Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
tempo.
tapete cinza.
palmas gordinhas das mãos e dedos afilados nas pontas, daquela ‘figura’
gente. Pele morta com pele viva. É exatamente o lugar, o estado, ‘entre’
Ilustração 7 - Amarrados nos pulsos vemos os guizos (siwagness) a que me refiro no texto.
Foto do prospecto do Gebouw Kostgewonnen
102
que não ouço, mas consigo identificar que indica o erro de alguém. Na
um gesto de afirmação.
conjunto sonoro. Do seu lado esquerdo está sentado o único deles que se
3
Vislumbro aqui um diálogo entre o fator cíclico que marca o ritmo deste e de outros momentos inscritos
na memória das danças deste estudo com a performance Untitled Dance (1987) analisada no texto “The
Ontology of Performance: representation without reproduction”, (Unmarked: The politics of performance,
PHELAN, 1993), Angelika Festa tenta mostrar a analogia entre algumas oposições metafísicas tácitas
ocidentais como nascimento e morte, tempo e espaço, espetáculo e secreto, onde o presente para ser
presente, para existir, precisa estar suspenso entre passado e futuro. Uma mulher amarrada igual a uma
múmia, está suspensa numa diagonal. A condição em que se encontra mostra sua impossibilidade de
projeção, de reclamação. Ela está ali imóvel durante 24 horas, visível, para mostrar sua invisibilidade
como mulher, percebida pelo espectador através de sua dor, sua passagem liminal e sem fim. A
iconografia é auto-contraditória, cada posição é destruída com uma de sucesso, a exemplo dela como
múmia (morte), em contraste com a imagem de casulos na tela de uma televisão (vida). O importante não
era o rompimento do nascimento, mas a contínua repetição, o ciclo. O elo entre o encontro com aquele
ciclo rítmico percussivo e Angelika pendurada na performance Untitled Dance é o estado liminal, sem
fim, de arrebatamento, que as referidas oposições, imobilidade versus movimento gestual e rítmico,
conclamam pela condição cíclica de ambos.
103
destaca por sua pele branca, olhos puxados, enfim, uma feição
do chão, pés que falam, tocam e cantam juntos com a pele viva do
4
“O djembé é um instrumento tradicional dos mandingas. Esculpido em um tronco em forma de cálice, de
aproximadamente 60 cm, sobre o qual se estica uma pele de cabra, antigamente de antílope. Ele é tocado
com as duas mãos, mais freqüentemente em pé, e com a ajuda de uma tira que prende o djembé ao corpo
do músico. Certos músicos fixam um objeto metálico ao redor do couro para engrandecer o som”.
(Tradução minha) http: // www.kassoumay.com/casamance/index.html
5
“Agogô é um instrumento musical composto de duas campânulas, geralmente de ferro, percutido por
uma haste de metal. As campânulas são de diferentes tamanhos, produzindo sons diversos e são unidas
por um arco soldado em suas pontas”. (BARROS, 2005, p. 235). O agogô é também um dos instrumentos
da orquestra ritual do candomblé e, por conseguinte, usado nas cerimônias de Xangô. Segundo J.
Kwabena Nketia a noção de referente de densidade – timeline – é chamada também de linha guia de
orientação, ou ainda, linhas de tempo que funcionam como fórmulas curtas e simples de organização
rítmica (agogô, sinos, palmas). Fonseca acrescenta que esta é a “linha rítmica que organiza o tempo
(metro) ou a notação de impacto, e são também as camadas em relação a “como” se dá a organização do
discurso musical”. (FONSECA, Colóquio 2002, p. 65). Na situação relatada acima, tanto o agogô, quanto
as duas madeiras utilizadas pelo homem magro, cumpriam o mesmo papel, o de linha guia de orientação.
104
que país será?... Algo me lembra Mamour Ba, mas nada claro e evidente
do Senegal.
para baixo acompanham o movimento de vai e vem dos pés. Até que um
mãos abertas para frente. Quando de volta do pulo, os pés tocam o chão.
105
No terceiro pulo, todos fazem uma nova pausa musical e gestual. Desta
próximo passo.
junto aos músicos e cada um carrega duas madeiras nas mãos. Com elas
até acontecer, uma vez mais, aquela parada brusca que permite aos
e mais outra...
Lembro do papo com minha avó sobre cores, peles, quando tinha dez
6
“Kubik assinala a inadequação da noção de compasso no registro dos ritmos de origem africana. Sua
escrita mostra um código que indica o número de valores mínimos que totalizam a fórmula integral, ou o
número totalizador de unidades métricas. É um tipo de escrita não “duracional”, na qual o que importa
são os pontos de articulação e não a duração dos sons. “Chama a grafia das linhas-guia pela
denominação de “notação de impacto”, em que “x” representa um som “e” . Representa ausência de som.
Nesse aspecto, o mais importante é o músico saber “em que pontos dentro do fluxo constante de uma
série das unidades menores, ou ‘pulsações elementares’, ele realmente bate.” (KUBIK, apud FONSECA,
Colóquio 2002, p.9) Crio uma associação entre a noção de sats de Barba e os pontos de articulação ou
notação de impacto de Kubik. O sats é esta energia suspensa na imobilidade do movimento, na qual a
intenção dá à ação um potencial diferente, por meio de um empenho muscular, nervoso e mental que
envolve o corpo inteiro, já dirigido a uma outra ação, descrito no texto acima como pausa, suspensão
(BARBA, 1994, p. 84, 85). Neste intervalo de tempo mudo a que chamei de pausa - dentro do qual se
localiza o sats para Barba - se inscreve o espaço preciso entre os pontos de articulação ou as linhas guias
indicadas por Kubik, executadas pelo agogô nas danças de Xangô e pelas duas madeiras ou claps no
Bugarabu.
7
Esta é uma situação que associo a duas circunstâncias de um momento posterior: a primeira se refere aos
mais ou menos 6 anos que trabalhei como modelo para escultores, desenhistas e pintores na Holanda
quando dançar na imobilidade passou a ser um exercício constante; a segunda é resultante da primeira,
107
percussões que reverbera o som realçado pelos guizos, metais (siwagness em mandinga)
amarrados ao braço do músico. Este músico é Fayee Diona, o maestro do grupo, Sam
professor de dança. Os três são de Gâmbia. Tone, um holandês, é aquele que toca o
djembé cafona. Abukanu, músico e artista plástico de Serra Leoa, é quem tira das
sabar. 9 E por fim, Samuel da Nigéria que também toca dumdum. Embora se fixassem
trocas. A pequena orquestra musical toca até atingir certo patamar de envolvimento dos
músicos entre si, e destes com todos os participantes religiosos e com a comunidade
presente, quando então uma pausa encerra esse diálogo. Durante os anos de contato com
as danças oeste africanas, pude perceber que esta característica é recorrente dentro desse
estilo musical. Este é exatamente o momento a que se refere Schechner no seu segundo
pois, ficar parada, imóvel propiciou praticar alguns dos elementos da Antropologia Teatral, (BARBA,
1994) tal como a energia suspensa no ar, intervalo de tempo no qual, a percepção de equilíbrio, de peso e
dos esforços musculares, evidenciavam o estado de dançar na imobilidade.
8
“O dumdum é um cilindro grosso de madeira com as duas extremidades cobertas por uma pele de vaca.
Ele é tocado com um bastão em uma mão e uma pequena barra metálica que se bate com a outra mão
sobre uma campânula de metal, (este é o agogô) fixada no alto do tambor”. (tradução minha) http: //
www.kassoumay.com/casamance/index.html
9
O sabar é uma percussão utilizada no decurso das cerimônias dos wolofs, dos lébous e dos sérères. É
um tambor de madeira em forma alongada de cálice. A membrana em pele de cabra é esticada por pinos
de madeira e por cordas que dão a afinação. Atualmente, o sabar foi redescoberto nos grupos musicais
graças ao músico griot - músicos poetas e mestres da palavra que perpetuam a tradição oral e musical e
transmitem de geração em geração, a memória de um povo - Papa Doudou Ndiaye Rose. (tradução
minha) http: // www.kassoumay.com/casamance/index.html
108
que toca a platéia e instaura uma "vida teatral coletiva especial". Assim me senti várias
vezes. Contudo, uma das primeiras e das mais especiais foi com Mamour Ba, em um
direção, me suspendeu da platéia, e plantou meus pés no palco para dançar com ele.
nos eventos fixos e nos esporádicos. As idas e vindas ao som do silêncio ou do reggae
fator predominante que alimentava nossas idéias e vontade de criarmos juntos, uma
troca única, em momentos únicos. Fayee dizia sempre: “uma das coisas de grande valor
que podemos ter são nossas idéias”. Com o tempo percebi ser esse um dos aspectos da
Nessa região o país é cortado em sua extensão horizontal pela Gâmbia. Ocorre que em
africano, tais como o mandinga, djola e o wolof, conferindo a essa região o nome de
109
Senegâmbia, assunto a ser tratado mais adiante, nos anexos. O contexto em que esta
dois maiores e dois menores a fim de corresponderem aos sons graves e agudos que
diálogo ‘entre’ a pele viva do músico e a pele morta do instrumento. O dançarino, por
sua vez esboça a cadência em gestos, o que Edilberto J.M. Macedo (2002) considera
O tilintar dos guizos amarrados nos punhos do músico, junto ao canto de todos
os presentes, e aos claps tocados pelos dançarinos, dão um colorido místico especial à
claps, como eu vim a conhecer no trabalho de campo em Gâmbia, são tirados do caule
tirarmos o som estridente adequado, batemos paralelamente com as costas das suas
concavidades.
10
Além das palavras de Macedo, trago informações que emergem das experiências que adquiri em
procedimentos metodológicos enquanto dançarina, pesquisadora e adepta do candomblé, a partir da
vivência “in loco”, das leituras, dos aprendizados com alabés e músicos, e da audição de gravações. No
candomblé, os tambores tocados pelos músicos, os alabés, são poderosos veículos de diálogo com o
sagrado, atuam como mensageiros ‘entre’ os homens e os orixás, ‘entre’ os vivos e os mortos. Por sua
vez, Exu é o orixá mensageiro que transmite as mensagens entre os homens e os orixás e tem como seu
local as encruzilhadas. Portanto, os tambores e Exu, desempenham funções de comunicação. Dentro dos
códigos implícitos na tradição oral, a função comunicativa se estende ao fenômeno sonoro dos gestos, das
palavras, dos cantos, assim como às cores e aos objetos simbólicos. Contudo, vale ressaltar que “a
execução musical tem regras e normas observadas precisamente. Assim que o que é relevante dentro do
estudo só pode ser dado por aqueles que são detentores da tradição nesse fazer musical”. (MACEDO,
E.J.M. 2002, p.65)
110
Ilustração 8 – Bugarabu com suportes de madeira na terra, comício, Brikama, Gâmbia, 13/01/1996.
Foto: Sandra Mascarenhas
filosóficas, onde a vida parece ser menos apressada, onde cada instante
apenas começando...
As experiências vividas com Fayee e sua família, desde essa recepção calorosa
um ritual próprio para viver o Bugarabu. A intenção de Fayee foi mostrar - para
Sanjaya, Tone e eu - seus 45 anos durante as três semanas que estivemos em Gâmbia.
Compartilhar pouco mais de dois anos de sua vida era nossa brincadeira diária.
fazer associações que, num fluxo de mão dupla, atravessavam especialmente da Bahia à
palavras, articular idéias, fossem elas convergentes ou divergentes, constituía tal deleite.
sistematicamente, acordou uma reflexão crítica a respeito de uma história pessoal que se
estende a uma problemática histórica mais abrangente, muito bem articulada por Paul
processos de modernização têm aberto espaços para uma reflexão mais ampla sobre as
culturas negras. Ao afirmar que conceitos como nação, etnia e raça sempre viajaram, ou
vieram de fora, esse movimento de ida e vinda através do oceano Atlântico têm alterado
que relativizam origens, não sendo nada difícil encontrar formas convergentes em
encontram e se contaminam.
realizados dentro da diversidade cultural brasileira, que por sua vez instigaram a
uma noção que se move. Ela é fluida, líquida e adaptável como as águas do oceano
contemplava a pequena porta à beira d’água na casa rosa dos escravos, de onde eles
eram arrastados para os navios, em direção ao Novo Mundo. Na minha imaginação, era
como se as duas portas estivessem frente a frente. Esta, bem perto, ali em Gorée, e a
outra, muito semelhante, lá no Solar do Unhão, na Av. Contorno, em Salvador, por onde
idéias, inerente a esta experiência translocada, torna-se mais explícito com o diferente
114
nível com que Gilroy aborda algumas questões acerca das “afinidades translocais”,
acadêmico, tem a ver com solidão, ou melhor, com solitude. Estar comigo se tornou
optei por transportar para cá dois momentos do diário sobre a viagem, entre tantos
cultural.
... A lua está cheia. Tem dois dias que cheguei a Serekunda,
Gâmbia. É dia seis de janeiro e depois de mais de 40 anos em recesso
acontece uma festa na vila de Banjulding cujo ‘chefe’, Erk Janneh é tio
11
A sensação era de um desfile salpicado de imagens que lembravam e afirmavam o hibridismo
brasileiro, representadas naquela manifestação popular de Gâmbia. Por um lado, um cenário que parecia
voltar no tempo. Quando a cultura popular era mais amplamente transmitida e consumida através de um
processo empírico de acumulação de experiências e inovações transmitidas de uma geração a outra, pela
vivência e pela oralidade e baseado na proximidade. Tempo anterior à sociedade capitalista de consumo,
fruto da Revolução Industrial que provocou sérias mudanças no contexto global do século XX, dando
surgimento à Cultura de Massa. Bregues, cita José Marques de Melo num artigo publicado na rev.
VOZES (outubro de 1969, ano 63, nº 10) diz que “a cultura de massas atua como veículo de interação
entre a cultura clássica e a cultura popular estimulando o intercâmbio simbólico entre elas, e, ao mesmo
tempo, extraindo de ambas, códigos e elementos místicos que incorpora ao seu próprio acervo e os
retribui sob a forma de novas influências [...] A primeira é uma cultura própria das elites, dos grupos
privilegiados que detêm o poder uma sociedade, ou melhor as classes dominantes. A segunda é uma
cultura peculiar à grande massa populacional que constitui o pólo dos dominadores na estrutura da
organização social. Em Sabedoria Popular do Brasil, Edison Carneiro diz que as manifestações da vida
popular revelam uma maneira de sentir, agir e pensar diferente do sistema erudito, oficial e predominante
nas sociedades de tipo ocidental. E tal sistema reflete as diferenças de classes sociais (de educação, e de
cultura) que divide os homens”. (CARNEIRO apud BREGUES, Comunicação, folclore e globalização.
©Instituto Gutenberg Boletim Nº. 28 Série eletrônico Setembro-Outubro, 1999)
Por outro lado, aquele cenário era atual, manifestador das interpenetrações culturais conseqüentes do
processo diaspórico que detonaram a hibridez da cultura brasileira. Ali, especificamente associados aos
orixás Oxossi, Ossain e Omolu descritos no corpo do texto e, ao Zambiapunga e ao Bumba meu boi
explicados nas notas a seguir, todos ilustrados nas páginas 115 e 116.
12
Zambiapunga é uma das manifestações brasileiras da cultura popular de Nilo Peçanha, Valença e
Taperoá – BA. A figura representativa do Zambiapunga usa altos chapéus multicoloridos, máscaras e
trajes de cores vibrantes e é acompanhada de uma pequena banda de tradição banto da Angola ancestral,
tocando trompetes de búzios e lâminas de enxadas comuns que, percutidas com baquetas de metal,
ressoam um ritmo hipnótico. Depois dos anos 90 a opinião pública na Bahia passou a demandar uma nova
postura empresarial, identificada com as temáticas de interesse social. A TV Bahia promoveu o grupo do
Zambiapunga de Nilo Peçanha depois de identificá-lo na Caminhada Axé, uma das iniciativas de
116
Kumpoo, coberto de palhas presas num pau que serve de ponto de apoio
está à sua frente. Esta cena me remete à idéia de Omolu pela questão
estética das palhas que também são utilizadas por este orixá ou, no meu
provocativa do homem.
interação entre o poder veiculador da mídia e as expressões populares. (Jornal A Tarde, 08 de dezembro
de 2000)
13
Esse é o texto, Bumba meu Boi – Uma tradição que corre o Brasil de norte a sul. “O bumba-meu-boi é
uma espécie de auto em que se misturam teatro, dança, música e circo. Ele é representado sob os mais
diferentes nomes em localidades que vão do Rio Grande do Sul (como boizinho) e Santa Catarina (boi-
de-mamão) aos estados do Nordeste (boi-de-reis) e o Amazonas (boi-bumbá). Sua provável origem é o
Nordeste das últimas décadas do século XVIII, onde a criação de gado era feita por colonizadores com
mão-de-obra escrava. Nas fazendas, os cativos teriam misturado suas tradições africanas (como a do boi
geroa) a outras européias dos senhores (como a tourada espanhola, as tourinhas portuguesas e o boeuf
gras francês), numa celebração que tematizava as relações de poder e uma certa religiosidade, sendo,
inicialmente, alvo de grande repressão. O bumba-meu-boi encena o rapto, morte e ressurreição do boi —
uma história que, de certa forma metaforiza o ciclo agrário. A lenda pode ser contada de várias formas,
mas a história básica é a da escrava Catirina (ou Catarina), grávida, que pede ao marido Chico (ou Pai
Francisco) para que mate o boi mais bonito da fazenda porque quer comer a sua língua. Ele atende ao
desejo da mulher e é preso pelo seu feitor, que tenta a todo custo ressuscitar o boi, com a ajuda de
curandeiros. (ESSINGER, Silvio. http://cliquemusic.uol.com.br/br/Generos/Generos.asp?Nu_materia=3)
117
Ilustração 10 - (a) Kankurang, festa em Bandulging , Gâmbia, 1996 – foto Sandra Mascarenhas;
(b) Oxossi, cartão postal.
