilê Axé Opô Afonjá

5.2.3 Xangô, o orixá do fogo.

Segundo Mãe Stella, orixá é força vital e corresponde aos elementos da natureza:

água, terra, fogo e ar. O corpo é um templo para quem faz parte do candomblé, pois

somos formados por partículas desses elementos e logo, por correspondência, temos

incutido em nós todos os orixás, independente da nossa crença, raça ou condição social.

Palavras da ialorixá: “O fogo é a vida por excelência. Está presente em nossa

temperatura e nas nossas emoções. Esse calor, esse fogo é representado pelo orixá

Xangô”. (PRETTO, 2002, p. 28)

“Xangô, na etimologia iorubá deriva de Shan (bater com violência) e go

(desconcertar)”. (LIMA, 2004, p. 27) E para Ildásio Tavares, no capítulo III – “O nome

que não se nomeia” - do livro intitulado Xangô, “‘Xan’ é crepitar, raiar, coriscar”.
169

Tavares acrescenta que o nome de Xangô é um oriki, uma saudação, ou um oyê, um

título, e alude a presença do “ô” na última sílaba a um suposto entrelaçamento com awô

(segredo). Na nação jeje, seu nome é Bádê ou Sobô; na nação angola, Luango ou

Unzaze; e na nação de caboclo recebe o mesmo nome de Xangô. Xangô às vezes é

saudado como iná, o fogo, embora essa denominação seja mais utilizada para Exu.

(TAVARES, 2002 pp. 40, 41, 42) Tavares ainda pontua:

As características deste orixá variam muito pouco, principalmente na


associação básica do Obá Iná, rei do fogo, à energia desprendida pelo
raio e concentrada na pedra do raio, metais em fusão no solo, onde o
raio cai, e que se solidificaram formando uma pedra em quase sua
totalidade de ferro, portanto com um potente campo magnético.
(TAVARES, 2002, pp. 41,42)

A afirmação do elemento metafórico fogo na mitologia referente a Xangô

assegura uma análise comparativa com a memória do Bugarabu, dissertada no capítulo

anterior. Em minha percepção dançante, objetivei Xangô como personagem mito-

histórico, que, segundo a lenda, no livro Os Deuses Africanos no Candomblé da Bahia,

Verger e Rego narram:

[...] Xangô teria sido o terceiro Alafin Oyo, rei (Senhor do


Palácio) de Oyo. Ele era filho de Oranmiyan e de Torossi, esta filha de
Elempe, rei dos Tapa, que tinha firmado uma aliança com Oranmiyan.
Xangô cresceu no país de sua mãe, indo se instalar, mais tarde, em
Kosô, onde os habitantes não o aceitaram, por causa de seu caráter
violento e imperioso. Mas ele conseguiu, finalmente, impor-se pela
força. Em seguida, acompanhado pelo seu povo, dirigiu-se para Oyo,
onde estabeleceu um bairro que recebeu o nome de Kosô. Conservou,
assim, seu título de Oba Kosô, que, com o passar do tempo, veio a
fazer parte de seus Orikis (louvores). (VERGER e REGO, 1993, pp.
221)

Verger e Rego continuam com a descendência de Xangô:

[...] Xangô, sob seu aspecto divino, é filho de Oranmiyan, tendo


Yamassé como mãe e sendo marido de três divindades: Oyá, Oxum e
170

Oba, que se tornaram rios no país Yoruba. [...] Na Bahia, segundo


consta, existem doze Xangôs: (Dada, Oba Afonjá, Obalubé, Ogodô,
Oba Kosô, Jakuta, Aganju, Baru, Oranmiyan, Airá Intilé, Airá
Igbonan e Airá Adjaosi). (VERGER e REGO, 1993, pp. 221)

Ainda sobre a dança e o ritmo:

São ritmos vivos e guerreiros, [batidos para Xangô] chamados


Tonibobé e Alujá, e são acompanhados pelo ruído dos xerês,12
agitados em uníssono. No decurso de suas danças, Xangô brande
orgulhosamente seu machado duplo e assim que a cadência se acelera
ele faz o gesto de quem vai pegar num saco Labá, pedras de raio e
lançá-las sobre a terra. O simbolismo de sua dança deixa, a seguir,
aparecer seu lado licencioso e atrevido. No decorrer de certas festas,
Xangô aparece frente à assistência, trazendo sobre a cabeça um Agerê,
panela cheia de furos contendo fogo, e começa a engolir mechas de
algodão inflamadas, denominadas de Akará, como na África.
(VERGER e REGO, 1993, p. 222)

Para tratar dos elementos que envolvem o Orixá Xangô parti do seu caráter

simbólico do fogo que ressoa nas ferramentas, nos instrumentos e no ritmo do alujá,

especificidades desta divindade expressas nos rituais e na manifestação da sua dança.

Os elementos simbólicos de Xangô são: a coroa para expressar a realeza assim

como o universo dinâmico e o oxé, machado duplo, originalmente feito com duas

pedras rituais. Tavares esmiúça a simbologia do oxé de Xangô, e além do símbolo do

poder sobre o raio e o trovão que este lhe confere, o autor o aponta como “a resolução,

a conciliação das polaridades como guerra x paz, masculino x feminino, bem x mal. [...]

O oxé corta para condenar e corta para absolver, exprime as ambivalências e oscilações

do julgamento”. (TAVARES, 2002, p. 105) Xangô, orixá da justiça, entre outros, tem

12
Xeré é uma ferramenta de Xangô segurada somente pelas mãos da ialorixá ou pelos obás da direita.
Opto uma vez mais por transcrever literalmente, algumas noções e explicações de Tavares por considerar
que o corpo de sua escritura é um eco de sua voz peculiar: [Os xerés] “são feitos de cobre, compostos de
um cabo que se alonga para terminar num formato quase esférico, bojudo. [...] Esta é uma ferramenta de
muita responsabilidade porque, ao brandi-la chocalhando, presumidamente se presentifica Xangô;
incrementa-se sua energia e um orixá não deve ser presentificado [...] à toa”. (TAVARES, 2002, pp.106,
107)
171

um oxé em formato de chifres de carneiro, seu animal sagrado, onde Tavares, por meio

da simbologia zodiacal, o conecta com o sol, fonte de calor. Em interpenetrações

interessantes Ildásio Tavares relaciona a constelação de Áries, o carneiro, com seu

oposto complementar de Libra, a balança, símbolo da justiça, aqui representado pelo

oxé. (TAVARES, 2002, p.106)

Outras vozes falam sobre o Oxé de Xangô. Segundo Marco Aurélio de Oliveira

Luz, “seu formato geométrico é o de dois triângulos que se desprendem de uma haste e

em movimento irradia axé de fertilidade e espalha filhos para todos os quatro cantos do

mundo”. (LUZ apud LIMA, 2004, p.50) Os oxés muitas vezes são representados pelo

machado duplo na forma de escultura que, de acordo com a estética africana,

caracterizam a expressão litúrgica da tradição dos orixás para exaltar o sagrado. Neles

são gravados traços que indicam a presença do Orixá Exu, “elemento dinâmico

imprescindível à existência de todos os seres, naturais e sobrenaturais”. (LIMA 2004, p.

50).

Xangô, um guerreiro, também é celebrado com o ritmo quente do alujá.

“Xangô dança despedindo raios”. (TAVARES, 2002, p.90). “Entre os ritmos e as

danças ‘mais movimentadas destaca-se a valsa dobrada do alujá de Xangô toda

quebrada pelo improviso do rum em 6 x 8”. (TAVARES, 2002, p. 93)

Vale salientar que o leque de ritmos no candomblé, é vasto e complexo, sendo

um ou mais toques dedicados a cada orixá. Nas três nações Angola, Jeje e Ketu13 (nação

de candomblé do Afonjá) os toques apresentam variações. Há toques que vários orixás

comungam, a exemplo dos corridos: o adarrum e a avania que é um toque de saída; o

ilu ou ‘quebra pratos’, toque de Iansã; o opanijé de Omolu; o igbi de Oxalá; o aguerê de

13
No processo aculturativo da religião na Bahia, as nações de santo ou nação do candomblé - como
explica Vivaldo da Costa Lima (2003, p.28) - se dividiram em Angola, Jeje e Ketu. Conforme Campos,
Ketu ou Queto: “antigo reino iorubá, localizado na atual República de Benin. (Os antigos reinos iorubas
hoje correspondem à Nigéria, Benin e Togo. As principais casas tradicionais do candomblé da Bahia têm
sua origem em Ketu.)” (CAMPOS, 2003, P. 89)
172

Oxossi; o ijexá de Oxalá, mas também pega para Oxum, Iemanjá e secundariamente

para qualquer outro orixá. Dado a esta extrema complexidade polirrítmica, os toques do

candomblé ainda não foram catalogados. Musicólogos já tentaram arduamente escrever

sobre o tambor chamado rum que na improvisação não tem uma frase de repetição

padrão, mas nada conseguiram. (TAVARES, 2002)

Para dar prosseguimento à estratégia escolhida de trazer vozes distintas para o

texto, com o intuito de instigar nesse estudo uma análise crítica e reflexiva, optei por

discorrer sobre a lenda do fogo em duas versões. A primeira é quando Ildásio Tavares

dá a palavra a Mestre Didi para narrar sobre a lenda do fogo depois de contar no livro

Xangô que: Iansã - mulher, amiga, protetora e cúmplice - foi a última esposa de Xangô.

E ainda, foi ela quem trouxe o fogo e o deu a Xangô que se tornou o rei do fogo, Oba

Iná, como já dito.

Tropas sublevadas ameaçavam o palácio de Xangô quando Oiá, com a


velocidade do vento, foi em busca de um efun, um pó que, posto na
língua daria a quem pusesse o poder de expelir fogo pela boca. No
caminho de volta com o efun em seu poder, ela, curiosa como toda
mulher, pôs uma pitada na boca, e quando falou, saiu fogo. Mais que
depressa ela foi ao palácio e lá, receosa da reação do rei, fez com que
ele abrisse e ela mesma pôs o pó dentro. As tropas rebeldes se
aproximavam, o rei foi à sacada, encarou os rebeldes e gritou Emi
Xangô Obá Iná (Eu sou Xangô rei do fogo). Quando ele disse isso,
saiu uma imensa labareda de sua boca e varreu a vanguarda da tropa,
que espavorida, fugiu. (MESTRE DID apud TAVARES, 2002, pp.
78,79)

Iansã é a mulher de Xangô que mais se afina com ele, a rainha dos ventos atiça o

fogo. Compartilham o axé do raio e do trovão nas tempestades. Para contrabalançar o

axé de vida de Xangô, Iansã é a mãe dos espíritos, dos nove eguns. E para

complementar, Oxum - a divindade das águas doces - é a grande paixão de Xangô.

Juntas, Iansã e Oxum experimentam as polaridades do fogo e da água: “a água é que

apaga o fogo, mas se o fogo é forte a água ferve e evapora”. (TAVARES, 2002, p. 80)
173

A segunda versão da lenda do fogo é do texto recriado por Dona Naná para ser

encenado, segundo seus conhecimentos baseados em livros e na tradição oral:

... II cena – Abre-se as cortinas


Olufiran sai obstinado pelos caminhos de grandes árvores da floresta
em direção ao centro da cidade, fustiga o cavalo. Tem pressa, pois o
caminho é longo. O tempo fecha. (Cai a luz, ouve-se o ronco do
trovão e relâmpagos). Vem um raio em sua direção: raios prateados e
vermelhos espalhavam-se pelo seu corpo, o cavalo joga-o no chão,
Olufiran arregala os olhos (ajoelhado no meio do palco) e grita
Olorun! Baa mi o! (meu Deus me valha!) Prostrado no solo com os
braços estendidos, notou que não havia se queimado! Acalma-se, a
tempestade havia passado (o palco vai clareando e ouve-se um som
de alujá baixinho). Olufiran estremeceu, viu uma pedra de raio em
sua frente, era um Odun-Ara, (pedra do raio) pegou-a estava quente
elevou-a aos céus e aos quatro cantos da terra e gritava: Emi Omo
Xangô (eu sou o filho do fogo). Olufiran não lembrou mais do festival
e fez o caminho de casa. Encontrou seu cavalo e partiu.....
Olufiran – ajoelha-se. Minha, minha rainha, veja o que eu encontrei!
Um odun-ara!
Oba Torossi – (tomada de grande emoção) A rainha entre excitação
e alegria. Um odun-ara. Meu filho, você recebeu as bênçãos dos céus.
Olorun enviou através dos raios a sua benção! Não vê filho, você não
se queimou! Olufiran o fogo é seu elemento.
Olufiran - Sim mãe, eu agora acredito nisso. Graças a Olorun o fogo
não me causou danos.
Oba Torossi – Sim meu príncipe, o fogo é a sua força, é a força que
você tem nas mãos, a pedra do raio, e será para sempre o símbolo do
seu encontro com a divindade... (Dona Naná, texto não publicado)

Para finalizar os aspectos etimológicos, mitológicos e simbólicos do orixá do

fogo, bebi na fonte das palavras de Tavares (2002), quinto capítulo, “O caminho dos

símbolos”: Xangô, chefe do vermelho, rei de Oyó, rei do fogo, é um símbolo solar, um

símbolo da vida, de erotismo, e sensualidade, presidindo o amor, e odiando a morte.

Xangô é o fogo da justiça, do equilíbrio, da resolução da polaridade, por isso ele é

vermelho e branco. Xangô é vida, fartura e festa.

Na terceira etapa da etnografia, parti para a análise do ciclo das festas de Xangô,

oportunidade para observar, assistir às danças e perceber que a festa é entendida na

lógica do cotidiano do candomblé, faz parte do dia a dia do terreiro. Além disso, a festa
174

é um evento expressivo e performático que envolve atores e platéia. Os rituais

cotidianos são expressos, dramatizados e revividas por meio de uma gestualidade, uma

musicalidade e uma corporalidade específicos da crença, conferindo-lhes um caráter

distinto da vida social fora do terreiro. A festa inscreve reconstruções simbólicas da

África que operam dentro da memória coletiva passada pela tradição oral. Ao mesmo

tempo em que é uma dramatização dos mitos é também uma celebração da vida, dos

habitantes desse mundo e os do mundo dos Orixás, dos Caboclos e dos Eguns (espíritos

mortos).

Com o objetivo de descrever e refletir sobre a corporalidade de Xangô nas

cercanias que influenciam a percepção de sua dança, no instante efêmero das festas, eu

não pude deixar de citar Lepécki ao confrontar com as tensões geradas entre o

movimento adquirido e o observado, e a criação dessa escrita:

Os espaços de fricção constituídos pelas incansáveis tensões


entre corpo e texto, e, movimento e linguagem indicam precisamente
uma contigüidade sem limites entre dança, escrita e feminilidade.
(LEPECKI, 2004, p. 124). Poderia alguém separar os fios que atam
uma tríade tão poderosa sem trair os conhecimentos básicos através do
qual cada um de seus elementos se apóia? Para responder a essa
questão absurda, é necessário traçar a história dos interstícios,
constante inscrição de escrita, dança e feminilidade uma sobre a outra.
Para isso, é entre as dobras, fendas, fissuras, que tal inscrição contínua
grava, que a dança marca sua aparição e acha sua presença através dos
seus mais íntimos cúmplices: escrita e feminilidade. (LEPECKI, 2004,
pp. 125. Tradução minha)

5.3 Tríade: Dança, Escrita e Feminilidade trazem a memória e a

vivência do fogo

O tempo passa... Deixa cenas e contracenas desenhadas na memória... E como

elas refletem na nossa feição, na nossa maneira de ser e de querer viver?... E assim ficou
175

uma fantasia geradora de outras, um sonho que se tornou um chamariz, transformando-

se mais tarde no fogo de Xangô e do Bugarabu.

Na Bahia, eu identifiquei o calor necessário para gerar o impulso de se jogar na

roda. Uma sensação de: centelha, chama, fagulha, brasa, fogueira, fogo. Obviamente

que a transparência desse fogo ganhou identificação com Xangô no decorrer do tempo.

As inúmeras repetições da mesma sensação confirmaram a relação do orixá da justiça

com o Bugarabu. Paralelo a essa identificação, eu era movida por um intenso interesse

pelos movimentos das danças dos orixás. A cada vez que o corpo aquecia, os

prenúncios do fogo de Xangô volviam minha memória corpo-sensorial ao referido solo

de balé da infância com a música de Chopin, Noturno.

No candomblé do Portão, em Salvador, adquiri mais intimidade com o corpo

dançante, com a energia do dançarino e com o ‘corpo dilatado’ do Orixá, já explicado

anteriormente, uma dilatação dos sentidos. A reflexão mais pungente que permeou

meus pensamentos, a respeito das experiências com essas danças girou em torno do

lugar de onde eu observo tais experiências e do lugar que eu ocupo dentro delas a fim de

inscrevê-las na performance desse fogo transatlântico. Como um dos seus elementos

básicos, este projeto de pesquisa experimentou uma escrita, um exercício etnográfico e

uma encenação que tem como propósito dar corpo e voz às percepções, enquanto

escrevo, no papel e no espaço.

O tratado, “Maya Deren: A Portrait of the Artist as Etnographer”, que

J.DeBouzek faz em - Women & Performance, Journal of Feminist Theory - traz noções

determinantes que instigaram reflexões pontuais para ocasionar um diálogo entre os

enfoques que Maya Deren (1953) e Barbara Browning (1998) apresentam em suas

escritas feministas etnográficas como artistas e etnógrafas, observadoras e observadas,

aprendizes e participantes, no Haiti e no Brasil. Este fato disponibiliza o entendimento


176

de uma autoconsciência crítica e questionamento da representação etnográfica no

sentido de desconstruir uma autoridade, indo além das fronteiras de um sistema

dominador. Ao contrário, democratizei esta escrita dando voz a muitas vozes, a muitos

pontos de vista em meu discurso. Trouxe por ora, duas reflexões inquietantes

identificáveis a esta pesquisa, relacionados à escrita, à performance e à escrita da

performance:

A primeira reflexão se deu quando J.DeBouzek apresentou a luta de Deren

consigo mesma, sobre qual posição ela deveria ocupar no seu texto, ao documentar o

simbolismo ritual do vodun haitiano e sua própria incorporação, no último capítulo de

Divine Horsemen intitulado, “The White Darkness”. Papel de artista ou etnógrafa,

observadora ou observada, aprendiz ou participante? Salienta que esta é uma luta bem

conhecida entre escritoras feministas na procura de sua própria voz, ou seja, desafiar a

convenção e participar da experiência, participar da escrita. Optei por perpassar essas

vozes e pedir ao leitor para responder ao texto, para que a escrita dialogue com quem lê,

para que ambas ecoem vozes no instante em que ela, a leitura, acaba. (DEREN, 1953;

DEREN apud DeBOUZEK ,1992)

A segunda reflexão é quando Browning define coreografia como a escrita da

dança, ao mesmo tempo em que, identifica a contradição existente entre a efemeridade

da dança e a permanência da escrita indagando: “Já que podemos ler a dança, como é

possível escrevê-la?” (BROWNING, 1995, p.35).

Depois de perceber progressivamente a centelha no solo Noturno, o impulso do

corpo dilatado na roda com Rosângela, rememorizo e presentifico a festa em Banjulding

quando dancei o Bugarabu em sua atmosfera ambiente de fogo, para pensar sobre o

enlace inevitável entre o movimento e a linguagem e por isso reescrevo:


177

A dança atravessa fronteiras espaciais e temporais e

me traz outros momentos de volta, como se eu os

sentisse todos, em uníssono na mesma entonação dos

claps. Uma sensação de eterno enquanto dura. Ao

terminar aquele último movimento que junto ao som

do Bugarabu ressoa no ar, ouço: You can dance!

Faço aqui uma comparação entre meu processo de pesquisa e as noções de

Deren sobre seu método etnográfico, no tratado de DeBouzek. Minha participação ativa

nessa experiência foi anterior à preocupação com a escrita, mesmo tendo produzido um

diário da viagem à Gâmbia. Quer reflita sob os parâmetros da antropologia

convencional do método etnográfico, ou deixe à luz dos que decidiram extrapolar os

limites no estudo e na composição etnográfica, e, portanto, se desengajaram da

objetividade distanciada da ciência, assumindo o papel de participante ativo subjetivo.

Em outras palavras, nesse processo de pesquisa que conta com uma memória e um

posterior pertencimento, a intenção de participar estava desvinculada à intenção de

construir uma etnografia, seu propósito era a vivência, a experiência de dançar, naquele

momento e naquele lugar, o Bugarabu em Gâmbia. (DEBOUZEK, p.10).

Disse Fernando Passos na aula de Seminários Avançados I, dia 08 de junho de

2006 no PPGAC: “a dança só acontece porque desaparece, se ficasse se tornaria uma

escultura, um quadro, uma arquitetura, etc”. Baseada nesse pensamento que abrange

uma abordagem subjetiva, arrisquei escrever essa etnografia de artista sobre o ciclo das

festas de Xangô no Afonjá, uma aprendiz a cada momento.


178

5.4 Xangô - Pesquisa de Campo no Ilê Axé Opô Afonjá

A observação do ritual e da dança de Xangô no trabalho de campo suscitou

estados emocionais guardados na memória a serem utilizados na elaboração da escrita

performativa e na concepção coreográfica.

Uma atividade que engendrou o surrealismo e a alegoria etnográfica proposta

por James Clifford (1994), e a subjetividade de artista, de acordo com Maya Deren e

Barbara Browning e Sally Ann Ness que entre outros aspectos fala da experiência ao

vivo:

O que não está perdido é uma variedade de memórias da experiência


ao vivo que irão permanecer parcialmente incorporadas precisamente
porque elas nunca serão alcançadas pela escrita. (NESS, 2001, p.82)

O surrealismo etnográfico e a etnografia surrealista propostos por Clifford,

misturam e zombam das definições institucionais de arte e ciência. Além disso, eles

questionam o papel central do “artista” criativo, um papel bem diferente do analista

cultural, interessado em montar e desmontar os códigos e convenções comuns. O

surrealismo unido à etnografia retoma sua antiga vocação de política cultural crítica. A

etnografia mesclada de surrealismo emerge como a teoria e a prática da justaposição.

Ela estuda, ao mesmo tempo em que é parte da invenção e da interrupção de totalidades

significativas em trabalhos de importação-exportação cultural. (CLIFFORD, 1994)

Como uma característica complementar ao surrealismo etnográfico é como vejo

a etnografia alegórica. Ela concede à performance uma estrutura difusa revelando: uma

natureza poética, metafórica; um caráter narrativo; a noção do outro; é dedutiva,

retórica; traz vozes no texto; traz duplo sentido.


179

Em meio a tantos textos, reflexões, noções e considerações, digo que refletir

sobre uma etnografia cujo corpo alegórico se manifesta por meio de uma escrita

performativa, é igualmente um trânsito do qual ressurge a sensação de fogo. Com essa

sensação, meus dedos e todo o meu corpo dançariam horas e horas no papel, como foi e

têm sido com o Bugarabu e com o Xangô, especialmente durante as festas de Xangô no

Afonjá. Sem falar de outros terreiros, quando ouço o alujá de Xangô, e uma fogueira

interna acende e se espalha pelo corpo.

Percebo essa sensação de fogo quando ouço o referido ritmo do alujá como uma

condição análoga ao processo vertiginoso de incorporação Maya Deren, no que se refere

à percepção dessa atmosfera como uma experimentação de uma cadência

transcendental, que ultrapassa fronteiras. Deren descreve habilidosamente tal sensação:

O compromisso de alguém ali, não é com os dançarinos nem com os


percussionistas, mas uma cadência cuja autoridade transcende todas
essas criaturas e as une dessa forma. O todo não é uma soma de suas
partes: não servimos um ao outro, mas servimos em comum, o que
compreende todos. (Tradução minha) (DEREN, 1953, p. 257, 258)

5.4.1 Dia 25/06/05 - O encontro com Dona Detinha no Ilê Axé Opô Afonjá

Para ‘esquentar’ a mão e o pensamento, focarei a primeira visita de campo, o

primeiro impasse, algo entre: não saber o que fazer, o que falar, como agir, sensações

embaraçosas e inebriantes que caracterizam os primeiros encontros.

Com a amiga e colega de mestrado Nadir Nóbrega, conheci Mãe Detinha, uma

filha de Xangô do terreiro do Afonjá. Depois de marcarmos um encontro pelo telefone,

eis que chego lá no dia 25 de maio de 2005, às 10 horas. Uma manhã de quarta-feira,
180

dia dedicado a Xangô e quando se faz uma oferenda a Ele, o amalá, uma comida feita

de quiabo temperado com cebola, camarão seco e azeite de dendê. (LIMA, 2004).

Estaciono o carro. Quando piso naquele terreno experimento uma

sensação de retorno ao passado, pois este foi o primeiro terreiro de

candomblé que visitei, no início da década de oitenta numa festa de

Iansã. Lembro da primeira advertência que a amiga Fafá fez, quando

eu perguntava alguma coisa: “Fique calada e preste atenção”. Agora eu posso

tranqüilamente prestar atenção, mas como ficar calada diante de uma

‘entrevista’, motivo da visita ao terreiro do Afonjá? Bom, uma situação

de torpor, desafiadora e encantadora.

Entre outras atividades, funciona nessa “comunidade” - eu ouso

chamar - a Escola Municipal Eugênia Ana dos Santos, nome da

fundadora do Afonjá. Está na hora do recreio e as crianças

uniformizadas com calça azul e blusa branca correm e brincam no

pátio. À esquerda da entrada, entre a casa de Xangô e a escola fica o

barracão das festas e de outras atividades como o Alaiandê Xirê, um

encontro de alabês (músicos) que participei em 2003, 2004 e 2005, e ao

lado fica a casa do Alaká, um ateliê de tecelagem artesanal de pano-da-

costa.

