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2.

A propósito do ritmo: diferentes


versões da música da vida psíquica

Eraverão de 1993 e eu estava de volta a Sarajevo.


Havia sido convidada hátrê meses por um produtor
de teatro local paraencenar uma peça em um dos
corredores destruidos da cidade sitiada. Tinhamos nos
encontradodurante a minha visita em abril, ele me
perguntouse eu tinha interesse em voltar como dire
tora, respondique sim, claro, com prazer. Todos,
tanto ele quanto as outras pessoas no teatro que eu
conhecia, receberam com entusiasmo a peça que
escolhi representar: "Esperando Godot", de Becket.
Seria supérfluoacrescentar que a peça seria en
cenadaem servo-croata: nem me ocorreu que os
atores selecionados poderiam ou deveriam fazer o
contrário. E verdade que a maioriaconhecia um
pouco de inglês, como parte dos habitantes cul
tos de Sarajevo que viriam ver nossa produção.
Mas o talento de um ator está inextricavelmente
ligado aos ritmos esons da linguagem na qual ele
72 APROPÓSITO DO RITMO

desenvolveuesse talento: e o servo-croata era o único

idioma fluente que todo opúblico dominava. Aos que


talvez pensem que parece presunção ousar dirigir numa
lingua desconhecida, só possoresponder que oteatro de
inter.
repertório opera atualmente com tantos circuitos
nacionais como orepertório da ópera desde sempre.
Ouando Arthur Miller aceitouoconvite paradi.
rigir uma performance de Morte de um Caixei.
roViajante" em Xangai, háalguns anos, ele sabia
tanto de chinês quantoeu de servo-croata. Em
qualquer caso, não é tãodificil quanto parece.
Além de suas próprias capacidades teatrais, é ne
cessário um ouvido musical e um bom intérprete.
hen p o l
Susan Sontag, 1993

Lembro-mede uma história que se conecta com otema


do intérpreteedo ritmo. Evoco um personagem de mi
nha infância. Fui criadoem um bairro comum da cida
de de Montevidéu, chamado de A Comercial. Tinha esse
nome pela quantidade de comércios, armazéns e bares
que formavamsua geografia humana. Era um bairro
de boliches, quadras de futebol, murgas etablados.
Quando eu era menino, era comumque algumas
pessoas aposentadas ficassem na esquina conversando,
pertodo boliche de mneu pai; ali se reuniam imigran
tes, velhos imigrantes italianos eespanhóis. Havia
um que se chamava Carmelo, de quem eu zombava,
em minha adolescência, porque nãofalava espanhol
direito. Ee falava misturando seu dialeto do sul da
Itália e, para zombar dele, euochamava de "Lu
Carmelu". Mais de uma vez o critiquei junto a outros
aposentados: "Mas Carmelo, quando éque você vai
vfcTOR GUERRA 73

falar espanlhol direito? Já tem um bocado de tempo


que você está aqui, e continua falando desse jeito!".
Lembroque às vezes, diante da minha insistência,
cle me olhava em silêncio con certo ar de resigna
ção c me dizia: "Mas Vittorio, é a música, Vittorio,
a música!". Eiaembora para um lado, lentamente
cantando uma cançãode sua terra. Quando fazia
isso cruzava os braços no peito, como se abraçasse
a si mesmo. Naquele momento, eu não o enten
dia epensava: "Esse Carmelo está maluco!".
Carmelo ea música, Víctor Guerra

Com otempo, aprende-se que oque às vezes parece loucura pode ser
parte de uma sabedoria. Carmelo, na sua "ignorância; ensinava-me
que háalgo além do conteúdo da linguagem: a música, amelodia,
oritmo, que podem se tornar ùma forma de sustentação do ser.
A resposta que me dava Carmelo em meu bairro de infância
sem saber tinha um ponto de encontro com a experiência que,
anos depois, S. Sontag viveu enm Sarajevo. Háum talento que está
em relação com o ritmo e o som da língua materna, que faz parte
do itinerário existencial do ser humano e, por sua vez, é sinal de
identidade de cada migrante.
Eesse talento do ritmo é um dos elementos fundamentais da expe
riéncia artistica na música. M. Gratier (2007), porexemplo, mostra-nos
os diferentes graus de correlação possivel entre aexperiència criativa
dos músicos dej eaexPeriencla sensorial-emocional de um beb.
Podemos pensar que ouniverso rítmico, musical, signiticante, faz
parte essencial das bases primeiras da constituição do ser humano,
das suas marcas arcaiças de subjetivaço e, muitas vezes, "dialogar"
com alguma forma de expressão artística também éuma forma de
revisitar os processos de subjetivação de um bebè.
74 APROPÓSITO DO RITMO