Ilustração 11 – (a) Mamapara, Brikama, Foto Sandra Mascarenhas; (b) Zambiapunga, Salvador,
Caminhada Axé, 2000
118
Ilustração 12 – (a) Kumpoo, festa em Bandulging, 1996, foto Sandra Mascarenhas; (b) Omolu (Verger e
Rego, 1993, p.80); (c) Bumba meu boi, Silvio Essinger.
119
rápidos como se não pudessem tocar o chão com seus pés. A assistência
Gâmbia, distinto daqueles vividos na Holanda. E mais, como isso reverberava em mim.
Experimento a emoção, não decifro, mas sinto, como uma quentura que vem de dentro.
Dançar é arder, é queimar. Diante daquele súbito chamado, desenhei como o fogo no
120
espaço, a improvisação narrada acima. Como fogo de Xangô, como fogo de Iansã.
presentificar na dissertação foi a viagem para Candion, o lugar onde Fayee, durante
cinco anos, conviveu com a prática de tocar o Bugarabu. Entre os muitos detalhes
finais com o carro, as compras, o dinheiro, a feira (lembrando a feira de São Joaquim,
fator mais importante de trazer para o texto as maneiras de sentir, pensar e agir dos
participantes das cenas a seguir, são as questões equiparativas que podem ser percebidas
nessa interpenetração de idéias e que sugerem valores e costumes distintos. Sem contar
Como sou a pessoa menor daquele grupo, fui eleita para sentar atrás no
Kassoumay kepe! (Como está você? Eu estou bem! Em djola)... Fomos chamados
Ilustração 13 - Apresentação das fotos na chegada de Donsekunda, Candion, 18/01/1996. Foto: Sandra
Mascarenhas
plásticos bem dispostos dentro de uma capa, com imagens em papel, das
depois chegam dois meninos, segurando em uma das mãos, duas galinhas
de cabeça para baixo e vão passando por cada um de nós. Uma outra
copinhos de vidro.
122
para serem depenadas. Num pilão, a mais velha delas, pisa os temperos
somente a mão direita para tocar a comida que está arrumada em duas
para um passeio e chegamos num lugar com três árvores imensas, onde
Ilustração 15 - Local onde Fayee estudava o Bugarabu. Tronco sobre o qual os instrumentos são
apoiados. Donsekunda, 19/01/1996. Foto: Sandra Mascarenhas
tira toda a folhagem verde, uma a uma, e vai colocando no seu lado
inspirado meu pai a comprar alguns tacos que servem de piso para
agora em minha vida? Acho que preciso de tempo para digerir, pois
mínimas situações, que nos parece não atingir os outros que estão aqui.
Incorporação? Não. Transcendência? Sim. Os quatro bugarabu que Malan deu a Fayee
dilatado. Esse ‘entre’, esse trânsito, esse não lugar entrelaça várias vozes que se
trópico ou no frio? Através do olhar de quem estou sendo comparada? E com quem
14
Para corroborar este pensamento convido Maya Deren que em Divine Horsemen, ironicamente
objetiva, vê o transe através das próprias sensações do corpo no último capítulo do seu livro. Ela expõe,
propõe um mergulho nessas manifestações corporais, enquanto políticas e instigadoras de uma escrita que
tente as much as possible (o quanto possível) abrir, dar vozes. A descrição de Deren em Divine
Horsemen, da sua experiência de possessão é um exemplo singular de como ela faz esta transferência
entre o ponto de vista objetivo do observador (a posição do etnógrafo) e o ponto de vista subjetivo de
alguém que é observado (a posição do participante): “Como às vezes em sonhos, assim aqui eu posso
observar a mim mesma... (e ainda) não é mais a mim mesma que eu olho. Ainda, sou eu mesma, para
onde aquele terror ataca, nós duas somos uma novamente... Eu vejo a dança aqui e depois num outro
lugar, de frente para outra direção, e qualquer coisa traçada entre esses momentos está perdida, totalmente
perdida”. (Tradução minha) (DEBOUZEK, 1992, p. 13)
126
e fora do próprio país, em constante contato com costumes, lugares, falares e saberes
distintos, ser estrangeira tornou-se uma condição corriqueira. Afinal, como afirma
Gilroy, nós brasileiros, muito embora a história que nos foi passada tenha dissimulado
sabemos dos absurdos básicos do racismo. Os contatos hetero, inter e transculturais são
importantes e inerentes à vida brasileira. São desafios profundos que têm acarretado
Observadora? Muitas vezes. Com muita satisfação, prazer. Contudo, mais uma
que propósito estou ali, induz à inversão de observadora para observada ou, mais
freqüentemente, embaralha as duas posições. Exemplo: Nas inúmeras idas ao Ilê Axé
observar como primeira idéia, já deflagra que não pertenço àquela comunidade, sou
diferente, um motivo bem provável de ser observada ao mesmo tempo em que observo.
Exótica? Para mim não. Por vezes para os outros, como aconteceu em
Candion. Like a television for them, like life for us - como uma televisão
holandesa bem branca e eu - em um dos bancos de madeira como tantos outros que são
uma de televisão, a uma cena. Uma delas tocou com gestos delicados no meu cabelo,
sentiu a textura lisa dos fios e sorriu surpresa. Para aquelas crianças, nós éramos
observadoras das crianças que acreditávamos ser, passamos a ser observadas por elas.
e que hoje, são notas preciosas, que podem ser classificadas como escritas no estilo
15
Domodah - É uma comida feita de carne, peixe ou frango imersa num creme de amendoim pilado num
movimento concatenado entre duas mulheres. São dois pilões em um só pote e enquanto uma pila fazendo
um som a outra suspende, quando esta desce a outra levanta e assim trabalham fazendo ritmo.
128
reflexão afirmativa do referido registro, trago Sally Ann Ness, com a nota 10 do texto -
Dancing in the field: notes from memory, 2001, p. 81 - quando Sally se refere à
1992, quando coloca que, o que é salvo e produzido na impressão das notas é a
campo. Neste caso, uma função que visa especificamente, a partir das manifestações
Bahia e Gâmbia, que possa esbarrar em questões políticas e reflexões críticas, acerca
dos movimentos do Atlântico negro. Além da validade única desta experiência em si,
sensação de ser exótica na visão dos alunos. Certamente, o motivo não se restringia à
maneira de se comportar e de ser ‘brasileira’, era uma mescla disso com o repertório de
observação mútua outra vez. Vale ressaltar que independente da questão do exotismo,
prol de estudar de que forma orientá-los, e eles, para captar meus gestos e intenções,
condições sociais díspares, e em situações das mais diversas em relação à posição que
ocupo. Isto acaba por alternar meu lugar – em trânsito - e servir de exercício e auto-
reflexão para as atitudes que tomo, no sentido de entender, que a importância está em
como lidar com as situações onde somos detentores do poder, ou com as que somos
vítimas dele. Já na Holanda, ainda que cosmopolita, por vezes era traída pelas
estereotipada que traz consigo um dos mais significativos rótulos, a mulher como objeto
freqüentemente que o samba fosse ensinado nas aulas. Apesar de estarem impregnados
130
pela referida imagem que esta manifestação popular brasileira ressoa e provoca questões
polêmicas, ficavam inebriados com o ritmo envolvente e com os chamados por eles
mesmos, truques dos pés. Refleti sobre as questões que o tema samba envolve e com o
condição de subordinada para dar voz à pessoa crítica em ebulição interna, e atuar como
empenho. Transitar por tempos e espaços distintos que constituem o universo musical
tomou um sentido mais amplo. A dança passou a figurar como âncora e possibilidade de
dança, com uma tendência pouco a pouco, maleável e convergente às danças inspiradas
nas culturas, dos orixás e do oeste africano. Não nasci na Bahia, nem na África, nem na
Enquanto ritmo. Perguntas preciosas? Também! Porque este é o lugar confortável dessa
viventes e mortais. Enfim, expressar uma voz, expressar várias vozes, com a escrita, e
passagem no fluxo de suas mobilidades para transporem o discurso deste estudo, pelo
fato de serem tratadas aqui, importantes questões como as lançadas por Gilroy, acerca
Para analisar o processo de trabalho com Fayee destaco suas repetidas palavras,
sempre que me via com um papel e caneta na mão: “Viva, não perca momentos
uma forma de registrar aquele momento efêmero para revivê-lo mais tarde. Foi um
valioso trabalho de campo para a atual pesquisa, guardado na memória. Para justificar
tal mérito, pontuarei mais alguns momentos do diário de Gâmbia, no estilo write-down,
que o leitor possa perceber e fazer conexões pertinentes a este trabalho de pesquisa,
fazem história.
a) Gâmbia
disse: ‘você tem que ser forte’. Eu sentia dor de barriga por causa do vinho
sax. Por efeito da música e da dança a dor dava seus últimos sinais...
drum (um Bugarabu), cuja pele de vaca colocada de molho há dois dias,
drum, faz-se cortes nas laterais e com uma fita feita da própria pele,
Ilustração 17 - Fayee confeccionando o Bugarabu em sua casa, Kanifing, Gâmbia, 07/01/1996. Foto
Sandra Mascarenhas
redondos ora embaixo, ora em cima, me chamou pra dançar. Amei. Ele
Assentar a poeira e planejar com calma, num ciclo que não termina, se
repete.
134
Amsterdã, uma acidental estratégia para criações. Esta cidade serviu como local de
experimentar o fogo.
o impulso efetivo no desencadeamento deste objeto de estudo. Mais uma vez eu estava
‘entre’, entre culturas, pessoas e decisões que não eram fúteis. A responsabilidade de
complexa. E ainda, fora da própria área territorial de onde vim? Situação difícil! Por
esta razão, desafiante e sedutora! Ocasião propícia também para labutar com minhas
16
O alujá é um toque rápido com características guerreiras, dedicado a Xangô. Alujá em ioruba significa
perfuração, orifício. Segundo alguns zeladores de santo, é o orifício ou o buraco que Xangô abriu na terra,
por ele entrando, deixando de ser rei e transformando-se em Orixá. (LIMA, F. 2004)
135
Fayee costumava dizer: “You look like fire when you dance!” Você parece fogo
quando dança! As duas fotos abaixo mostram esse momento onde o elemento fogo atua.
A foto 18(a) é de uma gambiana dançando em Brikama (1996) e a 18(b) sou eu num
dança do Bugarabu. Fayee trazia esse momento com a sua música e o identificava no
Ilustração 18 - (a) comício, Brikama, Gâmbia, 1996, Foto: Sandra Mascarenhas; (b) Sandra, Dakar,
Senegal, 1998, Foto: Iana Mascarenhas
Assim havia sido percorrido o caminho da dança até então. Com o mesmo desenrolar
com Fayee. Sem falar das performances, nas quais, a princípio, quando quis marcar
ensaios com ele para uma apresentação que iríamos fazer no Tropenmuseum de
em confeccionar nossos panfletos das aulas que aconteciam em blocos de dez vezes.
Certa feita, cada um de nós recebeu uma mensagem pela internet para dar nossa opinião
quanto ao texto criado por Janete, uma das alunas. Ali continha o histórico de Fayee e o
17
meu, com a afirmação de que as aulas eram compostas de ‘percussão africana’ e
‘preservar’ a dança de Gâmbia, mesmo com uma professora vinda de outro trajeto, foi
trabalho, quando disse: “It is true” (Isto é verdade). O que significou uma maior
aceitação de sua parte em torno das nossas diferenças. Em pouco tempo, Fayee dizia
estar orgulhoso do nosso trabalho, pois achava nossa criação algo ímpar, tanto no que se
17
Cabe lembrar que o uso do termo generalizado ‘percussão africana’ pretende provocar
questionamentos, pois os eventos do continente africano eram pronunciados dessa maneira em suas
divulgações, por uma estratégia atrativa à unidade exótica de um mundo diverso, aos olhos de quem o
observa. As especificidades de tais eventos ocupavam um lugar mais discreto no mundo da propaganda,
assim como nos panfletos.
137
seguissem o mesmo estilo. Após, propunha uma improvisação que contribuísse para:
estimular a capacidade criativa dos alunos, soltar os nós de tensão musculares e facilitar
abrangia de Naná Vasconcelos a Omom Engoma, Ilê Aiyê, Muzenza, Malê de Balê e
Guem e nesse momento era quando Fayee com os sinos (siwagness) nos braços,
adentrava a sala em direção ao Bugarabu, já colocado sobre os metais que lhe serviam
entrava na sala e com o tempo percebi que esta era uma chance de incentivá-lo a
desfrutar das variações rítmicas que eu trazia. Como estratégia, quando ele se encaixava
com o ritmo que tocava eu desligava o som. Ele continuava só. Só não, quero dizer com
os outros músicos, porque eram vários deles que acompanhavam Fayee nas aulas,
inclusive os alunos da aula de percussão que acontecia após a aula de dança, da qual eu
participava tocando, para ter uma compreensão mais aguçada de ritmo. Daí em diante
movimentos novos e com aqueles que faziam parte da partitura a seguir. Essa era a parte
movimentos e até que ponto eles captavam as nuances de uma linguagem corporal
europeus, que só com uma seqüência aprendida com as dez sessões saíam satisfeitos e
acreditando conhecer um pouco das referidas culturas. Segundo os alunos, tinham que
introdução. Pois bem. Integrei essa prática às nossas danças, porém, ao invés de canções
africanas eu cantava canções brasileiras. Este fato agradava Fayee e os dançarinos, além
Além do círculo, a mais usual das formas, empregava filas, diagonais, que avançavam,
Os movimentos criados eram inspirados nas danças dos orixás e nas experiências
com as danças que aprendera até então, em que destaco das danças oeste africanas, o
movimentos, que sobrevinha das mãos de Fayee e dos meus pés, primeiro impulso de
18
O ‘i' seria o que Barba chama de sats, ou seja, a preparação, o impulso, o estar pronto para uma ação,
que na música corresponde ao up beat demonstrado claramente nos comentários e na ilustração 4, p.81.
As mãos de Fayee um pouco acima do Bugarabu e meus pés um pouco acima do chão, deflagram esse
instante.
139
fossem momentos imprevisíveis, eram procedentes. Por esta razão, as coreografias eram
momento da improvisação, do círculo, dos claps, das palmas se estes faltassem, mas de
qualquer forma este funcionava como o momento de expressão máxima de cada um.
Um a um. Seus anseios, suas vergonhas, suas forças, suas alegrias se tornavam visíveis.
captava na dança de cada um. Sem restrições das expressões dos dançarinos. Acelerar
os claps era sinal de que o silêncio se aproximava. A exaustão pedia o silêncio das
conversas mudas, dos corpos imóveis por fração de segundos e dos olhares cúmplices se
marcada a presença de todos, dançávamos juntos frente aos músicos e todos seguiam
última faísca acesa. Parada total. Para depois então deitarmos no chão e relaxarmos.
registrar as sensações, fossem quais fossem. Elas não podiam ser jogadas fora. O
propósito desse tempo era sentir a sensação quente do fogo e dar tempo para ela se
Não era a fogueira de Donsekunda, nem a fogueira de Xangô no Ilê Axé Opô
uma cerveja. O aftermath como assinala Schechener nos pontos de encontro entre o
teatro e a Antropologia. 19
ilusório. Uma tarefa que requisita o ato de pensar, lembrar, olhar, refletir que por sua
que ela é única, e ainda pode instigar reflexões. Reflexões sobre a vida naquele tempo.
estávamos todos ali sob este jugo. A intensidade com que esse universo operava na vida
minha posição era de certa forma confortável, pois até nesse lugar ocupava uma posição
que criara e o método aplicado (uniek = único, em holandês) eram os trunfos através dos
Durante sete anos tinha um visto ‘provisório’ com o qual podia entrar e sair do
país quando quisesse, além de ter a permissão para trabalhar. Em contrapartida, não
tinha seguro-saúde, não podia ter uma casa em meu nome, mas vantajosamente estava
isenta de impostos sobre qualquer cachê ou salário recebido, por não ter o cartão de
como casar com alguém, fosse uma união heterossexual ou homossexual ou, mais
19
Enfoco nesse caso, o quarto ponto de contato entre teatro e antropologia proposto por Schechner. Este
se refere a ‘toda a seqüência da performance’, sob uma visão distinta do entendimento estético ocidental,
o show, para uma composição mais abrangente, isto é, uma seqüência de ocorrências. O treinamento, os
ensaios, os rituais para dar início e após o término da performance, warm-up e cool-down (aquecimento e
relaxamento ou volta ao cotidiano habitual) e o aftermath depois da performance, explicados
anteriormente. Com intensidades de maior ou menor importância em cada cultura, o cool–down, segundo
Schechner na América é de costume, os artistas saírem para beber e comer depois da performance e
acrescenta que esse período de celebração não é ‘o depois do teatro’ mas ‘parte dele’, um tipo de cool-
down. (SCHECHNER, 1985; SCHECHNER, 1990)
141
raramente, por meio de um contrato longo de trabalho. De qualquer modo, tinha orgulho
Holanda deu muito trabalho para mim e com certeza trabalho para eles também. A
intenso quanto é o exercício de memória nesse instante para escrever, era o exercício de
aquela dança.