À direita da casa de Xangô ficam os outros Ilê-Orixás (casas das

divindades). Além das casas dos santos, a roça é composta de um museu,

uma lanchonete e logo embaixo da casa do ‘senhor da casa’, como disse

Marília, uma filha de santo, a biblioteca. Várias famílias da

comunidade moram em casas construídas dentro do grande terreno da

roça do Afonjá.
181

Ilustração 20 - (a) Casa de Xangô e; (b) Barracão de festas do Ilê Axé Opô Afonjá Foto do site
http://www.geocities.com/Athens/Acropolis/1322/

É uma manhã ensolarada. Por entre os reflexos das luzes do sol e

das sombras das árvores está a cadeira de dona Detinha. Não, ainda

não a vi. Pergunto para uma das integrantes da casa na varanda da

casa de Xangô onde está ela. Elas dizem: “ao lado do carrapicho (nome da

folha de Oxossi) descansando”. Chego ao local. Um rapaz diz que ela já

volta e oferece a cadeira ao seu lado para eu sentar. Alguém grita:

Sandra! Sinto um aperto. Olho e vejo uma mulher vestida de vermelho e


verde atender, um tecido parecido com os africanos que tenho. Depois

venho a saber que ela é uma das filhas de dona Detinha. De qualquer

forma, ouvir meu nome diante daquela situação inusitada dá uma

sensação de estar em casa. Inclusive assenta meus pensamentos,


182

indagações, como: Peço para escrever? Pergunto se posso? Presto

atenção e escrevo depois?14

Nesse intervalo de tempo, o rapaz aponta a rapidez do vôo de um

pássaro em direção a uma caça no topo de uma árvore. Sandra conta

que seu cachorro está com problema na orelha, otite e logo já fala que

vai preparar um banho de folhas para um moço e seus amigos. Pessoas

de branco em sua maioria, alguns da casa, outros visitantes transitam

para lá e para cá à espera do momento de fazer a oferenda para Xangô.

Dona Detinha se aproxima com toda a tranqüilidade que a

sabedoria transparece no seu semblante. Ela está sem torso (ojá) na

cabeça, mostrando seu cabelo grisalho e curto. Meu coração acelera e

esquenta. Cumprimentamos uma a outra e sentamos nas cadeiras. O

moço se afastou e ela está na sombra como mencionei anteriormente.

Internamente, decido conversar e registrar na memória para

transcrever depois, fazendo somente algumas anotações após pedir

permissão a ela. Tenho uma sensação de conforto a partir dessa decisão

de viver a situação para posteriormente reproduzi-la. Tinha sido assim

na África, na Holanda... 15

14
Um ano depois faço uma reflexão! Estabelecer contato com as teorias atuais voltadas para a questão
qualitativa da investigação, ao contrário das pesquisas quantitativas dos métodos convencionais foi uma
preparação para sentir a temperatura e o desenrolar da interação entre Dona Detinha e eu, naquele
primeiro momento. Pisar devagar naquele universo cheio de mistérios e segredos do candomblé foi a
atitude mais importante que tomei para conseguir me aproximar de Mãe Stella e ser tão bem recebida e
aceita com o meu trabalho. A convivência com os parâmetros culturais e com o universo artístico da
música e dança de Gâmbia e do Senegal, relacionadas com as noções teóricas mencionadas a seguir,
deram um tom de complementaridade para uma atitude perspicaz no Afonjá. Alguns dos exemplos são: o
paradigma da complexidade do pensamento humano (MORIN, 1990); a escuta sensível que se apóia
sobre a totalidade complexa da pessoa: os cinco sentidos (BARBIER, 2002); o pensamento compreensivo
de Maffesoli a partir de uma sociologia do lado de dentro, ou seja, uma sociologia compreensiva, cuja
intuição permita uma pesquisa mais exaustiva e uma visão mais profunda acerca do fenômeno a ser
estudado. Onde o pesquisador não está à parte, mas é parte interna do fenômeno. (MAFFESOLI, 1988).
15
Algumas idéias-força a respeito da abordagem qualitativa de Lüdke e André para a pesquisa
etnográfica, são compatíveis ao comportamento referido nesse parágrafo, durante esse primeiro encontro
com Dona Detinha e com aspectos da pesquisa como um todo: 1º Contato direto com o objeto com
descrição dos dados e cuja análise se dá sob um processo indutivo; 2º Etnografia – pesquisadora maleável
na busca de suas hipóteses, apto na seleção de dados e na maneira de consegui-los, com a capacidade de
travar diálogos entre elementos antagônicos; 3º Observação: o “que” e “como” observar, refletir sobre as
experiências pessoais, captar a visão do sujeito, comparar dados para a compreensão da realidade.
Consciência de que o conhecimento não se engessará; 4º Entrevista: interação, liberdade de percurso,
respeito à cultura e valores do entrevistado, paciência, atenção, perspicácia na captação não verbal; 5º
Análise documental: doses necessárias de percepções, sensações e intuições, que caracterizam seu aspecto
subjetivo como fundamental. (LÜDKE e ANDRÉ, 1986)
183

Mais uma interrupção! Devo encontrar outra forma de

denominar essas ocasiões, pois são momentos ambíguos que se instauram

como uma descontinuidade contínua e não como quebra.

Descontinuidade que dá tempo e espaço para sentir, interligar, pensar,

suspirar, observar, deixar penetrar...

Um senhor se aproxima com três contas brancas de Oxalá, três

jovens e um pote com água e ervas e pede à dona Detinha para lavá-las

e colocá-las no pescoço delas. Contas são os colares nas cores de cada

Orixá. A pedido de dona Detinha, ele escolhe qual conta e a ordem de

entrega. Ela lava a conta e abençoando-as, coloca uma a uma nas moças

agachadas.

Instantes depois, nós conversamos sobre o que é rezar. Falo da

religião espírita da minha família mato-grossense, ela diz reconhecer os

traços indígenas dessa descendência e pergunta: “O que você quer saber

minha filha”?
Eu explico a proposta da minha pesquisa: uma auto-reflexão e

análise crítica da memória e transcriação da dança do Bugarabu

vividas na Holanda, em Gâmbia e no Senegal, e da atividade

etnográfica sobre a dança de Xangô, onde o fogo e a transculturalidade

são as expressões fundantes do estudo.

E acrescento: eu prefiro deixar a conversa fluir e, portanto, não

preparei um questionário para esse encontro. Dona Detinha sugere: “a

melhor forma é comparecer ao ciclo das festas de Xangô e observar”. Lembro-me da


primeira vez que ali estive e ouvi o mesmo com Fafá. A compreensão do

que vem a ser a “observação” se dilata. Observar está na pesquisa, nos

fundamentos do Candomblé, no entendimento dos princípios da

Antropologia Teatral. Meu pensamento dá saltos: No convívio com os

africanos isso ficara relevante também. Entre seus tranqüilos gestos e

fala, eu tinha tempo “in between”, entre uma coisa e outra, para
184

devanear e observar. Ela tenta começar a explicar o calendário e o

sentido das festas, mas novamente somos interrompidas...

Chega uma mulher com a senhora sua mãe e mais duas pessoas e

diz: “eu sou aquela que faz as imagens dos orixás, a senhora se lembra?” Dona

Detinha elogia seu trabalho. Eu ofereço a cadeira para a senhora sentar

enquanto ela fala sobre a hierarquia dos mais velhos dentro da casa.

Com um carinho e uma paz contagiante ela diz: “eu sou um pouco mais nova,

a senhora deve ser a primeira a comer, a sentar e deve ser respeitada: mãe é só uma”.
Dona Detinha continua... “Dia 28 de junho tem a fogueira de Airá, é uma

comemoração rápida e simples que começa às sete da noite... Dia 29 é a festa Wabogun,
sendo que a fogueira acendida no dia anterior deve manter as chamas acesas até a
comemoração do dia 2 de julho, Etá... Dia 5 de julho tem a festa chamada Efá... Dia 11
de julho tem a festa em homenagem a Yamassê, mãe de Xangô. Pedra, terra, madeira e
fogo são honrados durante as festas”.
De repente, ela pára... Diz que a cabeça está um pouco confusa

hoje, levanta a mão esquerda e começa a contar em ioruba de 1 a 12

encaixando o dia das festas com os números correspondentes a Xangô (3,

6, 12). De maneira bem peculiar, vagarosamente, usa os dedos da mão

direita para conferir as datas e as festas de Xangô em junho e julho.

Mãe Detinha diz: “o ioruba é uma música”. E acrescenta.

Dia 28 – Fogueira de Airá (fogo);


Dia 29 – Festa Wabogun (a volta da guerra);

Dia 30 – Fogo fica aceso

Ela faz uma pausa e explica: wa é ir e gun é vir; Ossimiló vou; Ossimibó, volto

Dia 02 – Festa Etá (três dias de Xangô);

Dias 03/04 – pausa;

Dia 05 – Festa Efá (seis dias de Xangô);

Dias 06/07/08/09/10 – pausa;

Dia 11 – Festa da mãe Yamassê (terra).


185

“Primeiro é ékinin; Segundo é ékeji; Terceiro é iketá”.

Transcrevi abaixo o que ouvia dos números comparado ao dicionário iorubá de

Eduardo Fonseca Júnior (1995) para evidenciar as diferenças de escrita e pronúncia. E

detecto que o m na frente de alguns deles indica uma provável modificação da

linguagem depois do língua iorubá atravessar o atlântico.

A música que ouço dos seus lábios / Dicionário ontológico da cultura afro-brasileira

1- kan (o)kan

2- egi (m)egi

3– etá etá

4- arun (m)erin

5- erun (m)erun

6- efá (m)efá

7- ejê (m)ejê

8- ejô ejô

9- esan (m)esan

10 - ewa éwa

11 - okalá (m)okanlá

12 – ejilá (m)ejilá

Dona Detinha fala durante nossa conversa: “Xangô está sempre

comigo. As pessoas vêm receber sua benção e como o lugar não é grande para tantos,

prefiro deixar outras pessoas chegarem até lá, perto do peji (altar) de Xangô. Xangô é

fogo, vida, vermelho, afasta a morte” - diz com voz e gestos.


186

As pessoas começam a entrar para o ritual. Conversamos mais um

pouco e na dúvida entre ficar com ela e ir, eu digo que estou indo e, ao

perguntar se ela vai me responde: “Ele me vê daqui!” Eu guardo na

memória a força de suas palavras e saio. Entro numa pré-sala,

acompanho as palmas dos cantos, lembro das palmas do Bugarabu,

espero alguém me dar uma saia branca para vestir e saudar Xangô lá

dentro, onde as mulheres devem entrar de saias. Tiro os sapatos para

entrar, bato cabeça no pé do altar de Xangô e me retiro. Marília, uma

filha de santo que conheço da Escola de Dança serve o amalá, gostoso,

com um pouco de pimenta para ‘esquentar’ e depois me retiro.

Experimento um estado de suspensão dos sentidos.

Lá fora, a cadeira está vazia. Segundo Sandra sua filha, a mãe

está descansando. Despeço-me da filha de Dona Detinha que diz: “Venha

para a festa de Oxossi amanhã!” Eu prometo vir e telefonar. Quando caminho


em direção ao carro encontro Marília e pergunto: Onde é a biblioteca?

Ela diz: “Desça as escadas ali!” Eu volto, desço as escadas e encontro dona

Naná sentada atrás de uma mesa. Depois de uma recepção calorosa ela

coloca quatro livros sobre os Orixás na minha frente. Um deles fala

exclusivamente sobre Xangô. Não anoto os nomes. O momento é outro.

Minhas sensações estão à flor da pele, quentes, fogo... Conversamos sobre

a vida, o Candomblé, a vida acadêmica. Considera que a academia é

superior a ela dizendo: “Vocês que sabem mais!” Eu lhe digo que não

atestando: e a sua sabedoria? Seus conhecimentos sobre os orixás? A

peça que criou sobre o mito do fogo de Xangô?... Sorrisos... Chegou a hora

de ir... Ela se dispõe a estar lá numa quinta-feira para eu poder sentar e

pesquisar os livros calmamente. Eu saio. 16

16
É o mundo acadêmico e o mundo da tradição oral em diálogo. Vejo nas palavras de Dona Naná a marca
que concede privilégio e superioridade ao mundo acadêmico. Tal referência me leva a pensar sobre o
sistema estruturalista elaborado pelo influente pensador, Lévi-Strauss. Sistema que serviu de ponto de
referência, além de contribuir para os estudos explicativos da humanidade. Porém, dando a estes um
tratamento hierárquico e não dialógico, como aponta o ensaio “Structure, Sign and Play in the Discourse
of the Human Sciences” de Jacques Derrida numa conferência em 1966 reimpressa em 1967, L’écriture et
187

Subo as escadas, o terreiro já está vazio. Uma presença alargada

de mim transborda, queima, acende e aquece. Demoro uns três dias

para sentar. Debruçada com a mão esquerda na bochecha e a mão

direita transformando em palavra escrita, o que a memória traz para o

presente.

5.4.2 Dia 28 de junho de 2005 – O dia que acendeu a fogueira de Airá (fogo)

Boa noite! Digo para Sandra, filha de Mãe Detinha. O pátio está

vazio, uma pessoa ou outra transita. Quase todo mundo de branco.

Sandra diz: “seja bem-vinda, pode ficar à vontade, pode ir até onde os olhos podem

alcançar, só não desça as escadas”.


Caminho até onde os meus olhos alcançam e encontro Pai Dario,

que de maneira muito simpática se apresenta: “eu sou o alabé mais velho da

casa”.
Pausa para os sentidos: já sinto na minha blusa um cheirinho de

fumaça, mas a fogueira grande, no pátio, em frente à casa de Xangô,

ainda está apagada! Será que é o cheiro da madeira? Talvez!

Continuando, Pai Dario fala várias coisas pertinentes e entre elas:

“O atabaque come, ele tem preceito igual a um iaô (filho de santo recém
iniciado). Ele tem que comer pra poder buscar o orixá, os outros lá do outro lado”

Fala um pouco que gostou de mim e prossegue: “Quem tem utí-fúnfún ou

cachaça na cabeça não pode tocar”. Mais um intervalo se sucede, quando pede
a duas crianças que se aproximam, para que não toquem os atabaques

la difference. Por sua vez, Conquergood aponta o pensamento evolucionista de Lévi-Strauss e confirma o
tratamento hierárquico etnocêntrico da sociedade moderna. Um pensamento que estabelece o poder a
quem é ‘evoluído’ e a dominação sobre aqueles a quem considera primitivos, selvagens, distinguindo-os
como civilizados e barbáries, ou ainda, como povos com ou sem escrita, ou seja, uma retórica de controle
e desejo, em domínio de quem escreve. (CONQUERGOOD, 1992)
Em contrapartida, chamo Maffesoli com quem estou de acordo, para fazer uma integração entre o
conhecimento acadêmico e a sabedoria da tradição oral, expressa em diversas formas de comunicação que
se dão através da grafia e da dança, do teatro, do canto, da música e da escultura. A razão e a imaginação
perpassam o pensamento e são complementares. Baseado nessa idéia Maffesoli acredita na possibilidade,
ainda que difícil, da “existência de um indivíduo na ‘república das letras’, cuja intuição permita uma
pesquisa mais exaustiva e uma visão mais profunda acerca do fenômeno a ser estudado, do qual ele não
está à parte, mas é parte interna do mesmo”. (MAFFESOLI, 1985, p. 23).
188

expostos diante de um banco com alguns aguidavis (varetas) que ele

colocou em cima quando o avistei. Fala num tom carinhoso: “crianças

saiam daí, vão brincar mais pra lá!”


Volta a conversar comigo dizendo: “quando toca, você tem que olhar

para o pé do Orixá”. Uma vez mais eu lembro de Fayee que também dizia:
“para acompanhar os movimentos que você cria em nossas aulas eu sigo seus pés”.
Tem algo mais além de suas palavras trazendo Fayee à minha

lembrança: a expressão do seu semblante? Quem sabe? A semelhança

visual? Não sei definir em palavras, ‘o que’, exatamente, mas algum

outro detalhe permeia essa lembrança...

Enquanto aguardo o início daquele ciclo de rituais que se

estenderá até o dia 11 de julho, vou para o carro escrever para que os

pensamentos e sensações do momento presente não desapareçam.

Saio do carro e vejo Mãe Stella. Ela está vestida com uma blusa

branca e uma saia xadrez de azul. Uma filha da casa a acompanha.

Caminha em direção à fogueira agitando um xerê 17


de bronze em sua

mão. Saúda e chama Xangô ao mesmo tempo em que um homem de

cabelos longos, acende a fogueira em seus quatro lados, um a um,

cuidadosamente. Canto, palmas! Desce numa filha de santo o primeiro

Xangô, o segundo em outra. As palmas conversam com os corpos que

dançam e eu desenho internamente essa partitura performativa.

O contratempo alternado entre pé direito e esquerdo é

acompanhado pelos braços também alternados, que se movimentam

simulando lançar as pedras de raios por terra. Lembranças se cruzam

na minha memória: o Xangô no Portão, o Xangô de Augusto Omolu, a

aula com Mamour, e Fayee dizendo que eu parecia fogo quando

17
Outra explicação de xerê: o xerê é um instrumento de cobre, podendo ser de prata quando utilizado
para o culto de Xangô Airá ou mais tradicionalmente, de cabaça com um cabo de madeira. Ele é um
símbolo fálico utilizado em vários rituais do culto a Xangô, como a fogueira, a roda de Xangô, além de se
inscrever nos seus poderes mágicos. Ele reproduz o barulho da chuva e quando tocados juntos pelos
únicos que têm esse direito no Afonjá, ou seja, os Obás da direita de Xangô e pela mãe-de-santo, soam
como as tempestades, fertilizando e fecundando as entranhas da terra. (LIMA, F.2005, p.43).
189

dançava! Tudo parecia compartilhar uma sensação única. A percussão

se vigora gradualmente. Muitos orikis (saudações) são entoados. Mãe

Stella se senta e os orixás se aproximam para saudá-la.

Eu bato palmas com todos e tenho uma recordação. Lembro das

palmas do Bugarabu e dos claps. Eles têm a mesma função e soam como

as palmas. Penso em Malan confeccionando os claps e o seu uso nas

aulas. Devo confessar que a sensação de ter assistido ao ritual da

confecção dos mesmos deu um sentido particular para mim. Até hoje,

cada vez que minhas mãos abraçadas a eles se juntam, experimento um

sentimento peculiar de apropriação, o qual eu acredito seria diferente se

os tivesse comprado ou quem sabe ignorado seu lugar de procedência.

Nesse momento da fogueira de Xangô, a sensação particular de retorno

embaralha as palmas como se tivesse os claps em minhas mãos.

Aos poucos as pessoas dispersam e desaparecem por onde os olhos

não alcançam mais. Despeço–me de Sandra que reforça o convite de

Mãe Detinha para a Festa do Ajerê no outro dia às 7 da noite. Vou

embora cantando e usufruindo novamente daquele sentimento quente,

dilatado, do Xangô e do Bugarabu.

5.4.3... Um ano depois - Dia 28/06/2006 – Fogueira de Airá

Nesse dia fui tomar café com Dona Naná em sua casa. Chegamos mais ou menos

às 08h30min no Afonjá.

Ouço algumas vozes falando francês logo que descemos do carro. A

fogueira já está acesa, não presto atenção no ritmo que está tocando,

estou mais atenta às pessoas, as filhas de santo, aqui e ali. Dona Naná

me puxa para junto dela.

Começa o aguerê de Iansã, o vento bate, ao mesmo tempo em que a

chuva cai. A fogueira resiste ao toró e não apaga, solta muita faísca.
190

Todos se aglomeram na varanda da casa de Xangô. Sinto um aperto de

perder o começo. Dona Naná saúda Nana, a entidade das águas

profundas, com a palavra - salubá! Pai Dario que é músico e ogã da

banda fica na minha frente e diz a uma senhora que quer se retirar:

“pelépelé” (tenha calma), não adianta pressa, você pode escorregar e cair.

Nessas alturas, o som já parou. Dona Naná abre a sombrinha, pois a

chuva de ‘vento’ vem na diagonal e nos atinge. Fábio Lima pede a

sombrinha emprestada para pegar algo no carro. Marília está

conversando com alguém. Vejo Sandra só de costas. Não vi Mãe Stella.

As caras, as feições conhecidas, sempre as mesmas, se cruzam pra lá e

pra cá. As coisas acontecem no tempo curto dessas frases. São vários

acontecimentos ao mesmo tempo.

Dona Naná me convida para ir lá dentro. Penso: será que Mãe

Stella está lá dentro? E ela diz: “já acabou tudo. Só tem comes e bebes.” Eu

penso, pressinto: pode ser que Mãe Stella esteja lá, então eu quero ir.

Entro com Dona Naná. Ela está sentada numa cadeira perto do quarto

de Xangô. Dona Naná vai pedir a benção e eu também vou.

Pego na sua mão fina, dou um beijo e peço a benção. Ela responde:

“Deus te abençoe.” Meu coração se acalma. Muito tempo eu esperava por

esse momento. Ela tem um livro na mão. Não consigo ver, nem

tampouco penso muito nisso. Fico embaraçada. Vamos embora e

combinamos para vir à festa amanhã.

5.4.4 Dia 29 de junho de 2005 – Festa Wabogun

Chove muito! Estou com Lucinete, uma aluna do estágio na UFBA.

A festa começa com uma roda pequena que se avoluma aos poucos. O

cheiro gostoso de comida no ar, cada vez mais forte, entra por nossas

narinas. As cores de Xangô, o vermelho e o branco prevalecem e os

movimentos ainda são tímidos na roda do xirê (brincadeira). Os xerês


191

agitados por Mãe Stella e um Oba de Xangô ressoam no ar. Não vejo Pai

Dario. Os toques têm certa ordem. Os orixás descem em alguns de seus

filhos.

Olho para o chão e vejo, no centro do barracão, em vermelho e

amarelo, o desenho do oxé (o machado duplo de Xangô) com uma coroa

do rei de Oyó, no alto, parecendo que é feito de serragem como nas festas

de Corpus Christi. Estou distraída na apreciação do desenho quando

num dado momento, o fogo que sai de uma gamela sobre a cabeça de um

dos Xangôs da casa, atrai minha atenção. Os Orixás continuam

dançando e o ajerê (uma gamela contendo fogo) é passado pela cabeça de

cada Xangô e de sua esposa Iansã compondo uma cena inebriante que

remete à lembrança de um dos mitos dos poderes e afinidades

apreciáveis que os dois Orixás têm em comum. 18

A dança rasga o espaço no acelerar dos passos. Em seguida, um

prato com mechas de algodão, embebidas em azeite de dendê, é colocado

em uma mesinha no centro do barracão. Novamente juntos os Xangô e

as Iansã se aproximam da mesa levados pelo toque dos atabaques. O que

tem no prato é o fogo que todos querem acender. Nesse intuito, forma-se

um círculo fechado ao redor da mesa. Cada orixá ao colocar a mecha na

boca se vira, permitindo que os presentes vejam o fogo. Esse momento

inspira uma imagem cênica, quando as saias unidas pelo círculo

transformam-se visualmente em um grande e único círculo, o qual toma

outras formas quando um ou outro Orixá se vira para a platéia. Esse

ritual, segundo Dona Naná, recebe o nome de akará.

As ekédes (ajudantes dos orixás) recolhem os Orixás para serem

vestidos com as indumentárias e ferramentas. Nesse meio tempo a

comida é servida. Quando voltam, ostentosos, estão vestidos com saias

ornamentadas de tiras de panos vermelhos com guizos nas pontas e uma

18
Esse ritual reporta-se ao mito já mencionado nas palavras de Mestre Didi, em que Xangô incumbe sua
esposa Oyá ou Iansã de ir à busca de uma porção mágica, que lhe possibilitaria cuspir fogo pela boca. No
caminho, ela transgride as ordens de seu marido e, imediatamente, toma parte do feitiço, para passar a ter
os mesmos poderes que o marido. (LIMA, 2005).
192

coroa de cobre na cabeça simbolizando seu caráter de dinamicidade e de

rei de Oyó. O fogo cresce no desenrolar da dança. Vibração e vigor. Meu

coração acelera. Lucinete vai embora antes. Acaba. Eu quero abraçar o

Orixá, mas me contenho, enquanto caminho em direção ao carro e

Xangô está lá fora. Penso que devo esperar que ele me escolha para um

abraço. Vou dormir tranqüila.

5.4.5... Um ano depois - 29/06/2006 - Festa do Ajerê

Wabogun foi o nome com que Dona Detinha explicou essa festa naquele

primeiro encontro no ano anterior, quando Xangô ‘volta da guerra’, no entanto, Ajerê é

o nome mais mencionado nas bibliografias e na convivência diária dentro da

comunidade do Afonjá.

Quarta-feira. Lau Santos está comigo na festa. O pátio já está

lotado de carros. Não vejo dona Naná. Fico no primeiro degrau da

arquibancada das mulheres. São em torno de 50 filhos e filhas de santo

compondo o círculo 19
, dançando ao som do rwm (ritmos) dos orixás. O

barracão está primorosamente decorado com bandeirolas brancas por

todo o teto. Há muita folhagem espalhada pelo barracão de paredes

brancas, decorado com faixas vermelhas, aqui e ali, junto a umas

esculturas planas de Xangô segurando seu machado duplo nas duas

mãos, penduradas no teto. No grande altar da frente, as mesmas

esculturas de madeira de cágados e javali do ano anterior estão

pregadas na parede. Os mesmos animais, as mesmas cores, a mesma

imagem. É Xangô. É vermelho e branco. 20


É vida e justiça.

19
Através das considerações de Schechner, uma vez mais, detecto nesse círculo formado aos poucos, o
primeiro momento da eruption, - procedimento muito encontrado nas concentrações sociais em círculo –
que é o gathering, o reunir. (SCHECHNER, 1988)
20
No candomblé, segundo Tavares, as forças, as energias, os orixás dividem-se entre o vermelho e o
branco, respectivamente a corte de Xangô e a corte de Oxalá. Esta polarização simbolizada pelas cores só
poderá ser entendida se houver uma iniciação, acarretando uma compreensão do sentido particular que as
cores assumem no universo do candomblé na cosmogonia nagô, na dualidade vida X morte, estático X
dinâmico, sempre resolvida como um confronto, jamais como um conflito terminal. Por exemplo: quando
193

Toca pra Xangô na roda de Xangô. Um momento intenso e

especial. Uma filha da casa recebe Ewá. Ela é sempre a primeira a

incorporar, seu grito é agudo, profundo. Por mais que se queira

observar a incorporação de cada um, não é possível. Ao observar

alguém, meus olhos ficam magnetizados, fixos, envolvidos naquele

momento único, irrepetível. Penso no segundo momento da eruption, a

concentração, a performance. Percebo na concentração da performance,

sua presença única, como considera Peggy Phelan.