As pesquisas realizadas por B. Golse no programa PILE


tram COmo o bebêentra na linguagem por meio da música
mos-
da voz.
Eo psicanalista americano G. Rose (2006), estudando essa mesma
situação do ângulo oposto, ou seja, de como oelemento ritmico e
criativo de um músico tem relação com a experiência arcaica. nri
mária, pergunta-se de onde surge a receptividade estética. Afirma
que pode bem ser que acompenetração eaempatia emocional no
verbal, que caracterizam o interjogo entre o tnjans e os pais, consti.
tuam seu protótipo. Dentro dessa matriz, também se encontram o
som e a silabas rítmnicas que formam as bases universais da música
e das palavras.
Vemos, assim, comno diferentes cenários congregam o tema dos
vínculos, do ritmo, da música, e da palavra. Temas que se unem nos
diferentes protagonistas das novelas que escreve a vida.
Neste trabalho, tentarei desenvolver algumas dessas ligações.
Comecemos então olhando com certa atenção para o modo
comoo ritmo eseus "talentos" azem parte do início da história
subjetiva do ser humano.

Vínculoinicial e ritmo
A construção do vínculoentre uma mãe e seu bebèpode ser vista
como uma história de encontrose desencontros, de claridades e
opacidades, de harmonias e desarmonias.
Inúmeros trabalhos dão conta das vicissitudes dessas histórias
repletas de variações e diferentes tonalidades musicais à maneira de
uma sintonia inacabada, que sempre se reescreve a cada vez, Cont
cada novo filho.

bntre as múltiplas vertentes que a compõem, otema do ritmo


parece um elemento fundanmental.
vÍcTOR GUERRA 75

Mas oritmo parecefazer parte de um elemento fundamental e


fundante dacondição do ser humano como sujeito de comunicaço
Com o outro,

Pesquisas atuais sobre aorigem da linguagem trazem elementos


muitoinmportantes em relação ao ritmo.
Assim, J.-C. Ameisen (2014) afirma que orelatório da Academia
de Ciências dos Estados Unidos por Asif Ghazanfar, seus colegas
da Universidade de Princeton e pesquisadores da Alemanha e da
Escócia indica que as mímicas labiais feitas pelos macacos-rhesus
envolvem oscilações nosmovimentos dos lábios de ritmo semelhante
às envolvidas na língua humana, aproximadamente seis movimentos
labiais por segundo.
Nesse trabalho, os investigadores sugerem que ésobre oritmo
ancestral de oscilações de mímicas labiais de primatas não huma
nos, sobre oritmo ancestral de expressões faciais, que poderiam se
sobrepor as vocalizações humanas, fazendo surgir o ritmo clássico
da alternância de vogais e consoantes das línguas orais humanas.
Essa experiência se repete nos estudos realizados em bebês de
4 meses, que são especialmente sensíveis a um ritmno periódico de
seis movimentos por segundo. Outros trabalhos sugerem que esse
ritmo de seis oscilações por segundo poderia, em nosso cérebro,
comono dos primatas não humanos e na maioria dos mamíferos,
ser um dos ritmos espontâneos percorrendo asuperficie docérebro,
o córtex cerebral.

Então, Ameisen conclui: "E possivel que a evolução tenha fa


vorecido uma ressonância entre o ritmo de algumas das nossas
modalidades de comunicação e certos ritmos ancestrais de funcio
namento do nosso cérebro

Isso mostraria que o ritmo éum organizador fundamental da


vida psíquica e do desenvolvimento da linguageme do pensamento,
a partir doencontro rítmico com o outro?
76 APROrósiTO D0 RITMO

ritmica subjetivante såo


Os aspectos interativos da experiència
próprios da
constatados desde o inicio da vida nos acoplamentos acaricia
màe o toca, 0
experiência com 0scio, na forma como a
entra em sincronia(Bernardi
(Diaz Rossello ct al., 1991), he fala,
tolera a retirada do bebè nos jogos face atace (Stern, 1971)
1986),
objetos que captam a atenção do bebe.
ena apresentaçåo dos
(2000)defende que tempo
o seria um sexto sentido no
D. Stern
potencialidade surpreendente
beb cquc, desde oinício, ele tem uma
bebès podem estimar certas
de cálculo temporal. Aos 2ou 3 meses, os
da sua parceira
duraçoes tcmporais e distinguir o "estilo ritmico"
entre o selfe
interativa. Esse autor afirma que a primeira distinção
temporal.
os outros estábaseada nessa capacidade
Como interpretamos isso? O bebêprovavelmente pode dife
estabelecem o
renciar os outros por seu estilo rítmico, por como
contato e a estimulação no tempo. Stern diz: "Eotempo que dá o
caráter qualitativo à sensação, à experiência sensorial: no gesto de
tocar, por exemplo, pode haver uma aceleração marcada no final. 0
gesto começa lentamente e se acelera brutalmente (p. 31).