A dança trazia consigo o seu contexto, o que implicava em refletir sobre outras
brasileira caracterizada pela ‘hesitação’, como diz Gilroy. O mito da malandragem, seja
deixam seus rastros nas manifestações populares e artísticas. Tais discussões justificam
desta dança. Por exemplo: o que a proliferou? E o que pode proliferar dela? Desse
entrelaçamento de duas danças, ambas referentes à questão do negro que tanto tem
Vale esclarecer que a aluna, nem brasileira, nem africana, está ‘entre’, na sua
simbolicamente chamado aqui de fogo, especificamente agora de: o fogo de cada um.
O fogo de Machteld.
142
Dear Sandra
Through your lessons I learned to develop the free dance, which is the greatest part,
you give the space to develop our own creativity. I know about the communication between
drummer and dancer, but it is so good that you teach about that and give it an important place
in the class. Thanks to you and your collaboration with Fayee, who is as important in this.
Your class is complete, with a slowly build up, warming up, time to relax and to come
into the body. Exercises (steps) moving forward to learn the steps, in general and those for the
dance, and than the dance. Your way of teaching is clear and directed to human beings not to a
number of legs and arms.
You are involved with your heart into the teaching and with the people you teach, so
you create a relationship which makes class more than learning something. And so was the
great birthday party and the festige at the Beyers weg. You radiate the energy for people of the
warm and the sunny areas of the globe.
And than personally I can say, that first I felt and later I recognized common
experiences with you, as our connection with the third theater, the Anthropological School and
of course the passion for African Culture and people.
So in short, it was nice, thanks and I see you back again, for sure, some where.
Love Machteld20
Fayee e eu. Digo mútua porque quando diz “tão importante quanto”,
20
Querida Sandra
Através de suas aulas eu aprendi a desenvolver a improvisação, a qual é a melhor parte. Você dá
espaço para desenvolvermos nossa própria criatividade. Eu entendo sobre a comunicação entre
percussionista e dançarino (a). Mas é tão bom que você ensina sobre essa comunicação e dá um lugar
importante a isto na aula. Obrigada a você e sua colaboração com o Fayee que é tão importante quanto
nisso.
Sua aula é completa, com um desenrolar lento, aquecimento, tempo para relaxar e entrar no
corpo. Exercícios, passos para frente, na diagonal, para aprender os movimentos (eu chamaria) em geral,
e os da dança, e então a dança. Sua maneira de ensinar é clara e direta para seres humanos e não para um
número de pernas e braços.
Você está envolvida com seu coração quando ensina e para quem ensina, assim, você cria uma
relação que faz da aula mais do que aprender alguma coisa. Assim foi a ótima festa de aniversário e a
festa na Beyers werg. Você irradia energia para as pessoas das áreas quentes e ensolaradas do globo.
E então pessoalmente eu posso dizer, eu primeiro senti e depois reconheci experiências comuns
com você, como, nossa conexão com o terceiro teatro, a escola antropológica e naturalmente a paixão
pela cultura e o povo africano.
Então, em resumo, foi ótimo, obrigada e te vejo de volta, com certeza em algum lugar.
Amor Machteld (Tradução minha)
143
lado, certo desconforto que tive durante os anos que vivi na Holanda.
21
Ao refletir sobre a interpretação de Machteld, trago para o presente estudo, um exemplo de atividade
interativa e intersubjetiva de aproximação entre ‘texto e corporeidade’ e entre ‘escritura e performance’
como propõe Fernando Passos em seu texto - Fronteiras do Gênero e Gêneros de Fronteira da revista da
Fundarte, Ano IV, vol. IV. N.7. (PASSOS, 2004)
144
coloca: “você cria uma relação que faz da aula mais do que aprender
pessoas, das áreas quentes e ensolaradas do globo.” Quem são, como são, e
como vivem essas pessoas das áreas quentes e ensolaradas do globo que
palavras de:
Xangô do Ilê Axé Opô Afonjá: “Xangô é fogo, vida, vermelho, afasta a morte”.
E insisto com as palavras de Fayee: “Sandra, when you dance you look like a
aos diversos lugares e pessoas do país com os quais trabalhei. Por exemplo: workshops
músico-baterista Duda Neves. A programação teve início com uma palestra sobre as
nossas experiências individuais, quando realizei uma exposição das fotos que tirei
culinária africana (Nhassa - frango temperado com cebola e mostarda) misturados com
que criamos, Duda e eu, a partir das expressões rítmicas do Bugarabu, desta vez trans-
criados na bateria.
Atlântico negro, que junto ao Recôncavo Baiano, tem uma característica própria e de
destaque no cenário do país. E segundo, porque é o lugar onde desde 1979 eu convivo
Dentre uma série de workshops ministrados, como por exemplo, na UFBA pelo
ONG IAÔ (Ilê Augusto Omolu), em 2003; na Convívio (Centro Especializado para
Augusto Omolu, para substituí-lo em suas aulas, durante uma temporada de três
implica numa tríade cultural envolvendo meninos da cultura popular baiana, em contato
do Projeto Axé porta a cultura local salpicada de traços do candomblé que, entrelaçados
com outras manifestações culturais do seu dia a dia, injetam alegria e vigor nos
simbólico fogo que desprendia dos nossos corpos. Era assim a efemeridade que ecoava
domínio econômico, social e político, a que estão submetidos. Tais aspectos são
dança do Bugarabu.
uma analogia entre o ritmo do Bugarabu e de Xangô foi feito da seguinte maneira:
assemelha ao alujá de Xangô, como já dito. Eu compreendia que falar sobre o alujá era
falar a língua dos meninos, em sua maioria envolvidos com o candomblé, alguns
inclusive com o cargo de alabé (tocadores). A partir dessa premissa, eu mostrava essa
faixa do Cd de Adama Dramé e pedia que aguçassem seus ouvidos para se certificarem
Dessa maneira o ritmo que havia atravessado o atlântico aportava no território baiano,
nos corpos que se sentiam então em casa, em sua nação. Refiro-me aqui à nação
vivência atuais.
artística.
afinidade rítmica para a dança, a partir de onde acreditei e criei um desejo de dar
dizer: “nasci e fui criado por minha vó Maria Luiza, Mametu Mukambu dentro da
Augusto fala com muito prazer de sua vida em constante contato com o
candomblé. Fala ioruba e mantém grande interesse pela cultura baiana imbricada de
traços e rastros estéticos dos orixás. Das relevâncias das investigações que
dança, canto, música e teatro - que Augusto criou durante sua vida, a partir da
percussão, como ele mesmo confirma. Esse foi o grande viés que uniu nosso trabalho e
que funcionou como ponto básico de nossas criações. Augusto tocava a percussão e eu
sua maioria já sofrem a decorrência histórica que envolve a dança afro em Salvador.
Uma influência da ‘dança moderna’, que encarada pelo movimento desses corpos, acaba
por restringir uma espontaneidade inicial por meio de uma disciplina motora
técnica necessária, longe do que vivem, e por fim, só acalenta os seus sonhos, os seus
anseios. O que aconteceu foi que essa onda do ‘moderno’ envolveu o meio artístico da
dança por alguns anos, que acabou por lhes devolver um estereótipo pronto, sobre o
qual não sentiram nenhuma necessidade de refletir, mas simplesmente reproduzir para
22
assim se sentirem ‘atuais’. As conseqüências de tal fato resultaram em troncos mais
rígidos, com uma flexibilidade de coluna mais controlada, quadris sensivelmente presos
22
A cultura de massa é veiculada de forma a atender à produção requisitada pela mídia e pelos modismos
do consumo capitalista. Dessa maneira são aplicados mecanismos de controle social que nesse caso,
padronizou o dançar sob o estigma de dança moderna, como sendo mais valoroso. Esse fator que passou a
rondar o universo da dança a partir dos anos 80, foi de grande influência na arte de dançar e de pensar a
dança em Salvador e por conseguinte, no projeto Axé.
150
incentivei e pedi que utilizassem daquele sentimento para executar a coreografia que
praticávamos. Dessa maneira pude ver brotar desde então, movimentos menos contidos
intenção de tornar expoentes suas singularidades, como as labaredas disformes, mas que
debruço para uma análise mais minuciosa. Destrinchei detalhes do Estágio Docente
Criativos e Processos Crítico Analíticos. O grupo de sete professores era composto por:
Fernando Passos, Ivani Santana, Edileusa Santos, Firmino Pitanga, Nadir Nóbrega,
supervisão do módulo II foram feitas pelo meu orientador Fernando Passos, o que
Gilroy.
como às nossas experiências profissionais, uma vez que o tema central do semestre era,
151
23
Identidade e Diversidade, baseado na lei 10639/2003 , com diretrizes e bases para a
educação. Portanto, esta lei foi um incentivo à mudança curricular da Escola de dança
inspiradas, em especial nos textos referentes aos Estudos da Performance e aos Estudos
Culturais, como Paul Gilroy. Entre outras questões, as discussões foram úteis para
sociedade baiana, da qual esses alunos fazem parte e atuam ao desenvolver seus
23
Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se
obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.
§Iº - O Conteúdo Programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da história da África
e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade
nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política, pertinentes à
História do Brasil.
§2º - Os Conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo
currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística, de Literatura e de História Brasileira.
152
trabalhos foi o aspecto levantado durante as aulas acerca das manifestações tradicionais.
Elas foram tratadas não como uma repetição invariável, mas como um estímulo à
Paul Gilroy em - O Atlântico Negro – e a liquidez das mesmas, de acordo com Zigmunt
dança passa a ser uma atitude cênica além da rigidez das estereotipadas e fixas
identidades.
contemporaneidade. Para aqueles que são envolvidos com outras vertentes culturais da
horizonte mais amplo aplicável às suas práticas. Em outras palavras, um corpo que
Esse corpo que é meu. Esse corpo que não é meu. Esse
corpo que é, portanto meu. Esse corpo estrangeiro. Minha
única nação. Minha casa. Esse corpo a ser readquirido. 1
Odette Aslan
5.1 A Fala
Dou seguimento a uma das tarefas desta escrita que é induzir o leitor a caminhar
atenção, gerar reflexões e propiciar liberdade para as considerações do leitor, tem sido o
pesquisa acadêmica.
De tal modo, traçarei os seguintes passos: situar quem, para que e para quem fala
Salvador, além dos elementos rituais que envolvem o Orixá Xangô; analisar, num
1
A repetição da epígrafe no Capítulo I e no Capítulo II tem o propósito de localizar meu corpo dentro de
inquietações que são análogas, seja na memória ou na etnografia.
154
durante o ciclo das festas de Xangô, nos anos de 2005 e 2006. E finalmente, abordar os
dois encontros com Mãe Stella de Oxossi, que foram de suma importância para perceber
que a reflexividade da filosofia que envolve a ialorixá desse terreiro se localiza além de
Alguém que detectou ‘entre’ as brechas das danças de Xangô e do Bugarabu, um estado
um corpo incandescente. O lugar onde consegui ouvir a própria voz. Voz de negro? De
branco? De índio? Alguma outra voz? Não importa. Voz ativa e impetuosa. Voz de
auto-reflexões em torno dessa experiência - aguçar outras vozes latentes, outras vozes
de fogo.
‘entre’-fechados também. Para vozes dominantes e para vozes dominadas. Para vozes
leitor pode ser modificada por ele mesmo, exatamente no momento dos seus deslizes
podem provocar entre o leitor e a escrita, uma sensação fervente de cumplicidade, que
155
“Está tudo aí, sua escrita é circular”. Este foi um dos comentários do
minha escrita foi uma contribuição útil para as reflexões deste estudo, pois a qualidade
do que é circular também está relacionada com o ritmo, com o movimento e com o
Os círculos estão presentes em nossa vida das mais diversas maneiras, entre as
quais se encontra o ritmo. Reitero o pensamento do músico Fayee Diona, ao dizer que o
ritmo flui e é agradável quando sentimos sua roundness, sua circularidade e para isso
e do Bugarabu.
intensificam e concentram ‘energias’ (fogo) que são emanadas pela força centrífuga.
Após esse passeio por tais conteúdos relacionados com a circularidade, é oportuno
espaço vazio, dessa fenda escorregadia que emerge um ambiente propício para criar,
teóricas do texto. A primeira é o termo composição, usado por Matteo Bonfito para
2002).
2
Na oportunidade da defesa pública, dia 23 de maio de 2007 na Casa do Benin, o Dr. Renato Ferracini
me perguntou se não considerava a circularidade tão mencionada no corpo do texto da dissertação, como
algo que restringia, porque o círculo fecha, enquanto meu trabalho abre para tantas questões. Depois de
parar para refletir e revisar toda a escrita, acredito que esta circularidade tão presente atua como pedrinhas
que jogadas num líquido formam círculos que se espalham subseqüentemente e portanto, abrem e
reverberam em novas direções e composições.
157
Com a palavra viajo passo a refletir sobre o texto de James Clifford “Notes on
Travel Theory” (1998)3. Ao criar uma escrita, crio uma ação. A atividade de teorizar
que, de acordo com Clifford, leva a ver além do local, leva nessa circunstância a ver
validados durante este estudo. Deslocar-se foi a chave para ver além, para exercitar a
nem negra, nem branca. Eu era diferente no universo holandês. A diferença produzia
uma visibilidade. A própria aparência física – morena, pequena, latina, meio índia -
preguiçosos, dos inferiores e dos alegres, prontos para serem consumidos pelo mercado
igualmente se incluíam. A tarefa era difícil, porém urgente, e exigia reflexão: idéias pós-
A partir dali, o trabalho artístico passou a ser cada vez mais, o caminho por onde
minhas atitudes tinham espaço para transgredir rótulos nacionalistas. A dança ‘afro-
3
Texto do site. humwww.ucsc.edu/Cult Studies/PUBS/Inscriptions/Vol_5/clifford.html
158
onde venho? Para onde vou? E por que busco estar lá? As duas perguntas iniciais têm
sido tratadas em vários momentos do trajeto que induziu ao projeto desta pesquisa de
mestrado. O porquê de procurar estar em algum lugar, como por exemplo, no meio
contextualizado a seguir.
Salvador, e está sob a liderança da ialorixá Mãe Stella de Oxossi. Ressalto que esta
composição etnográfica foi tecida por uma associação freqüente com a memória do
159
Bugarabu inscrita na vivência do meu corpo e transcriada nos movimentos que dele
transcorreu como já dito, durante os anos de 2005 e 2006, com início no dia 28 de junho
e término no dia 11 de julho para a posterior criação do corpo desta escrita etnográfica,
uma escrita-dança.
etnografia-encenação.
Para tanto, devo pontuar o trajeto da crença africana dos orixás que atravessou
inaugurada a religião brasileira chamada candomblé e cuja história das primeiras casas
em Salvador revela a relevância do orixá Xangô, rei de Oyó 4na Nigéria. Xangô é o
orixá da guerra e da justiça, e por esta razão, pólo de resistência desde os tempos da
terreiros que num pacto civil e religioso lutavam pela cidadania. Esse foi o tempo do
Branca no final do século XIX que, por sua vez foi ramificada no Terreiro do Gantois
de Mãe Menininha, e no Ilê Axé Opô Afonjá de Mãe Stella de Oxossi, todas elas, casas
de adoradores de Xangô. 5
4
Capital da nação Yorubá (nagô). Nome da primeira tribo descendente de Oduduwá. Fundada por
Oranian, filho de Okanbi e neto de Oduduwá (foi a primeira cidade fundada pessoalmente por Oduduwá),
passando a ser a capital política da Nação. (FONSECA, 1995, p. 502)
5
A força dos orixás, o culto ao vermelho centrado em Xangô, a flexibilidade necessária para resistir, tudo
isso o escravo bebeu na cultura de resistência do terreiro. Sob a liderança de Xangô, que empunha o seu
160
pensamento voltadas à filosofia que dialogassem com as idéias de Mãe Stella, ou seja,
Performance e Pesquisa em Artes Cênicas. Por ora, anuncio os dois autores, Lüdke e
André (1986), que apresentam dois tipos de pesquisa qualitativa voltadas para a
oxé (machado duplo), ora inclinando-se para a paz, ora para a guerra, seguem os orixás o ritmo natural
das coisas. (TAVARES, 2002)
6
Autor do livro, O Candomblé da Barroquinha: processo de constituição do primeiro terreiro baiano de
Keto,lançado na Casa Branca, 10/01/2007. (SILVEIRA, 2007)
161
da pesquisa.
intuições que permearam a análise crítica dos dados. Estes foram apoiados no campo
noções. Em outras palavras, uma reavaliação, um repensar das idéias para dar um
como: Vivaldo da Costa Lima, Fábio Lima, Waldeloir Rego, Pierre Verger, Ildásio
7
Candomblé termo usado para designar os grupos religiosos afro-brasileiros caracterizados por um
sistema de crença em divindades chamadas de santos ou orixás. (LIMA, 2003, p.17)
162
8
Tavares, Ruth Landes e Vera F.A. Campos, optei por oferecer a versão histórica
reflexiva na voz de Mãe Stella de Oxossi. A razão é que esta versão, afirma a presença
da oralidade nos ambientes desta religião até os dias de hoje. Trata-se de uma entrevista
comunidade religiosa do Ilê Axé Opô Afonjá, concedeu a Nelson De Lucca Pretto, autor
Federal da Bahia.
mulher, relacionada a uma liberdade no sentido de ‘poder’ fazer, sair e comprar que, ao
mesmo tempo, acarreta a respectiva responsabilidade pelos seus atos e pela manipulação
do próprio dinheiro. Essas relações estreitas entre poder e dinheiro estão diretamente
relacionadas com uma questão política, ainda que dissimulada, mas que acaba por
candomblé em Salvador, como revela Mãe Stella acima. O termo usado ‘governar’ um
candomblé já faz alusão ao seu aspecto político, assim como a uma realidade social
marcada por rastros e traços de uma monarquia, baseada numa hierarquia que concede
A história narrada por Mãe Stella denota sinais trazidos e aqui traduzidos da
tradição oral africana. A circulação desses sinais no meio da classe negra, oprimida e
9
As aspas no decorrer do texto de Mãe Stella de Oxossi são pontuações que apontam para reflexões feitas
nos parágrafos seguintes.