Nesse meio tempo, nesse meio segundo, minuto eterno, outros

orixás estão chegando a terra. Em sua maioria Xangô e Iansã. O que

parecia tão ordenado no toque e no círculo anteriormente se dissipa no

ar, no som, nos rodopios, tropeços, inclinações dos corpos, no descontrole,

nos olhos fechados dos incorporados que não precisam estar abertos para

ver. Ninguém se bate.

As ekédes cuidam dos filhos e filhas, e amarram os panos da costa

no plexo solar bem apertado. Tiram os sapatos. As identidades agora,

em sua maioria cruzam os braços nas costas. O toque dos atabaques e as

palmas dos presentes saudando as entidades chegando a terra aquecem

a atmosfera. Os obás de Xangô vibram os xerês nas mãos. Mãe Stella não

está presente para fazê-lo. Sua ‘presença’ se mostra visível nas formas,

cores, sons, ritmos, movimentos ‘presentes’ ali. 21Chega o intervalo...

Terceiro momento da eruption: uma dispersão harmoniosa.

Encontro com Lau lá fora. Ele come alguma coisa na cantina. Os

cheiros estão sempre no ar. Voltamos e com o salão mais vazio vejo

Mãe Aninha quis solucionar o conflito entre o poder masculino, o Balé de Xangô Pimentel e ela, os dois
fundadores da casa, ela criou os doze Obas de Xangô, para entre eles disseminar o poder masculino e
desconcentrá-lo. (TAVARES, 2002).
21
Recorro a Peggy Phelan para falar da presença de Mãe Stella como uma metonímia, um eixo
horizontal de unidade e deslocamento, associado à performance dos obás e dos orixás no caso. Phelan diz
que a metáfora nega a diferença, enquanto que a metonímia associa. Ao observar esta liturgia do
candomblé como uma atitude performativa, considero a contigüidade entre os obás e os orixás, junto à
Mãe Stella. Representam a presença da Ialorixá na plenitude de suas visibilidades aparentes, ou seja, na
dança, no movimento, no caráter da função ritualística. (PHELAN, 1993)
194

Dona Naná, pequenininha, me chamando do local de costume, sempre à

esquerda. Recebemos a comida.

Em pouco tempo chegam os orixás, vários, Xangô e Iansã. O fogo é

o impulso do movimento. Caminhando em bloco andam quase que

correndo pelo salão passando o ajerê de mão em mão, ou melhor, de

cabeça em cabeça. Mãe Stella fica de pé atenta. O movimento é rápido e

tem fogo dentro da panela bojuda de barro, o chamado ajerê, até se

concentrarem na frente de uma mesinha no centro, à frente para

compartirem o fogo que cada um coloca na boca. Toca pra Xangô. O

Xangô de um filho de mãe Cantolina do Rio, já paramentado, dança.

Parece que nunca vai parar. Esboça um movimento alternado de pés e

mãos, em que os membros do lado direito fazem frente e traz. Em outro

movimento brande o seu machado.

O barracão exala calor, força, vigor. O fogo de cada um. O meu

fogo. É ele que por meio da pulsação, do ritmo, me leva a um estado de

criação, para quente dançar, quente escrever e entender o que Lepecki

aponta ao dizer escrever com a dança e não sobre a dança. A Iansã.

Seus movimentos dão a sensação que ela flutua suspensa no ar. Diante

da percussão, vai para frente e para trás. A correspondência com o

ritmo através dos seus movimentos é inebriante.

Começa a roda de Xangô. É o final da festa. Todos os (as) filhos (as)

de santo e todos da casa entram na roda. Há uma nova concentração e

uma nova dispersão. Conga, um colega do tempo da graduação na

UFBA, filho da casa, se aproxima dos alabés e dança ao som forte do

alujá de Xangô. A festa acaba. Deixo D. Naná em casa, mas a sensação

da festa não me deixa. Não estou incorporada, mas estou possuída por

aquela atmosfera. Quero girar, sinto o sangue correndo nas veias, dos

pés até a cabeça, o corpo todo dilata e retrai junto com as batidas do

coração... Quero dançar...


195

5.4.6 Dia 02 de julho de 2005 – Festa Etá

Kriant um colega de mestrado vai comigo, chegamos cedo e fico

no mesmo lugar do outro dia. Passo mal e deito no banco. A festa é

curta, o ritual é mais simples. Um Xangô não quer parar de dançar.

Reluta no final para continuar seus movimentos vigorosos simbolizando

seu caráter impetuoso. Não tenho condições fisiológicas para arriscar

qualquer observação. Deixa para o ano que vem...

5.4.7... Um ano depois dia 02 /07/2006 - Festa de Etá (Três dias de Xangô)

Pego D. Naná em casa. É domingo. Chegamos no começo da festa.

A roda do xirê vai crescendo aos poucos. A festa é mais rápida que as

anteriores e tem menos pessoas. Mãe Stella chega um pouco depois e tem

um pano da costa vermelho e cinza que envolve sua saia branca rodada.

A roda, os toques, os cantos, as palmas. Diferentemente, singularmente,

tudo se repete. Todos ficam de frente para o centro do círculo no

momento da roda de Xangô. Os filhos da casa tiram os ojás. Descem os

orixás: Ogum, Xangô, Iansã, Iemanjá e Oxum.

Um Ogum que não é da casa dança. Seus movimentos percorrem

toda a extensão do barracão. Pula cortando o ar em cima e embaixo e

gira riscando o chão com os pés. Seu movimento forte mostra sua leveza,

uma contradição em harmonia.

O Xangô está vestido com saias e faixas. Os ritmos de Xangô são

tocados num crescente e lembram sempre o Bugarabu. Ele joga as

pedras de raio diz D. Naná. A repetição dos mesmos movimentos tem

uma energia peculiar desse Xangô. Nada é igual, ninguém, nenhum

momento, apesar de serem os mesmos movimentos. As paradas finais e

os gestos faciais quando o som pára denotam afirmação, cumplicidade.


196

Tenho a sensação de que todos estão enxergando uma mesma

invisibilidade. Uma invisibilidade concentrada na dança, no ritmo, nas

cores, nos cheiros que as forças, que o axé dos orixás demanda. Todos

batem palmas, são impulsos para a descida dos orixás, são aplausos para

suas chegadas, são celebrações da conflação energética de uma

invisibilidade visível aos presentes. Arrisco dizer visível por ser munida

de um sentimento de crença. É quando uma mulher sentada ao nosso

lado diz: “que calor”. São sentimentos quentes! 22

Todos os presentes levantam quando toca para: Xangô - o patrono

da casa; Oxossi – o orixá de Mãe Stella; e Iemanjá – a mãe dos orixás. A

cada canto, muitos fazem um gesto com o dedo indicador direito,

tocando o chão e depois a testa. Quando toca o ijexá para Oxum todos

dançam, cantam e batem palmas. Quando toca o aguerê, a Iansã

movimenta as mãos no ar e os pés fazem um contratempo. Na

caminhada para frente e para trás seguida de um giro Iansã demonstra

sua voluptuosidade.

Começa a roda final. O hino do Afonjá é cantado. Conga dança o

alujá de Xangô novamente frente aos alabés. Todos compartilham esse

momento de descontração. Muitos saúdam a Iemanjá. Não vi mais Mãe

Stella. Depois da união se sucede a dispersão...

22
Estas percepções subjetivas levam a uma discussão paradigmática nas ciências em que os etnógrafos
feministas se dividem entre objetividade masculina x subjetividade feminina, (palavras tiradas do texto
sobre uma palestra que Lila Abu-Lughod apresentou ao Anthropology Section of the New York Academy
of Sciencies, em 29/02/1998, pp. 7 a 27). Volto a citar Maya Deren enfatizando seu trânsito conflituoso
entre a ciência e a arte, ao escrever seu livro Divine Horsemen, em que ora assume uma posição de
observadora objetiva e ora está no papel de participante subjetiva. DeBouzek considera seu papel como
artista no livro, o lugar central para sua produção. Em se tratando nesse estudo, da interação entre ciência,
arte e religião torna-se imprescindível ativar a percepção da subjetividade dessa atmosfera, em outras
palavras, da conflação energética mencionada acima. Um estado de possessão para os que recebem os
orixás, emanado para os presentes. Analisando na visão de um trabalho artístico é o estado de dilatação
dos sentidos, ou ainda, da sensação de fogo, adotando o termo simbólico desse estudo. Tal estado propicia
a abertura dos canais da criatividade. (DEBOUZEK, 1992; DEREN, 1953)
197

5.4.8 Dia 05 de julho de 2005 – Festa Efá (seis dias de Xangô)

Já na Escola de Dança, encontrei Marília, aquela filha de santo do Afonjá ou

roça, como ela chama. Conversamos sobre meu objeto de estudo e sobre a entrada dela

no Candomblé há 4 anos. Esperei um pouco para dar uma carona a ela e irmos juntas à

festa.

Nesses papos, sempre surgem questões de subjetividade muito agradáveis,

questões de identificações as quais a palavra não comporta, mas que é tão bom

compartilhar dessa cumplicidade! Acontecem coisas cujo traçado parece preceder

nossos pensamentos e convicções, elas stand up in front of or inside of us (prostram

diante ou dentro de nós) fora do nosso controle, porém como que legitimando nossas

sensações. Marília e eu compartilhamos desse sentimento numa conversa sobre o

candomblé na escola e no caminho para a festa no São Gonçalo.

Perto da entrada, Marília confessa que ao colocar os pés para dentro do portão, é

como se adentrasse em um outro universo, não era mais ela, mesmo sendo ela. Essas

curvas do pensamento não correspondem a uma linearidade racionalista do mundo

cartesiano. Presumo ser essa uma das razões pelas quais ela se sente ambígua. O portão

representa uma espécie de fronteira ou limite entre universos diferenciados em sua

lógica, muito embora não totalmente distintos.

Ela sai correndo! Interrompe meu pensamento... Vejo Mãe Stella

entrando no barracão, vestida com uma saia de um azul céu

acompanhada de uma filha da casa. Entro no barracão, onde os

atabaques já ressoam suavemente dando início à quarta cerimônia do

ciclo de Xangô. O salão ainda está meio vazio. O número de filhas de

santo que compõem a pequena roda ainda é reduzido, seis quando conto.
198

Coloco-me num dos degraus ao lado direito da entrada, lugar reservado

às mulheres, pois os homens ficam à esquerda. Tenho uma visão

panorâmica de todo o barracão e mergulho em detalhes.

O teto está coberto de bandeirolas brancas dando um ar

aconchegante ao barracão. Seguindo o local reservado às mulheres,

posicionam-se os alabés, com três atabaques (rum, rumpi e lé), um agogô

e um shekerê.23 Pai Dario hoje está tocando. Atrás, no degrau acima,

crianças cantam, se esquentando para os momentos vindouros em que

acompanharão atenciosamente cada toque e cada movimento dos

Orixás que chegarão a terra. Ao lado das crianças e dos alabés, estão

sentadas as senhoras mais idosas da casa (ebomis) com suas saias

rodadas, anáguas e torsos amarrados na cabeça, em tons do branco ao

colorido. Cada filho(a) de santo saúda as ebomis antes de entrar na roda.

Mãe Stella, majestosa e humilde, está à minha frente. Está sentada

numa grande cadeira de madeira, com plantas verdes acomodadas dos

dois lados. Ela segura um xerê na mão esquerda e acompanha o som da

música que invade o ambiente. A cada saudação de um filho ou filha,

ela intensifica o movimento vibrando sua mão. Toda a extensão da

parede branca atrás do “palco” de cadeiras está ornamentada. Logo

atrás da honrosa ialorishá, tem uma imagem de Xangô empunhando

seus oxés, que nesta distância, parece feita de papel laminado.

Eqüidistantes, dos dois lados, vejo 5 cágados e 2 carneiros – animal de

seu sacrifício. No centro do teto tem uma coroa branca e vermelha, com

desenhos de Xangô e seus oxés... Volto a atenção para a roda...

O número de filhos e filhas de santo vai aumentando

gradativamente ao ritmo dos atabaques. Cada um que entra na roda

repete a saudação com o dedo indicador da mão direita no chão e depois

na testa. Os movimentos são ainda tímidos e fazem lembrar ondas

naquele conjunto harmonioso, onde a expressão de cada corpo encena

23
É um instrumento musical feito de cabaça, e envolto por uma espécie de rede de sementes que fazem
um som similar a um chocalho e cumprem o papel de linha guia na organização musical dos toques.
(VERGER; REGO, 1993, p. 21)
199

sua peculiaridade. O todo é um só. O todo é crescente. Um a um, cada

orixá é cumprimentado com seu próprio toque... e todos dançam em fila

nessa imensa roda!

Num dado momento, todos se voltam para o centro da roda,

continuando os passos na direção anti-horária como antes. Igualmente à

festa anterior, tiram os ojás (torso) da cabeça... O ritmo batá é agora

acompanhado pelo canto de saudação a Xangô Afonjá, aumentando o

calor do fogo de Xangô que se aproxima. Conto em torno de cinqüenta

devotos. A distribuição espacial anterior de uma coreografia marcada e

linear toma proporções outras. Energias atravessam o ar em diferentes

direções, lampejando a harmonia linear de antes, misturadas com a

energia do raio de Xangô que anuncia sua chegada, ao ritmo que,

desapercebidamente mudou para o alujá... Meus olhos já não conseguem

abarcar cada orixá que chega... a roda se desmancha... as ekédes

(madrinhas dos filhos(as) de santo) zelam pelos Orixás presentes. O

Xangô do dia 25 de maio no quarto é o primeiro a chegar. Logo em

seguida, com aquele grito penetrante, vem a Ewá. A ekéde amarra o

pano da costa em seu tórax... A “roda de Xangô” 24


se desmancha e quem

toma conta do salão agora são os Orixás, Xangô e sua esposa Iansã.

Todos batem palmas e saúdam Xangô: Kawo-Kabiyesilé!! Venham ver o

rei descer sobre a terra! Com movimentos enérgicos os Orixás repetem a

façanha de Xangô tirando as pedras de raio de sua bolsa de couro (labá)

e lançando pelo chão. Tudo é rápido e intenso, assim como essas frases

curtas. 25

24
Roda de Xangô – nesse momento também chamado de roda de Banin ou roda de Dadá as guerras e
conquistas de Xangô são relembradas. Nesta celebração a Xangô e à sua família, os filhos de santo
dançam com os corpos voltados para o centro e rapidamente estendem as mãos para cima no final das
cantigas clamando a chegada de Xangô. As cantigas entoadas são muitas, em torno de doze, segundo
alguns devotos, acompanhadas inicialmente pelo ritmo batá e em seguida pelo vigoroso alujá, quando
principalmente os filhos de Xangô entram em transe. (LIMA, 2004)
25
Dois sentidos das danças dos orixás enfocados por Browning são abrangidos nesse parágrafo: 1º a sutil
invocação do orixá, quando a dança é performada sem as ferramentas; o 2º a presença do sagrado no
corpo de quem recebe o orixá se tornam evidentes aos membros da comunidade através da mudança de
movimento. Isto gera uma animação no ambiente. O orixá então é levado para o quarto a fim de ser
trajado com as ferramentas simbólicas. (BROWNING, 1995)
200

Aproveito essa interpretação mitológica para encenar um sobrevôo sobre alguns

mitos descritos por Fábio Lima em seu livro As quartas-feiras de Xangô:

(a) Quando irritado Xangô e sua esposa predileta Iansã


provocam fogo ao abrir a boca. Contam os textos, que Iansã só
vem dançar no barracão quando Oxum não vem, a fim de evitar
as brigas relembrando as histórias de rivalidade e ciúme pelo
amor de Xangô. (LIMA, 2004, p.29) (b) O raio também é
encarado no mundo das lendas iorubá como atitude da ira de
Xangô aos transgressores da ordem e da moral. Num acesso de
raiva, Xangô pela facilidade de produzir fogo acabou por
destruir o palácio e a família quando então, furioso, penetrou na
terra e se transformou em Orixá. Iansã ao saber disso teve a
mesma atitude do marido. Portanto quando há raios, trovoadas e
relâmpagos é sinal de ambos, Xangô e Iansã. (LIMA, 2004, p.
30) (c) Xangô ainda é conhecido pelo nome de Obaladô, ‘o rei
que racha o pilão’ pelo impacto dos raios e por isso usado em
seus assentamentos, seus altares. (LIMA, 2004, p. 30)

Convido Deren e Browning, para corroborar as narrativas descritas, pois

acordamos que exaltação e virtuosidade no movimento de uma divindade sofrem uma

transformação facilmente reconhecível, que nega qualquer senso de proeza ou

individualidade inerente ao dançarino ou cavalo. Quando não incorporados, os devotos

esboçam movimentos sutis, cuja virtuosidade será preenchida quando ocorrer a

transformação de suas energias e movimentos. O movimento de Xangô, por exemplo,

pode sugerir que seus braços sejam o machado duplo e que interpretam sua

manipulação. Ou podem, além disso, insinuar que são os fenômenos do raio e do trovão.

Então esse princípio que está escondido, escapa ao nosso desejo de incorporá-lo, e a

dança o materializa quando o devoto está incorporado. “O dançarino num estado de

incorporação do orixá, não é um escritor da dança, mas se torna o texto escrito pelo

orixá.” (BROWNING, 1995, p.50)


201

Volto à festa. Não comi, pois a festa estava cheia. Voltam

montados, cinco Xangô e uma Iansã. O ministro de Xangô (Obá Otun

Elerin) é confirmado. Um momento solene! Entra acompanhado de

algumas filhas de santo da casa e de um Xangô que está de braços dados

com ele. Está de terno branco com uma faixa atravessada no tronco e

uma espécie de coroa na cabeça, ambos vermelhos, honrando a cor da

vida, do fogo como explicou Dona Detinha. Na companhia do Xangô que

lhe dá o nome circundam todo o salão dançando lado a lado, até

pararem perto de Mãe Stella, a partir de quando os devotos da casa em

fila o felicitam calorosamente. Um episódio inesperado acontece durante

essas saudações:

O Xangô que na outra festa não queria ir embora, não queria

parar de dançar, lembrando Fayee que nunca queria parar de tocar,

agora pega um menininho no colo e dança com ele. Ele o suspendeu, ou

seja, lhe deu um cargo. O menino chora. Xangô lhe dá um dos machados

que tem nas mãos. Quatro Ogan, os protetores da casa, fazem uma

espécie de andor para carregar o menino que desfila pelo salão. Várias

pessoas vão saudá-lo na cadeira que Xangô o coloca depois.

Os Orixás continuam dançando. Os ritmos tonibobé e alujá de

Xangô são gradativos e se dividem em três momentos: o primeiro, de

mostrar os dois machados num ângulo reto dos cotovelos, levantar uma

perna, enrolar os dedos na altura do peito enquanto dá três passos de

costas para outro lado e repete os mesmos gestos; o segundo, de recolher

num círculo que fazem as mãos, uma a uma, as pedras de raio que

guarda na altura da cintura, batendo o mesmo pé no chão. Quando

entra o terceiro, o alujá, Xangô estende seus braços para o céu e lança os

raios do Labá por terra.

Para terminar, a grande roda dos cinqüenta filhos (as) de santo

volta a se formar e todos ficam de frente para o centro, como um adeus.

Os Orixás partem em direção à casa de Xangô, atravessando o pátio


202

para chegarem até lá. Confesso que gostaria de ter recebido um abraço

de Xangô hoje. Na próxima festa, quem sabe?... No dia 11 de julho de

2005, na festa de Yamassé, 26


quando Xangô se aproximou de mim eu

pedi sua benção, ganhei seu abraço e seu axé.

5.4.9... Um ano depois dia 05/07/2006 Festa de Efá (Seis dias de Xangô)

Nesse dia Dona Naná não foi à festa, disse que iria descansar

para a festa do dia 11 de julho, Yamassê. Eu fui só. O pátio está mais

vazio que de costume, não há tantos carros, e de longe eu já ouço o toque

dos atabaques rufando. Como de costume quando estou só, dirijo-me ao

‘lugar das mulheres’ do lado direito e fico bem perto do peitoril que

divide a ‘platéia’ participante do grande salão, onde estão dançando por

volta de 50 integrantes daquela comunidade religiosa.

No chão vejo um desenho que parece feito com pó de serra

colorido... Uma parada no tempo de agora para recordar um tempo de

outrora... Lembro imediatamente das festas de Corpus Christi em muitas

cidades brasileiras, no dia 15 de junho, quando grandes extensões das

ruas são cuidadosamente decoradas com o mesmo material, durante a

noite de véspera dessa festa. O pó de serra se transforma em obra de

arte para os fiéis que durante a procissão arrastam seus pés sobre

imagens de Cristo, do cálice de vinho, entre outras, borrando seu próprio

esforço.

Por que estou lembrando disso? Por que faço essa relação? Vejo

anualmente reportagens nessa época do ano em jornais e telejornais a

respeito da festa de Corpus Christi, contudo uma lembrança mais

vivenciada emerge do meu pensamento. Quando menina, estudava no

26
A festa de Yamassé que inicia com uma procissão é o auge do ciclo das festas do Orixá Xangô. Nesse
dia a Ialorixá, Mãe Stella apresenta aos visitantes de outras casas, entre outros objetos rituais de Xangô, o
Oko (pênis) de madeira, revestido de muitos laços coloridos e segurando-o até o centro do barracão, os
iniciados, hierarquicamente, fazem a saudação chamada foribalé. (LIMA, 2004)
203

colégio de freira, Mãe de Deus, em Londrina e todo ano participava com

muito gosto da confecção desse tapete. Algo importunava quando, com

nossos pés desmanchávamos a inscrição criada com as nossas mãos,

pelos impulsos de uma devoção. Eram corpos fragmentados pelas

intenções opostas de suas partes. Mãos que fazem e pés que

desmancham. Hoje penso que tal sensação de incômodo talvez

representasse que a ação de criar o tapete e depois desmanchá-lo fosse

uma traição aos sentimentos de perfeição e culpa, impostos pela religião

católica... As contradições e fragmentação do sujeito pós-moderno... 27

Volto ao barracão do Afonjá.

Desse local do barracão, a visão é mais ampla e abrangente do

que as grandes cadeiras onde sento com D. Naná, no extremo esquerdo

à frente, próximo aos cheiros da cozinha que exalam durante a festa

compondo a atmosfera mística. Recordo que estou sob o mesmo ângulo

de visão do ano de 2005, na mesma festa Efá. A decoração e a

distribuição dos ornamentos e localização das pessoas são similares em

2005 e 2006.

Hoje, inesperadamente, antes do primeiro orixá chegar a luz

apagou. Uma escuridão total. A música não pára. A roda não pára. As

palmas vibram mais fortes e estridentes ‘por entre’ um burburinho de

vozes e cantos. Aos poucos nossos olhos acostumados dissipam a

escuridão. A escuridão se transforma em penumbra. Em meio a essa

luminosidade frouxa esforço-me para ver a incorporação do primeiro

27
Na primeira parte de seu livro, A identidade cultural na pós-modernidade, Stuart Hall questiona sobre
a complexidade e as mudanças do conceito de identidade em três concepções: a essencialista do sujeito do
iluminismo; a interativa do sujeito sociológico; e a contraditória do sujeito pós-moderno que é definida
historicamente. Nesta terceira concepção o sujeito assume identidades diferentes em diferentes
momentos, contraditórias e que empurram em diferentes direções, deslocando nossas identificações. Estes
deslocamentos dentro do conceito de globalização acabam por afetar a identidade cultural, que a partir do
impacto do movimento feminista, entre outros movimentos revolucionários iniciados em 1968,
empenharam-se na crítica teórica e enfatizaram uma questão política e social em relação à formação e
produção de sujeitos generificados. A subjetividade, a identidade e o processo de identificação do sujeito
foram politizados a partir dali. (HALL,1992)
204

orixá da noite que confirma sua presença numa filha de Xangô, o orixá

que ‘governa sua cabeça’, como o ‘povo de santo’ costuma falar.

Pela meia-luz do local, corpos indefinidos se deslocam e anunciam

ações dispersas e descontínuas, através de passos largos, corridas,

fuxicos, sussurros, cuidados das ekédes com os orixás que não cessam de

chegar, e uma admirável persistência e resistência para continuar. O

calor se espalha entre as pessoas e todos se olham na penumbra. Uma

cumplicidade se instala. Os raios dos faróis de um carro colocado em

frente à porta principal ampliam nossa visibilidade. O campo de ação de

suas luzes invade o interior do barracão. Ao mesmo tempo, a dimensão

desses raios é alterada pela movimentação de corpos e cores que não

deixam a festa parar. Focos luminosos se alargam e se estreitam,

percorrendo todo o barracão. Vejo tudo entre, tudo sobre. Dobras,

fissuras, passeiam diante dos meus olhos e esboçam um desenho

descontínuo, em constante movimento indefinível e magnetizante. Um

momento único, uma situação singular, um sentimento singular,

revelador de alguns dos pensamentos da filosofia que caracteriza e faz

perdurar a religião do Candomblé: resistência, persistência e

confraternização.

Reflexões... Falar de corpo, percepção, movimento, resistência nos arrasta para

o pensamento reflexivo, para as teorias e obviamente acontece uma hesitação. Há uma

hesitação diante da complexidade dos Estudos da Performance, da Teoria Crítica, da

Etnografia e do Pós-estruturalismo? Sim. Contudo, é o reconhecimento desta

complexidade que permite ousar e não estabelecer verdades absolutas. É que dá o

conforto de arriscar e deslizar entre as teorias. A arte está nas encruzilhadas das

ciências humanas, sociais e políticas. Ela faz emergir, de sua expressividade e da

percepção do sujeito que ora cria, ora performa, ora observa numa possível interconexão
205

com a teoria crítica e com o pós-estruturalismo, ou seja, uma abordagem própria,

personalizada e crítica. 28 (SIM; VAN LOON, 2001)

A movimentação e o gesto não se restringem ao estudo narrativo de um

acontecimento, nesse caso a festa de Efá de Xangô. Ao contrário, apontam auto-

reflexões e implicações referentes à experiência vivida e às teorias complexas

mencionadas acima, afirmando que estão expostas a uma interconexão e transformação

constantes. Por exemplo: a fenomenologia traçada na trajetória filosófica de Merleau-

Ponty mostra que a percepção é incorporada a contextos e situações específicas e,

portanto políticas. O corpo é considerado como um meio de percepção e expressão. Ao

tratar da importância da experiência vivida, ou seja, da relação vivida do sujeito com o

mundo, cujo corpo não está no mundo, mas é do mundo, a fenomenologia da percepção

se opõe ao cogito de Descartes e resume: “‘eu percebo’ não é equivalente a ‘eu penso’,

nem é universalizável. O status encarnado do sujeito que percebe abre caminho para

uma descrição fenomenológica do Presente Vivo”. (MERLEAU-PONTY apud

LECHTE, 1994).