E issoconfigura para nós um "estilo rítmico" capaz de definir


que um vínculo seja gratificante ou o seu oposto. Essa modificaço
temporal do gesto cria um ritmoque o bebêincorporarácomo
libidinal, gratificante, ou como "hostil; frustrante...
Etal a importância disso que D, Stern (2000) chega a afirmar
que: "A vida com os seres humanos é um espetáculo de luzes que
se realiza em tempo real" (p. 31).
Por sua vez, diversos autores, de múltiplas origens, trouxeram
e trazem elementos diferentes, mas muito concordantes a
respelto
da temática do ritmo. Refiro-me a
autores que "provocam c
mim, háanos, um diálogointerior muito fecundo que marca me
pensamento e meutrabalho clínico com bebês e pais. Por exemplo
vÍcTOR GUERRA 77

na França: B. Golse (2006), R. Roussillon (2010), D. Marcelli (2000),


A. Ciccone (2005), G. Haag (2005), H. Maldiney (1973), R. Prat
(2007), D. Thouret (2004), S. Missonnier (2007), A. Brun (2007),
M. Goldbeter (2010), N. Abraham e M. Torok (1987), I. Fónagy
(1983), M. Gratier (2001) etc. No Reino Unido: F. Tustin (1996),
C. Trevarthen e M. Gratier (2005); na Espanha: Pérez Sanchez, I.
Cabanellas et al. (2007).
Aolongo dosanos, ao refletir sobre o desenvolvimento de suas
ideias, meu diálogo interno com seus pensamentos participa de uma
melodia executada em meu foro íntimo.

De minha parte, entendo oritmo em relação asete perspectivas:


oritmo ea previsibilidade;
o ritmo e a organização temporal;
oritmo ea continuidade psíquicas
oritmoe a integraçãodas polaridades;
o ritmo ea integração das polissensorialidades;
o ritmo ea lei materna;
oritmo eacriação artística como metáfora da subjetivação.

Oritmo eaprevisibilidade
Oritmo implica a repetição de uma experiência de forma cíclica
e com certo coeficiente de previsibilidade (que coincide com a
contribuição de Marcelli sobre os macrorritmos).

Ritmo vem de rei, da palavra grega ruthmos, abstraí


do doverbo ressignificando correr, que traduz oato de
fuir. Primitivamente assimiladoauma repetição, uma
pulsaçãocorresponderia àordem cósmica ou biológica,
78 A PROPÓSITO DO RITMO

marcada pelo retorno, o ritmo éentão o que volta o.


faz voltar. (Marcelli, 2000)

M.Granmmont (1967) define que o ritmo é"constituído pelo


retorno dos tempos marcados em intervalos teoricamente iguais"
Mas essa definição, que parece unilateralmente contínua, não deve
deixar de lado a ideia de que também a partir do ritmo se introduz
a descontinuidade, comoafirma Marcelli(2000) com oconceito de
microrritmos, com a introdução da surpresa e do inesperado por
meioda brincadeira de cócegas.
E este autor acrescenta:

Ligar e desligar, éno que se diferencia da cadência: o


ritmo éessencialmente um vínculo. O ritmo éo que liga e
religa, através do tempo, continuidade e corte/cisã, uma
temporalidade realizada, nãoapenas de repetições, mas
também de surpresas, de cadênciae de ruptura de cadên
cia. A essência do ritmo reside nessa tensão indefinivel
entre uma necessidade de regularidade/repetição e uma
espera de surpresa/assombro... (Marcelli, 2007, p. 124)

Neste ponto, éinteressante ter em conta as contribuições de


J. Laplanche em relação ao ritmo. Por exemplo,tomando como
referência a quase única citação de Freud sobre o tema do ritmo,
esse autor assinala que:

E necessário que o tempo linear se redobre em sua deri


vada(no sentido matemáticodo termo),que se redupli
que materialmente em ritmo, esse ritmo justamente da
interrupção e da ligação, doinstantâneo e daescuridão,
para tornar-se consciência de tempo. (1987, p. 113)
vÍcTOR GUERRA 79

J. Laplanche (1987), refletindosobre a citação de Freud em


"O problema econômico do masoquismo (1924), afirma:

Quando Freud se interroga sobre osignificado energético


do princ(pio do prazerjá não pode sustentar aconcepção,
Sustentada pela experiência, segundo a qual qualquer
desprazer corresponderia ao aumento de tensão e todo
prazer, àdiminuição...eque ofator decisivo a respeito
da sensaçãoé, provavelmente, a medida do aumento ou
redução em um período. Talvez seja oritmo, o ciclo
temporal das alterações, subidas equedas da quantidade
de excitação. (p. 70)