164
No dia 19 de março de 1976, Mãe Stella de Oxossi foi escolhida para ‘governar’
o terreiro do Afonjá, ou seja, ser a ialorixá (mãe de santo) da casa. Desde então, ela tem
exterior. Em 1981 foi para a Nigéria e em 1987 foi para Benin. Suas impressões sobre o
vivências e aos contatos diretos com a mulher africana em suas viagens para Nigéria e
para Benin.
Vera Campos levanta três atributos para descrever suas características que são:
seguintes palavras: “é o ofá (arco e flecha) de Oxossi, inteiro, forte e estável, ao mesmo
escrita expressiva de Mãe Stella, tirada do livro de sua autoria, Meu tempo é agora, para
demonstrar a maneira mágica e corajosa com que a ialorixá articula e transita entre
165
paradoxos, tais como: preservação e mudança. Como afirma Vera Campos, Mãe Stella
deixa bem explicitada nas palavras a seguir, essa relação entre estabilidade e
flexibilidade:
Stella, como mulher e como líder de sua comunidade, que julguei pertinente e precioso
mencionar abaixo, pois suscita questões que ocorrem dentro de outras comunidades
período da colonização do Brasil, sob o poder dos portugueses. Para ela o sincretismo
candomblé, uma crença de menos poder diante do catolicismo, num momento político
de manipulação do mais fraco que acabou se estendendo por anos. Uma atitude de
166
colocar a roupa do escravocrata para ser aceito, o que hoje se tornou um esforço
desnecessário. Atualmente, diz Mãe Stella, “os religiosos sabem que tanto para o santo
quanto para o orixá não existe barreira para a crença; então o diálogo e não o
Uma evidência disso está no fato de que, atualmente, o diálogo entre religiões e
sua presença e a de sua comunidade religiosa, o Terreiro do Ilê Axé Opô Afonjá.
religião, pedi licença à Mãe Stella para colocar nomes de pessoas e transcrever suas
10
O presidente da Ilê Ifé University da Nigéria e professor da Universidade de Boston, Felix
Ayoh’Omidire, vive entre os Estados Unidos e a Nigéria e foi um dos membros da conferência referida
acima. Participou do painel “Religião, Arte e Cultura” em que eu estava presente. No debate final, a
primeira questão a ser levantada foi relacionada ao termo – intelectuais - presente no título da
conferência. O professor Félix argumentou que talvez a definição de intelectuais tivesse sido entendida de
forma resumida e restrita. No seu entender intelectual deveria ser considerado num sentido mais amplo,
como ‘inteligências’, despertadas tanto por experiências relacionadas aos estudos acadêmicos quanto aos
saberes da vivência religiosa e da tradição oral, ambas tão imbricadas na cultura e na arte africana. (II
Conferência de Intelectuais da África e da Diáspora, Painel Religião, Arte, e Cultura, Museu de Arte
Sacra da Bahia, Salvador, 13 de julho de 2006).
167
11
Existem muitas referências bibliográficas que tratam do assunto, contudo, uma vez mais optei pela voz
de Mãe Stella.
168
Ilustração 19- (a) Mãe Aninha, primeira Ialorixá do Ilê Axé Opô Afonjá em 1909 (b) Mãe Stella
de Oxossi, atual Ialorixá deste Terreiro. Foto do site do Ilê Axé Opô Afonjá
Segundo Mãe Stella, orixá é força vital e corresponde aos elementos da natureza:
água, terra, fogo e ar. O corpo é um templo para quem faz parte do candomblé, pois
somos formados por partículas desses elementos e logo, por correspondência, temos
incutido em nós todos os orixás, independente da nossa crença, raça ou condição social.
temperatura e nas nossas emoções. Esse calor, esse fogo é representado pelo orixá
(desconcertar)”. (LIMA, 2004, p. 27) E para Ildásio Tavares, no capítulo III – “O nome
que não se nomeia” - do livro intitulado Xangô, “‘Xan’ é crepitar, raiar, coriscar”.
169
título, e alude a presença do “ô” na última sílaba a um suposto entrelaçamento com awô
(segredo). Na nação jeje, seu nome é Bádê ou Sobô; na nação angola, Luango ou
saudado como iná, o fogo, embora essa denominação seja mais utilizada para Exu.
Para tratar dos elementos que envolvem o Orixá Xangô parti do seu caráter
simbólico do fogo que ressoa nas ferramentas, nos instrumentos e no ritmo do alujá,
como o universo dinâmico e o oxé, machado duplo, originalmente feito com duas
poder sobre o raio e o trovão que este lhe confere, o autor o aponta como “a resolução,
a conciliação das polaridades como guerra x paz, masculino x feminino, bem x mal. [...]
O oxé corta para condenar e corta para absolver, exprime as ambivalências e oscilações
do julgamento”. (TAVARES, 2002, p. 105) Xangô, orixá da justiça, entre outros, tem
12
Xeré é uma ferramenta de Xangô segurada somente pelas mãos da ialorixá ou pelos obás da direita.
Opto uma vez mais por transcrever literalmente, algumas noções e explicações de Tavares por considerar
que o corpo de sua escritura é um eco de sua voz peculiar: [Os xerés] “são feitos de cobre, compostos de
um cabo que se alonga para terminar num formato quase esférico, bojudo. [...] Esta é uma ferramenta de
muita responsabilidade porque, ao brandi-la chocalhando, presumidamente se presentifica Xangô;
incrementa-se sua energia e um orixá não deve ser presentificado [...] à toa”. (TAVARES, 2002, pp.106,
107)
171
um oxé em formato de chifres de carneiro, seu animal sagrado, onde Tavares, por meio
Outras vozes falam sobre o Oxé de Xangô. Segundo Marco Aurélio de Oliveira
Luz, “seu formato geométrico é o de dois triângulos que se desprendem de uma haste e
em movimento irradia axé de fertilidade e espalha filhos para todos os quatro cantos do
mundo”. (LUZ apud LIMA, 2004, p.50) Os oxés muitas vezes são representados pelo
caracterizam a expressão litúrgica da tradição dos orixás para exaltar o sagrado. Neles
são gravados traços que indicam a presença do Orixá Exu, “elemento dinâmico
50).
um ou mais toques dedicados a cada orixá. Nas três nações Angola, Jeje e Ketu13 (nação
ilu ou ‘quebra pratos’, toque de Iansã; o opanijé de Omolu; o igbi de Oxalá; o aguerê de
13
No processo aculturativo da religião na Bahia, as nações de santo ou nação do candomblé - como
explica Vivaldo da Costa Lima (2003, p.28) - se dividiram em Angola, Jeje e Ketu. Conforme Campos,
Ketu ou Queto: “antigo reino iorubá, localizado na atual República de Benin. (Os antigos reinos iorubas
hoje correspondem à Nigéria, Benin e Togo. As principais casas tradicionais do candomblé da Bahia têm
sua origem em Ketu.)” (CAMPOS, 2003, P. 89)
172
Oxossi; o ijexá de Oxalá, mas também pega para Oxum, Iemanjá e secundariamente
para qualquer outro orixá. Dado a esta extrema complexidade polirrítmica, os toques do
sobre o tambor chamado rum que na improvisação não tem uma frase de repetição
texto, com o intuito de instigar nesse estudo uma análise crítica e reflexiva, optei por
discorrer sobre a lenda do fogo em duas versões. A primeira é quando Ildásio Tavares
dá a palavra a Mestre Didi para narrar sobre a lenda do fogo depois de contar no livro
Xangô que: Iansã - mulher, amiga, protetora e cúmplice - foi a última esposa de Xangô.
E ainda, foi ela quem trouxe o fogo e o deu a Xangô que se tornou o rei do fogo, Oba
Iansã é a mulher de Xangô que mais se afina com ele, a rainha dos ventos atiça o
axé de vida de Xangô, Iansã é a mãe dos espíritos, dos nove eguns. E para
apaga o fogo, mas se o fogo é forte a água ferve e evapora”. (TAVARES, 2002, p. 80)
173
A segunda versão da lenda do fogo é do texto recriado por Dona Naná para ser
fogo, bebi na fonte das palavras de Tavares (2002), quinto capítulo, “O caminho dos
símbolos”: Xangô, chefe do vermelho, rei de Oyó, rei do fogo, é um símbolo solar, um
Na terceira etapa da etnografia, parti para a análise do ciclo das festas de Xangô,
lógica do cotidiano do candomblé, faz parte do dia a dia do terreiro. Além disso, a festa
174
cotidianos são expressos, dramatizados e revividas por meio de uma gestualidade, uma
África que operam dentro da memória coletiva passada pela tradição oral. Ao mesmo
tempo em que é uma dramatização dos mitos é também uma celebração da vida, dos
habitantes desse mundo e os do mundo dos Orixás, dos Caboclos e dos Eguns (espíritos
mortos).
cercanias que influenciam a percepção de sua dança, no instante efêmero das festas, eu
não pude deixar de citar Lepécki ao confrontar com as tensões geradas entre o
vivência do fogo
elas refletem na nossa feição, na nossa maneira de ser e de querer viver?... E assim ficou
175
roda. Uma sensação de: centelha, chama, fagulha, brasa, fogueira, fogo. Obviamente
que a transparência desse fogo ganhou identificação com Xangô no decorrer do tempo.
com o Bugarabu. Paralelo a essa identificação, eu era movida por um intenso interesse
pelos movimentos das danças dos orixás. A cada vez que o corpo aquecia, os
anteriormente, uma dilatação dos sentidos. A reflexão mais pungente que permeou
meus pensamentos, a respeito das experiências com essas danças girou em torno do
lugar de onde eu observo tais experiências e do lugar que eu ocupo dentro delas a fim de
uma encenação que tem como propósito dar corpo e voz às percepções, enquanto
J.DeBouzek faz em - Women & Performance, Journal of Feminist Theory - traz noções
enfoques que Maya Deren (1953) e Barbara Browning (1998) apresentam em suas
dominador. Ao contrário, democratizei esta escrita dando voz a muitas vozes, a muitos
pontos de vista em meu discurso. Trouxe por ora, duas reflexões inquietantes
performance:
consigo mesma, sobre qual posição ela deveria ocupar no seu texto, ao documentar o
observadora ou observada, aprendiz ou participante? Salienta que esta é uma luta bem
conhecida entre escritoras feministas na procura de sua própria voz, ou seja, desafiar a
vozes e pedir ao leitor para responder ao texto, para que a escrita dialogue com quem lê,
para que ambas ecoem vozes no instante em que ela, a leitura, acaba. (DEREN, 1953;
da dança e a permanência da escrita indagando: “Já que podemos ler a dança, como é
quando dancei o Bugarabu em sua atmosfera ambiente de fogo, para pensar sobre o
Deren sobre seu método etnográfico, no tratado de DeBouzek. Minha participação ativa
nessa experiência foi anterior à preocupação com a escrita, mesmo tendo produzido um
Em outras palavras, nesse processo de pesquisa que conta com uma memória e um
construir uma etnografia, seu propósito era a vivência, a experiência de dançar, naquele
escultura, um quadro, uma arquitetura, etc”. Baseada nesse pensamento que abrange
uma abordagem subjetiva, arrisquei escrever essa etnografia de artista sobre o ciclo das
por James Clifford (1994), e a subjetividade de artista, de acordo com Maya Deren e
Barbara Browning e Sally Ann Ness que entre outros aspectos fala da experiência ao
vivo:
misturam e zombam das definições institucionais de arte e ciência. Além disso, eles
surrealismo unido à etnografia retoma sua antiga vocação de política cultural crítica. A
a etnografia alegórica. Ela concede à performance uma estrutura difusa revelando: uma
sobre uma etnografia cujo corpo alegórico se manifesta por meio de uma escrita
sensação, meus dedos e todo o meu corpo dançariam horas e horas no papel, como foi e
têm sido com o Bugarabu e com o Xangô, especialmente durante as festas de Xangô no
Afonjá. Sem falar de outros terreiros, quando ouço o alujá de Xangô, e uma fogueira
Percebo essa sensação de fogo quando ouço o referido ritmo do alujá como uma
5.4.1 Dia 25/06/05 - O encontro com Dona Detinha no Ilê Axé Opô Afonjá
primeiro impasse, algo entre: não saber o que fazer, o que falar, como agir, sensações
Com a amiga e colega de mestrado Nadir Nóbrega, conheci Mãe Detinha, uma
eis que chego lá no dia 25 de maio de 2005, às 10 horas. Uma manhã de quarta-feira,
180
dia dedicado a Xangô e quando se faz uma oferenda a Ele, o amalá, uma comida feita
de quiabo temperado com cebola, camarão seco e azeite de dendê. (LIMA, 2004).
costa.
roça do Afonjá.
181
Ilustração 20 - (a) Casa de Xangô e; (b) Barracão de festas do Ilê Axé Opô Afonjá Foto do site
http://www.geocities.com/Athens/Acropolis/1322/
das sombras das árvores está a cadeira de dona Detinha. Não, ainda
casa de Xangô onde está ela. Elas dizem: “ao lado do carrapicho (nome da
venho a saber que ela é uma das filhas de dona Detinha. De qualquer
que seu cachorro está com problema na orelha, otite e logo já fala que
na África, na Holanda... 15
14
Um ano depois faço uma reflexão! Estabelecer contato com as teorias atuais voltadas para a questão
qualitativa da investigação, ao contrário das pesquisas quantitativas dos métodos convencionais foi uma
preparação para sentir a temperatura e o desenrolar da interação entre Dona Detinha e eu, naquele
primeiro momento. Pisar devagar naquele universo cheio de mistérios e segredos do candomblé foi a
atitude mais importante que tomei para conseguir me aproximar de Mãe Stella e ser tão bem recebida e
aceita com o meu trabalho. A convivência com os parâmetros culturais e com o universo artístico da
música e dança de Gâmbia e do Senegal, relacionadas com as noções teóricas mencionadas a seguir,
deram um tom de complementaridade para uma atitude perspicaz no Afonjá. Alguns dos exemplos são: o
paradigma da complexidade do pensamento humano (MORIN, 1990); a escuta sensível que se apóia
sobre a totalidade complexa da pessoa: os cinco sentidos (BARBIER, 2002); o pensamento compreensivo
de Maffesoli a partir de uma sociologia do lado de dentro, ou seja, uma sociologia compreensiva, cuja
intuição permita uma pesquisa mais exaustiva e uma visão mais profunda acerca do fenômeno a ser
estudado. Onde o pesquisador não está à parte, mas é parte interna do fenômeno. (MAFFESOLI, 1988).
15
Algumas idéias-força a respeito da abordagem qualitativa de Lüdke e André para a pesquisa
etnográfica, são compatíveis ao comportamento referido nesse parágrafo, durante esse primeiro encontro
com Dona Detinha e com aspectos da pesquisa como um todo: 1º Contato direto com o objeto com
descrição dos dados e cuja análise se dá sob um processo indutivo; 2º Etnografia – pesquisadora maleável
na busca de suas hipóteses, apto na seleção de dados e na maneira de consegui-los, com a capacidade de
travar diálogos entre elementos antagônicos; 3º Observação: o “que” e “como” observar, refletir sobre as
experiências pessoais, captar a visão do sujeito, comparar dados para a compreensão da realidade.
Consciência de que o conhecimento não se engessará; 4º Entrevista: interação, liberdade de percurso,
respeito à cultura e valores do entrevistado, paciência, atenção, perspicácia na captação não verbal; 5º
Análise documental: doses necessárias de percepções, sensações e intuições, que caracterizam seu aspecto
subjetivo como fundamental. (LÜDKE e ANDRÉ, 1986)
183
jovens e um pote com água e ervas e pede à dona Detinha para lavá-las
entrega. Ela lava a conta e abençoando-as, coloca uma a uma nas moças
agachadas.
minha filha”?
Eu explico a proposta da minha pesquisa: uma auto-reflexão e
fala, eu tinha tempo “in between”, entre uma coisa e outra, para
184
Chega uma mulher com a senhora sua mãe e mais duas pessoas e
diz: “eu sou aquela que faz as imagens dos orixás, a senhora se lembra?” Dona
enquanto ela fala sobre a hierarquia dos mais velhos dentro da casa.
Com um carinho e uma paz contagiante ela diz: “eu sou um pouco mais nova,
a senhora deve ser a primeira a comer, a sentar e deve ser respeitada: mãe é só uma”.