A festa continua...

Estão presentes: três Xangô, uma Iansã, uma Oxum e uma

Iemanjá todos também presentes na festa do dia 02, semana passada,

com exceção de um dos Xangô. Eles tomam conta da cena e pela ordem

rítmica dos toques dos atabaques dançam Xangô, Iansã, Iemanjá e

Oxum. Num dado instante, uma senhora, com postura de ter uma

posição de destaque dentro da hierarquia da casa, puxa com voz forte e

firme um oriki (louvor) para Xangô e concentra novamente na roda os

28
O analista cultural pode pegar ou mixar modelos sintéticos dos catálogos de teorias e juntá-los para
qualquer tarefa que possa acontecer. [...] Exceto para os mais engajados entusiastas de movimentos
particulares, muitos críticos tendem a operar na moda magpie (pega) hoje em dia, selecionando um pouco
desta ou daquela teoria para sua abordagem própria personalizada. (SIM, VAN LOON, 2001, p.7)
206

filhos dispersos. Ao mesmo tempo, o cheiro do ageum (comida) se espalha

pelo barracão quando homens e mulheres saem da cozinha com bandejas

nas mãos distribuindo os pratos cheios, um símbolo de fartura, e o aruá,

uma bebida feita de gengibre e rapadura. Esse deslocamento de pessoas,

entidades e coisas, aparentemente aleatório, reverbera certa ordem em

meio à desordem da incidência das luzes nas multidireções da sala e dos

corpos entranhados por tal percepção. Observamos e compartilhamos

dessas sensações singulares. A luz volta. Todos batem palmas. Os orixás

são recolhidos.

Voltam paramentados com suas respectivas roupas e ferramentas,

manifestados e manifestando suas majestades peculiares. O Xangô que

não estava presente nas primeiras festas de 2006 prende minha atenção.

Ele é um negro forte e robusto. ‘Entre’ as cabeças do povo em pé à minha

frente procuro não perder seus movimentos, seu jinká (gingado) que se

estende por todo o barracão. Seu pé conversa com a música de forma tal

que atrai minha atenção. Tento esboçar internamente, seus movimentos

com meu corpo. Estou novamente numa imobilidade em movimento.

A cada pulsação ele responde simultaneamente, com seus pés no

ar ou no chão, ele desenha a música com seu corpo. Diversas vezes,

numa simples mudança de peso dos pés deslocando-se de um lado para o

outro, percebo uma reverberação, desde as oscilações do tronco, ao

trejeito dos ombros propagados nos movimentos dos braços e nas mãos

fechadas até escorrer no seu rosto, cujos olhos fechados parecem ver

muito bem. Seus movimentos soam em comunhão com a música e com o

canto. Augusto Omolu tem um jeito de dançar muito semelhante ao dele.

As variações binárias da música expressa pelos atabaques e por

sua dança são simples, mas requisitam uma malemolência sutil para

mostrar sua graça e sua força. O ritmo acelera aos poucos e num

contratempo mais exigente dos seus pés, seus braços exibem o machado

de duas lâminas. Seus braços são os machados de duas lâminas que

demonstram o seu caráter tempestuoso de justiça. O elemento fogo na


207

sua dança se dá de forma crescente, conforme demanda o alujá, o qual

impele à aceleração dos movimentos até sua expressão máxima de

rapidez e vigor, representando o trovão e o raio. Mãe Stella e um Obá de

Xangô agitam os xerês para acompanhar sua dança. O som dos xerês

faz lembrar os guizos amarrados nos punhos de Fayee. É um som

enfeitiçador. Xangô circula por diversos pontos da sala, mas como um

imã se dirige preferencialmente aos alabês que tocam os atabaques.

Presto atenção na sua roupa. É uma calça fofa, estampada em

cores matizadas onde sobressai o tom vermelho da sua cor. Um pano da

costa do mesmo tecido está amarrado em seu tórax. Para complementar

sua roupa, tiras azul turquesa enfeitam dois grandes laços dos lados de

sua cintura e contornam o arremate de suas calças, que se afinam nos

tornozelos como um punho. Nas mãos empunha o machado de duas

lâminas com cabo de madeira e na cabeça uma coroa de rei. Eu não

canso de apreciar sua dança. O desenho feito de serragem colorida no

chão está borrado. Foi transformado no desenho da dança dos orixás.

Uma escrita em movimento que não precisa de palavras para

compreender sua mensagem, a linguagem é outra, precisa sim de

sentidos aguçados. Olhos, ouvidos, nariz, boca e o sentido tátil

acordados.

Começa o hino do Afonjá. Cantando, todos entram na roda

novamente, e da mesma maneira que se concentram se dispersam. O

povo também se dispersa. Os orixás saem pela porta da frente do

barracão, acompanhados pelas respectivas ekédes. A noção de tempo e

espaço é deslocada. Às duas horas e meia de celebração foram

desfrutadas em uma dimensão temporal e espacial singular.


208

5.4.10 Um ano depois dia 11 de julho de 2006 – Festas Iyamassé (mãe de Xangô –

terra).

A festa de Iyamassé, considerada a mãe de Xangô, começa mais

cedo do que as outras. Dona Naná liga e diz que já está indo na frente.

No ano anterior, 2005, perdi o ritual inicial fora do barracão. Esse ano

eu cheguei mais cedo. De onde estacionei o carro avistei um aglomerado

de pessoas transitando ao redor da casa de Xangô. As mulheres com

suas saias rodadas esboçam em seu caminhar, movimentos redondos de

balanço. O vermelho e o branco, cores predominantes na cena dão o

toque da atmosfera quente junto à fogueira de Xangô em chamas, na

frente da Escola Municipal Eugênia Ana dos Santos. Sons... Risadas...

Conversas... Cores... Perfumes... Encontro dona Naná. Ela está sorrindo.

Minutos depois... A porta da casa de Xangô está aberta. Os obás

saem dali, onde fica o peji (altar), segurando, um pouco acima de suas

cabeças, um andor enfeitado com panos e flores. O ritmo das palmas é o

batá. Estou no meio da procissão, entre as pessoas, compartilhando das

palmas. Em sua frente, entre os turbantes coloridos faço esforço para

ver, ‘entre tantas cabeças’ daquela procissão caminhando em direção ao

barracão, quem segura uma escultura de ojás numa forma de grande

saia rodada com o emblema de Xangô no topo. É Mãe Stella.

Lembro as palavras de dona Detinha: “a melhor forma é comparecer ao

ciclo das festas de Xangô e observar”. Presença. Observação. Percepções.


Códigos. Símbolos. Transformação. No canto, no ritmo, nas palmas, nos

gestos, na dança, no pulo, na palavra, no grito, no murmúrio, nas cores,

na comida, no suor, no olhar, no sorriso, no abraço, no silêncio. A

ligação entre arte e ritual é evidente ali. Tenho a sensação corpórea

disso. Uma cena itinerante onde espectadores e atores se confundem.

Sem falar dos protagonistas em destaque. Dona Naná pega minha mão

para que não nos percamos de vista. Ela demonstra com prazer seu

afeto para comigo em vários momentos, de variadas formas. Isso dá

uma sensação de bem-estar, de acolhimento.


209

Os da casa seguem atrás do andor. Os visitantes estão espalhados

nas fronteiras laterais e nos fundos da procissão. Próximo ao barracão

todos param. Mãe Stella vira e se coloca de frente para todos. Outro

oriki é entoado. A ialorixá vibra o xerê de Xangô com sua mão direita.

A cena se repete e constato a importância simbólica do xerê nas

cerimônias rituais dedicadas a Xangô, durante esse ciclo de festas. Seu

sonido também traz à memória os sininhos (os siwagness) nos punhos de

Fayee.

A porta de entrada do barracão está toda ornamentada com

imensas folhas de palmeira. A procissão cautelosamente se espreme para

passar por ali. De mãos dadas vamos para o habitual lado esquerdo a

procura de uma cadeira para sentarmos. No caminho me deparo com

Kátia (ekéde) e Marília, uma filha-de-santo da casa, já mencionada

anteriormente na festa Efá de 2005.

O tempo pára. Fica suspenso no ar. Eu paro. Estou entre as duas.

Sinto meus sentidos aguçados naquela direção. Marília estende a mão

fechada com seus brincos para Kátia que estende a mão aberta para

recebê-los. Elas se olham na cumplicidade daquela ação, e depois

desviam o olhar rumo ao meu olhar. 29


Como cúmplice da cumplicidade

de ambas nos cumprimentamos. O tempo volta a correr. Eu volto a

caminhar.

Fico num lugar difícil de ver o que acontece. Então Dona Naná

me cede seu lugar.

Eu pergunto: e a senhora?

Ela responde: “Eu já vi muitas vezes. Você está pesquisando”.

Caras costumeiras e caras novas. Cheiros: perfumes, comida.

29
Quando os orixás chegam no corpo de seus filhos, quem cuida dos afazeres de tirar os sapatos, brincos,
pulseiras e relógios do receptor é a ekéde.
210

O barracão está lotado e aquecido por uma atmosfera calorosa.

Aquele desenrolar do xirê,30 - a dança, a alegria dos orixás - que segue

uma liturgia distinta hoje.

O andor foi colocado numa mesa no meio do barracão. Filhos e

filhas começam a saudar o andor e o oko explicado anteriormente. Com

a visão meio confusa percebo que ao levantarem dão passagem à

manifestação, à presença de seus orixás. Mãe Stella vibra o xerê em sua

mão, concentradamente. Ela está ao lado do andor, vestida com um

pano da costa em tons de amarelo e verde sobre sua blusa, saia frondosa,

ambas brancas. O torso rendado e cuidadosamente engomado é também

branco. Reparo que todos os filhos e filhas da casa têm uma pena

fincada na cabeça.

Paro para mais uma reflexão:

Ildásio Tavares diz que os rituais praticados em conhecimentos esotéricos não

são comumente questionados, mas executados. Os mais ‘graduados’, digo no sentido

hierárquico dos cargos de cada um, aos poucos vão sabendo as conexões profundas e a

razão subjacente dos fatos (o fundamento) como coloca o autor: [...] “a razão está muito

além dos rígidos conceitos ocidentais, razão, porém, sempre razão, uma outra razão que

não é de modo algum arbitrária e irracional, mas baseada em outra compreensão das leis

do universo”. (TAVARES, 2002, p. 134)

Penso nessa colocação de Tavares e contento-me em perceber as penas

simplesmente. Uma relação menos ansiosa com o tempo, nesse tipo de pesquisa, é

imprescindível para a ‘coleta de dados’ com características qualitativas e subjetivas

mais evidentes do que a quantidade de informações recolhidas. Uma questão de respeito

30
Essa é a explicação para xirê no livro Os deuses africanos no candomblé da Bahia (VERGER; REGO,
1993, p. 21). Já no Dicionário Antológico da Cultura Afro-brasileira escreve-se sirê (lê-se xirê) e significa
ritual. (JÚNIOR, 1995, p. 562).
211

aos mistérios e segredos da religião do candomblé, e de discernimento quanto à minha

posição de pesquisadora. Uma atitude de ‘acolher’ a presença do imprevisível que se

instaura a cada instante. (MORIN, 1996; LÜDKE & ANDRÉ, 1986)

Uma questão importante é o fato de não poder fotografar nem tampouco

escrever durante os rituais, que impinge à memória registrar sensações fortes naquele

período de observação. Sensações estas inseridas num imaginário nebuloso, cuja

compreensão está diretamente relacionada com o estado aparentemente caótico da

criação: o trânsito ‘entre’ o transe e a trans-criação. Nesse exato momento, o estado de

trânsito funciona de forma a deslocar o pensamento descritivo/narrativo para um

patamar de auto-reflexão crítica. Um salto na escrita. Um mergulho na reflexividade31

da descrição narrativa. Estou no trânsito das sensações, memórias, vivências,

observações, associações simbólicas e teóricas, indagações e reflexões...

Volto à festa... Dona Naná fala: “Estão saudando Iyamassé, a força da

terra. Ela é a mãe de Xangô”.

Dona Naná e eu nesse meio tempo começamos, a observar as

folhas de palmeira que embelezam os arredores da cadeira da ialorixá

da casa, em especial uma que está colocada atrás dela. É imensa, viçosa,

é frondosa. Transparece a calma e silenciosa majestade de Mãe Stella.

Trago o olhar para a direção do contorno inferior dos oxés de Xangô

fixados na parede, onde estão aplicados os ojás das filhas de santo da

31
Nesta auto-reflexão, busco apoio em Hammersley e Atkinson no primeiro capítulo do livro
Ethnography – Principles in Practice. Os autores consideram a reflexividade, o aspecto principal da
etnografia na pesquisa social. Para tanto, debruçam-se sobre a exploração e a avaliação das mudanças das
idéias, quanto à metodologia da etnografia nas últimas décadas. Conflituosa, pois os etnógrafos
constroem o mundo social através de suas interpretações, utilizando cada vez mais o olhar reflexivo na
pesquisa social. Além do mais, argumentam questões relativas à pesquisa social no que tange o seu
aspecto quantitativo e qualitativo, passando inevitavelmente pelo Positivismo, baseado na lógica do
experimento e pelo Naturalismo apoiado na visão de uma natureza própria. Estes questionamentos estão
voltados ao fazer político da etnografia. O restante do livro é dedicado às implicações da reflexividade
para a prática etnográfica, percebida aqui, no campo extensivo de uma pesquisa artística, inevitavelmente
enredada por questões sociais e políticas. (HAMMERSLEY; ATINKSON, 1983)
212

casa. Percebo repentinamente que a escultura do oko ornamentada pelos

ojás não está mais lá. Seriam esses os mesmos ojás? Seriam os que antes

estavam amarrados nas cabeças das filhas? Eles não estavam lá antes...

No início da roda de Xangô eu tinha observado Marília tirando o dela

da cabeça e dobrando cuidadosamente... Agora não sei mais. Escapou,

escorregou na efemeridade...

Reitero as palavras de Noverre, um dos fundadores da concepção moderna de

coreografia ao se referir à efemeridade da dança na sua totalidade: [...] “algo inatingível,

presença evasiva, traço fugaz de um movimento irrecuperável, nunca totalmente

traduzível, nem na notação, nem na escrita”. (NOVERRE apud LEPÉCKI, 2004, pp.

126, 127). As imagens nos arrebatam em níveis sensórios distintos, em intervalos

temporais imprevisíveis, de tal maneira que nos impossibilita alcançar – agarrar ou to

grasp em inglês - o controle de uma percepção plena de todo o movimento, de toda a

cena. Experimento a vulnerabilidade de sensações corpóreo-sensitivas nos instantes

misteriosos do candomblé comparável à vulnerabilidade dos mistérios da arte. Algo que

nos toma por seus conteúdos manifestos e por seus conteúdos latentes, muito embora

não sejamos capazes de decifrá-los na íntegra, ainda que os percebamos. 32

32
O movimento desaparece. Ele marca o passar do tempo. É sinal e sintoma de que a presença é um
lugar freqüentado pela ausência (PEGGY PHELAN, 1998). A presença que escapa é exatamente o que
instiga a necessidade de escrever sobre a dança, de estudar a teoria da dança, criando pontes de ligação
entre a palavra e o movimento que tornam o limite entre elas algo indecifrável e co-dependente. E com a
noção de desconstrução, de traço e diferença de Derrida, ele proporciona os estudos da dança e investiga a
questão da mulher nos estudos de Nietzsche, quando este escreve sobre a mulher como uma dança à
distância. Essa distância crítica que coloca a dança da mulher fora de uma possibilidade de entendimento,
de conhecimento é similar à assimetria de Noverre que localiza a materialidade como resistência que não
pode ser alcançada nem na dança, nem na escrita. Dança então é feminilidade. (LEPÉCKI, 2004, pp.124 a
139)
213

Assim me sinto nas festas de candomblé, em especial naquela festa

de Xangô, aquela noite. Não sou mais capaz de observar a cena. Ao

contrário, a emoção enleva e calorosamente, contagiosamente bato

palmas inserindo-me na cena. Arrisco balbuciar os orikis mais

familiares, ouvindo Dona Naná e lendo os lábios das pessoas. Estou

vulnerável à ambigüidade de observadora-participante daquela arte-

ritual. Sou parte de um discurso simbólico, onde a arte - dança, canto,

música, poesia - é uma maneira utilizada para transmitir mensagens.

Um discurso que manifesta valores estéticos, filosóficos, sociais,

religiosos e inevitavelmente políticos daquela comunidade.

Os Orixás estão na terra. Os movimentos firmes de Ogum

transformam seu braço direito em escudo, o esquerdo em espada

demonstrando sua firmeza e força para enfrentar as dificuldades, a

guerra e abrir os caminhos.

Os movimentos de Iansã evocam os ventos, os raios e as

tempestades em sua sinuosidade e rapidez, transparecendo sua altivez,

seu caráter de mulher guerreira, bravia, audaciosa e impetuosa. Com

seus braços abertos e arredondados, palmas da mão para fora, frente ao

seu rosto traça, em certos momentos, movimentos redondos repelindo

forças indesejáveis.

Nanã! Divindade das águas paradas, da lama, do barro. Senhora

idosa que dança com o corpo bem inclinado para frente e em certos

momentos, com os punhos cerrados se apóia em um cajado imaginário,

aos nossos olhos, flexionando os joelhos numa cadência marcante e

precisa.

São três os Xangô que chegam. Eles têm as mesmas características

vibrantes, quentes e marcantes, contudo, guardam certa serenidade nos

movimentos mais sutis de sua dança, a exemplo do jinká (a ginga) dos

ombros e sua extensão aos braços, ora com as mãos cerradas, ora

apontando o dedo indicador, representando seus oxés. Quando Xangô

dança, animosidade se espalha pelo barracão. As palmas são veementes,


214

as saudações são surpresas que ecoam, inesperadamente, de um canto ou

de outro do barracão: Kawo-Kabiyesilé!! Vozes. Masculinas. Femininas.

Uma atmosfera aquecida pelos movimentos vibrantes. Meu coração

acelera quando num contratempo com o pé direito acompanhado de um

passo ao lado com o pé esquerdo, Ele se desloca em círculo abençoando a

todos os presentes, exprimindo sua força, contagiando o ambiente. Ao

passar na minha frente, abaixo a cabeça e suspendo as palmas das

mãos. O interminável número de repetições do mesmo gesto frente a um

Orixá, sem questionar o porquê, me faz entender o ato de abaixar a

cabeça e de levantar as palmas das mãos como uma atitude, ao mesmo

tempo, de respeito e disponibilidade para receber seu axé. Observo as

crianças, que observam Xangô.

Browning afirma que:

[...] Lemos a dança, por isso ela se refere às danças dos orixás, embora
elas não sejam coreografadas no sentido ocidental. Elas constituem
uma forma de escrita, as quais são lidas de forma significativa na
comunidade. O dançarino num estado de incorporação de um orixá
não é um escritor da dança, ele se torna o texto escrito pelo orixá. Nos
anos oitenta os blocos de carnaval da Bahia começaram a utilizar a
cultura dos orixás para criar mudança política. Esse apelo coletivo
pelo sentido da cultura orixá, a mudança na forma deveria ser
considerado como um ato de revisão divina, ou re-escrita, de acordo
com as mudanças no contexto sociocultural. Significado –
readaptabilidade – depende da autoridade dos deuses. [...]
(BROWNING, 1995, p.50) 33

As crianças se prostram de pé, ao lado dos alabés, bem à minha

frente. Concentradas observam cada gesto, de cada Orixá e imitam a

dança. Cada contratempo do pé é seguido, mão voltada para cima ou

33
Aproveito as palavras de Browning para contextualizar minha chegada na Bahia que aconteceu
exatamente num momento forte de utilização da cultura como política. Fato que deu lugar a uma maneira
de perceber a cultura baiana religada ao mundo religioso do candomblé e que hoje inspira uma forma de
pesquisa que respeita e reivindica a autoridade de Xangô para a readaptação da performance em seus
limites indefiníveis entre palavra e movimento, texto e dança. O contato com Mãe Stella a partir do
primeiro encontro no dia 24 de julho de 2006, indicará a reflexão crítica em torno das questões que
envolvem o candomblé e a minha localização em torno delas que fatalmente são expressas na dissertação
e na demonstração performativa desse estudo.
215

para baixo, aberta ou fechada, é imitada. É uma tradução da tradição

(HALL, 1991). Uma transformação a cada nova execução, a cada novo


performer. Performance, no sentido de uma atitude performática, pois

que seja inconsciente, o interesse das crianças dá continuidade, ainda

que espontânea, à simbologia dos ritos do candomblé. Continuidade de

repertório oral e corporal que com o decorrer do tempo são recriados e

transformados.

Trago aqui as palavras de Ildásio Tavares a respeito de Xangô, com o intuito de


afirmar a interconexão encontrada pelo autor, entre as renovações operadas pela
espontaneidade infantil com a expressão do negro brasileiro:

Uma majestade guerreira, um justiceiro, símbolo da vida, de realeza


do negro, de luta, de tenacidade e de erotismo, Xangô figura como o
intenso fogo que alimentou a resistência escrava, que aqueceu, que
temperou, que vivificou a coesão negra, como se reúnem todos, hoje,
em torno às grandes fogueiras de São João onde os negros, fingindo
adorar São João menino, cultuavam Aganju, o Xangô Infante, energia
incontrolável do magma que, reprimido por camadas e camadas de
terra, um dia rebenta num terremoto, eclode no vulcão, como haveria
de eclodir o negro brasileiro um dia, apesar da repressão. (TAVARES,
2002, pp. 68,69).

A festa da mãe de Xangô, Iyamassé, última do ciclo de doze dias,

traz esse sentimento denso de vulcão, aquecido pelo fogo de Xangô,

emanado pelo barracão em gestos calorosos, que ao toque do alujá, se

ampliam e se dilatam. A coesão do Ilê Axé Opô Afonjá, acontece em

torno do rei com gritos, palmas, sussurros, cantos, música, dança e

abraços. As mensagens enviadas são interpretadas em níveis distintos, a

depender do grau de conhecimento e de sensibilidade dos presentes para

com esta religião.

A ekéde Kátia seca o suor do rosto de um Xangô. Os canais de

visão do Orixá são outros, com os olhos fechados ele entende a

aproximação da ekede para enxugá-lo, para pegar seus oxés nos

momentos mais eloqüentes de sua dança, quando toca o alujá.


216

Transpira, anda de um lado a outro. Não consegue parar. A cena de

Kátia se aproximando dele se repete. Essa relação de um ser mortal com

um espírito que se apresenta de forma tão corriqueira é especial. É uma

demonstração da existência da ligação entre esses dois mundos

aparentemente distintos: nosso mundo materialmente palpável e o

mundo abstrato dos espíritos.

Uma senhora canta. Pergunto a Dona Naná qual é o seu nome,

pois ela chamou a minha atenção. Ela responde: “o nome dela é Tutuca e seu

cargo é ogalá, ‘puxadora de canto’”. A intensidade das palmas aumenta com o


canto. Alguns participantes insinuam uns movimentos de braços e pés.

O aprendizado se dá no cotidiano e no contato com muitos dos

detentores dos saberes do candomblé.

Quando começa o hino do Afonjá, a roda de Xangô se forma

novamente, começa o toque do batá e a alegria culmina naquele fim de

festa, cujo tempo ficou suspenso. Três horas corridas com a sensação de

um dia. A roda se dispersa aleatoriamente, da mesma forma que se

concentrou. Os Orixás saem pela porta da frente.

Os alabés não querem parar de tocar. Eu não quero sair do

barracão. O alujá me toma, não consigo sair do lugar. Paro na frente

dos tocadores e observo. Meu coração acelera e minha temperatura

aumenta. Quero dançar. Contenho-me. Danço por dentro. Pai Dario

ameaça uns passos certeiros no ritmo e mínimos na sua inscrição no

espaço. Adrianinho está entusiasmado, sai de uma percussão à outra. A

troca entre os músicos é tão harmônica que na música nem se sente.

Não há quebras. Olho para as mãos de Adrianinho batendo forte no

couro. Elas soam como despedida. O alujá esquenta. Essa sensação

confirma a similaridade rítmica do alujá e do Bugarabu que inspira

fogo e explode em movimento. Concentrei essa sensação na batida

rítmica sutil do meu pé direito. De repente acabou. Desapareceu.

Rumo à porta de saída eu vejo Xangô entrando acompanhado de

uma ekéde. O coração dispara. Derreto por dentro. Peço a benção.


217

Estamos frente a frente. Xangô me abraça. No calor desse abraço seu

suor umedece a minha pele e eu compreendo o fogo que se transforma

em água...

Está encerrado o ciclo de festas de Xangô no Afonjá. A próxima grande festa do

calendário anual dedicada a Xangô, o ajabalá, ocorre durante o ciclo de Oxalá, numa

quarta-feira de outubro. Nesse dia um grupo de filhas-de-santo, em geral filhas de Iansã

ou Oxum, as esposas do rei, trazem para o centro do barracão uma grande gamela com o

amalá, que depois de uma louvação a Xangô é oferecido a todos os presentes. No

decorrer da festa Iansã divide mais um mistério com Xangô, o mistério do pano

vermelho, agbala pupu, envolvendo os filhos e amigos do terreiro a fim de representar

seu poder de expansão e sua proteção como o Orixá da vida, detentor de uma magia

poderosa contra a morte. (LIMA, 2004)

O tratamento do material conduziu à teorização sobre os dados, produzindo o

confronto entre a abordagem teórica e o que a investigação de campo apontou de

singular, que serviu de contribuição para os aspectos formadores e transformadores da

escrita etnográfica. É o que entendo como um exercício da etnografia e, portanto de

acordo com James Clifford (2002), uma atividade.