Dona Detinha continua... “Dia 28 de junho tem a fogueira de Airá, é uma
comemoração rápida e simples que começa às sete da noite... Dia 29 é a festa Wabogun,
sendo que a fogueira acendida no dia anterior deve manter as chamas acesas até a
comemoração do dia 2 de julho, Etá... Dia 5 de julho tem a festa chamada Efá... Dia 11
de julho tem a festa em homenagem a Yamassê, mãe de Xangô. Pedra, terra, madeira e
fogo são honrados durante as festas”.
De repente, ela pára... Diz que a cabeça está um pouco confusa
Ela faz uma pausa e explica: wa é ir e gun é vir; Ossimiló vou; Ossimibó, volto
A música que ouço dos seus lábios / Dicionário ontológico da cultura afro-brasileira
1- kan (o)kan
2- egi (m)egi
3– etá etá
4- arun (m)erin
5- erun (m)erun
6- efá (m)efá
7- ejê (m)ejê
8- ejô ejô
9- esan (m)esan
10 - ewa éwa
11 - okalá (m)okanlá
12 – ejilá (m)ejilá
comigo. As pessoas vêm receber sua benção e como o lugar não é grande para tantos,
prefiro deixar outras pessoas chegarem até lá, perto do peji (altar) de Xangô. Xangô é
pouco e na dúvida entre ficar com ela e ir, eu digo que estou indo e, ao
espero alguém me dar uma saia branca para vestir e saudar Xangô lá
Ela diz: “Desça as escadas ali!” Eu volto, desço as escadas e encontro dona
Naná sentada atrás de uma mesa. Depois de uma recepção calorosa ela
superior a ela dizendo: “Vocês que sabem mais!” Eu lhe digo que não
peça que criou sobre o mito do fogo de Xangô?... Sorrisos... Chegou a hora
16
É o mundo acadêmico e o mundo da tradição oral em diálogo. Vejo nas palavras de Dona Naná a marca
que concede privilégio e superioridade ao mundo acadêmico. Tal referência me leva a pensar sobre o
sistema estruturalista elaborado pelo influente pensador, Lévi-Strauss. Sistema que serviu de ponto de
referência, além de contribuir para os estudos explicativos da humanidade. Porém, dando a estes um
tratamento hierárquico e não dialógico, como aponta o ensaio “Structure, Sign and Play in the Discourse
of the Human Sciences” de Jacques Derrida numa conferência em 1966 reimpressa em 1967, L’écriture et
187
presente.
5.4.2 Dia 28 de junho de 2005 – O dia que acendeu a fogueira de Airá (fogo)
Boa noite! Digo para Sandra, filha de Mãe Detinha. O pátio está
Sandra diz: “seja bem-vinda, pode ficar à vontade, pode ir até onde os olhos podem
que de maneira muito simpática se apresenta: “eu sou o alabé mais velho da
casa”.
Pausa para os sentidos: já sinto na minha blusa um cheirinho de
“O atabaque come, ele tem preceito igual a um iaô (filho de santo recém
iniciado). Ele tem que comer pra poder buscar o orixá, os outros lá do outro lado”
cachaça na cabeça não pode tocar”. Mais um intervalo se sucede, quando pede
a duas crianças que se aproximam, para que não toquem os atabaques
la difference. Por sua vez, Conquergood aponta o pensamento evolucionista de Lévi-Strauss e confirma o
tratamento hierárquico etnocêntrico da sociedade moderna. Um pensamento que estabelece o poder a
quem é ‘evoluído’ e a dominação sobre aqueles a quem considera primitivos, selvagens, distinguindo-os
como civilizados e barbáries, ou ainda, como povos com ou sem escrita, ou seja, uma retórica de controle
e desejo, em domínio de quem escreve. (CONQUERGOOD, 1992)
Em contrapartida, chamo Maffesoli com quem estou de acordo, para fazer uma integração entre o
conhecimento acadêmico e a sabedoria da tradição oral, expressa em diversas formas de comunicação que
se dão através da grafia e da dança, do teatro, do canto, da música e da escultura. A razão e a imaginação
perpassam o pensamento e são complementares. Baseado nessa idéia Maffesoli acredita na possibilidade,
ainda que difícil, da “existência de um indivíduo na ‘república das letras’, cuja intuição permita uma
pesquisa mais exaustiva e uma visão mais profunda acerca do fenômeno a ser estudado, do qual ele não
está à parte, mas é parte interna do mesmo”. (MAFFESOLI, 1985, p. 23).
188
para o pé do Orixá”. Uma vez mais eu lembro de Fayee que também dizia:
“para acompanhar os movimentos que você cria em nossas aulas eu sigo seus pés”.
Tem algo mais além de suas palavras trazendo Fayee à minha
estenderá até o dia 11 de julho, vou para o carro escrever para que os
Saio do carro e vejo Mãe Stella. Ela está vestida com uma blusa
17
Outra explicação de xerê: o xerê é um instrumento de cobre, podendo ser de prata quando utilizado
para o culto de Xangô Airá ou mais tradicionalmente, de cabaça com um cabo de madeira. Ele é um
símbolo fálico utilizado em vários rituais do culto a Xangô, como a fogueira, a roda de Xangô, além de se
inscrever nos seus poderes mágicos. Ele reproduz o barulho da chuva e quando tocados juntos pelos
únicos que têm esse direito no Afonjá, ou seja, os Obás da direita de Xangô e pela mãe-de-santo, soam
como as tempestades, fertilizando e fecundando as entranhas da terra. (LIMA, F.2005, p.43).
189
palmas do Bugarabu e dos claps. Eles têm a mesma função e soam como
confecção dos mesmos deu um sentido particular para mim. Até hoje,
Nesse dia fui tomar café com Dona Naná em sua casa. Chegamos mais ou menos
às 08h30min no Afonjá.
fogueira já está acesa, não presto atenção no ritmo que está tocando,
estou mais atenta às pessoas, as filhas de santo, aqui e ali. Dona Naná
chuva cai. A fogueira resiste ao toró e não apaga, solta muita faísca.
190
banda fica na minha frente e diz a uma senhora que quer se retirar:
“pelépelé” (tenha calma), não adianta pressa, você pode escorregar e cair.
pra cá. As coisas acontecem no tempo curto dessas frases. São vários
Stella está lá dentro? E ela diz: “já acabou tudo. Só tem comes e bebes.” Eu
penso, pressinto: pode ser que Mãe Stella esteja lá, então eu quero ir.
Entro com Dona Naná. Ela está sentada numa cadeira perto do quarto
Pego na sua mão fina, dou um beijo e peço a benção. Ela responde:
esse momento. Ela tem um livro na mão. Não consigo ver, nem
A festa começa com uma roda pequena que se avoluma aos poucos. O
cheiro gostoso de comida no ar, cada vez mais forte, entra por nossas
agitados por Mãe Stella e um Oba de Xangô ressoam no ar. Não vejo Pai
filhos.
do rei de Oyó, no alto, parecendo que é feito de serragem como nas festas
num dado momento, o fogo que sai de uma gamela sobre a cabeça de um
cada Xangô e de sua esposa Iansã compondo uma cena inebriante que
tem no prato é o fogo que todos querem acender. Nesse intuito, forma-se
18
Esse ritual reporta-se ao mito já mencionado nas palavras de Mestre Didi, em que Xangô incumbe sua
esposa Oyá ou Iansã de ir à busca de uma porção mágica, que lhe possibilitaria cuspir fogo pela boca. No
caminho, ela transgride as ordens de seu marido e, imediatamente, toma parte do feitiço, para passar a ter
os mesmos poderes que o marido. (LIMA, 2005).
192
Xangô está lá fora. Penso que devo esperar que ele me escolha para um
Wabogun foi o nome com que Dona Detinha explicou essa festa naquele
primeiro encontro no ano anterior, quando Xangô ‘volta da guerra’, no entanto, Ajerê é
comunidade do Afonjá.
compondo o círculo 19
, dançando ao som do rwm (ritmos) dos orixás. O
19
Através das considerações de Schechner, uma vez mais, detecto nesse círculo formado aos poucos, o
primeiro momento da eruption, - procedimento muito encontrado nas concentrações sociais em círculo –
que é o gathering, o reunir. (SCHECHNER, 1988)
20
No candomblé, segundo Tavares, as forças, as energias, os orixás dividem-se entre o vermelho e o
branco, respectivamente a corte de Xangô e a corte de Oxalá. Esta polarização simbolizada pelas cores só
poderá ser entendida se houver uma iniciação, acarretando uma compreensão do sentido particular que as
cores assumem no universo do candomblé na cosmogonia nagô, na dualidade vida X morte, estático X
dinâmico, sempre resolvida como um confronto, jamais como um conflito terminal. Por exemplo: quando
193
nos olhos fechados dos incorporados que não precisam estar abertos para
a atmosfera. Os obás de Xangô vibram os xerês nas mãos. Mãe Stella não
está presente para fazê-lo. Sua ‘presença’ se mostra visível nas formas,
cheiros estão sempre no ar. Voltamos e com o salão mais vazio vejo
Mãe Aninha quis solucionar o conflito entre o poder masculino, o Balé de Xangô Pimentel e ela, os dois
fundadores da casa, ela criou os doze Obas de Xangô, para entre eles disseminar o poder masculino e
desconcentrá-lo. (TAVARES, 2002).
21
Recorro a Peggy Phelan para falar da presença de Mãe Stella como uma metonímia, um eixo
horizontal de unidade e deslocamento, associado à performance dos obás e dos orixás no caso. Phelan diz
que a metáfora nega a diferença, enquanto que a metonímia associa. Ao observar esta liturgia do
candomblé como uma atitude performativa, considero a contigüidade entre os obás e os orixás, junto à
Mãe Stella. Representam a presença da Ialorixá na plenitude de suas visibilidades aparentes, ou seja, na
dança, no movimento, no caráter da função ritualística. (PHELAN, 1993)
194
Seus movimentos dão a sensação que ela flutua suspensa no ar. Diante
da festa não me deixa. Não estou incorporada, mas estou possuída por
aquela atmosfera. Quero girar, sinto o sangue correndo nas veias, dos
pés até a cabeça, o corpo todo dilata e retrai junto com as batidas do
5.4.7... Um ano depois dia 02 /07/2006 - Festa de Etá (Três dias de Xangô)
A roda do xirê vai crescendo aos poucos. A festa é mais rápida que as
anteriores e tem menos pessoas. Mãe Stella chega um pouco depois e tem
um pano da costa vermelho e cinza que envolve sua saia branca rodada.
gira riscando o chão com os pés. Seu movimento forte mostra sua leveza,
cores, nos cheiros que as forças, que o axé dos orixás demanda. Todos
batem palmas, são impulsos para a descida dos orixás, são aplausos para
invisibilidade visível aos presentes. Arrisco dizer visível por ser munida
tocando o chão e depois a testa. Quando toca o ijexá para Oxum todos
sua voluptuosidade.
22
Estas percepções subjetivas levam a uma discussão paradigmática nas ciências em que os etnógrafos
feministas se dividem entre objetividade masculina x subjetividade feminina, (palavras tiradas do texto
sobre uma palestra que Lila Abu-Lughod apresentou ao Anthropology Section of the New York Academy
of Sciencies, em 29/02/1998, pp. 7 a 27). Volto a citar Maya Deren enfatizando seu trânsito conflituoso
entre a ciência e a arte, ao escrever seu livro Divine Horsemen, em que ora assume uma posição de
observadora objetiva e ora está no papel de participante subjetiva. DeBouzek considera seu papel como
artista no livro, o lugar central para sua produção. Em se tratando nesse estudo, da interação entre ciência,
arte e religião torna-se imprescindível ativar a percepção da subjetividade dessa atmosfera, em outras
palavras, da conflação energética mencionada acima. Um estado de possessão para os que recebem os
orixás, emanado para os presentes. Analisando na visão de um trabalho artístico é o estado de dilatação
dos sentidos, ou ainda, da sensação de fogo, adotando o termo simbólico desse estudo. Tal estado propicia
a abertura dos canais da criatividade. (DEBOUZEK, 1992; DEREN, 1953)
197
roça, como ela chama. Conversamos sobre meu objeto de estudo e sobre a entrada dela
no Candomblé há 4 anos. Esperei um pouco para dar uma carona a ela e irmos juntas à
festa.
questões de identificações as quais a palavra não comporta, mas que é tão bom
diante ou dentro de nós) fora do nosso controle, porém como que legitimando nossas
Perto da entrada, Marília confessa que ao colocar os pés para dentro do portão, é
como se adentrasse em um outro universo, não era mais ela, mesmo sendo ela. Essas
cartesiano. Presumo ser essa uma das razões pelas quais ela se sente ambígua. O portão
santo que compõem a pequena roda ainda é reduzido, seis quando conto.
198
Orixás que chegarão a terra. Ao lado das crianças e dos alabés, estão
seu sacrifício. No centro do teto tem uma coroa branca e vermelha, com
23
É um instrumento musical feito de cabaça, e envolto por uma espécie de rede de sementes que fazem
um som similar a um chocalho e cumprem o papel de linha guia na organização musical dos toques.
(VERGER; REGO, 1993, p. 21)
199
toma conta do salão agora são os Orixás, Xangô e sua esposa Iansã.
e lançando pelo chão. Tudo é rápido e intenso, assim como essas frases
curtas. 25
24
Roda de Xangô – nesse momento também chamado de roda de Banin ou roda de Dadá as guerras e
conquistas de Xangô são relembradas. Nesta celebração a Xangô e à sua família, os filhos de santo
dançam com os corpos voltados para o centro e rapidamente estendem as mãos para cima no final das
cantigas clamando a chegada de Xangô. As cantigas entoadas são muitas, em torno de doze, segundo
alguns devotos, acompanhadas inicialmente pelo ritmo batá e em seguida pelo vigoroso alujá, quando
principalmente os filhos de Xangô entram em transe. (LIMA, 2004)
25
Dois sentidos das danças dos orixás enfocados por Browning são abrangidos nesse parágrafo: 1º a sutil
invocação do orixá, quando a dança é performada sem as ferramentas; o 2º a presença do sagrado no
corpo de quem recebe o orixá se tornam evidentes aos membros da comunidade através da mudança de
movimento. Isto gera uma animação no ambiente. O orixá então é levado para o quarto a fim de ser
trajado com as ferramentas simbólicas. (BROWNING, 1995)
200
pode sugerir que seus braços sejam o machado duplo e que interpretam sua
manipulação. Ou podem, além disso, insinuar que são os fenômenos do raio e do trovão.
Então esse princípio que está escondido, escapa ao nosso desejo de incorporá-lo, e a
incorporação do orixá, não é um escritor da dança, mas se torna o texto escrito pelo
com ele. Está de terno branco com uma faixa atravessada no tronco e
essas saudações:
seja, lhe deu um cargo. O menino chora. Xangô lhe dá um dos machados
que tem nas mãos. Quatro Ogan, os protetores da casa, fazem uma
espécie de andor para carregar o menino que desfila pelo salão. Várias
mostrar os dois machados num ângulo reto dos cotovelos, levantar uma
num círculo que fazem as mãos, uma a uma, as pedras de raio que
entra o terceiro, o alujá, Xangô estende seus braços para o céu e lança os
para chegarem até lá. Confesso que gostaria de ter recebido um abraço
5.4.9... Um ano depois dia 05/07/2006 Festa de Efá (Seis dias de Xangô)
Nesse dia Dona Naná não foi à festa, disse que iria descansar
para a festa do dia 11 de julho, Yamassê. Eu fui só. O pátio está mais
‘lugar das mulheres’ do lado direito e fico bem perto do peitoril que
arte para os fiéis que durante a procissão arrastam seus pés sobre
esforço.
Por que estou lembrando disso? Por que faço essa relação? Vejo
26
A festa de Yamassé que inicia com uma procissão é o auge do ciclo das festas do Orixá Xangô. Nesse
dia a Ialorixá, Mãe Stella apresenta aos visitantes de outras casas, entre outros objetos rituais de Xangô, o
Oko (pênis) de madeira, revestido de muitos laços coloridos e segurando-o até o centro do barracão, os
iniciados, hierarquicamente, fazem a saudação chamada foribalé. (LIMA, 2004)
203
2005 e 2006.
apagou. Uma escuridão total. A música não pára. A roda não pára. As
27
Na primeira parte de seu livro, A identidade cultural na pós-modernidade, Stuart Hall questiona sobre
a complexidade e as mudanças do conceito de identidade em três concepções: a essencialista do sujeito do
iluminismo; a interativa do sujeito sociológico; e a contraditória do sujeito pós-moderno que é definida
historicamente. Nesta terceira concepção o sujeito assume identidades diferentes em diferentes
momentos, contraditórias e que empurram em diferentes direções, deslocando nossas identificações. Estes
deslocamentos dentro do conceito de globalização acabam por afetar a identidade cultural, que a partir do
impacto do movimento feminista, entre outros movimentos revolucionários iniciados em 1968,
empenharam-se na crítica teórica e enfatizaram uma questão política e social em relação à formação e
produção de sujeitos generificados. A subjetividade, a identidade e o processo de identificação do sujeito
foram politizados a partir dali. (HALL,1992)
204
orixá da noite que confirma sua presença numa filha de Xangô, o orixá
fuxicos, sussurros, cuidados das ekédes com os orixás que não cessam de
confraternização.
conforto de arriscar e deslizar entre as teorias. A arte está nas encruzilhadas das
percepção do sujeito que ora cria, ora performa, ora observa numa possível interconexão
205
mundo, cujo corpo não está no mundo, mas é do mundo, a fenomenologia da percepção
se opõe ao cogito de Descartes e resume: “‘eu percebo’ não é equivalente a ‘eu penso’,
nem é universalizável. O status encarnado do sujeito que percebe abre caminho para
LECHTE, 1994).
A festa continua...
com exceção de um dos Xangô. Eles tomam conta da cena e pela ordem
Oxum. Num dado instante, uma senhora, com postura de ter uma
28
O analista cultural pode pegar ou mixar modelos sintéticos dos catálogos de teorias e juntá-los para
qualquer tarefa que possa acontecer. [...] Exceto para os mais engajados entusiastas de movimentos
particulares, muitos críticos tendem a operar na moda magpie (pega) hoje em dia, selecionando um pouco
desta ou daquela teoria para sua abordagem própria personalizada. (SIM, VAN LOON, 2001, p.7)
206
são recolhidos.
não estava presente nas primeiras festas de 2006 prende minha atenção.
frente procuro não perder seus movimentos, seu jinká (gingado) que se
estende por todo o barracão. Seu pé conversa com a música de forma tal
trejeito dos ombros propagados nos movimentos dos braços e nas mãos
fechadas até escorrer no seu rosto, cujos olhos fechados parecem ver
sua dança são simples, mas requisitam uma malemolência sutil para
mostrar sua graça e sua força. O ritmo acelera aos poucos e num
contratempo mais exigente dos seus pés, seus braços exibem o machado
Xangô agitam os xerês para acompanhar sua dança. O som dos xerês
sua roupa, tiras azul turquesa enfeitam dois grandes laços dos lados de
acordados.
5.4.10 Um ano depois dia 11 de julho de 2006 – Festas Iyamassé (mãe de Xangô –
terra).
cedo do que as outras. Dona Naná liga e diz que já está indo na frente.
No ano anterior, 2005, perdi o ritual inicial fora do barracão. Esse ano
saem dali, onde fica o peji (altar), segurando, um pouco acima de suas
Sem falar dos protagonistas em destaque. Dona Naná pega minha mão
para que não nos percamos de vista. Ela demonstra com prazer seu
todos param. Mãe Stella vira e se coloca de frente para todos. Outro
oriki é entoado. A ialorixá vibra o xerê de Xangô com sua mão direita.
Fayee.
passar por ali. De mãos dadas vamos para o habitual lado esquerdo a
fechada com seus brincos para Kátia que estende a mão aberta para
caminhar.
Fico num lugar difícil de ver o que acontece. Então Dona Naná
Eu pergunto: e a senhora?
29
Quando os orixás chegam no corpo de seus filhos, quem cuida dos afazeres de tirar os sapatos, brincos,
pulseiras e relógios do receptor é a ekéde.
210
pano da costa em tons de amarelo e verde sobre sua blusa, saia frondosa,
branco. Reparo que todos os filhos e filhas da casa têm uma pena
fincada na cabeça.
hierárquico dos cargos de cada um, aos poucos vão sabendo as conexões profundas e a
razão subjacente dos fatos (o fundamento) como coloca o autor: [...] “a razão está muito
além dos rígidos conceitos ocidentais, razão, porém, sempre razão, uma outra razão que
não é de modo algum arbitrária e irracional, mas baseada em outra compreensão das leis
simplesmente. Uma relação menos ansiosa com o tempo, nesse tipo de pesquisa, é
30
Essa é a explicação para xirê no livro Os deuses africanos no candomblé da Bahia (VERGER; REGO,
1993, p. 21). Já no Dicionário Antológico da Cultura Afro-brasileira escreve-se sirê (lê-se xirê) e significa
ritual. (JÚNIOR, 1995, p. 562).
211
escrever durante os rituais, que impinge à memória registrar sensações fortes naquele
da casa, em especial uma que está colocada atrás dela. É imensa, viçosa,
31
Nesta auto-reflexão, busco apoio em Hammersley e Atkinson no primeiro capítulo do livro
Ethnography – Principles in Practice. Os autores consideram a reflexividade, o aspecto principal da
etnografia na pesquisa social. Para tanto, debruçam-se sobre a exploração e a avaliação das mudanças das
idéias, quanto à metodologia da etnografia nas últimas décadas. Conflituosa, pois os etnógrafos
constroem o mundo social através de suas interpretações, utilizando cada vez mais o olhar reflexivo na
pesquisa social. Além do mais, argumentam questões relativas à pesquisa social no que tange o seu
aspecto quantitativo e qualitativo, passando inevitavelmente pelo Positivismo, baseado na lógica do
experimento e pelo Naturalismo apoiado na visão de uma natureza própria. Estes questionamentos estão
voltados ao fazer político da etnografia. O restante do livro é dedicado às implicações da reflexividade
para a prática etnográfica, percebida aqui, no campo extensivo de uma pesquisa artística, inevitavelmente
enredada por questões sociais e políticas. (HAMMERSLEY; ATINKSON, 1983)
212
ojás não está mais lá. Seriam esses os mesmos ojás? Seriam os que antes
estavam amarrados nas cabeças das filhas? Eles não estavam lá antes...
escorregou na efemeridade...
traduzível, nem na notação, nem na escrita”. (NOVERRE apud LEPÉCKI, 2004, pp.
nos toma por seus conteúdos manifestos e por seus conteúdos latentes, muito embora
32
O movimento desaparece. Ele marca o passar do tempo. É sinal e sintoma de que a presença é um
lugar freqüentado pela ausência (PEGGY PHELAN, 1998). A presença que escapa é exatamente o que
instiga a necessidade de escrever sobre a dança, de estudar a teoria da dança, criando pontes de ligação
entre a palavra e o movimento que tornam o limite entre elas algo indecifrável e co-dependente. E com a
noção de desconstrução, de traço e diferença de Derrida, ele proporciona os estudos da dança e investiga a
questão da mulher nos estudos de Nietzsche, quando este escreve sobre a mulher como uma dança à
distância. Essa distância crítica que coloca a dança da mulher fora de uma possibilidade de entendimento,
de conhecimento é similar à assimetria de Noverre que localiza a materialidade como resistência que não
pode ser alcançada nem na dança, nem na escrita. Dança então é feminilidade. (LEPÉCKI, 2004, pp.124 a
139)
213
forças indesejáveis.
idosa que dança com o corpo bem inclinado para frente e em certos
precisa.
ombros e sua extensão aos braços, ora com as mãos cerradas, ora
[...] Lemos a dança, por isso ela se refere às danças dos orixás, embora
elas não sejam coreografadas no sentido ocidental. Elas constituem
uma forma de escrita, as quais são lidas de forma significativa na
comunidade. O dançarino num estado de incorporação de um orixá
não é um escritor da dança, ele se torna o texto escrito pelo orixá. Nos
anos oitenta os blocos de carnaval da Bahia começaram a utilizar a
cultura dos orixás para criar mudança política. Esse apelo coletivo
pelo sentido da cultura orixá, a mudança na forma deveria ser
considerado como um ato de revisão divina, ou re-escrita, de acordo
com as mudanças no contexto sociocultural. Significado –
readaptabilidade – depende da autoridade dos deuses. [...]
(BROWNING, 1995, p.50) 33
33
Aproveito as palavras de Browning para contextualizar minha chegada na Bahia que aconteceu
exatamente num momento forte de utilização da cultura como política. Fato que deu lugar a uma maneira
de perceber a cultura baiana religada ao mundo religioso do candomblé e que hoje inspira uma forma de
pesquisa que respeita e reivindica a autoridade de Xangô para a readaptação da performance em seus
limites indefiníveis entre palavra e movimento, texto e dança. O contato com Mãe Stella a partir do
primeiro encontro no dia 24 de julho de 2006, indicará a reflexão crítica em torno das questões que
envolvem o candomblé e a minha localização em torno delas que fatalmente são expressas na dissertação
e na demonstração performativa desse estudo.
215
transformados.
pois ela chamou a minha atenção. Ela responde: “o nome dela é Tutuca e seu
festa, cujo tempo ficou suspenso. Três horas corridas com a sensação de
em água...
calendário anual dedicada a Xangô, o ajabalá, ocorre durante o ciclo de Oxalá, numa
ou Oxum, as esposas do rei, trazem para o centro do barracão uma grande gamela com o
decorrer da festa Iansã divide mais um mistério com Xangô, o mistério do pano
seu poder de expansão e sua proteção como o Orixá da vida, detentor de uma magia
Além disso, é também de onde podem ser retirados valores repetitivos e/ou variáveis de
compreende a religião, a arte e a cultura como peixes das mesmas águas. Um universo
de reis e rainhas destronados de seus altares, mas não de suas almas. Nas festas, a
Como pesquisadora que ousa penetrar num terreno tão delicado, parto do
êxito da pesquisa nessa esfera religiosa. Por esse motivo, deixo as festas escritas dessa
maneira para facilitar a análise do leitor que fica, igualmente, sujeito às minhas
sua música. Para dar mais um exemplo das minhas intenções com a maneira que
para dizer o que vem a ser o xerê, instrumento utilizado nos rituais de Xangô, que
219
confecção do xerê. Por outro lado, afirmam sua função e conteúdo dentro dos rituais de
Xangô. Isso só foi possível ser detectado pela repetição de vezes que presenciei sua
utilização e li a seu respeito. A ferramenta principal para adquirir tais considerações foi
comemorações. Por sua vez, isso afirma que a adaptabilidade é imprescindível, mesmo
a arte, enfim, a vida é dinâmica. Para explicitar cito a festa de Efá, no dia 05 de julho de
Esse primeiro encontro aconteceu numa segunda-feira e quem marcou com Mãe
Um momento de apreensão...
Um pulo no inesperado...
Um salto no imprevisível...
Uma alegria latente...
embora... Fico com outra filha da casa para aguardar Mãe Stella que
casa. Peço licença para entrar, caminho em sua direção e peço a benção
histórico:
com Dona Naná e nos tornamos muito amigas desde então. E quanto ao
tudo tem seu tempo certo, este tempo é agora. Eu acredito muito no
tempo.
pesquisadores, em especial artistas lançam mão para desenvolverem seus trabalhos. Ela
tinha lançado essa questão com dona Naná. Então Mãe Stella diz:
visão folclórica e por essa razão, tratada de forma equivocada. Candomblé é religião,
não é folclore.
suas vidas e que os levou a dar ênfase às danças dos orixás, em suas
34
Uma reflexão: quando conheci Rosângela e Augusto, estes artistas já utilizavam aspectos da religião do
candomblé em seus trabalhos e em seus comportamentos, de uma maneira diferenciada dos espetáculos
folclóricos de Salvador. Cada qual em seu estilo, eles combinava muito bem o respeito religioso com a
ousadia da criatividade artística. Eram aspectos profissionais vitais, já que as fontes religiosas que bebiam
estavam enredadas em suas vidas, enquanto arte e enquanto cultura. Foi com este cartão de visita que fui
apresentada ao candomblé e à dança afro-brasileira em Salvador.
222
estilos.
manifestados nos corpos de seus filhos. Considero esta, uma outra forma
Stella, pois o exercício de memória faz com que se crie associações favoráveis. Um
sugeridos por Lüdke e André (1986) quanto à ética, respeito, maleabilidade, e também à
sensibilidade proposta por esses autores e por Edgar Morin (1996). Morin nomeia a
223
modernidade.
afirma:
e pedir licença a Xangô. Eu gostaria de ver algo escrito da sua pesquisa. Vamos marcar
um encontro?
corpo até o rosto, pois foi por um processo intuitivo que exercitei a
-Vamos nos encontrar aqui na casa de Xangô. Se tiver muita gente aqui nós
portão alto da casa de Mãe Stella. Fica atrás do barracão. A voz que
esta narrativa os atropelos e as glórias, a fraqueza e a força, a dúvida, por considerar tais
desenvolvo. Pois, um estudo que articula um pensamento crítico tem que deixar aflorar
performática em atitude política. Essa visão analítica está de acordo com Karl Marx...
falar em treinamento contemplo aqui Renato Ferracini, cuja idéia de treinamento está
inserida no mais abrangente dos sentidos: “O caminho a ser escolhido para tal, depende
de cada um, contudo, treinar se constitui voltar-se para um caminho que pode abrigar
um tempo e espaço limitado para ‘ensaiar’ ou, além disso, se expandir a outra esfera
são interfaces do caminho que escolhi. Em outras palavras, esta é uma opção de
sai. Ela o chama e diz: ficou paralisada? Sim. Toda a apreensão do encontro
sentar com Mãe Stella num hall, acima da escada. As duas poltronas
africana, pois entre as experiências das duas com essa cultura, o oeste
35
Os comentários de Ferracini neste parágrafo são referentes às suas palavras como: (Participante da
banca de defesa de Mônica Mello na Escola de Teatro da UFBA; e, Aula – espetáculo na Aliança
Francesa, ambas em Salvador 28/09/2006).
226
diversos diálogos. 36
sobre o toque 6/8 que confere uma das relações primordiais deste estudo.
36
Esta carta foi apresentada uma primeira vez na II Conferência Mundial de tradição dos Orixás e Cultura
e posteriormente foi reformulada numa versão mais detalhada. As duas versões estão escritas no livro,
Mãe Stella de Oxossi, perfil de uma liderança religiosa. (CAMPOS, 2003, p. 44 a 48)
227
insegura sobre a forma que havia abordado certas questões para que
Nesse dia visitei Mãe Stella para lhe dar um presente e convidá-la
nos minutos que fiquei ali, eu via a sua presença em todos os cantos,
portadores do AXÉ!
6. CAPITULO IV
Okutá orun iná otá – O fogo que vem do céu se trans-forma em pedra
entre as palavras tiradas dos dois dicionários citados em nota, combinadas com a
pedra de Xangô.
(otá) em que se assenta o Orixá condensa sua energia no iniciado. No caso específico de
até chegar ao nosso planeta, num caminho que o preenche de “alto teor de concentração
força da gravidade, meu corpo percebe como sensação de dança, simbolicamente fogo,
percorrido pelo meteorito, como dois exemplos dessa concentração de energia, de calor,
Terra, atraem outros corpos. O movimento desse corpo ou massa em queda livre,
1
Reitero a seguir a preocupação que Matteo Bonfitto também tem com esse termo tão abrangente e
polêmico que é a energia. “Mesmo estando ciente dos riscos ligados ao uso do termo “energia”, sobretudo
se aplicado em análises de fenômenos artísticos, optei pela sua utilização me atendo à sua definição
científica: ‘atitude de um corpo ou sistema de corpos que cumprem um trabalho’(La Nuova Enciclopédia
delle Scienze Garzanti, Milano, Garzanti, 1991, p.540). Nesse sentido, sabendo que por trabalho se
entende o produto da força pelo deslocamento, poder-se-ia considerar ‘energia’ como a resultante desse
processo aplicado ao corpo do ator, a qual se serve dos elementos (variações rítmicas, impulsos e contra-
impulsos), que por sua vez produzem diferentes níveis de tensões e oposições intermusculares”.
(BONFITTO, 2002, PP.91, 92)
230
primeira era criar uma partitura de movimentos. Com este intuito, pesquei na escrita
da partitura foram:
expressa em movimento.
¾ Ferro: machado.
qualidade rítmica dessas danças fez parte do processo de integração que culminou com
palavra fogo que foram - brasa, calor, chama e centelha; b) além da palavra fogo,
A segunda tarefa foi proposta na quarta-feira dia 02/08/06. Para cada ‘pose’
(imagem) de cada uma das 4 palavras, criar duas variantes, uma maior e outra menor.
Língua Portuguesa.
Incandescência, exaltação.
A terceira tarefa desse processo inicial foi dada no dia 16/08/06 - quarta-feira e
desenvolvi as seguintes etapas: corrida diária na praia; saudação, uma pequena partitura
elaborado para construção da partitura, quando então surgiu uma seqüência que
232
decidimos ser a saudação da encenação. Ela é feita como um ritual, para os quatro
cantos do universo.
células rítmicas que estávamos trabalhando, com três congas. Esta experiência nos
composição cênica.
detalhes sobre a performance de minha defesa, ritual no qual a encenação está inserida
em forma e conteúdo.
necessidade de um olhar externo nos ensaios, e como o diretor Lau Santos não tinha
esta disponibilidade, convidamos Ana Rita para ser a sua assistente. Como um dos
suportes para a criação de seu plano de trabalho, entreguei a dissertação a ela, à medida
parcial da encenação, ou seja, da partitura que criei com Lau. A dificuldade que eu já
havia percebido no meu olhar durante o processo criativo da partitura foi também um
dos primeiros pontos a ser detectado por Ana. Um problema que esbarrava na
Nos três iguais Fayee fez as cordas com o próprio couro da percussão e
Bugarabu(s) 3
que são facilmente recostados em um suporte de madeira
2
Vale salientar que pude conviver com o uso do mesmo artifício para a afinação do djembé, ou seja, a
calefação, durante todo o período que vivi na Holanda, tanto para as apresentações como para as aulas de
percussão. Essa prática ritualística contribuiu para estreitar a relação entre o instrumento e a pessoa que
toca, que deve sentir sua temperatura e o som que ressoa do seu couro durante o processo de
aquecimento.
3
Tenho a dizer que a denominação Bugarabu é usada tanto para um instrumento, como para o conjunto
do Bugarabu.