A análise comparativa entre dois anos de trabalho de campo: a proposta de

compor o trabalho de campo em duas etapas, correspondentes a dois anos, revela na

análise comparativa a complexidade que envolve a repetição. A repetição denuncia a

efemeridade e, por conseguinte a peculiaridade de cada momento que a experiência

vivida permite desfrutar e compilar em nossa memória. A escrita e a encenação são

alternativas de comunicação interativa dessa experiência vivida guardada na memória.

Além disso, é também de onde podem ser retirados valores repetitivos e/ou variáveis de

comportamento sócio-político culturais. Por exemplo: a estratégia de organização da


218

narrativa de uma mesma festa na dissertação em 2005 e logo em seguida em 2006 é um

elemento que facilita, ao criador e ao leitor da escrita, o exercício de comparação de

aspectos emergentes relevantes no candomblé, por meio da observação. Alguns aspectos

são mais estáveis e outros mais vulneráveis às intempéries, de um universo que

compreende a religião, a arte e a cultura como peixes das mesmas águas. Um universo

de reis e rainhas destronados de seus altares, mas não de suas almas. Nas festas, a

presentificação dos mitos que se dá através da dança e da música, através de relações

amorosas e de poder, anuncia questões sociais, políticas e culturais impregnadas dos

valores religiosos que fundamentaram o surgimento do candomblé no Brasil. A imensa

variedade de interpretações e transformações, a cada festa, a cada terreiro e nação,

cidade ou estado brasileiro denunciam a diversidade e a interpenetração mútua cultural,

e fatalmente política que Renato da Silveira anuncia com as seguintes palavras, na

entrevista mencionada anteriormente à Folha da Bahia:

O candomblé da Barroquinha fez uma coisa que não existia na África,


que foi a reunião do culto de todos os orixás no mesmo espaço.
Naquele momento, isso foi bom para os africanos porque funcionou
como pacto político, já que estavam vivendo sob um regime de
opressão, escravizados. (SILVEIRA, 2007)

Como pesquisadora que ousa penetrar num terreno tão delicado, parto do

princípio que a observação, o silêncio e a palavra são artefatos imprescindíveis para o

êxito da pesquisa nessa esfera religiosa. Por esse motivo, deixo as festas escritas dessa

maneira para facilitar a análise do leitor que fica, igualmente, sujeito às minhas

condições para interpretar a complexa religião do candomblé a partir da sua dança e da

sua música. Para dar mais um exemplo das minhas intenções com a maneira que

organizo o discurso na escrita, escolhi oferecer ao leitor explicações de diversos autores

para dizer o que vem a ser o xerê, instrumento utilizado nos rituais de Xangô, que
219

somente Mãe Stella e os obás podem tocar. As interpretações mostram a variedade de

enfoques, denuncia diferentes mitos e a versatilidade de materiais utilizados na

confecção do xerê. Por outro lado, afirmam sua função e conteúdo dentro dos rituais de

Xangô. Isso só foi possível ser detectado pela repetição de vezes que presenciei sua

utilização e li a seu respeito. A ferramenta principal para adquirir tais considerações foi

novamente a observação da efemeridade de cada instante a cada repetição. A repetição é

o impulso da transformação, o que a partir da filosofia que envolve o comportamento de

Mãe Stella, se traduz no entrosamento entre a preservação e mudança. Outra questão

importante a ser levantada a partir da análise de dados do trabalho de campo foi a

oportunidade de afirmar e descobrir elementos das danças de Xangô e do Bugarabu,

como - os siwaness e o xerê, os claps e as palmas - que caracterizaram a interpenetração

que Fayee e eu provocamos entre nossas e outras culturas com as transformações

realizadas em nosso trabalho.

Ainda que o conteúdo e os procedimentos das cerimônias litúrgicas do ciclo de

festas de Xangô se mantenham, as variáveis internas e externas são imprevistos que

trans-formam (mudam as formas) e conferem um caráter de dinamicidade às

comemorações. Por sua vez, isso afirma que a adaptabilidade é imprescindível, mesmo

num ambiente de preservação cultural, como é o caso do candomblé, porque a religião,

a arte, enfim, a vida é dinâmica. Para explicitar cito a festa de Efá, no dia 05 de julho de

2006, quando a falta de luz exigiu adaptações, persistência e provocou transformações.


220

5.4.11 Os encontros com Mãe Stella de Oxossi

a) 24/07/2006 – Casa de Xangô

Esse primeiro encontro aconteceu numa segunda-feira e quem marcou com Mãe

Stella foi Dona Naná.

Um momento de apreensão...
Um pulo no inesperado...
Um salto no imprevisível...
Uma alegria latente...

Dona Naná está vestida de branco, em frente à casa de Xangô.

Transmite sua tranqüilidade e apoio... Diz para eu esperar... E vai

embora... Fico com outra filha da casa para aguardar Mãe Stella que

chega dentro de alguns minutos. Aguardo o convite para entrar e

quando piso na sala de Xangô ela está sentada ao lado de um amigo da

casa. Peço licença para entrar, caminho em sua direção e peço a benção

à mãe de santo... “Deus te abençoe”... Sorrindo, ela me oferece o sofá para

sentar... Digo meu nome... Relembro a marcação do encontro com dona

Naná... Mãe Stella pergunta:

- Qual é o trabalho que você desenvolve?

Sentindo o sangue subir até o rosto, eu destrincho um pequeno

histórico:

- Sou mestranda do Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas


da UFBA e o objeto da pesquisa que desenvolvo aborda uma dança de

Gâmbia, o Bugarabu, em diálogo com a dança de Xangô a partir da

percepção corporal da minha experiência, que será apresentada em

forma de memória, etnografia e encenação. No ano passado, através da

colega de mestrado Nadir Nóbrega, eu fui apresentada à ebomi e filha

de Xangô desta casa, Dona Detinha, que com muito carinho me

concedeu uma entrevista. Nesta oportunidade ela propôs que eu

assistisse ao ciclo de festas de Xangô e depois sugeriu que conversasse


221

com Dona Naná e nos tornamos muito amigas desde então. E quanto ao

ciclo das festas de Xangô, assisti no ano passado e neste ano.

Mãe Stella, durante esses dois anos eu cultivei uma vontade

grande de conhecê-la, de conversar com a senhora e falar da minha

pesquisa. Tenho um profundo respeito e admiração pela senhora, que

aumentaram a partir de um convívio maior com a comunidade do

Afonjá e das leituras dos seus depoimentos em livros, tais como

Expressões de Sabedoria, Mãe Stella de Oxossi – perfil de uma liderança

religiosa e, em especial, falas em palestras. O que aprendi com isso é que

tudo tem seu tempo certo, este tempo é agora. Eu acredito muito no

tempo.

Um dos aspectos de extrema importância para Mãe Stella - a ialorixá portadora

da ‘estabilidade flexível’ do arco e da flecha de Oxossi - é o tipo de abordagem que

pesquisadores, em especial artistas lançam mão para desenvolverem seus trabalhos. Ela

tinha lançado essa questão com dona Naná. Então Mãe Stella diz:

- Não concordo com um estudo e um discurso sobre os orixás calcado numa

visão folclórica e por essa razão, tratada de forma equivocada. Candomblé é religião,

não é folclore.

- Concordo com sua opinião. Percebo a necessidade de explicar as

vias e parâmetros com os quais observei, aprendi e internalizei a dança

‘afro’, a partir dos aprendizados que adquiri com os dançarinos:

Rosângela Silvestre e Augusto Omolu34. Apesar de carregarem consigo

especificidades distintas, geradoras de criações e estilos também

distintos, ambos têm suas inspirações na cultura baiana que circundou

suas vidas e que os levou a dar ênfase às danças dos orixás, em suas

34
Uma reflexão: quando conheci Rosângela e Augusto, estes artistas já utilizavam aspectos da religião do
candomblé em seus trabalhos e em seus comportamentos, de uma maneira diferenciada dos espetáculos
folclóricos de Salvador. Cada qual em seu estilo, eles combinava muito bem o respeito religioso com a
ousadia da criatividade artística. Eram aspectos profissionais vitais, já que as fontes religiosas que bebiam
estavam enredadas em suas vidas, enquanto arte e enquanto cultura. Foi com este cartão de visita que fui
apresentada ao candomblé e à dança afro-brasileira em Salvador.
222

jornadas artísticas. Sabedores dos limites que acabam por traçar

fronteiras entre o aspecto religioso do candomblé e o aspecto artístico

dos rituais religiosos que o constituem, localizados exatamente nessa

nuvem fronteiriça do seu fazer artístico, eles utilizaram deste desafio,

para expandirem sua criatividade e conferirem singularidade a seus

estilos.

- A partir dessas duas principais visões e posturas artísticas eu

passei a ter contato com o universo infindo e mágico do candomblé,

para posteriormente, observar nas festas e nos rituais abertos que

caracterizam estas religiões, as danças executadas pelos próprios, orixás

manifestados nos corpos de seus filhos. Considero esta, uma outra forma

de aprender, de apreender, por sinal, a principal via para a elaboração

do trabalho de campo que desenvolvo através da observação do ciclo das

festas de Xangô no Afonjá, durante esses dois anos.

Explico que a similaridade rítmica do alujá e do Bugarabu foi a

primeira entre outras convergências que, a partir dali, estimularam a

reflexão e a dedicação para, com um olhar mais apurado, estudar

ambas as danças, das quais pincei dois focos primordiais: a

transculturalidade e o elemento simbólico do fogo.

A estratégia adotada para esta etnografia expressa uma composição entre

momentos de reflexão que se complementam aos momentos em que as vozes dos

informantes e da pesquisadora devem ser ouvidas. Portanto, mesclo em minha escrita

etnográfica, os momentos narrativos reflexivos com os momentos da conversa com Mãe

Stella, pois o exercício de memória faz com que se crie associações favoráveis. Um

diálogo é criado. Ao mesmo tempo, a estratégia criada considera os pressupostos

sugeridos por Lüdke e André (1986) quanto à ética, respeito, maleabilidade, e também à

sensibilidade proposta por esses autores e por Edgar Morin (1996). Morin nomeia a
223

sensibilidade de escuta sensível, atitude indispensável diante da complexidade da pós-

modernidade.

Mãe Stella mostra interesse pela abordagem que proponho e

afirma:

- Xangô é fogo, é ritmo, é movimento.

A mãe de santo, já mais tranqüila com a explanação anterior e

mostrando interesse pelo objeto de estudo que eu apresentara de caráter

transcultural versando sobre a dança do Bugarabu, em convergência

com a dança de Xangô, interfere:

- Sandra, como se trata de um assunto relacionado à religião e ao terreiro de

candomblé, devemos seguir alguns procedimentos de acordo com nossos fundamentos,

e pedir licença a Xangô. Eu gostaria de ver algo escrito da sua pesquisa. Vamos marcar

um encontro?

A cada palavra de Mãe Stella, eu sinto o calor subindo pelo meu

corpo até o rosto, pois foi por um processo intuitivo que exercitei a

paciência, à espera oportuna daquele momento. Uma mistura de dar

tempo ao tempo, timidez e admiração alimentaram a atitude paciente,

ainda que a expectativa fosse aumentando, a cada dia que eu entrava

naquele portão do Afonjá. Mãe Stella pegou a agenda e marcou para

dia 28 de julho, a sexta-feira da mesma semana.

-Vamos nos encontrar aqui na casa de Xangô. Se tiver muita gente aqui nós

podemos conversar na minha casa.


224

b) 28/07/2006 – Casa de Mãe Stella

Eram dez horas da manhã do dia 28 de julho de 2006 quando eu

cheguei no Afonjá. Com a introdução e a etnografia da dissertação, o

álbum de fotos e o Cd de Gâmbia em mãos, caminho em direção àquele

portão alto da casa de Mãe Stella. Fica atrás do barracão. A voz que

atende o interfone é dela. Fico em dúvida... Espero... O coração pula! ...

Subvertendo o pensamento distanciado da pesquisa acadêmica, eu assumi para

esta narrativa os atropelos e as glórias, a fraqueza e a força, a dúvida, por considerar tais

percepções, como elementos constitutivos da natureza científica do estudo que

desenvolvo. Pois, um estudo que articula um pensamento crítico tem que deixar aflorar

da auto-reflexão, flores e espinhos, fato que transforma a atividade etnográfica e a

performática em atitude política. Essa visão analítica está de acordo com Karl Marx...

Você pode analisar e opinar sobre qualquer fenômeno cultural:


literatura, arte, música, sistema político, esporte, relações de raça, etc.
[...] Do marxismo em diante, a teoria crítica tem estabelecido uma
ligação próxima com posições políticas. [...] O valor disso está na
habilidade de permanecer engajada politicamente. Ser crítico é ser
político; representa uma intervenção num debate mais amplo do que
só a estética, e isto é algo a ser encorajado. Afinal, vivemos em
tempos interessantes politicamente. (SIM, 2001, p.5)

Essas questões são diluídas e ressurgem em traços e rastros, tanto no caráter

performático da escrita como na grafia dos movimentos, ambos em treinamento. E por

falar em treinamento contemplo aqui Renato Ferracini, cuja idéia de treinamento está

inserida no mais abrangente dos sentidos: “O caminho a ser escolhido para tal, depende

de cada um, contudo, treinar se constitui voltar-se para um caminho que pode abrigar

um tempo e espaço limitado para ‘ensaiar’ ou, além disso, se expandir a outra esfera

espaço-temporal.” Continuo seu pensamento e explico que, dessa maneira aguçamos a


225

percepção, de nós mesmos e do outro, com a certeza de que essas sensações

subliminares são elementos fundantes da opção de caminho, da feitura do discurso. Para

Ferracini, baseado na ‘Modernidade Líquida’ proposta por Bauman (2001) a

performance em si é a diluição das bordas do conceito, da pureza, da técnica, da

verdade, da tradição, umas nas outras. A partir desta interpretação amplificada de

treinamento, as interferências dos pensamentos teóricos durante a criação desta escrita

são interfaces do caminho que escolhi. Em outras palavras, esta é uma opção de

treinamento para a criação da escrita e para o estímulo da encenação. 35

Mãe Stella abre o portão e um cachorro enorme esbarra em mim e

sai. Ela o chama e diz: ficou paralisada? Sim. Toda a apreensão do encontro

se esvaiu para os sentidos e para as trans-formações ‘físicas’

manifestadas naquele susto. Pedi licença para entrar e fui convidada a

sentar com Mãe Stella num hall, acima da escada. As duas poltronas

ficam de frente para a escada, de onde se vê a sala no térreo, cuja

decoração apresenta símbolos dos orixás, em especial de Xangô, patrono

do Afonjá e de Oxossi, seu orixá protetor.

Foram duas horas de aprendizados e trocas. O ponto de partida

foi o álbum da viagem para Gâmbia em 1996, os escritos da dissertação

que levava em mãos, e as associações entre a cultura africana e o

candomblé que emergiram da nossa conversa. Chamo aqui de cultura

africana, pois entre as experiências das duas com essa cultura, o oeste

africano se evidenciou. Por outro lado, nos referíamos à África como

continente de terceiro mundo colonizado, assim como o foi a América

Latina. Nossas preocupações no decorrer das nossas falas diziam

respeito às nossas posturas frente à vida social, religiosa, cultural e

fatalmente política dos caminhos que trilhamos e criamos. Esmiuçar

35
Os comentários de Ferracini neste parágrafo são referentes às suas palavras como: (Participante da
banca de defesa de Mônica Mello na Escola de Teatro da UFBA; e, Aula – espetáculo na Aliança
Francesa, ambas em Salvador 28/09/2006).
226

nosso território pessoal nos trânsitos da vida faz ressoar os aspectos

filosóficos e políticos neles contidos. Para exemplificar me refiro à

estabilidade flexível que caracteriza o espírito de liderança feminina

tão presente na personalidade de Mãe Stella com iniciativas criadoras

de tantas transformações e diálogos na comunidade local e que se dilui

em outros terrenos desta e de outras cidades, dentro e fora do país. Uma

dessas iniciativas é a carta onde Mãe Stella com outras ialorixás do

candomblé de Salvador, afirmam que o sincretismo foi uma estratégia

do passado, não necessária no presente que se caracteriza pelos mais

diversos diálogos. 36

No que concerne às fotos de Gâmbia, dialogamos sobre o

pensamento controverso de Fayee, ao mesmo tempo tradicional e

flexível. Sobre o vinho de palma, a comida, o chá ataya, a cola (o obi), as

roupas, fatores de expressão dos valores e costumes que permeiam os

povos da região de Casamance e de Gâmbia, baseados no respeito e

comunicação alegre, a despeito dos sofrimentos. Abordei as minúcias do

instrumento e da dança do Bugarabu, os claps, os guizos (siwagness) e

sobre o toque 6/8 que confere uma das relações primordiais deste estudo.

Levei comigo o Cd do Senegal que Vivaldo da Costa Lima cedeu para

enriquecer a pesquisa, ouvimos juntas a faixa específica do ritmo do

Bugarabu, e prometi uma cópia que a entreguei em outro dia.

Eu estava emocionada e feliz. Impossível adotar uma postura de

pesquisadora objetiva, fria e distante. Mesmo porque não acredito que

dessa maneira estaria recebendo aquela atenção, nem meus sentidos

teriam condições de articular nossas diferenças e convergências numa

relação harmônica. Através das sensações psicofísicas de emoção se

criava um campo de tranqüilidade no falar, no ouvir e no trocar.

36
Esta carta foi apresentada uma primeira vez na II Conferência Mundial de tradição dos Orixás e Cultura
e posteriormente foi reformulada numa versão mais detalhada. As duas versões estão escritas no livro,
Mãe Stella de Oxossi, perfil de uma liderança religiosa. (CAMPOS, 2003, p. 44 a 48)
227

Nesse ‘estado’ eu pontuei aspectos relevantes dessa trajetória

narrados na apresentação do trabalho de dissertação para que Mãe

Stella pudesse dar sua contribuição. Neste capítulo III, referente à

etnografia do trabalho de campo no Afonjá, pincei trechos onde estava

insegura sobre a forma que havia abordado certas questões para que

Mãe Stella fizesse alguns esclarecimentos, e desse ou não, a permissão

para citar nomes de pessoas do terreiro que são mencionadas no corpo

dessa escritura. Ela concedeu.

Dentre outras constatações, está o fato de que muitas atividades

cotidianas que tivemos oportunidade de vivenciar em nossas viagens,

convivências e leituras sobre a África e a Diáspora, foram

transladadas, trans-relacionadas e trans-criadas na Bahia e no Brasil,

como fundamentos religiosos do candomblé.

Mãe Stella diz: “o que é cultura na África, é religião aqui”.

c) 16/03/2007 – Casa de Mãe Stella

Nesse dia visitei Mãe Stella para lhe dar um presente e convidá-la

para a defesa de mestrado. Uma moça me pediu para esperar na sala e

nos minutos que fiquei ali, eu via a sua presença em todos os cantos,

móveis, estatuetas, pintura, esculturas. Aquele silêncio me falava dela,

mostrava sua sublimidade, transcendia o tempo... e eu a via... até que a

vi... Sentada ao meu lado afirmando que devemos entender a escolha da

fonte onde queremos beber... E mais, uma preocupação com o

aquecimento global, resultante de comportamentos tão contrastantes

aos que a oralidade do candomblé espera frente às águas salgadas e às

doces, ao mato, ao vento, às montanhas, enfim, a todos os veículos

portadores do AXÉ!
6. CAPITULO IV

Okutá orun iná otá – O fogo que vem do céu se trans-forma em pedra

6.1 Nos caminhos da encenação

Lau Santos e eu criamos o título da encenação, a partir da associação simbólica

entre as palavras tiradas dos dois dicionários citados em nota, combinadas com a

descrição de Ildásio Tavares acerca do meteorito, como uma imagem representativa da

pedra de Xangô.

Segundo Ildásio Tavares, é por meio de um procedimento litúrgico que a pedra

(otá) em que se assenta o Orixá condensa sua energia no iniciado. No caso específico de

Xangô, essa energia é condensada em basicamente dois tipos: a pedra do raio ou um

meteorito. A pedra do raio é o odun-ara já mencionada na lenda do fogo narrada por

Dona Naná, no capítulo II. No entendimento de Tavares, o meteorito percorre o cosmos

até chegar ao nosso planeta, num caminho que o preenche de “alto teor de concentração

energética”, produzido pela ação da força da gravidade nesse corpo cósmico em

movimento - poeira cósmica condensada pelo calor. (TAVARES, 2002)

Esse teor de concentração de energia, de calor, impulsionado pelo ritmo e pela

força da gravidade, meu corpo percebe como sensação de dança, simbolicamente fogo,

em especial, a dança de Xangô e a dança do Bugarabu. Lanço mão da 2ª lei de Newton,


229

o princípio fundamental da dinâmica, e aponto as danças (Xangô/Bugarabu) e o trajeto

percorrido pelo meteorito, como dois exemplos dessa concentração de energia, de calor,

que sob o efeito da força da gravidade geram movimento.


1
Segundo Newton, a energia é trabalho. Esse trabalho é representado por F

(força) ou P (força-peso) que é a força de campo com a qual os corpos, em especial a

Terra, atraem outros corpos. O movimento desse corpo ou massa em queda livre,

representado por m, acontece pela aceleração da gravidade, g ou a. Portanto: F = m.a

ou P = m.g. Ou seja, dialeticamente, produzir movimento, é gerar calor.

A encenação (Okutá orun iná otá) tem caráter demonstrativo, pois é a

materialização física do que eu desenvolvi durante a pesquisa. O propósito é demonstrar

através do movimento, a relação simbólica do fogo entre a dança de Xangô e a dança do

Bugarabu, e o fator de transculturalidade que a permeia.

6.2 Estudo crítico da encenação

O primeiro encontro oficial com as três pessoas envolvidas no trabalho

aconteceu no dia 05 de julho de 2006. São eles: Sandra Mascarenhas, mestranda e

dançarina; Augusto Santana, músico percussionista e Lau Santos, diretor. As idéias

foram compartilhadas e discutidas anteriormente.

No dia 12 de julho de 2006, definimos que seria uma demonstração performativa

de cinco a sete minutos e criamos um plano de ações e investigações, onde a iniciativa

1
Reitero a seguir a preocupação que Matteo Bonfitto também tem com esse termo tão abrangente e
polêmico que é a energia. “Mesmo estando ciente dos riscos ligados ao uso do termo “energia”, sobretudo
se aplicado em análises de fenômenos artísticos, optei pela sua utilização me atendo à sua definição
científica: ‘atitude de um corpo ou sistema de corpos que cumprem um trabalho’(La Nuova Enciclopédia
delle Scienze Garzanti, Milano, Garzanti, 1991, p.540). Nesse sentido, sabendo que por trabalho se
entende o produto da força pelo deslocamento, poder-se-ia considerar ‘energia’ como a resultante desse
processo aplicado ao corpo do ator, a qual se serve dos elementos (variações rítmicas, impulsos e contra-
impulsos), que por sua vez produzem diferentes níveis de tensões e oposições intermusculares”.
(BONFITTO, 2002, PP.91, 92)
230

primeira era criar uma partitura de movimentos. Com este intuito, pesquei na escrita

sobre a memória (Bugarabu) e sobre a etnografia (Xangô), pontos inspiradores para a

criação da encenação. Os elementos constitutivos que serviram de suporte para a criação

da partitura foram:

¾ Fogo - é o efeito do ritmo que acelera o pulsar do coração, gera calor e se

expressa em movimento.

¾ Pedra - materialização do fogo, o meteorito. (Ildásio Tavares)

¾ Madeira – claps, fogueira.

¾ Ferro: machado.

O processo com Augusto foi conseqüência de encontros rítmicos. Encontros e

desencontros, identificações e des-identificações. Para ventilar a memória das danças

africanas, tomamos como ponto de partida as coreografias de Youssouf Koumbassa,

gravadas em vídeo no formato didático de aula expositiva. Observar o movimento e a

qualidade rítmica dessas danças fez parte do processo de integração que culminou com

a reafirmação da seguinte analogia: a função musical do xerê de Xangô e dos guizos

(metals, siwangness) do Bugarabu.

A elaboração da partitura começou no dia 19/07/2006, numa quarta-feira, dia

dedicado a Xangô. A primeira tarefa consistiu: a) escolher quatro palavras derivadas da

palavra fogo que foram - brasa, calor, chama e centelha; b) além da palavra fogo,

escolher mais três palavras inseridas no universo simbólico da dissertação. Da pesquisa

de palavras contextualizadas na dissertação selecionamos as seguintes: Fogo,

transatlântico, pedra e céu.

A segunda tarefa foi proposta na quarta-feira dia 02/08/06. Para cada ‘pose’

(imagem) de cada uma das 4 palavras, criar duas variantes, uma maior e outra menor.

Fazer o mesmo com as derivadas de fogo.


231

Para escolher as derivadas do fogo busquei no dicionário, Larousse Escolar da

Língua Portuguesa.

¾ Fogo: manifestação de uma combustão (queima, produção de luz e calor)

rápida e persistente acompanhada da emissão de luz e de energia térmica.

Chama, labareda. Fonte de calor, lume (luz, fogo, fogueira, clarão,

brilho, fulgor), queima de matéria pelas chamas.

¾ Fogueira - lenha ou combustível em labareda, lume da lareira, fogo. Fig.

Incandescência, exaltação.

¾ Centelha – partícula que, incandescida, é projetada pra longe, faísca

luminosa. Fig. Inspiração ou brilho momentâneo.

¾ Chama – gás incandescente produzido por um material em combustão,

labareda. Fig. O que inflama a alma, paixão, ardor.

¾ Calor – qualidade daquilo que é quente. Forma de energia que se

transfere de um sistema para outro, sem transporte de massa, e que tem

como efeito elevar a temperatura, fundir, volatilizar ou decompor um

corpo. Temperatura elevada. Tempo quente. Fig. Ardor, vivacidade.