235
som, a de perceber o ritmo com o corpo todo a partir das minhas costas,
Ainda com o recurso das fotos mostrei a Ana Rita, Malan, o professor de
Cd Senegal, mencionada nos anexos, que trouxe novo tipo de informação para esta
pesquisa, pois anuncia o caráter ritualístico do Bugarabu. Essa música ilustra o terceiro
conhecido como coro masculino. Torna-se visível que abordar a dança e a música do
desenvolvidas. Como mostra a foto abaixo, as percussões são somente três e como mais
uma alternativa, elas são apoiadas, uma a uma, num pilão de cabeça para baixo.
236
No dia 12/01/2007, fizemos uma reunião de integração com Ana, Lau e eu.
defesa.
Nesse dia Ana escolheu exercícios que trabalharam com o olhar. O olhar é uma
em duas partes, cabeça e corpo. Por esta razão, a proposta do exercício era esquecer da
resultado desta experiência, pude perceber que meu pensamento ainda com resquícios
quatro vezes por semana, é um exercício que tem funcionado como meditação e como
experimentar o fogo da exaustão, para entrar num campo mais subjetivo e assim soltar a
que eu pude experimentar diversas situações no ambiente que tem sido há um ano, meu
mostrar o fogo no movimento dancei o alujá de Xangô com o cd, Rwm dos orixás, e o
às quartas-feiras, dia de Xangô, como este no dia 31/01/2007, quando fizemos uma
revisão dos encontros anteriores. O comentário de Ana foi que a precisão do movimento
é forte, mas ela quer mais, quer o momento de pedra ou o momento de fogo, no olho e
ela fosse crescendo e tomando conta do corpo todo, quando este passava
238
emergentes.
movimento, que me transportou às análises corporais que realizava quando era modelo
ebulição interna, por exemplo, de estar imóvel durante 1, 5, 10, 20, 40 minutos ou uma
hora.
Floripa. Via os verdes todos ao redor e eu me senti muito bem lá. Era
Vasconcelos.
28/03/2007 – Quarta-feira
• Andar e ir acelerando aos poucos até estar quase correndo e a cada palma de
Ana se voltar para o lado oposto. Um pega-pega. Voltar à aceleração normal do
coração e da respiração. A sensação de cansaço que eu gosto porque
solta a mente.
• Caminhada sentindo a planta dos pés no chão, alternada com a ponta dos pés, o
que se inclina para compensar o peso. Além disso, percebi o uso dos músculos
que aumentando vão se tornando pulinhos onde o corpo fica mole e entregue
manuseio com eles. O que ficou mais forte foi o pauzinho do sabar
Ana comentou que minhas expressões com os olhos fechados dizem mais do que
quando abro o olho e ela quer explorar exatamente isso. Expressar com os olhos abertos
31/03/2007 – Sábado
• O primeiro exercício desse dia foi caminhar e parar com palmas, acelerando a
cada palma sem correr, até cansar. O segundo foi o mesmo exercício sendo que
nas paradas me mantinha em um pé só. Retroceder no ritmo aos poucos até estar
pensei na comida de uma festa que tinha ido há pouco tempo. Mostrar as
sensações disso com o corpo. Depois Ana falava uma dessas palavras e eu tinha
TEATRALIDADE.
III. Cronograma
V. Programa/convite
os níveis, até ficar de pé. Andar com paradas e acelerações, até a exaustão. Voltar à
aceleração normal do corpo. Fazer a saudação nos três ritmos, lento, normal e rápido.
Primeiro dia de ensaio na Escola de Teatro com Lau, Ana e eu. Quarta-feira,
11/04/2007. O aquecimento foi feito com Ana, como de costume. Relaxamento com
respiração, deitada no chão. Caminhar pela sala, reconhecendo o lugar sem o olhar duro,
percebendo as coisas que olho. A cada palma virar o rosto em outra direção e seguir
seguinte: meu rosto estava uma máscara fixa, olhar duro e um meio sorriso,
inexpressivos. Muita embora Ana veja a força no movimento e Lau não, a realidade é
que eu não passei nada para eles. Conversamos muito sobre o pensar e o passar, sobre a
busca de um momento de dor, utilizar da força necessária naquele momento para revivê-
No terceiro momento, a partir de um canto da sala foi pedido para que eu fizesse
uma caminhada onde demonstrasse o caminho para a saudação. Uma orientação do Lau
foi o ativar da memória em relação às sensações que tais acontecimentos da minha vida
físicas que emanem uma presença cênica. A orientação do Lau foi que
correr na praia, onde fiz a saudação. Em casa ouvi o Noturno, Ismael Lô, o Bugarabu e
anotações do trabalho de criação da partitura com o Lau. Com Ana à tarde começamos
expirar. Flexionar e alongar os pés, alternar um e outro e depois girar, para fora e para
braços e pernas em direções opostas, na diagonal. Voltar ao eixo e dobrar uma perna de
cada vez junto ao corpo, alongando bem os pés. Os dois juntos e levantar a cabeça para
olhar os pés. A mesma coisa com as pernas em sapinho. Fazer o rolinho, de coluna com
depois subindo aos poucos, até saltitar. Em pé fizemos os saltitos no sentido horário e
principal era não se fixar na memória dos fatos e sim nas sensações que estes
244
levantar mais rápido eu deveria demonstrar tais sensações com o corpo. Esse trabalho
ia elegendo, entre aquelas mencionadas acima; num segundo momento Ana me pediu
para falar qual era cada uma das sensações eleitas e conduziu o trabalho me pedindo
cada uma delas aleatoriamente; finalmente eu revivi o túnel do tempo, e diretamente fiz
a saudação e a partitura.
apresentação pública, no dia 23 de maio de 2007 na Casa do Benin. Por ora, apresento
encenação da mesma maneira que criei a escrita, ou seja, partindo de uma análise crítica
E o olhar? Quem está vendo o que? Eu não estou mais na Europa. Olhar quem
agora para a sua dança traz a memória e a resignifica? Por quê? Porque lá fui
observado.
246
O pensamento, a palavra que tenta exprimi-lo e por sua vez a escrita na tentativa
de dar corpo aos dois, não o faz na sua totalidade. São diferentes caminhos, cujos
dissertação. O esforço para escrever é maior por omitir a expressão e trejeitos da fala
que, por sua vez se empenha em grande esforço para dar conta do pensamento.
(1985), para a análise crítica deste estudo, ao considerar os seis pontos de contato entre
o autor, deve ser ampliada e aprofundada. Os métodos não devem esgotar definições.
e performa e não uma solução de problemas é sua proposta. Schechner então comenta
Turner, entre outros, tem atravessado fronteiras. Tenho a opinião de que a fronteira é
uma dançarina brasileira, ‘a outra’ para todos. Essa situação, involuntariamente exigiu
de mim atitudes bem pensadas. Dançar me levava à reflexão. Como comenta Schechner
248
(1985), a respeito de sua experiência num workshop de Noh: dançar diz mais para o
caminho. Hoje, olhando para trás consigo ver sua reverberação em minhas atitudes, pois
uma atitude e não uma confirmação desse slogan. Atitude esta que em diversos
colocavam? Eu era uma iaô, uma iniciante nessa vivência no exterior, mas foi
exatamente esse trânsito entre o mistério e o mágico das referidas culturas que me
ao mesmo tempo em que me dão a chance de poder pensar nelas, exatamente porque as
vivi.
que Schechner aponta, é visível que ela não é restrita. Ela é parte de um grande
que o autor chama de “comportamento restaurado”, que foi abordado no corpo do texto
da dissertação.
princípio simples: o self pode agir em/como o outro, o self social ou trans-individual é
comportamento restaurado também joga com o tempo. Ele oferece a ambos, indivíduos
e grupos, a chance de retornar ao que uma vez foram, ou até mesmo e freqüentemente,
retornar ao que nunca foram, mas desejam ter sido ou desejam tornar-se. “A qualidade
rito de passagem, onde nosso desempenho é revisado para alcançar a aprovação final, e
cujas contingências nos fazem encará-la como uma performance. A performance como
dentro de uma cultura dominante que pode intensificar a magnitude da sua política. E o
que vem a ser a política? Ou ser político? Penso então nessa performance deslocada no
tempo e no espaço como uma transgressão dentro de sua ampla possibilidade de ser,
250
Uma característica própria que aprendi nas brechas dos deslocamentos foi
lidar com o que está perto de mim. Desvelar o grau do teor político que esta experiência
falar de prática e de teoria, de arte e de ciência, juntas. Nós que somos das Artes
de forma mais abrangente. Nesse estudo a teoria dos Estudos Culturais e Pós-
contribuição etnográfica surrealista, insisto que sob meu olhar, da publicação de uma
revista editada por Georges Bataille durante as dissidências de 1929 onde ele explica
com as palavras de Bataille acima, porque ela perturba, compõe, decompõe e propõe
uma reflexão a respeito de nós mesmos, como somos, como somos vistos, como nos
vemos, e de que lugar? Por exemplo, para refletir sobre o lugar que ocupo precisei
ouvir, como já dito: “esse não é o verdadeiro Xangô”! Então pensei... Ah! Como sou
A necessidade de uma reflexão crítica urgente sobre esse lugar que ocupo, ou
desterritorializa. E é exatamente esse lugar do borrão que aponta para a não existência
de verdades únicas. Portanto, escrever com a dança nessa pesquisa foi um processo de
liberação que ressoou das vivências e das interpretações do meu corpo dançante
tecido com o que adquiri como pertencimento específico, caracterizado pelo ritmo
danças aqui estudadas. Vale refletir sobre esse lugar específico e legítimo que ocupo,
imprescindível para a composição da escrita criada durante este estudo, que será
deixada para quem dança, observa, ou escreve, ou para quem interessar ler e saborear.
tornou uma relevante questão da pesquisa: memória não é etnografia. Hoje trago as
questões que validam essa memória e defendo a condição dessa experiência como
vida. Além disso, o capítulo da memória desvelou argumentos que servem de parâmetro
religião dos orixás e passaram a ser encarados de forma mais mística. Entre outras
252
ocasiões, essa conversa aconteceu com Mãe Stella de Oxossi, em sua casa no dia 28 de
julho de 2006.
Capítulo IV (Okutá Orun Iná Otá) denunciaram aspectos relevantes dessa experiência
vivida, antes e durante a pesquisa. O mais pertinente no meu modo de ver é a afirmação
de que os anos de convivência com a dança do Bugarabu e com Fayee, sugeriram uma
interface significativa da cara que compõe o meu corpo dançante. De tantos anos de
pesquisa.
convivência com o terreiro do Ilê Axé Opô Afonjá faz parte do meu cotidiano hoje. Um
atuou na etnografia surrealista de uma artista que criou e analisou criticamente sua
sido entendida de forma resumida e restrita. No seu entender intelectual deveria ser
considerado num sentido mais amplo, como ‘inteligências’, despertadas tanto por
(filho de orixá, iniciado) têm que se alfabetizar, adquirir instrução para não passar pelo
dissabor de dizer sim à própria sentença. (MÃE STELLA apud CAMPOS, 2002, p.42).
“Sob a idéia chave da diáspora, nós poderemos então ver não a “raça”, e sim formas
Um recado de Nietzsche:
Acarajé: bolinhos feitos de feijão fradinho e frito no azeite de dendê. Segundo Dona
Nana, acara é bolinho e unjé é estou comendo, então acara unjé foi o que deu o nome
de acarajé na Bahia.
Ajeum: comida. É muito comum se ouvir nas comunidades do candomblé: “está na hora
do ajeum”. To eat (comer) é je, jeun. Tirado do dicionário de Yoruba em inglês (A
Dictionary of the Yoruba Language – Oxford University, Ibadan, Nigéria, 1913)
Aguerê: ritmo dedicado a Oxossi. Também pode ser executado para Oiá/Iansã, sendo
denominado, neste caso, Ilu, é tocado com um andamento musical característico.
Aguidavis: nome dado nos candomblés de Ketu e Jejê às baquetas feitas de pedaços de
goiabeiras ou araçazeiros, que servem para percutir os atabaques.
Akará: mechas de algodão inflamadas ou o nome que se dá em Gâmbia e Senegal aos pequenos
bolinhos feitos da mesma massa do acarajé.
Àkoberé: começo.
Àkori: conclusão.
Amalá: oferenda para Xangô feita com quiabo, cebola, camarão seco, azeite de dendê e
pimenta.
Avania ou avamunha: ritmo acelerado, sincopado e que marca o início e o término das
cerimônias religiosas. Pode ainda ser chamado de avaninha, rebate ou arrebate.
Awô: segredo.
Ebômi: irmão ou irmã mais velho (a); iniciado que completou a obrigação de sete anos.
Ifá: deus do destino; oráculo que fala através do odu; jogo usado pelo Babalaô para
saber o odu responsável pela indicação de caminho e previsões.
Ilê Axé Opô Afonjá: candomblé de Salvador, desdobramento terreiro da Casa Branca.
Iná: fogo.
Ketu: nome de um grupo étnico que compõe a cultura iorubana, oriundos das cidades de
Abeokutá e Ketu, esta última destruída em 1640 d.C. pelos dahomeanos.
Obá: rei.
Ogã: protetor civil do candomblé, escolhido pelos Orixás e confirmado por meio de
festa pública, com a função de prestigiar e fornecer dinheiro para as festas sagradas.
Okô: pênis.
Olorum: divindade suprema. Etmo: olo = senhor e orun = céu, senhor do céu.
Oyê: título.
Oyó: capital da nação ioruba nagô, que é o nome da primeira tribo descendente de
Odùdúwa. Foi fundada por Oranian, filho de Okanbi e neto Odùdúwa que por sua vez
havia fundado anteriormente a cidade de Ilê-Ifé.
Peji: altar
Xerê: é um instrumento de cobre, podendo ser de prata quando utilizado para o culto de
Xangô Airá ou mais tradicionalmente, de cabaça com um cabo de madeira. Ele é um
símbolo fálico utilizado em vários rituais do culto a Xangô, como a fogueira, a roda de
Xangô, além de se inscrever nos seus poderes mágicos. Ele reproduz o barulho da chuva
e quando tocados juntos pelos únicos que têm esse direito no Afonjá, ou seja, os Obás
da direita de Xangô e pela mãe-de-santo, soam como as tempestades, fertilizando e
fecundando as entranhas da terra.
Xirê ou Sirê: a dança dos orixás em círculo quando, de acordo com ritmos específicos,
as entidades são evocadas para se manifestarem através dos corpos de seus filhos
durante os rituais abertos do terreiro. Segundo Mãe Stella, siré, é brincadeira.
(STELLA, Òsósi – O caçador de alegrias, Funcultura, Governo da Bahia, 2006, p.86)
Essa brincadeira, dá início aos rituais abertos das religiões afro-descendentes, quando
em um círculo os integrantes da casa dançam ao toque dos orixás, antes e para a
incorporação.
9. BIBLIOGRAFIA
ASLAN, Odette; HYVRARD, Jeane. Les corps em Jeu. Trad. Lau Santos. Paris:
Editions de Minuit, 1977.
BARROS, José Flavio Pessoa de. A Fogueira de Xangô, o Orixá do Fogo. Rio de
Janeiro: 3ª edição, Pallas, 2005.
BARBA, Eugenio. Além das Ilhas Flutuantes. São Paulo: Hucitec/UNICAMP, 1991.
BARBA, Eugenio. Le training de l’acteur. Tradução Lau Santos. Paris: Actes Sud-
Papiers, 2000.
BUTLER, Judith. Bodies That Matter: On the discursive limits of “sex”. New York &
London: Routledge, 1993.
CLIFFORD, James. MARCUS, George (eds.) Writing Culture: The Poetics and
Politics of Ethnography. Berkeley: University of California Press, 1986.
DEREN, Maya. Divine Horsemen: The living Gods of Haiti. Kingston, New York: Mc
Pherson & Company, 1953.
FOSTER, Susan Leigh., “The ballerina’s phalic pointe”, In Corporealities. New York:
Routledge, 1996.
259
FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. São Paulo: 12ª edição, Edições Loyola,
2005.
GILROY, Paul. Wearing Your Art on Your Sleeve: Notes Toward a Diáspora History
of Black Efhemena. In Small Acts, pp. 237-257. New York and London: Serpent´s Tail,
1993.
GOFFMAN, Erving. The Presentation of Self in Everyday Life. New York & London:
Doubleday, 1959.
LANDES, Ruth. The City of Women. New York: Institute for the Study of Man, 1994.
LEPECKI, André. Of the Presence of the Body: Essays on dance and Performance
Theory. Middletown: Wesleyan University Press, 2004.
LIMA, Fábio. As quartas feiras de Xangô – ritual e cotidiano. Salvador: Ed. UNEB,
2004.
NESS, Sally Ann. Dancing in the Field: Notes from Memory. Middletown: Wesleyan
University Press, 2001.
PHELAN, Peggy; LANE, Jill (Eds.). The Ends of Performance. London: New York
University Press, 1998.
PRADIER, Jean Marie. A Carne do Espírito. In: Revista Repertório: Teatro e Dança.
nº 01. Salvador: Bahia, 1998.
261
SIEGEL, Marcia. Acessing the Nonverbal – Again. N.Y. Duke University Press, 1993.
TURNER, Victor. Dramas, Fields, and Metaphors: Symbolic Action in Human Society.