¾ Brasa – carvão incandescente sem chama. Fig. Estado de ardência.

A terceira tarefa desse processo inicial foi dada no dia 16/08/06 - quarta-feira e

consistiu em fazer uma partitura com 16 imagens. Como plano de treinamento

desenvolvi as seguintes etapas: corrida diária na praia; saudação, uma pequena partitura

inicial; aquecimento com a partitura – ordem 2 vezes, ordem inversa, velocidade

normal, sentido horário e anti-horário.

No dia 23/08/2006, mais uma quarta-feira, fizemos uma revisão do material

elaborado para construção da partitura, quando então surgiu uma seqüência que
232

decidimos ser a saudação da encenação. Ela é feita como um ritual, para os quatro

cantos do universo.

Nessa quarta-feira, 30/08/2006, Lau pediu para fazer os movimentos da partitura

associados a uma imagem/impulso. A partitura não deve mudar, o imaginário serve

como ferramenta motriz (fogo) para trabalhar a qualidade de expressão do movimento.

Na segunda-feira, dia 04/09/06, o percussionista Augusto experimentou as

células rítmicas que estávamos trabalhando, com três congas. Esta experiência nos

levou a uma proximidade maior com os ritmos do Bugarabu.

Da segunda quinzena de setembro em diante, o treinamento tem sido individual.

Uma etapa de investigação mais detalhada das possibilidades de dinâmica e de

qualidade dos movimentos da partitura para depois retornar ao trabalho em grupo, da

composição cênica.

Em um encontro com Lau foi criada a composição espacial da encenação. Ficou

decidido sobre entradas e saídas, posicionamento dos assistentes, banca e demais

detalhes sobre a performance de minha defesa, ritual no qual a encenação está inserida

em forma e conteúdo.

A partir de certo ponto do processo de criação e repetição da partitura, senti a

necessidade de um olhar externo nos ensaios, e como o diretor Lau Santos não tinha

esta disponibilidade, convidamos Ana Rita para ser a sua assistente. Como um dos

suportes para a criação de seu plano de trabalho, entreguei a dissertação a ela, à medida

que revisava a escrita.

Ana Rita é dançarina, professora, preparadora corporal e assistente de direção.

Conhecemo-nos quando entramos juntas na Escola de Dança da UFBA. Há muitos

anos, Ana se envolveu com o teatro, fazendo preparação de corpo de atores e


233

dançarinos, e desenvolveu em seu trajeto um trabalho muito voltado para a

improvisação e para a expressão corporal.

Na quarta-feira, dia 10/01/2007, apresentei o trabalho à Ana. Para iniciar, lemos

a parte da dissertação, concernente à encenação, Okutá Orun Iná Otá, e conversamos

sobre as etapas cumpridas e descritas anteriormente. Depois, fiz uma demonstração

parcial da encenação, ou seja, da partitura que criei com Lau. A dificuldade que eu já

havia percebido no meu olhar durante o processo criativo da partitura foi também um

dos primeiros pontos a ser detectado por Ana. Um problema que esbarrava na

necessidade de trabalhar com o meu imaginário, apontado previamente por Lau. O

‘olhar duro’ como chamou Ana, parecia afastar-me da possibilidade de experimentar a

subjetividade das sensações simbolizadas pelo fogo. Durante a execução da partitura,

estas sensações ficavam escondidas na racionalidade do ‘olhar duro’ que limitava a

possibilidade de expressão das dezesseis imagens criadas.

Em seguida, mostrei a seleção das fotos usada durante os Seminários de

Pesquisa em Andamento. A partir de percepções próprias, passo a falar sobre o estudo

comparativo que fiz para Ana, no intuito de salientar as semelhanças e diferenças

circunstanciais de tempo e espaço, que o deslocamento de cultura pode provocar.

Nesse caso, salientei a confecção do Bugarabu como instrumento e

a função dos elementos que compõem a sua dança, em locais distintos, ou

seja, de Gâmbia e Casamance à Holanda. Em Kanifing, Gâmbia, a

confecção do Bugarabu tem uma “amarração de cordas” diferente

daquela feita em Amsterdã, demonstrada na ilustração 21, onde

podemos ver a amarração de três bugarabus diferente do quarto deles.

Nos três iguais Fayee fez as cordas com o próprio couro da percussão e

no quarto, a amarração foi substituída por cordas de nylon.


234

Outro fato constatado é a maneira de esquentar o Bugarabu, que

se distingue entre a exposição ao calor do sol em Gâmbia, para o calor

de um aparelho de calefação na Holanda. Por um lado, isto marca a

profunda diferença climática entre os dois países e, por outro lado, a

necessidade que requer o Bugarabu de se adaptar à tecnologia para

alcançar sua devida afinação. 2

Ilustração 21– Performance no Oosterpark, Amsterdã, 1996. Foto Sandra Mascarenhas.

Outra curiosidade se refere ao suporte onde os quatro

instrumentos do Bugarabu ficam apoiados durante a performance. Em

Gâmbia, várias manifestações culturais marcam a presença do(s)

Bugarabu(s) 3
que são facilmente recostados em um suporte de madeira

cravado na areia. Em contrapartida, para os locais fechados das aulas e

performances na Holanda, foi necessário construir um suporte de aço

colocado sobre um tapete para apoiá-los, evitando dessa maneira que

escorregassem no chão duro. Em uma das salas que trabalhamos, no

2
Vale salientar que pude conviver com o uso do mesmo artifício para a afinação do djembé, ou seja, a
calefação, durante todo o período que vivi na Holanda, tanto para as apresentações como para as aulas de
percussão. Essa prática ritualística contribuiu para estreitar a relação entre o instrumento e a pessoa que
toca, que deve sentir sua temperatura e o som que ressoa do seu couro durante o processo de
aquecimento.
3
Tenho a dizer que a denominação Bugarabu é usada tanto para um instrumento, como para o conjunto
do Bugarabu.
235

Centro Cultural De Tulip, Amsterdã, uma terceira opção de apoio para

o Bugarabu acabou sendo muito interessante para mim. Era um banco

de madeira comprido que ficava em cima do tapete e cujo encosto servia

de apoio para ambos: o Bugarabu e as minhas costas. Cabe ressaltar que

sentar naquele banco para observar e conduzir os alunos com os claps

em minhas mãos, fez com que eu desenvolvesse uma outra percepção do

ritmo que ressoava das mãos de Fayee pelo toque no Bugarabu, e

vibrava no meu corpo. Exercitei uma prática distinta de percepção do

som, a de perceber o ritmo com o corpo todo a partir das minhas costas,

sem a necessidade de nos olharmos. Começar, parar, recomeçar, fazer

uma pausa e continuar eram procedimentos aguçados pela percepção

tátil e audível. Naquelas condições, os sentidos da visão deixavam de ser

imprescindíveis para a percepção rítmica.

Ainda com o recurso das fotos mostrei a Ana Rita, Malan, o professor de

percussão de Fayee, confeccionando os pauzinhos (claps) que foram utilizados nas

nossas aulas de dança na Holanda. Finalmente coloquei a música chamada Bugarabu do

Cd Senegal, mencionada nos anexos, que trouxe novo tipo de informação para esta

pesquisa, pois anuncia o caráter ritualístico do Bugarabu. Essa música ilustra o terceiro

momento do segundo dia do ritual da colheita de arroz em Diakoye Bahaanga,

conhecido como coro masculino. Torna-se visível que abordar a dança e a música do

ritual Lebounaye, alguns elementos indispensáveis e corriqueiros que são encontrados

em contextos distintos da manifestação dançante do Bugarabu ressurgiram e

requisitaram serem tratados no decorrer da dissertação. Alguns dos elementos

convergentes e dos divergentes são as constatações transculturais mencionadas acima.

As funções e as formas é que variavam a depender do contexto em que são

desenvolvidas. Como mostra a foto abaixo, as percussões são somente três e como mais

uma alternativa, elas são apoiadas, uma a uma, num pilão de cabeça para baixo.
236

Ilustração 22 - Segundo dia do ritual da colheita do arroz – Prospecto CD coleção Prophet

No dia 12/01/2007, fizemos uma reunião de integração com Ana, Lau e eu.

Tratamos sobre as questões práticas de produção e Lau expôs sua proposta de

encenação (por as imagens em cena) e de que forma funcionaria a performance da

defesa.

Nesse dia Ana escolheu exercícios que trabalharam com o olhar. O olhar é uma

dificuldade que muitos de nós, dançarinos e bailarinos, encontramos pela própria

condição de aprendizagem mecanizada do olhar que sempre foca um ponto no infinito.

Como conseqüência, esta forma de aprender fragmenta nosso instrumento de trabalho

em duas partes, cabeça e corpo. Por esta razão, a proposta do exercício era esquecer da

função dos objetos encontrados e direcionar minha percepção para as prováveis

sensações que eles viessem a suscitar, ao me aproximar ou me distanciar deles. Como


237

resultado desta experiência, pude perceber que meu pensamento ainda com resquícios

de racionalidade, dificultava dar asas à imaginação. Terminada essa parte executei a

partitura novamente e apesar da dificuldade Ana notificou que, em relação ao primeiro

dia, meu olhar já estava mais próximo e presente em meus movimentos.

Como etapa do treinamento individual, a opção de correr na praia de três a

quatro vezes por semana, é um exercício que tem funcionado como meditação e como

busca da sensação de exaustão que as danças aqui analisadas provocam. No dia

17/01/2007, mais uma quarta-feira de ensaio, nós avaliamos a minha necessidade de

experimentar o fogo da exaustão, para entrar num campo mais subjetivo e assim soltar a

imaginação e estimular a criatividade.

No próximo ensaio, 19/01/2007, uma sexta-feira, Ana aplicou um exercício em

que eu pude experimentar diversas situações no ambiente que tem sido há um ano, meu

local de treinamento, a praia. Na quarta-feira, dia 24/01/2007, com a intenção de

mostrar o fogo no movimento dancei o alujá de Xangô com o cd, Rwm dos orixás, e o

ritmo do Bugarabu do Cd, Senegal, já mencionado antes.

Coincidentemente, desde o início os encontros e ensaios da encenação têm sido

às quartas-feiras, dia de Xangô, como este no dia 31/01/2007, quando fizemos uma

revisão dos encontros anteriores. O comentário de Ana foi que a precisão do movimento

é forte, mas ela quer mais, quer o momento de pedra ou o momento de fogo, no olho e

no rosto. Quer sentir o fogo chamuscar nela.

Na quinta-feira, dia 01/02/2007, o exercício de improvisação teve como


elemento norteador uma vela. A tarefa era imaginar sua cor, tamanho e acendê-la.

Na minha imaginação ela já chegou acesa. A partir de então, o

procedimento era concentrar-se em sua chama e lentamente deixar que

ela fosse crescendo e tomando conta do corpo todo, quando este passava
238

a se movimentar como o fogo que havia se espalhado. Da centelha ao

fogo e do fogo à brasa. No momento da brasa, o fogo já havia esvaído e

restava somente a suave ardência da brasa oscilante.

Na avaliação, eu havia me sentido mais entregue hoje e Ana tinha conseguido


perceber o fogo e a brasa que exprimi com o corpo inteiro, inclusive pela expressão
facial. Uma circunstância interessante foi constatada, ou seja, o fato de que na grande
maioria das vezes que fiz um trabalho, atuei como dançarina e coreógrafa, salvo
algumas vezes que participei em trabalhos de outros diretores. Na maioria das
produções artísticas que criei em minha carreira até então, tinha a autonomia e a
responsabilidade por minha parte no todo.

Esta é a primeira vez que estou sendo minuciosamente estudada

por um olhar externo no processo de treinamento e ensaio. Isto implica

num confronto mais intenso com as dificuldades e facilidades

emergentes.

Dia 09/02/2007, uma sexta-feira, nós trabalhamos o acelerar e o desacelerar do

movimento, que me transportou às análises corporais que realizava quando era modelo

para artistas plásticos em Amsterdã, onde mobilidade e imobilidade se confundiam na

ebulição interna, por exemplo, de estar imóvel durante 1, 5, 10, 20, 40 minutos ou uma

hora.

Dia 14/02/2007 foi uma quarta-feira, o dia em que fiz a partitura,

imaginando estar em algum outro lugar e eu estava na salinha lá de

Floripa. Via os verdes todos ao redor e eu me senti muito bem lá. Era

realmente estar em casa. O cheiro do mato, da madeira do chão. A lua

cheia atravessando a telha transparente, no teto. Fiz com prazer.


239

Estava inteira nos movimentos. Ana utilizou uma música de Naná

Vasconcelos.

Devido aos feriados de carnaval, entrega da dissertação para Fernandinho no dia


01/03, devolução 07/03, entrega para a banca dia 23/03, acontecia o retorno, dia
09/03/2007, sexta-feira. Para Ana ficou claro nesse dia a minha intenção através do não
movimento, que tinha expressão.

Foi o dia de uma improvisação com uma música clássica.

Primeiramente, eu era o violino nos movimentos que saíam do meu

corpo e depois eu observava uma orquestra.

28/03/2007 – Quarta-feira

• Relaxamento sentindo a respiração, com a música do Spirit of Africa.

Espreguiçando até ficar de pé.

• Andar e ir acelerando aos poucos até estar quase correndo e a cada palma de
Ana se voltar para o lado oposto. Um pega-pega. Voltar à aceleração normal do
coração e da respiração. A sensação de cansaço que eu gosto porque
solta a mente.

• Caminhada sentindo a planta dos pés no chão, alternada com a ponta dos pés, o

calcanhar, borda externa e borda interna. Percepção do uso da coluna e da bunda

que se inclina para compensar o peso. Além disso, percebi o uso dos músculos

anteriores e posteriores das pernas. Terminou com o balancinho do calcanhar

que aumentando vão se tornando pulinhos onde o corpo fica mole e entregue

jogando fora todas as partes do corpo.

• Sentar cômoda e relaxada e perceber a sensação do quente no corpo todo.


Nesse momento senti e ouvi as batidas do coração e o corpo era
240

um todo. E com essa sensação Ana começou a me dar objetos para

que, de olhos fechados, eu os tocasse e sentisse a textura, o

tamanho, a forma, o cheiro e explorasse as possibilidades de

manuseio com eles. O que ficou mais forte foi o pauzinho do sabar

e a almofada. Detalhe: fiquei na expectativa de pegar a sapatilha

de balé o tempo todo.

Ana comentou que minhas expressões com os olhos fechados dizem mais do que

quando abro o olho e ela quer explorar exatamente isso. Expressar com os olhos abertos

e ir mais até as últimas conseqüências, ou seja, exagerar.

31/03/2007 – Sábado

• O primeiro exercício desse dia foi caminhar e parar com palmas, acelerando a

cada palma sem correr, até cansar. O segundo foi o mesmo exercício sendo que

nas paradas me mantinha em um pé só. Retroceder no ritmo aos poucos até estar

parada novamente. Sentir a temperatura do corpo e o pulsar do coração.

Desmanchar até chegar no chão.

• Pensar numa comida na seguinte ordem: cheiro, consistência, imagem, local. Eu

pensei na comida de uma festa que tinha ido há pouco tempo. Mostrar as

sensações disso com o corpo. Depois Ana falava uma dessas palavras e eu tinha

que expressá-la em meus movimentos, enquanto caminhava sem parar

Senti dificuldade de demonstrar as sensações por não conseguir

simplesmente vivenciá-las, sem pensar nelas.


241

Na terça-feira, 03/04/2007, fizemos uma reunião para tratar de assuntos

pendentes e traçamos um plano de ações iniciativas para a realização da performance

defesa. Assuntos tratados:

I. Construção da coreografia – conceitual. Montar sem percussão. OBS:

Buscar a relação emoção/sentimento e a dança/ritmo – FOGO (imaginário) =

TEATRALIDADE.

II. Organização do Espaço

III. Cronograma

IV. Formação de uma rede de colaboradores

V. Programa/convite

Como acontece usualmente, nesta quinta-feira, dia 05/04/2007, o trabalho começou

com relaxamento, acordando com as extremidades, pés e mãos. Alongamento que

finalizou rolando no chão, pensando em abrir o corpo. Trabalho de respiração com

torção da coluna, colocando os joelhos no chão. Espreguiçar levantando usando todos

os níveis, até ficar de pé. Andar com paradas e acelerações, até a exaustão. Voltar à

aceleração normal do corpo. Fazer a saudação nos três ritmos, lento, normal e rápido.

Construir uma fogueira.

A fogueira tinha só um tronco de madeira mais grosso, os outros

foram mais finos. Imaginariamente, utilizei uma cesta para pegar os

pedaços mais finos e os gravetos, os quais foram encontrados em

diversos níveis, do chão ao mato que se prostrava em minha frente. O

local era o quintal da casinha de Floripa. A fogueira não ficou muito

alta e a incandescência de seu fogo foi o que mais me inebriou. Andar ao


242

redor dela e nesse momento, o ritmo do caminhar instigou as palmas

que foram aceleradas aos poucos, aquecendo as mãos e os movimentos

pequenos e vibrantes em pulsação constante. E com corpo nesse estado

de dilatação, Ana pediu para deitar e deixar essa sensação de calor, de

fogueira ser expressa através do corpo. Relembrei o exercício feito nas

primeiras aulas e revivi a mesma sensação de vibração involuntária do

corpo, em especial as mãos que trepidam com a inconstância das faíscas

de fogo. Mantendo essa qualidade de tensão energética fiz a saudação

novamente. Desta vez. Ana reconheceu essa tensão energética

espalhada em todos os movimentos e partes do meu corpo.

Primeiro dia de ensaio na Escola de Teatro com Lau, Ana e eu. Quarta-feira,

11/04/2007. O aquecimento foi feito com Ana, como de costume. Relaxamento com

respiração, deitada no chão. Caminhar pela sala, reconhecendo o lugar sem o olhar duro,

percebendo as coisas que olho. A cada palma virar o rosto em outra direção e seguir

nesta direção. Aos poucos a caminhada foi acelerando.

No segundo momento foi feita a saudação. A avaliação de Lau e Ana foi a

seguinte: meu rosto estava uma máscara fixa, olhar duro e um meio sorriso,

inexpressivos. Muita embora Ana veja a força no movimento e Lau não, a realidade é

que eu não passei nada para eles. Conversamos muito sobre o pensar e o passar, sobre a

busca de um momento de dor, utilizar da força necessária naquele momento para revivê-

la na expressão da força de Xangô.

No terceiro momento, a partir de um canto da sala foi pedido para que eu fizesse

uma caminhada onde demonstrasse o caminho para a saudação. Uma orientação do Lau

foi o ativar da memória em relação às sensações que tais acontecimentos da minha vida

afloraram e nesse túnel do tempo, eu deveria partir do balé à descoberta do afro na

Bahia e da dança africana com Fayee.


243

Senti um retrocesso muito grande nesse dia, contudo são partes do

processo e encaro como desafios que se tornam estímulos para chegar ao

objetivo de fazer com que esses movimentos se transformem em ações

físicas que emanem uma presença cênica. A orientação do Lau foi que

eu retomasse o trabalho inicial feito com a partitura, com as variações

espaciais e rítmicas determinadas inicialmente.

Sexta-feira, 13/04/2007. Voltei a fazer a partitura como Lau pediu depois de

correr na praia, onde fiz a saudação. Em casa ouvi o Noturno, Ismael Lô, o Bugarabu e

Babatunde(Xangô). Depois fiz todo o procedimento sem som. Reli as primeiras

anotações do trabalho de criação da partitura com o Lau. Com Ana à tarde começamos

com o relaxamento/respiração e alongamento das mãos e pés ao inspirar e relaxar ao

expirar. Flexionar e alongar os pés, alternar um e outro e depois girar, para fora e para

dentro. Alongamento de braços nas laterais; alongamento de braços acima da cabeça e

pés em direções opostas, com inspiração e expiração. O mesmo alongamento com

braços e pernas em direções opostas, na diagonal. Voltar ao eixo e dobrar uma perna de

cada vez junto ao corpo, alongando bem os pés. Os dois juntos e levantar a cabeça para

olhar os pés. A mesma coisa com as pernas em sapinho. Fazer o rolinho, de coluna com

pernas alongadas, em sapinho, em segunda, uma perna dobrada e a outra esticada e

depois subindo aos poucos, até saltitar. Em pé fizemos os saltitos no sentido horário e

anti-horário, 8, 4, 2, 1, 1. Depois inspirando ao mesmo tempo em que fazia um círculo

com os braços, girava em torno de um pé e expirava.

Num segundo momento trabalhamos as sensações que a viagem no túnel

do tempo aflorou. As sensações foram: prazer e dor, liberdade e medo,

alegria e vergonha, força e resistência, exaustão, prazer. O objetivo

principal era não se fixar na memória dos fatos e sim nas sensações que estes
244

despertaram. Isso foi feito primeiramente deitada no chão, depois de um espreguiçar e

levantar mais rápido eu deveria demonstrar tais sensações com o corpo. Esse trabalho

foi dividido em três momentos. No primeiro momento eu demonstrei as sensações que

ia elegendo, entre aquelas mencionadas acima; num segundo momento Ana me pediu

para falar qual era cada uma das sensações eleitas e conduziu o trabalho me pedindo

cada uma delas aleatoriamente; finalmente eu revivi o túnel do tempo, e diretamente fiz

a saudação e a partitura.

Considerações finais - alguns momentos foram mais expressivos que outros;

consegui fazer um discernimento entre a rememorização de fatos e a revivência das

sensações; o reaparecimento de experimentar sensações opostas.

Essa escrita termina na página 253 contudo, os ensaios e as transformações

diárias inerentes ao processo de criação artística e ensaios continuarão até a sua

apresentação pública, no dia 23 de maio de 2007 na Casa do Benin. Por ora, apresento

o que tenho compreendido do encontro das duas danças (Xangô/Bugarabu), enquanto

experiência própria, reflexividade e ecos prováveis deste estudo. A encenação é uma

demonstra-ação, um acontecimento efêmero dentro do ritual performativo da defesa de

mestrado. Portanto, foi importante analisar e sistematizar o processo criativo da

encenação da mesma maneira que criei a escrita, ou seja, partindo de uma análise crítica

e auto-reflexiva. Acredito que minha experiência corpórea nesse trânsito transcultural

atravessou fronteiras que me fizeram sentir o sabor enigmático da criação artística...


7. CAPITULO V - Considerações Finais - Àkori

7.1 Questões que permearam esta pesquisa:

ƒ Como resolver a questão da memória no corpo? No caso da vivência do

Bugarabu, retransformá-la em palavras.

ƒ Fazer uma etnografia atual do Xangô, mesclada com a memória do Bugarabu?

ƒ Ser o sujeito da performance? Que segundo Conquergood (1992), se estende e

desafia mais do que confirma noções sobre estética e teatro ou sobre as

fronteiras entre performance e política?

ƒ Um sujeito que é, faz, observa, lembra e memoriza? Um comportamento

restaurado, cujo sentido emerge dos diálogos, encontros e interseções?

ƒ E o olhar? Quem está vendo o que? Eu não estou mais na Europa. Olhar quem

estava lá, um eu que se transforma constantemente, um eu que quando olha

agora para a sua dança traz a memória e a resignifica? Por quê? Porque lá fui

vista como um objeto espetacular e resisti. Como? Subverti a ilusão do olhar do

observador que passou a ser, em conseqüência das minhas reflexões, o objeto

observado.
246

Essas questões que deram início a uma análise científica de uma

experiência vivida, atuaram como vetores lançados em infindáveis direções que

ampliaram exaustivamente o horizonte teórico. Então, foram necessários recortes,

para que esse afunilamento possibilitasse um aprofundamento teórico mais aguçado

sobre os pensadores e as metodologias selecionadas. Nesse estudo crítico e analítico,

uma das questões principais levantadas acerca dessa experiência em constante

transformação foi a condição da efemeridade da performance. Tal constatação

confirmou a importância da encenação abordada no Capítulo IV, como parte

demonstrativa da minha defesa pública de mestrado, um rito de passagem, uma

performance, no dia 23 de maio de 2007. Esse conjunto de entrosamentos são os

traços e rastros - do fogo transatlântico do encontro de Xangô com o Bugarabu - que

integraram as considerações finais da minha pesquisa.

7.2 Traços e rastros do encontro de Xangô com o Bugarabu

O pensamento, a palavra que tenta exprimi-lo e por sua vez a escrita na tentativa

de dar corpo aos dois, não o faz na sua totalidade. São diferentes caminhos, cujos

propósitos variam, mas que se entrelaçam quando lemos ou transformamos o

pensamento, em palavras na tentativa de, em seguida transformá-las em escrita. Um

desafio evidente na elaboração de um texto, e mais ainda quando elejo travar um

diálogo entre autores com características distintas, como eu fiz no transcorrer da

dissertação. O esforço para escrever é maior por omitir a expressão e trejeitos da fala

que, por sua vez se empenha em grande esforço para dar conta do pensamento.

No encalço de esclarecimentos quanto às questões que lanço no início das

considerações finais da dissertação, vale salientar a valiosa contribuição de Schechner


247

(1985), para a análise crítica deste estudo, ao considerar os seis pontos de contato entre

o teatro e a antropologia. A convergência de métodos antropológicos e teatrais, segundo

o autor, deve ser ampliada e aprofundada. Os métodos não devem esgotar definições.

Eles traçam um campo amplo e coerente de profundo interesse para os teóricos da

performance. Uma meditação sobre a complexidade e multivocalidade daquele que joga

e performa e não uma solução de problemas é sua proposta. Schechner então comenta

que a interdisciplinaridade e interculturalidade do trabalho de Grotowski, Brook, Barba,

Turner, entre outros, tem atravessado fronteiras. Tenho a opinião de que a fronteira é

um intervalo espacial e temporal dos encontros. No tempo, no ritmo e na escrita.