Ithaca & London: Cornell University Press, 1974.
http: // www.kassoumay.com/casamance/index.html
http://en.wikipedia.org/wiki/S%C3%A9n%C3%A9gambia_Confederation. Categorias;
História de Senegal | história da Gâmbia
www.paginadojairo.pop.com.br/ponte.htm
humwww.ucsc.edu/Cult Studies/PUBS/Inscriptions/Vol_5/clifford.html
http: //cliquemusic.uol.com.br/br/gêneros/Gêneros.asp?Nu_materia=3
http://www.geocities.com/Athens/Acropolis/1322/
www. abetencontro.ufba.br/comunicações.html
10. ANEXOS - Fontes complementares
foi encontrada no site Kassoumay que aborda a história, religião, valores e costumes dos
djola em Casamance. E ainda, com base no site da Wikipedia, esmiucei a história sobre
nominal.
Xangô. Além disso, afirmam sua pertinência ao transcurso histórico pessoal abordado
cruzamentos são: percussão, dança, palmas, canto, vigor, calor, ritmo, fogueira, força e
resistência.
colheita de arroz que acontece nos meses de abril e maio precedendo o inverno, de onde
desenvolvidos.
festividade que dura três dias, e se desloca durante dois meses, de vila em vila, e, de
bairro em bairro. Em cada vila, um mestre de cerimônias é escolhido pelo conselho dos
mais velhos, para organizar a preparação e os vários aspectos do ritual, tais como: a
colheita do arroz e as oferendas do povo da vila. Sua filha, como símbolo de fertilidade,
nos deu uma boa colheita esse ano, e faça ser no próximo ano, tão boa quanta essa”.
homenagem aos poderes da fertilidade que produziu um ‘arroz bom’. Elas acompanham
Durante a noite, sob uma esteira, duas pessoas transferem o arroz de uma cesta
para a outra com a ajuda de uma colher de cabaça. Uma vez ‘sacralizado’ o arroz, a
filha do mestre de cerimônias, rainha do lebounaye, é carregada por dois homens de sua
família para uma pequena cabana, onde ela ficará por vinte e quatro horas.
conhecidos como Bugarabu são tocados por um só homem que é acompanhado por
canções e pela marcação rítmica dos claps ou de um ‘coro de mãos’, anunciando uma
Em seguida, na presença do conselho dos mais idosos, uma fogueira é acesa e um bode
é cozido como sacrifício, junto com o arroz sagrado. Bebidas são servidas pelo mestre
1
No Cd de Charles Duvelle, os três momentos narrados acima correspondem a três faixas que,
respectivamente recebem o nome de Bugarabu, Lebounaye e coro masculino.
265
percussões são tocadas enquanto apoiadas uma a uma num pilão de cabeça para baixo.
movimentos.
No terceiro dia, a rainha é maquiada e vestida enquanto uma solista canta com
um coro de mulheres. Logo após ela é carregada em triunfo, de cabana em cabana, antes
de ser finalmente colocada numa esteira, onde a rainha do próximo ano a espera.
Casamance se situa entre Guiné Bissau e Gâmbia, país anglo fônico encaixado
no território do Senegal. A região é delimitada a leste pelo Rio Gâmbia e a oeste pelo
Ilustração 25 - Mapa do Senegal e Gâmbia – região de Casamance, Senegâmbia, site Kassoumay, 2006.
2
www.kassoumay.com/casamance/index.html
267
Comendador Alvise Da Cada Mosto, batizou esse país de Kassamansa (kassa pela
relação de domínio e Mansa pelo nome do rei de Floups, naquela época) que veio mais
após assinarem uma convenção com Portugal que fixou as fronteiras com a Guiné
habitam os djolas e os baïnuks. Metade das terras na Baixa Casamance tem como
cultura mais praticada, o cultivo do arroz, ponto relevante desta pesquisa e momento
selecionados para a criação dos claps que são utilizados na dança do Bugarabu são
retirados da palmeira de vinho (palm wine). O vinho extraído dessa palmeira se chama
palmeira.
3
Este local tem uma função múltipla para os moradores dali. As horas do dia se dividem entre: extrair o
vinho da palmeira para beber de quando em quando, da manhã ao alvorecer; fazer o corriqueiro arroz com
peixe para comer debaixo das árvores na hora da fome; e conversar sobre a vida, sobre a história do lugar,
as guerras e conflitos passados. A ilustração 26 mostra uma das manhãs em que eu aprendia a fazer o
funil para colocar na garrafa que é levada ao topo da árvore junto com a pessoa que extrai o vinho. Todo
o aparato para subir na palmeira é feito com o material da própria árvore. Os homens que ali estavam
eram de Guiné Bissau ... [...] Bebem o vinho o dia todo. Há o fresco, justo o que me fez mal, e o que
268
Ilustração 26 – (a) Vinho de palma chamado bunnuk. Site Kassoumay, 2006; (b) Sandra
Mascarenhas aprendendo a fazer o funil – kaboonyinak – para retirar o vinho da palmeira, dia
04/01/1996.
‘Casamançais’ são ainda compostos pelos wolofs, lébous, toucoulers, sérères, mandjaks
Ao tratar das línguas e povos que há muito tempo têm histórias infiltradas entre
comunicação entre línguas distintas diluídas numa compreensão mútua. 4 Ao pensar nas
fica de um dia para o outro, mais curtido, mais salgado. Este, os homens costumam beber e o outro,
menos curtido, mais doce, as mulheres. Kanifing, diário da viagem à Gâmbia, 04/01/1996.
4
Tive a oportunidade de presenciar, numa das caminhadas que fiz com Fayee pelos arredores de
Donsekunda, no dia 19 de janeiro de 1996, um acontecimento curioso, ao encontramos um tronco de
árvore, como símbolo demarcador da fronteira entre Senegal e Gâmbia: um dos holandeses que
caminhava conosco, se recusou a fazer uma foto desse lugar, pois as fronteiras de pensamento entre os
presentes - africano, brasileira e holandês - não convergiam naquele momento. Aquilo que tinha peculiar
importância para uns não representava nada para outros. Naquele instante, diferenças ressurgiam como
marcas históricas de um tempo pós-colonial.
269
povo não estão restritos, em seu sentido de origem e pureza. Afinal, o que é ‘o puro’? A
que as infiltrações raciais dessa região dos casamançais, que se sobrepõem a um tempo
(BHABHA, 1998), que não deixou de dialogar no corpo a corpo. A geografia espacial
pelos mandingas, mandados para o oeste. Voltaram para esta região no fim do império
de Mali.
sua vez se estendem sobre a filiação, o respeito aos mais velhos e a tradição da
ancestralidade. É dirigida por um rei, pelos feiticeiros e pelos conselheiros que são a
garantia da coesão social. Todas as vilas são regidas por um conselho de anciãos que
guerra mundial, Aline Sitoé Diatta liderou os Djolas na luta contra a colonização
gado. Em 1942, os chefes simbólicos dos djolas foram presos, a exemplo do rei de
M’Lomp. Em 1943, Aline Sitoé foi deportada para Tombouctou e em 1944 foi morta
autoridades estrangeiras.
A religião dos djolas é animista. As cerimônias rituais têm seu lugar nos
bosques sagrados inacessíveis aos não iniciados, visto que a natureza, vegetal e animal,
são sagrados para os djolas. Cada vila possui muitos bosques sagrados, certos
Os djolas praticam o culto dos fetiches (boechin) objetos com virtudes benéficas
que possuem uma força vital, encarnam um espírito ou contém elementos mágicos e
sobrenaturais. Os fetiches são forças espirituais contra toda sorte de ameaças, acidentes,
doenças, morte, falta de dinheiro... As mulheres djolas são as guardiãs dos bosques
cerimônias de iniciação. Como o Kanebó, reservado às mães jovens que vão entrar no
círculo das mulheres sacerdotisas, que é uma cerimônia de oferta de arroz e vinho de
Vale salientar que essa divisão entre mulheres e homens está presente na esfera
religiosa, tanto dos djolas como dos devotos do candomblé e ainda, ela se estende aos
algumas similaridades a esse respeito. Na grande maioria dos rituais abertos dos
mulheres, assim como suas funções religiosas, que se dividem entre atividades
como por meio das práticas religiosas animistas enunciadas acima. Refletir sobre essas
Casamance e Mãe Stella de Oxossi, no Ilê Axé Opô Afonjá, campo desta pesquisa
exemplo, são extremamente importantes, se diz bom dia a todo mundo, mesmo a
alguém que você jamais tenha visto. Depois perguntam da saúde e da família. O
costume é responder que tudo vai bem. Em wolof: Na nga def? Como vai? Maa ngi fi
5
rek! Eu vou bem! Em djola: Kassoumay? Kassoumay kepe! Dar as mãos ao
freqüentemente com a mão direita, pois a esquerda é reservada para outros usos. Beber
um sinal de hospitalidade, pois é a bebida que se oferece aos amigos e abre a conversa.
O chá é de menta e se serve três vezes e se você aceita a primeira, amargo com pouco
açúcar, irá até a terceira com mais açúcar. A hospitalidade se chama ‘teranga’, uma
5
As palavras em wolof foram tiradas de apontamentos diversos em folhas soltas escritas durante o
convívio, do diário da viagem à Gâmbia e conferidas atualmente com o livro: DIOUF; YAGUELLO,
J’apprends le wolof, Ed. Karthala, ano desconhecido.
272
convivência permeada por tais costumes e valores referidos acima exaltava as âncoras
minhas e de Fayee. Unia e causava confronto pelas nossas diferenças, ao mesmo tempo
Ilustração 27 (a) Sabar, dança tradicional do Senegal; (b) Dança Ekunkun de Casamance. Ambas do site
Kassoumay, 2006.
É fato que em muitos lugares da África, música e dança fazem parte da cultura
geração em geração.
análise comparativa deste estudo, foco nesse parágrafo a versão do site Kassoumay
tambor de som surdo, de preferência, com formato de barris alongados e esticados com
tocada com as mãos por uma pessoa em pé, cujo pulso é ornado com guizos. O
Ekunkun. 6 O bombolong é um tronco de árvore cavado que se bate com dois bastões.
Ilustração 28 (a) Bombolong, instrumento de transmissão de mensagem; (b) Bugarabu. Site Kassoumay,
2006.
6
A dança e o instrumento do Bugarabu e seu vínculo com as manifestações religiosas do culto aos
ancestrais dos Ekunkun em Casamance experimenta uma relação analógica com o culto dos Egungun na
Bahia, e este por sua vez um estreito vínculo interativo com o orixá Xangô. Desvelar esses trânsitos foi
uma das proposições que instigou um incentivo a uma posterior continuidade deste projeto de pesquisa.
Ver site Kassoumay.
274
Uma pesquisa poderia ser comparada a um novelo de linha que nunca se acaba.
tantos outros ‘ões’ que satisfazem e geram o prazer de ter acreditado em alguma
poética - detectada através desta dança, música e costumes – a uma análise crítica
histórico do Senegal e de Gâmbia para pensar que autenticidade e pureza são noções
duras que não servem nem mesmo para um passado distante. Desde 1500, os
de uma transformação constante em suas vidas, além dos ecos que reverberam na
maneira do fazer artístico de cada um dos dois países. De acordo com Stuart Hall,
afirmo uma vez mais que a tradição pode ser pensada então, mais apropriadamente,
7
Ver “http://en.wikipedia.org/wiki/S%C3%A9n%C3%A9gambia_Confederation” Categorias: História de
Senegal | história da Gâmbia
275
como tradução. E assim verso a seguir, sobre a transformação desse processo histórico,
países oeste africanos do Senegal e seu vizinho, a Gâmbia, país este praticamente todo
1989, depois de Gâmbia ter recusado uma aproximação maior entre os dois países.
Senegal e Gâmbia integraram suas forças militares com as de segurança, formaram uma
estabeleceram instituições confederais controladas pelo Senegal. Cada país manteve sua
independência.
duelo entre as forças coloniais, francesas e inglesas, foi criada a unidade política de
inglês se tornou mais denso no rio Gâmbia, embora houvesse uma transposição de áreas
de influência entre esses rios. A região se tornou muito importante para os impérios
crescentes da África Ocidental, passando a ser esta região, um caminho de acesso para o
providências para definir suas esferas de influência. De 1500 a 1758 os dois países
usaram seus poderes navais para tentar retirar um ao outro, daquela região. Em 1758, os
britânicos foram vitoriosos em capturar mais bases de comércio francês na área do rio
Senegal e formaram a primeira Senegâmbia – uma colônia real. Em 1779 foi a queda da
região unificada, quando a França recapturou Saint Louis e incendiou o maior povoado
anglofônico na região: Saint Louis, a Ilha de Gorée, e a região do rio Senegal foram
restituídas aos franceses e a Gâmbia deixada para os britânicos. Nas décadas de 1860 e
70 ambas as nações começaram a estudar uma proposta comercial para unificar as terras
da região. Dessa maneira o comércio francês oeste africano poderia representar uma
outra fonte de posses para a Gâmbia, mas o intercâmbio nunca se completou, pois
enquanto as áreas estavam separadas não ficou evidente uma fronteira oficial entre as
removeram seus postos de comércio fronteiriço. Esta escolha deixou o futuro Senegal,
8
“Uma questão geográfica espacial que inter-fere, (fere vários lados entre si) em outros ‘espaços’ das
relações entre Senegal e Gâmbia, ou seja, o geográfico que atinge o comercial que, por sua vez alcança o
político, e conseqüentemente o espaço social e o cultural. A partir de uma maneira mais híbrida de lidar
com a vida, Homi Bhabha (1998, p.199) propõe: ‘uma construção cultural de ‘nacionalidade’ na
articulação de diferenças e similaridades culturais, onde a localidade da cultura gira mais em torno da
temporalidade do que da historicidade”. Considero a possibilidade de pensar essa noção espaço-temporal
que permeia os percalços entre Senegal e Gâmbia desde 1500, para dialogar com a temporalidade da
minha experiência com tais culturas que se deram através do Bugarabu desde 1996. Para complementar a
proposição deste autor aplicada à temporalidade desta pesquisa, trago o texto de Walter Benjamim, “A
277
abordagem variáveis. Como manter, com sucesso, dois países separados numa região, e
ainda divididos por valores culturais diversos com uma fronteira internacional que
da confederação. Para cada um dos países, essa situação chave fronteiriça que
nos dois lados das fronteiras, a violência poderia se espalhar pela região com muita
facilidade. Um golpe bem sucedido poderia fazer com que tivesse um grupo de
povo de Casamance, ou ainda outros grupos dissidentes. Vieram mais ameaças de Gana,
suficientes para parar ou prevenir transtornos políticos. Estava se tornando mais e mais
Tarefa do Tradutor”, que encerra o capítulo VIII, Disseminação do livro de Bhabha, O Local da Cultura,
onde como pesquisadora-participante/artista estou no papel de tradutora transnacional dessas culturas
diluídas entre si. “Da mesma maneira que os fragmentos de uma ânfora, para que se possa reconstituir o
todo, devem combinar uns com os outros nos mínimos detalhes, apesar de não precisarem ser iguais, a
tradução, em lugar de se fazer semelhante ao sentido do original, deve, de maneira amorosa e detalhada,
passar para sua própria língua o modo de significar do original; assim como os pedaços partidos são
reconhecíveis como fragmentos de uma mesma ânfora, o original e a tradução devem ser identificados
como fragmentos de uma linguagem maior”. (BHABHA, 1998, p.238)
278
mesmo ano, 1981. Essa nova possibilidade de mudança de regime forçada, tão próximos
de idéias que foram desenvolvidas na região. Essas idéias foram estimuladas por
compartilhadas.
Gâmbia sob a sensação de um processo orgânico. Nos anos 60, Senegal e Gâmbia
planos e benefícios de unificação entre os dois países. Apesar da vida curta da união, a
Confederação de Senegâmbia foi uma das mais longas uniões africanas daquele período.
Tivesse ela êxito, não teria somente resolvido tensões econômicas entre os países
das elites sociais. Depois que a ameaça de instabilidade política começou a amenizar, os
dois lados retrocederam aos seus medos e aos estereótipos tradicionais do outro. O
governo e o povo de Gâmbia, uma vez que a revolta passou a parecer simplesmente um
fato histórico, começaram a temer a perda de suas próprias identidades e poderes através
da absorção senegalesa.
união. Desde que a união foi forjada por questões de segurança mútua, pessoas de todos
os níveis e dos dois governos passaram a ir e vir, e foi dessa maneira que a
Confederação deu seus sinais de morte. Esta situação fica bem exemplificada com a
remoção de tropas senegalesas de Gâmbia, depois de o Senegal ter sido ameaçado pela
Mauritânia. A principal plataforma na qual a união tinha sido criada marcou o começo
considerou que seria melhor que a Confederação fosse colocada de lado depois das
negro também causou uma exportação que escoou em Gâmbia. O governo senegalês
amendoim. Quando os fazendeiros vendiam suas colheitas para Dakar, eles recebiam
depois de três meses. Por não querer esperar o sistema de comércio senegalês para pagá-
los, muitos fazendeiros começaram a contrabandear suas mercadorias para Banjul, pois
Toda essa problemática em torno dos dois países evidencia suas interpenetrações
similaridades culturais servem de apoio entre os senegaleses e gambianos que ali moram
Senegal. Em Amsterdã era nítida a delimitação espacial dos dois grupos, cada qual na
alinhave. Uma história vista por ângulos e abordagens distintas para serem comparadas
que a colonização gerou, focados aqui, naquela região do oeste africano (Senegal,
dominante como acontece igualmente com o Brasil. Faça relações, e que estas