Nesta pesquisa, a transculturalidade é o ponto. O diálogo interdisciplinar que

Schechner propõe em sua conclusão falando da importância dos ensaios, do

compartilhar a comida com a cultura estudada, por exemplo, me remete ao meu

percurso por entre as fronteiras de conhecimentos distintos. Naquele momento da

‘memória do Bugarabu’, compartilhado por ângulos distintos com o leitor, as fronteiras

se embaraçavam e eu não pensava em discernimento, simplesmente, vivenciava o

entrelaçamento cultural. Com a experiência da Antropologia Teatral, aplicada à

especificidade do meu trabalho que entrelaça a cultura brasileira com a africana e a

européia, absorvi dos “princípios-que-retornam” ou ‘bons conselhos’ como os chama

Eugênio Barba, aqueles que me interessaram. A teoria da Antropologia Teatral

contribuía para a observação do meu trabalho corporal calcado na dança brasileira e

compartilhado com a dança do Senegal e de Gâmbia. Eram contribuições que se

complementavam, pois a cidade de Amsterdã é cosmopolita, e os alunos eram das mais

variadas partes do mundo e profissões. Fayee, um etnomusicólogo de Gâmbia, e eu,

uma dançarina brasileira, ‘a outra’ para todos. Essa situação, involuntariamente exigiu

de mim atitudes bem pensadas. Dançar me levava à reflexão. Como comenta Schechner
248

(1985), a respeito de sua experiência num workshop de Noh: dançar diz mais para o

corpo do que páginas de leitura.

O quanto toda aquela vivência caracterizava meu corpo dançante e

extensivamente, as atitudes que tomava diante dos atropelos que encontrava no

caminho. Hoje, olhando para trás consigo ver sua reverberação em minhas atitudes, pois

eu era vista como exótica, mas as intenções e os comportamentos efetivados revelavam

uma atitude e não uma confirmação desse slogan. Atitude esta que em diversos

momentos marcava a personalidade pela resistência do sorriso, a qual induzia as

pessoas, em especial os alunos a repensarem sua visão generalizada de mundo e das

culturas colonizadas e subalternas. Repensarem também sobre suas concepções

dominantes de modernidade, civilização e normalidade, resultante do processo histórico

imperialista em relação à cultura de terceiro mundo, para eles, atrasada, exótica,

tradicional e selvagem do Brasil.

Não estaria localizada aí, exatamente nessa vivência inicial, intuitiva e

perceptiva, uma problematização que conduzia às questões reflexivas? Como por

exemplo, a validade da minha performance de professora e dançarina como postura

política, exatamente pelo patamar de hierarquia privilegiado, o qual eles mesmos me

colocavam? Eu era uma iaô, uma iniciante nessa vivência no exterior, mas foi

exatamente esse trânsito entre o mistério e o mágico das referidas culturas que me

proporcionou refletir sobre o que hoje essas experiências significaram e se resignificam,

ao mesmo tempo em que me dão a chance de poder pensar nelas, exatamente porque as

vivi.

Ainda levando em consideração a convergência entre o teatro e a antropologia

que Schechner aponta, é visível que ela não é restrita. Ela é parte de um grande

movimento intelectual em relação ao comportamento humano que está mudando de um


249

modo quantitativo a diferença entre causa e efeito, passado e presente, forma e

conteúdo, para a ênfase na desconstrução/reconstrução de procedimentos artísticos. Este

processo de emoldurar, editar, ensaiar, fazer e manipular os tipos de comportamento é o

que o autor chama de “comportamento restaurado”, que foi abordado no corpo do texto

da dissertação.

Sob o olhar de Conquergood, o comportamento restaurado é uma característica

fundamental de toda performance. Não é vazio, é um comportamento simbólico,

reflexivo, intencionado que transmite os sentidos de muitas vozes. É a expressão de um

princípio simples: o self pode agir em/como o outro, o self social ou trans-individual é

um papel ou um conjunto de papéis.

De acordo com a abertura e a pluralização de identidades, a performance como

comportamento restaurado também joga com o tempo. Ele oferece a ambos, indivíduos

e grupos, a chance de retornar ao que uma vez foram, ou até mesmo e freqüentemente,

retornar ao que nunca foram, mas desejam ter sido ou desejam tornar-se. “A qualidade

de restauração da performance encoraja a revisão, a mudança e as adaptações de

improvisação à contingência: é o que diretores, shamans fazem, mudar as partituras de

performance”. (Conquergood, 1992, p.44)

Ao pensar no ponto culminante da pesquisa, a defesa pública, entendo ser esta um

rito de passagem, onde nosso desempenho é revisado para alcançar a aprovação final, e

cujas contingências nos fazem encará-la como uma performance. A performance como

um lugar de ‘memória cultural’ que pode transcender a nostalgia e se tornar um lugar de

contestação e luta política. A performance como restauração de uma tradução deslocada

dentro de uma cultura dominante que pode intensificar a magnitude da sua política. E o

que vem a ser a política? Ou ser político? Penso então nessa performance deslocada no

tempo e no espaço como uma transgressão dentro de sua ampla possibilidade de ser,
250

fazer e estar in-between.

Uma característica própria que aprendi nas brechas dos deslocamentos foi

lidar com o que está perto de mim. Desvelar o grau do teor político que esta experiência

contém foi um processo desenvolvido com uma convicção mais contundente no

desenrolar da pesquisa acadêmica, onde tive a oportunidade de repensar tais

acontecimentos com ‘certa’ distância temporal e espacial. O local mais eficiente de

fazermos política é no nosso próprio território e convivências pessoais. Dentro do

universo acadêmico, são as cercanias onde perpassamos e onde temos a possibilidade de

falar de prática e de teoria, de arte e de ciência, juntas. Nós que somos das Artes

Cênicas temos a possibilidade de utilizar nossa criatividade como contribuição científica

de forma mais abrangente. Nesse estudo a teoria dos Estudos Culturais e Pós-

estruturalistas contribuiu e segue contribuindo para articular meios de fazer e encenar a

teoria, de ser objetivo enquanto subjetivo e ser subjetivo enquanto objetivo.

Sendo assim, puxo pelos fios de associações do pensamento e trago uma

contribuição etnográfica surrealista, insisto que sob meu olhar, da publicação de uma

revista editada por Georges Bataille durante as dissidências de 1929 onde ele explica

que a atitude etnográfica deve: “perturbar os símbolos estabelecidos deve propor

questões compondo e decompondo as hierarquias e relações naturais da cultura”.

(CLIFFORD, 1994, p.151)

Considero esta pesquisa uma contribuição para a atitude etnográfica de acordo

com as palavras de Bataille acima, porque ela perturba, compõe, decompõe e propõe

uma reflexão a respeito de nós mesmos, como somos, como somos vistos, como nos

vemos, e de que lugar? Por exemplo, para refletir sobre o lugar que ocupo precisei

ouvir, como já dito: “esse não é o verdadeiro Xangô”! Então pensei... Ah! Como sou

vista! Hum... E como me vejo?


251

A necessidade de uma reflexão crítica urgente sobre esse lugar que ocupo, ou

seja, o trânsito - transnacional, transracial, transestadual, transcultural - conduz a um

estado que borra, confunde a percepção de quem sou, pois desestabiliza,

desterritorializa. E é exatamente esse lugar do borrão que aponta para a não existência

de verdades únicas. Portanto, escrever com a dança nessa pesquisa foi um processo de

liberação que ressoou das vivências e das interpretações do meu corpo dançante

desterritorializado e por esta razão, veículo catalisador do elemento comum "entre" o

Xangô e o Bugarabu, o fogo. O fogo que segundo os princípios religiosos de Mãe

Stella, presente nos rituais do candomblé é movimento, é ritmo, é Xangô. E que, no

ritual da colheita do arroz e no cotidiano de Senegâmbia se expressa nas fogueiras e nos

movimentos da dança do Bugarabu, Uma ligação feita através de um trajeto específico,

tecido com o que adquiri como pertencimento específico, caracterizado pelo ritmo

quente e vigoroso dos movimentos e desvelado pela análise da transculturalidade das

danças aqui estudadas. Vale refletir sobre esse lugar específico e legítimo que ocupo,

imprescindível para a composição da escrita criada durante este estudo, que será

deixada para quem dança, observa, ou escreve, ou para quem interessar ler e saborear.

Um outro aspecto a ser levantado nas considerações finais é o dilema que se

tornou uma relevante questão da pesquisa: memória não é etnografia. Hoje trago as

questões que validam essa memória e defendo a condição dessa experiência como

trabalho de campo impresso nesses escritos e na memória corporal da minha dança e

vida. Além disso, o capítulo da memória desvelou argumentos que servem de parâmetro

para muitas comparações entre a religião do candomblé na Bahia e a cultura de Gâmbia.

Rituais do cotidiano da cultura africana se incorporaram à vida brasileira através da

religião dos orixás e passaram a ser encarados de forma mais mística. Entre outras
252

ocasiões, essa conversa aconteceu com Mãe Stella de Oxossi, em sua casa no dia 28 de

julho de 2006.

Outra questão, relativa à memória, a ser tratada aqui é a constatação de que a

extensão dos capítulos - Capítulo I (Da centelha ao fogo: Memória), Capítulo II

(Reflexões sobre a Memória do Bugarabu), Capítulo III (A Etnografia do fogo) e o

Capítulo IV (Okutá Orun Iná Otá) denunciaram aspectos relevantes dessa experiência

vivida, antes e durante a pesquisa. O mais pertinente no meu modo de ver é a afirmação

de que os anos de convivência com a dança do Bugarabu e com Fayee, sugeriram uma

interface significativa da cara que compõe o meu corpo dançante. De tantos anos de

convivência intensa e de uma experiência profissional praticamente diária, muitas

questões, fotos e possibilidades de reflexão despontaram e foram abordadas. Muitas

particularidades foram somente instigadas e servem de razão para o prosseguimento da

pesquisa.

Quanto à etnografia, tenho a sensação de algo em pleno acontecimento, pois a

convivência com o terreiro do Ilê Axé Opô Afonjá faz parte do meu cotidiano hoje. Um

cotidiano da pós-modernidade recheado por parâmetros de uma religião tradicional que,

ao mesmo tempo, mantém e transforma. Uma atividade de surrealismo etnográfico que

atuou na etnografia surrealista de uma artista que criou e analisou criticamente sua

própria justaposição entre a teoria e a prática. Experiências acadêmicas entrosadas com

saberes religiosos da tradição oral ampliam nossa visão de mundo e de inteligência.

Essa foi uma questão abordada na II Conferência de Intelectuais da África e

da Diáspora - Painel Religião, Arte, e Cultura - no Museu de Arte Sacra da Bahia em

Salvador, dia 13 de julho de 2006. O presidente da Ilê Ifé University da Nigéria e

professor da Universidade de Boston, Felix Ayoh’Omidire, vive entre os Estados Unidos

e a Nigéria e foi um dos membros da conferência referida acima. Participou do painel


253

“Religião, Arte e Cultura” em que eu estava presente. No debate final, a primeira

questão a ser levantada foi relacionada ao termo – intelectuais - presente no título da

conferência. O professor Felix argumentou que talvez a definição de intelectuais tivesse

sido entendida de forma resumida e restrita. No seu entender intelectual deveria ser

considerado num sentido mais amplo, como ‘inteligências’, despertadas tanto por

experiências relacionadas aos estudos acadêmicos quanto aos saberes da vivência

religiosa e da tradição oral, ambas tão imbricadas na cultura e na arte africana.

E ainda na voz de Mãe Stella: A tradição somente oral é difícil. Os olorixás

(filho de orixá, iniciado) têm que se alfabetizar, adquirir instrução para não passar pelo

dissabor de dizer sim à própria sentença. (MÃE STELLA apud CAMPOS, 2002, p.42).

Assim, como nossas transformações, os entrelaçamentos de noções são

igualmente infindos: ‘moldáveis’, como a modernidade líquida de Bauman (2001),

‘viajantes’ em Clifford (1998), ‘flutuantes’ em Barba (1991), e ‘diaspórico’ no

Atlântico negro de Paul Gilroy (2001)

Como fruto do deslocamento transatlântico da diáspora, eu contemplo Gilroy:

“Sob a idéia chave da diáspora, nós poderemos então ver não a “raça”, e sim formas

geo-políticas e geo-culturais de vida que são resultantes da interação entre sistemas

comunicativos e contextos que elas não só incorporam, mas também modificam e

transcendem”. (GILROY, 2001, p. 25)

Um recado de Nietzsche:

“Abandonamos a terra e embarcamos. Queimamos nossas pontes atrás


de nós – na verdade, fomos mais longe e destruímos a terra atrás de
nós. Agora, barquinho, cuidado! Ao seu lado está o oceano: por certo
ele nem sempre ruge e, às vezes, ele se esparrama como seda e ouro e
devaneios de afabilidade. Mas horas virão em que você perceberá que
ele é infinito e que não há mais nada atemorizante do que o infinito.
Ah, o pobre pássaro que se sentia livre agora se choca contra as
paredes dessa gaiola! Desgraça, quando você sente saudade da terra
como se ela houvesse oferecido mais liberdade – e não há mais
nenhuma ‘terra’.” (NIETZSCHE apud GILROY, 2001, p. 310)
8. GLOSSÁRIO

Acarajé: bolinhos feitos de feijão fradinho e frito no azeite de dendê. Segundo Dona
Nana, acara é bolinho e unjé é estou comendo, então acara unjé foi o que deu o nome
de acarajé na Bahia.

Adarrum: ritmo invocatório de todos os orixás. Inicialmente lento e progressivamente


acelerado, objetivando vencer as resistências ao transe.

Agerê: panela com furos.

Ajeum: comida. É muito comum se ouvir nas comunidades do candomblé: “está na hora
do ajeum”. To eat (comer) é je, jeun. Tirado do dicionário de Yoruba em inglês (A
Dictionary of the Yoruba Language – Oxford University, Ibadan, Nigéria, 1913)

Ago: com licença.

Aguerê: ritmo dedicado a Oxossi. Também pode ser executado para Oiá/Iansã, sendo
denominado, neste caso, Ilu, é tocado com um andamento musical característico.

Aguidavis: nome dado nos candomblés de Ketu e Jejê às baquetas feitas de pedaços de
goiabeiras ou araçazeiros, que servem para percutir os atabaques.

Ajabalá: festa dedicada a Xangô que no Afonjá acontece em outubro.

Akará: mechas de algodão inflamadas ou o nome que se dá em Gâmbia e Senegal aos pequenos
bolinhos feitos da mesma massa do acarajé.

Àkoberé: começo.

Àkori: conclusão.

Alabés: músico do conjunto de percussionistas do candomblé, geralmente um ogã.

Alujá: toque dos atabaques, especial para Xangô.

Amalá: oferenda para Xangô feita com quiabo, cebola, camarão seco, azeite de dendê e
pimenta.

Aruá: bebida feita de gengibre e rapadura.

Avania ou avamunha: ritmo acelerado, sincopado e que marca o início e o término das
cerimônias religiosas. Pode ainda ser chamado de avaninha, rebate ou arrebate.

Awô: segredo.

Babalaô: “senhor do segredo”, do oráculo, adivinho.

Candomblé: religião afro-brasileira e local onde se realizam as festas e as obrigações


religiosas do culto.
255

Ebômi: irmão ou irmã mais velho (a); iniciado que completou a obrigação de sete anos.

Efun: giz, cal.

Egun: antepassado, espírito dos mortos

Ekéde ou ajoiê: mulher que auxilia os filhos-de-santo em transe, enxugando-lhes o suor


e ajudando-os a se vestirem. Ela não entra em transe, e faz uma breve iniciação como a
dos ogãs. Posto do Ilê Axé Opô Afonjá equivalente ao de equede no terreiro da Casa
Branca e ao de arobá no terreiro do Gantois, atualmente existe uma tendência a utilizar
a palavra equede tanto no Gantois quanto no Afonjá.

Gantois: candomblé de Salvador, desdobramento do terreiro da Casa Branca.

Ialaxé: cargo de zeladora dos axés.

Ialorixá: mãe de santo, dirigente de um candomblé, ocupa o posto mais importante e


elevado do culto aos orixás. Correspondente feminino de Babalorixá.

Iaô: iniciados antes de se tornarem ebomis.

Ifá: deus do destino; oráculo que fala através do odu; jogo usado pelo Babalaô para
saber o odu responsável pela indicação de caminho e previsões.

Igbi: cadência rítmica lenta executada em louvor ao orixá Oxalá.

Ijexá: o nome refere-se a uma região iorubana, ou ainda, a um ritmo específico


dedicado aos orixás, Oxalá e Oxum.

Ilê Axé Opô Afonjá: candomblé de Salvador, desdobramento terreiro da Casa Branca.

Ilu: vide aguerê.

Iná: fogo.

Jinká: gingado, swing.

Kawo-Kabiyesilé: venham ver o rei descer sobre a terra.

Ketu: nome de um grupo étnico que compõe a cultura iorubana, oriundos das cidades de
Abeokutá e Ketu, esta última destruída em 1640 d.C. pelos dahomeanos.

Labá: estola, mochila, bolsa.

Obá: rei.

Obi: fruto africano imprescindível em certos rituais religiosos, chamado de noz-de-cola.

Odu: caminho revelado pelos búzios, responsável também pelo destino.


256

Ofá: arco e flecha de Oxossi.

Ogã: protetor civil do candomblé, escolhido pelos Orixás e confirmado por meio de
festa pública, com a função de prestigiar e fornecer dinheiro para as festas sagradas.

Ogalá: puxadora de canto.

Ojá: faixa, tira, turbante.

Okô: pênis.

Olorum: divindade suprema. Etmo: olo = senhor e orun = céu, senhor do céu.

Olorixás ou omorixá: filho do orixá ou iniciado.

Opanijé: ritmo especial de Obaluaiê, Omolu. Em ioruba significa “mata e come”.

Oriki: louvação onde se relata aspectos da família e da vida do orixá.

Orixá: divindade da religião ioruba.

Oyê: título.

Oyó: capital da nação ioruba nagô, que é o nome da primeira tribo descendente de
Odùdúwa. Foi fundada por Oranian, filho de Okanbi e neto Odùdúwa que por sua vez
havia fundado anteriormente a cidade de Ilê-Ifé.

Oxé: machado duplo, ferramenta de Xangô.

Peji: altar

Rwm: ritmos dos orixás.

Utí-fúnfún: qualquer qualidade de bebida alcoólica branca, cachaça.

Xerê: é um instrumento de cobre, podendo ser de prata quando utilizado para o culto de
Xangô Airá ou mais tradicionalmente, de cabaça com um cabo de madeira. Ele é um
símbolo fálico utilizado em vários rituais do culto a Xangô, como a fogueira, a roda de
Xangô, além de se inscrever nos seus poderes mágicos. Ele reproduz o barulho da chuva
e quando tocados juntos pelos únicos que têm esse direito no Afonjá, ou seja, os Obás
da direita de Xangô e pela mãe-de-santo, soam como as tempestades, fertilizando e
fecundando as entranhas da terra.

Xirê ou Sirê: a dança dos orixás em círculo quando, de acordo com ritmos específicos,
as entidades são evocadas para se manifestarem através dos corpos de seus filhos
durante os rituais abertos do terreiro. Segundo Mãe Stella, siré, é brincadeira.
(STELLA, Òsósi – O caçador de alegrias, Funcultura, Governo da Bahia, 2006, p.86)
Essa brincadeira, dá início aos rituais abertos das religiões afro-descendentes, quando
em um círculo os integrantes da casa dançam ao toque dos orixás, antes e para a
incorporação.
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http://en.wikipedia.org/wiki/S%C3%A9n%C3%A9gambia_Confederation. Categorias;
História de Senegal | história da Gâmbia
www.paginadojairo.pop.com.br/ponte.htm
humwww.ucsc.edu/Cult Studies/PUBS/Inscriptions/Vol_5/clifford.html
http: //cliquemusic.uol.com.br/br/gêneros/Gêneros.asp?Nu_materia=3
http://www.geocities.com/Athens/Acropolis/1322/
www. abetencontro.ufba.br/comunicações.html
10. ANEXOS - Fontes complementares

Com o intuito de lançar reflexões sobre o Capítulo IV que trata particularmente

da memória do Bugarabu, acrescentei nestes anexos dois enfoques de sua história,

advinda da região de Casamance. Para tanto, garimpei informações veiculadas de

formas variadas, com o propósito de observar as características do Bugarabu sob

ângulos diferentes, podendo assim refletir comparativamente sobre sua abrangência

histórica, social, política e cultural. Uma dessas maneiras de veiculação é o Cd chamado

Senegal que trata do ritual da colheita do arroz, o Lebounaye, em Casamance e a outra

foi encontrada no site Kassoumay que aborda a história, religião, valores e costumes dos

djola em Casamance. E ainda, com base no site da Wikipedia, esmiucei a história sobre

a confederação chamada de Senegâmbia, contexto onde se insere o Bugarabu, a fim de

explicar e refletir sobre os motivos históricos, sociais e políticos dessa conjunção

nominal.

Nesse encalço, os dois focos principais da pesquisa - a transculturalidade e o

elemento simbólico fogo – estão presentes e atuam como fatores de disseminação e de

associação das principais características encontradas nas danças do Bugarabu e do

Xangô. Além disso, afirmam sua pertinência ao transcurso histórico pessoal abordado

anteriormente. As constatações transculturais que ressurgiram na continuidade de tais


263

cruzamentos são: percussão, dança, palmas, canto, vigor, calor, ritmo, fogueira, força e

resistência.

10.1 Ritual da colheita do arroz em Casamance

Trata-se de um Cd da coleção Prophet de Charles Duvelle concedido

carinhosamente pelo antropólogo baiano Vivaldo da Costa Lima. As gravações foram

feitas em abril de 1967 em Diakoye Bahaanga perto de Sindian em Casamance. O Cd

vem acompanhado de um prospecto relatando a cerimônia anual do povo djola para a

colheita de arroz que acontece nos meses de abril e maio precedendo o inverno, de onde

recolhi as informações explanadas a seguir.

Ao abordar a dança e a música desse ritual anual, alguns elementos

indispensáveis e corriqueiros que são encontrados em contextos distintos da

manifestação dançante do Bugarabu ressurgiram e foram tratados no decorrer da

dissertação. Os elementos convergentes são as constatações transculturais mencionadas

acima. As funções e as formas é que variavam a depender do contexto em que são

desenvolvidos.

Esta cerimônia que se manifesta como um festival recebe o nome de Lebounaye

e acontece principalmente na região de Sindian e de Bignona em Casamance, que fica

no sul do Senegal, parte do país chamada de Senegâmbia. O Lebounaye é uma

festividade que dura três dias, e se desloca durante dois meses, de vila em vila, e, de

bairro em bairro. Em cada vila, um mestre de cerimônias é escolhido pelo conselho dos

mais velhos, para organizar a preparação e os vários aspectos do ritual, tais como: a

colheita do arroz e as oferendas do povo da vila. Sua filha, como símbolo de fertilidade,

se tornará a rainha do lebounaye.


264

“Vamos alegremente celebrar o lebounaye, glória aos poderes da fertilidade que

nos deu uma boa colheita esse ano, e faça ser no próximo ano, tão boa quanta essa”.

Final de tarde do primeiro dia. As mulheres cantam e dançam prestando

homenagem aos poderes da fertilidade que produziu um ‘arroz bom’. Elas acompanham

em coro, uma solista que canta vários temas referentes à fertilidade.

Durante a noite, sob uma esteira, duas pessoas transferem o arroz de uma cesta

para a outra com a ajuda de uma colher de cabaça. Uma vez ‘sacralizado’ o arroz, a

filha do mestre de cerimônias, rainha do lebounaye, é carregada por dois homens de sua

família para uma pequena cabana, onde ela ficará por vinte e quatro horas.

No outro dia, canções e danças destacam três momentos diferentes do ritual 1:

No primeiro momento denominado de Bugarabu, os três instrumentos

conhecidos como Bugarabu são tocados por um só homem que é acompanhado por

canções e pela marcação rítmica dos claps ou de um ‘coro de mãos’, anunciando uma

longa seqüência de ritmos vigorosos. Os homens um a um, se juntam a essa seqüência.

Em seguida, na presença do conselho dos mais idosos, uma fogueira é acesa e um bode

é cozido como sacrifício, junto com o arroz sagrado. Bebidas são servidas pelo mestre

de cerimônias para todos os presentes.

1
No Cd de Charles Duvelle, os três momentos narrados acima correspondem a três faixas que,
respectivamente recebem o nome de Bugarabu, Lebounaye e coro masculino.
265

Ilustração 23 – Lebounaye: sacrifício do bode. Foto: coleção Prophet

No segundo momento denominado de lebounaye, um coro de mulheres canta ao

redor da fogueira acesa. De vez em quando, um grupo de mulheres participa da dança e

um chifre é tocado. No terceiro momento conhecido como coro masculino, as três

percussões são tocadas enquanto apoiadas uma a uma num pilão de cabeça para baixo.

Os homens cantam e batem palmas, enquanto as mulheres performam vários

movimentos.

Ilustração 24 - Lebounaye: mulheres dançam no primeiro dia. Foto coleção Prophet


266

No terceiro dia, a rainha é maquiada e vestida enquanto uma solista canta com

um coro de mulheres. Logo após ela é carregada em triunfo, de cabana em cabana, antes

de ser finalmente colocada numa esteira, onde a rainha do próximo ano a espera.

10.2 História de Casamance via site Kassoumay 2

Casamance se situa entre Guiné Bissau e Gâmbia, país anglo fônico encaixado

no território do Senegal. A região é delimitada a leste pelo Rio Gâmbia e a oeste pelo

Oceano Atlântico, com 86 km de costa. Conferir no mapa a seguir.

Ilustração 25 - Mapa do Senegal e Gâmbia – região de Casamance, Senegâmbia, site Kassoumay, 2006.

2
www.kassoumay.com/casamance/index.html
267

Em 1455, os portugueses descobriram a população ribeirinha dos baïnuks à

direita do rio Casamance e à sua esquerda os Floups. A serviço de Portugal, o

Comendador Alvise Da Cada Mosto, batizou esse país de Kassamansa (kassa pela

relação de domínio e Mansa pelo nome do rei de Floups, naquela época) que veio mais

tarde a ser chamado de Casamance. Séculos depois, em 1888, os franceses empurraram

os portugueses para Guiné e os ingleses para Gâmbia, e se instalaram em Ziguinchor

após assinarem uma convenção com Portugal que fixou as fronteiras com a Guiné

Portuguesa. No ano de 1889, os franceses e os britânicos assinaram um tratado que

delimitava as fronteiras entre Gâmbia e Casamance.

Em 1912, a colônia francesa de Casamance é dividida em três regiões

administrativas: Alta, Média e Baixa. A Alta Casamance, ao redor de Kolda, região

Fouladou, é majoritariamente habitada pelo povo peuls. Na Média Casamance, ao redor

de Sédhiou, vivem os mandingas e os balantes. Na Baixa Casamance, em Ziguinchor

habitam os djolas e os baïnuks. Metade das terras na Baixa Casamance tem como

cultura mais praticada, o cultivo do arroz, ponto relevante desta pesquisa e momento

singular da celebração da dança do Bugarabu para os djolas. Os pedaços de madeira

selecionados para a criação dos claps que são utilizados na dança do Bugarabu são

retirados da palmeira de vinho (palm wine). O vinho extraído dessa palmeira se chama

‘bunuk’, e quando estive em Gâmbia, tive a oportunidade de presenciar sua extração em

Kanifing.3 Esta bebida tradicional djola é obtida após a fermentação da seiva da

palmeira.

3
Este local tem uma função múltipla para os moradores dali. As horas do dia se dividem entre: extrair o
vinho da palmeira para beber de quando em quando, da manhã ao alvorecer; fazer o corriqueiro arroz com
peixe para comer debaixo das árvores na hora da fome; e conversar sobre a vida, sobre a história do lugar,
as guerras e conflitos passados. A ilustração 26 mostra uma das manhãs em que eu aprendia a fazer o
funil para colocar na garrafa que é levada ao topo da árvore junto com a pessoa que extrai o vinho. Todo
o aparato para subir na palmeira é feito com o material da própria árvore. Os homens que ali estavam
eram de Guiné Bissau ... [...] Bebem o vinho o dia todo. Há o fresco, justo o que me fez mal, e o que
268

Ilustração 26 – (a) Vinho de palma chamado bunnuk. Site Kassoumay, 2006; (b) Sandra
Mascarenhas aprendendo a fazer o funil – kaboonyinak – para retirar o vinho da palmeira, dia
04/01/1996.

Para falar do povo de Casamance é mais adequado usar o termo popularmente

conhecido ‘Les Casamançais’. Além das etnias já mencionadas anteriormente, os

‘Casamançais’ são ainda compostos pelos wolofs, lébous, toucoulers, sérères, mandjaks

e mancagnes que representam 20% da população.

Ao tratar das línguas e povos que há muito tempo têm histórias infiltradas entre

si, reconheço que fronteiras (in)delimitadas por troncos de árvores marcam a

comunicação entre línguas distintas diluídas numa compreensão mútua. 4 Ao pensar nas

noções atuais referentes à nação e fronteiras territoriais, é possível repensarmos se essas

fica de um dia para o outro, mais curtido, mais salgado. Este, os homens costumam beber e o outro,
menos curtido, mais doce, as mulheres. Kanifing, diário da viagem à Gâmbia, 04/01/1996.
4
Tive a oportunidade de presenciar, numa das caminhadas que fiz com Fayee pelos arredores de
Donsekunda, no dia 19 de janeiro de 1996, um acontecimento curioso, ao encontramos um tronco de
árvore, como símbolo demarcador da fronteira entre Senegal e Gâmbia: um dos holandeses que
caminhava conosco, se recusou a fazer uma foto desse lugar, pois as fronteiras de pensamento entre os
presentes - africano, brasileira e holandês - não convergiam naquele momento. Aquilo que tinha peculiar
importância para uns não representava nada para outros. Naquele instante, diferenças ressurgiam como
marcas históricas de um tempo pós-colonial.
269

abordagens são atuais ou se nosso pensamento e reflexão em relação a um determinado

povo não estão restritos, em seu sentido de origem e pureza. Afinal, o que é ‘o puro’? A

contaminação global via tecnologia é avassaladora e irrefreável. Ela é mais recente do

que as infiltrações raciais dessa região dos casamançais, que se sobrepõem a um tempo

histórico mais longínquo, com particularidades específicas de cada ‘povo nação’

(BHABHA, 1998), que não deixou de dialogar no corpo a corpo. A geografia espacial

perde estabilidade nessas interpenetrações e passa a ser visivelmente elemento co-

estruturante da subjetividade. Não se pode negar o poder da colonização européia nessa

região, assim como em todo o Senegal. A língua francesa é o meio de comunicação

oficial e o wolof (língua local) é a mais utilizada pelo ‘povo-nação’ da região de

Casamance que tem nos djolas sua maior representatividade.

Os djolas vieram de Saloum e migraram para a Alta Casamance antes de se

instalarem na região de Baixa Casamance, no século XIV, quando foram capturados

pelos mandingas, mandados para o oeste. Voltaram para esta região no fim do império

de Mali.

Somente depois deste conhecimento histórico passo a compreender porque os

termos djola ou mandinga eram utilizados em Gâmbia semelhantemente. É uma

sociedade que dá considerável importância ao espírito comunitário e à religião que por

sua vez se estendem sobre a filiação, o respeito aos mais velhos e a tradição da

ancestralidade. É dirigida por um rei, pelos feiticeiros e pelos conselheiros que são a

garantia da coesão social. Todas as vilas são regidas por um conselho de anciãos que

tomam as decisões importantes concernentes à comunidade. São apaixonados pela

liberdade, muito independentes e resistem às autoridades exteriores. Durante a segunda

guerra mundial, Aline Sitoé Diatta liderou os Djolas na luta contra a colonização

francesa e reclamou os direitos de viverem em suas terras para a cultura do arroz e do


270

gado. Em 1942, os chefes simbólicos dos djolas foram presos, a exemplo do rei de

M’Lomp. Em 1943, Aline Sitoé foi deportada para Tombouctou e em 1944 foi morta

tornando-se então uma heroína e o símbolo da resistência de Casamance contra todas as

autoridades estrangeiras.

A religião dos djolas é animista. As cerimônias rituais têm seu lugar nos

bosques sagrados inacessíveis aos não iniciados, visto que a natureza, vegetal e animal,

são sagrados para os djolas. Cada vila possui muitos bosques sagrados, certos

reservados aos homens e outros às mulheres.

Os djolas praticam o culto dos fetiches (boechin) objetos com virtudes benéficas

que possuem uma força vital, encarnam um espírito ou contém elementos mágicos e

sobrenaturais. Os fetiches são forças espirituais contra toda sorte de ameaças, acidentes,

doenças, morte, falta de dinheiro... As mulheres djolas são as guardiãs dos bosques

sagrados que acolhem os fetiches. Os ritos de iniciação são ligados às etapas

importantes da vida, puberdade, adolescência, passagem para idade adulta e são

pontuados com grandes festividades. As mulheres djolas são responsáveis pelas

cerimônias de iniciação. Como o Kanebó, reservado às mães jovens que vão entrar no

círculo das mulheres sacerdotisas, que é uma cerimônia de oferta de arroz e vinho de

palma ao fetiche Ehunia.

Vale salientar que essa divisão entre mulheres e homens está presente na esfera

religiosa, tanto dos djolas como dos devotos do candomblé e ainda, ela se estende aos

costumes e funções destas culturas, inevitavelmente incrustadas em seus

comportamentos. Transfiro esse pensamento para o universo das observações e destaco

algumas similaridades a esse respeito. Na grande maioria dos rituais abertos dos

terreiros de candomblé, um lado do barracão é reservado aos homens e o outro às


271

mulheres, assim como suas funções religiosas, que se dividem entre atividades

masculinas e femininas. Com os djolas, essas delimitações de gênero são perceptíveis

em diversos aspectos da cultura e evidenciadas através da música, da dança e das

funções do ritual da colheita do arroz abordado anteriormente, o Lebounaye, assim

como por meio das práticas religiosas animistas enunciadas acima. Refletir sobre essas

localizações do homem e da mulher dentro das sociedades estudadas na pesquisa, me

faz pensar na ambigüidade do papel da mulher, a quem um lugar de opressão é

reservado. Como é o caso da poligamia ou da submissão, fatores geradores de uma

compressão e conseqüentemente de uma re-ação, a exemplo de Aline Sitoé Diatta em

Casamance e Mãe Stella de Oxossi, no Ilê Axé Opô Afonjá, campo desta pesquisa

etnográfica, desenvolvida no capítulo III da dissertação.

Assim que os valores e costumes são fortemente respeitados. As saudações, por

exemplo, são extremamente importantes, se diz bom dia a todo mundo, mesmo a

alguém que você jamais tenha visto. Depois perguntam da saúde e da família. O

costume é responder que tudo vai bem. Em wolof: Na nga def? Como vai? Maa ngi fi
5
rek! Eu vou bem! Em djola: Kassoumay? Kassoumay kepe! Dar as mãos ao

cumprimentar é essencial e sempre utilizado. A refeição se faz num prato comum,

freqüentemente com a mão direita, pois a esquerda é reservada para outros usos. Beber

algo só depois da comida. A cerimônia do chá ‘ataya’, é muito importante e constitui

um sinal de hospitalidade, pois é a bebida que se oferece aos amigos e abre a conversa.

O chá é de menta e se serve três vezes e se você aceita a primeira, amargo com pouco

açúcar, irá até a terceira com mais açúcar. A hospitalidade se chama ‘teranga’, uma

tradição de acolher e o prazer de receber bem.

5
As palavras em wolof foram tiradas de apontamentos diversos em folhas soltas escritas durante o
convívio, do diário da viagem à Gâmbia e conferidas atualmente com o livro: DIOUF; YAGUELLO,
J’apprends le wolof, Ed. Karthala, ano desconhecido.
272

Entre 1996 e 2003, na Holanda, na Gâmbia e no Senegal, a constância da

convivência permeada por tais costumes e valores referidos acima exaltava as âncoras

minhas e de Fayee. Unia e causava confronto pelas nossas diferenças, ao mesmo tempo

em que levava a um trans-formação inevitável caracterizada por uma maleabilidade

imprescindível para nossas re-criações, trans-criações artísticas. Aquele território

‘entre’, estrangeiro, permitia um desdobramento e noção mais abrangente de ‘nação’,

que ali se localizava na singularidade de cada um de nós.

Ilustração 27 (a) Sabar, dança tradicional do Senegal; (b) Dança Ekunkun de Casamance. Ambas do site
Kassoumay, 2006.

É fato que em muitos lugares da África, música e dança fazem parte da cultura

e do cotidiano em seus valores e costumes. O canto, a percussão e a dança de caráter

sagrado e/ou cotidiano, narram a vida do cotidiano e desempenham um papel

importante nos ritos de nascimento, circuncisão, iniciação, casamento, funeral,

colheita... E são os ‘griots’, contadores de história, poetas músicos e mestres da palavra

que perpetuam a tradição oral e musical da cultura, e transmitem a memória do povo de

geração em geração.

No trânsito reflexivo entre a experiência vivida e as informações eleitas para a

análise comparativa deste estudo, foco nesse parágrafo a versão do site Kassoumay

transmitida pelos djolas acerca da dança e do instrumento do Bugarabu. Os tambores


273

Bugarabu e o bombolog são os instrumentos que acompanham as danças tradicionais.

Quando o ritmo se acelera os dançarinos levantam os pés, bem alto e balançam os

braços enquanto o corpo todo se agita. Originário de Casamance, o Bugarabu é um

tambor de som surdo, de preferência, com formato de barris alongados e esticados com

uma pele de vaca. A bateria de Bugarabu, composta de três ou quatro tambores, é

tocada com as mãos por uma pessoa em pé, cujo pulso é ornado com guizos. O

Bugarabu tem seu lugar na época das manifestações religiosas e do espetacular

Ekunkun. 6 O bombolong é um tronco de árvore cavado que se bate com dois bastões.

Outras vezes, se utiliza o bombolong para transmitir mensagens.

Ilustração 28 (a) Bombolong, instrumento de transmissão de mensagem; (b) Bugarabu. Site Kassoumay,
2006.

6
A dança e o instrumento do Bugarabu e seu vínculo com as manifestações religiosas do culto aos
ancestrais dos Ekunkun em Casamance experimenta uma relação analógica com o culto dos Egungun na
Bahia, e este por sua vez um estreito vínculo interativo com o orixá Xangô. Desvelar esses trânsitos foi
uma das proposições que instigou um incentivo a uma posterior continuidade deste projeto de pesquisa.
Ver site Kassoumay.
274

10.3 Senegâmbia via site Wikipedia 7

Uma pesquisa poderia ser comparada a um novelo de linha que nunca se acaba.

Na medida em que se tecem os pontos que vão constituindo a dissertação, outras

urgências afloram para instigar comparações, reflexões, convicções, explicações e

tantos outros ‘ões’ que satisfazem e geram o prazer de ter acreditado em alguma

intuição, percepção ou vivência.

Com a finalidade de explanar o porquê desse devaneio, trago um pouco da

história de Senegâmbia, região de onde vem o Bugarabu a fim de aliar a percepção

poética - detectada através desta dança, música e costumes – a uma análise crítica

cultural performativa. No decurso das investigações eu pude compreender que as

animosidades e semelhanças percebidas entre os senegaleses e gambianos, enquanto

vivia em Amsterdã, trazem a possibilidade de uma relativização com os aspectos

históricos conflitantes que envolvem os dois países de colonizações distintas,

embaçando suas fronteiras, diluindo suas culturas, enfim, gerando Senegâmbia.

Tradição é outra categoria a destacar a partir da reflexão sobre o processo

histórico do Senegal e de Gâmbia para pensar que autenticidade e pureza são noções

duras que não servem nem mesmo para um passado distante. Desde 1500, os

entrecruzamentos por questões econômicas, políticas e até mesmo geográficas aqui

apresentadas, mostrarão a improvável existência de uma pureza tradicional e a evidência

de uma transformação constante em suas vidas, além dos ecos que reverberam na

maneira do fazer artístico de cada um dos dois países. De acordo com Stuart Hall,

afirmo uma vez mais que a tradição pode ser pensada então, mais apropriadamente,

7
Ver “http://en.wikipedia.org/wiki/S%C3%A9n%C3%A9gambia_Confederation” Categorias: História de
Senegal | história da Gâmbia
275

como tradução. E assim verso a seguir, sobre a transformação desse processo histórico,

entre Senegal e Gâmbia.

Podemos nos referir à denominação Senegâmbia sob dois aspectos: (a)

Confederação de Senegâmbia - uma breve confederação entre Senegal e a Gâmbia, de

1981 a 1989; (b) Senegâmbia (geografia) – região geográfica em volta do Senegal e da

Gâmbia, como demonstra o mapa na página 266.

A Confederação de Senegâmbia teve um breve período e se constituiu entre os

países oeste africanos do Senegal e seu vizinho, a Gâmbia, país este praticamente todo

circundado pelo primeiro. Passou a existir no dia 01 de fevereiro de 1982 após um

acordo assinado em 12 de dezembro de 1981. O intuito da federação era promover uma

cooperação entre os dois países em matéria de polícia estrangeira, segurança e assuntos

econômicos. Senegal dissolveu a confederação oficialmente, no dia 30 de setembro de

1989, depois de Gâmbia ter recusado uma aproximação maior entre os dois países.

Senegal e Gâmbia integraram suas forças militares com as de segurança, formaram uma

união econômica e monetária, coordenaram suas polícias e comunicações estrangeiras e

estabeleceram instituições confederais controladas pelo Senegal. Cada país manteve sua

independência.

A competição entre Senegal e Gâmbia começou em 1500 quando, a partir do

duelo entre as forças coloniais, francesas e inglesas, foi criada a unidade política de

Senegâmbia nesta região. Os dois países estabeleceram centros comerciais na região - o

comércio francês se concentrou no rio Senegal e na região de Cabo Verde; e o comércio

inglês se tornou mais denso no rio Gâmbia, embora houvesse uma transposição de áreas

de influência entre esses rios. A região se tornou muito importante para os impérios

crescentes da África Ocidental, passando a ser esta região, um caminho de acesso para o

comércio entre a Europa e suas colônias americanas, e ainda um depósito para o


276

comércio de escravos africanos, a exemplo da casa rosa na Ilha de Gorée. Como o

colonialismo se tornou mais e mais ‘lucrativo’, ambos, França e Inglaterra tomaram

providências para definir suas esferas de influência. De 1500 a 1758 os dois países

usaram seus poderes navais para tentar retirar um ao outro, daquela região. Em 1758, os

britânicos foram vitoriosos em capturar mais bases de comércio francês na área do rio

Senegal e formaram a primeira Senegâmbia – uma colônia real. Em 1779 foi a queda da

região unificada, quando a França recapturou Saint Louis e incendiou o maior povoado

britânico na região de Gâmbia, acabando totalmente em 1783.

O tratado de Versalhes (1783) - assinado junto com o tratado de Paris que

oficialmente terminou a Revolução Americana – criou o atual equilíbrio francofônico-

anglofônico na região: Saint Louis, a Ilha de Gorée, e a região do rio Senegal foram

restituídas aos franceses e a Gâmbia deixada para os britânicos. Nas décadas de 1860 e

70 ambas as nações começaram a estudar uma proposta comercial para unificar as terras

da região. Dessa maneira o comércio francês oeste africano poderia representar uma

outra fonte de posses para a Gâmbia, mas o intercâmbio nunca se completou, pois

enquanto as áreas estavam separadas não ficou evidente uma fronteira oficial entre as

colônias francesas e britânicas de Senegâmbia. Esta situação se prolongou até 1889,

quando os franceses concordaram em aceitar a atual fronteira entre os dois países e

removeram seus postos de comércio fronteiriço. Esta escolha deixou o futuro Senegal,

que ganhou sua independência em 1960, e a Gâmbia, independente em 1965, com um

grande problema no que concerne o sentido de ‘espaço’8, a partir de focos de

8
“Uma questão geográfica espacial que inter-fere, (fere vários lados entre si) em outros ‘espaços’ das
relações entre Senegal e Gâmbia, ou seja, o geográfico que atinge o comercial que, por sua vez alcança o
político, e conseqüentemente o espaço social e o cultural. A partir de uma maneira mais híbrida de lidar
com a vida, Homi Bhabha (1998, p.199) propõe: ‘uma construção cultural de ‘nacionalidade’ na
articulação de diferenças e similaridades culturais, onde a localidade da cultura gira mais em torno da
temporalidade do que da historicidade”. Considero a possibilidade de pensar essa noção espaço-temporal
que permeia os percalços entre Senegal e Gâmbia desde 1500, para dialogar com a temporalidade da
minha experiência com tais culturas que se deram através do Bugarabu desde 1996. Para complementar a
proposição deste autor aplicada à temporalidade desta pesquisa, trago o texto de Walter Benjamim, “A
277

abordagem variáveis. Como manter, com sucesso, dois países separados numa região, e

ainda divididos por valores culturais diversos com uma fronteira internacional que

aperta um deles no meio de outro, no caso Gâmbia?

Essas complicadas situações fronteiriças de Senegâmbia causaram o nascimento

da confederação. Para cada um dos países, essa situação chave fronteiriça que

atravessou séculos, desencadeou um desdobramento de problemas, entre os quais se

destacam as relações internacionais, especialmente no comércio e no controle das

regiões circundantes da fronteira Senegal - Gâmbia. Com comunidades étnicas divididas

nos dois lados das fronteiras, a violência poderia se espalhar pela região com muita

facilidade. Um golpe bem sucedido poderia fazer com que tivesse um grupo de

simpatizantes no outro, trazendo perigo para o regime democrático de ambos os países.

A posição pró-ocidente do Senegal aumentou suas preocupações de segurança com seus

países vizinhos que poderiam desestabilizar o governo de Dakar, fosse Gâmbia, ou o

povo de Casamance, ou ainda outros grupos dissidentes. Vieram mais ameaças de Gana,

Mali, Guinéa, Guiné-Bissau e de Líbia.

O governo senegalês teve medo da instabilidade nacional causada pela revolta

nas regiões de Gâmbia e Casamance que se concretizou em 30 de julho de 1981, quando

esquerdistas tentaram um golpe de estado contra o presidente Dawda K. Jawara. A

pedido do então presidente, o exército senegalês entrou em Gâmbia e acabou com a

insurreição. Depois da tentativa de golpe, as forças militares do governo não foram

suficientes para parar ou prevenir transtornos políticos. Estava se tornando mais e mais

difícil ter segurança na região.

Tarefa do Tradutor”, que encerra o capítulo VIII, Disseminação do livro de Bhabha, O Local da Cultura,
onde como pesquisadora-participante/artista estou no papel de tradutora transnacional dessas culturas
diluídas entre si. “Da mesma maneira que os fragmentos de uma ânfora, para que se possa reconstituir o
todo, devem combinar uns com os outros nos mínimos detalhes, apesar de não precisarem ser iguais, a
tradução, em lugar de se fazer semelhante ao sentido do original, deve, de maneira amorosa e detalhada,
passar para sua própria língua o modo de significar do original; assim como os pedaços partidos são
reconhecíveis como fragmentos de uma mesma ânfora, o original e a tradução devem ser identificados
como fragmentos de uma linguagem maior”. (BHABHA, 1998, p.238)
278

Assim surgiu a Confederação Senegâmbia. Uma união pragmática baseada num

interesse de segurança mútua que se consumou a partir de um acordo assinado naquele

mesmo ano, 1981. Essa nova possibilidade de mudança de regime forçada, tão próximos

de Banjul (capital de Gâmbia) e Dakar (capital do Senegal), promoveu uma unificação

de idéias que foram desenvolvidas na região. Essas idéias foram estimuladas por

Léopold Sedar Senghor, primeiro presidente do Senegal, além de ser um dos

incentivadores da Negritude - um movimento literário e ideológico socialista que

encorajou os africanos em diversas partes da Diáspora a abarcar suas culturas

compartilhadas.

A crença de Senghor na Negritude prenunciou a unificação entre Senegal e

Gâmbia sob a sensação de um processo orgânico. Nos anos 60, Senegal e Gâmbia

haviam encomendado um relatório sobre as ‘Nações Unidas’ para estudar os possíveis

planos e benefícios de unificação entre os dois países. Apesar da vida curta da união, a

Confederação de Senegâmbia foi uma das mais longas uniões africanas daquele período.

Tivesse ela êxito, não teria somente resolvido tensões econômicas entre os países

vizinhos, mas dado nova esperança ao conceito de Pan-africanismo.

O processo de integração de Senegal e Gâmbia tinha vindo dos dois governos e

das elites sociais. Depois que a ameaça de instabilidade política começou a amenizar, os

dois lados retrocederam aos seus medos e aos estereótipos tradicionais do outro. O

governo e o povo de Gâmbia, uma vez que a revolta passou a parecer simplesmente um

fato histórico, começaram a temer a perda de suas próprias identidades e poderes através

da absorção senegalesa.

Hughes e Lewis, fonte dessas informações junto com E.B.Richmond,

‘traduzidas’ do site da Wikipedia já mencionado, listaram em suas análises de

Senegâmbia, muitos problemas que freqüentemente levam as uniões ao fracasso. Neste


279

contexto, um dos problemas mais salientes é a fundação ideológica e pragmática da

união. Desde que a união foi forjada por questões de segurança mútua, pessoas de todos

os níveis e dos dois governos passaram a ir e vir, e foi dessa maneira que a

Confederação deu seus sinais de morte. Esta situação fica bem exemplificada com a

remoção de tropas senegalesas de Gâmbia, depois de o Senegal ter sido ameaçado pela

Mauritânia. A principal plataforma na qual a união tinha sido criada marcou o começo

do fim. O término aconteceu em 23 de agosto de 1989, quando o presidente Diuof

considerou que seria melhor que a Confederação fosse colocada de lado depois das

conversas inúteis da união.

De qualquer modo, Senegal atingiu grande sucesso economicamente em relação

à Gâmbia pelas diferenças de política relacionadas ao comércio internacional. Desde o

fim da colonização, o governo senegalês manteve barreiras comerciais que

proporcionaram preferências por mercadorias francesas importadas dentro do país,

enquanto Gâmbia não tinha barreiras comerciais. As políticas comerciais contrárias

resultaram em grande mercado negro em torno das fronteiras Senegal-Gâmbia por

mercadorias manufaturadas mais baratas no Senegal. De qualquer modo, o mercado

negro também causou uma exportação que escoou em Gâmbia. O governo senegalês

começou a instituir um sistema de pagamento atrasado com seus fazendeiros de

amendoim. Quando os fazendeiros vendiam suas colheitas para Dakar, eles recebiam

um comprovante, conhecido como talão, o qual poderia ser convertido em dinheiro

depois de três meses. Por não querer esperar o sistema de comércio senegalês para pagá-

los, muitos fazendeiros começaram a contrabandear suas mercadorias para Banjul, pois

o governo de Gâmbia pagava em dinheiro; em 1990 estimativas mostraram que 20% do

mercado de amendoim de Gâmbia eram da safra contrabandeada do Senegal.


280

Toda essa problemática em torno dos dois países evidencia suas interpenetrações

de caráter histórico, econômico, político e social que espalham suas similaridades e

indicam suas especificidades culturais em outros territórios, a exemplo da Holanda. As

similaridades culturais servem de apoio entre os senegaleses e gambianos que ali moram

e suas especificidades refletem as disparidades culturais criadas a partir de seus

problemas econômicos, políticos e sociais que compuseram a história entrelaçada dos

dois países, assinalada pela soberania mais evidente da colonização francesa no

Senegal. Em Amsterdã era nítida a delimitação espacial dos dois grupos, cada qual na

defesa de suas manifestações culturais. Os senegaleses distinguidos pelo sabar e os

gambianos pelo Bugarabu, sendo que os dois instrumentos denominam, ao mesmo

tempo, as danças e os instrumentos de tais manifestações desses países.

Encerro as fontes complementares deixando essas linhas para que o leitor as

alinhave. Uma história vista por ângulos e abordagens distintas para serem comparadas

e interpretadas. Contudo, indicativa dos ‘complexos culturais’ e interpenetração mútua’,

que a colonização gerou, focados aqui, naquela região do oeste africano (Senegal,

Gâmbia e Senegâmbia), aplicáveis à história de um povo entregue a seu poder

dominante como acontece igualmente com o Brasil. Faça relações, e que estas

contribuam para o conceito de diáspora, em que o Brasil, conforme Gilroy, causa

hesitação e onde “a contaminação líquida do mar envolveu tanto mistura quanto

movimento”. (GILROY, 2001, P.15)

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