Areflexão de Freud, escassa, élimitada e não retomada; abre para


nósum campo muito fértil, pois contempla uma modificação da sua
teoria econfere valor central às oscilações temporárias organizadas
na vida psíquica de manira rítmica. E, finalmente, Laplanche (1987)
sustenta que o elemento essencial na percepção externa (sensoriali
dade)ou interna (prazer-desprazer) éo de um ritmo" (p. 71).
M.Gratier (2001) também destaca que oritmo: "Compreende a
repetição, mas épautado pelo que chamamos de 'ritmo expressivo
como dois músicos em processo de improviso
Essa autora fala também dos "ritmos da intimidade" (Gratier,
2007a), baseada em parte na musicalidade comunicativa do bebê,
estudada por autorescomo C. Trevarthene S. Malloch, que demons
trariam as competências perceptivas "musicais" notáveis do bebê.

Admite-se hoje em dia que obebê possui predisposições


comunicativas e "protomusicais` que sustentam simul
taneamente os vinculosde apego biológicos com amãe e
80 APROpÓSITO DO RITMO

0slacos com a cultura de origem, transmitida por meio


das palavras, dos cantos e dastécnicas do corpo da mãe
edos cuidadores. (Gratier, 2007, p. 72)
Amusicalidade comunicativa se definirá por três dimen-
sõesimportantes: 1) apulsação, que éa. SUcessão regular
de unidades comportamentais no tempo erepresenta um
processo de criação do futuro , permitindo que osujeito
antecipe os eventos que vira0, 2) a qualidade, constituido
pelos contornos degestos vOcais e corporais, que moldo
otempo no movimento, 3) a narratividade da exDeri.
Pncia individual do estar com, constituda a partir de
unidades dapulsação eda qualidade que se encontram
nos gestos cocriados e no modo como se inseren para
darforma às sequências afetivas eexpressivas. (Gratier
2007, p. 75)

Como ressalta a autora, essa articulação entre "ritmos de in


timidade e musicalidade comunicativa" se encontrano cerne
da constituição subjetiva do bebê, tanto no plano normal como
no patológico. Para este, seria necessário revisitar, por exemplo, a
experiência das canções de ninar e sua musicalidade desenvolvida
por M. Altmann e colaboradores, e a investigação de M. C. Laznik
eo projeto Preaut, sobre a detecção eo tratamento de bebês com
risco de autismo.

Oritmoea organização temporal


Oritmoenvolve uma forma de organização temporalda experienca
"Tenho meu ritmo para fazer as coisas")que possui estreita relaçao
com a intensidade (afetos vitais" de acordo com D. Stern, 1985).
vÍcTOR GUERRA 81

O ritmo é, sem dúvida, um elemento fundamental para a or


ganização temporal da experiência, jáque a repetição previsível
do vínculo edo estilo interativo marca para o bebe uma forma de
previsibilidade eantecipação que lhe concederia uma organização
temporal primária,oque D. Marcelli(2000) desenvolveu amplamente
com o conceito de "macrorritmo"
Essa vivência subjetiva de suma importância provavelmente se
inaugura nesses primeiros tempos de vida e continua ao longo da
existência, a pontode um dos grandes temas do encontromãe-bebê
e da relação com ooutro ser justamente a articulação dessa forma de
temporalidade interna (que osujeito enuncia como "ritmo próprio"
de fazer as coisas) com o ritmo ou temporalidade do outro.
Devemos recordar (e voltaremos a isso) que uma das maiores
"violências" que vive uma m¯e na dedicação de cuidado ao seu
bebêé que deve "sacrificar" sua própria temporalidade (externa
e interna) para se adequar ao ritmo temporal do seu bebê. Isso se
exemplifica na frase que muitas vezes escutamos nas consultas, em
que a mãe pode comentar:"jánão tenho tempo para mim... o bebê
transformou meu ritmo de vida
Sobre a relação entre ritmo e intensidade, Trevarthen (citado
por A. Alvarez, 1997) ressalta:

Como poderia a mente infantil identificar fisicamente


as pessoas? Que características de seu comportamento
funcionam como diagnóstico para elas? A conduta in
tencional tem certo número de caracteristicas que não
partilha com os seres inanimados...O movimento ina
nimado marcha para baixo, oscila, ricocheteia, mas não
se estende em impulsos autogerados. Qualquer coisa que
tenda para explosões ritmicas sem aparente motivação,
como oreflexo de uma mancha de luz solar, parece estar
82 A PROPÓSITO DO RITMO

viva. Essa vitalidade rítmica do movimento


éaprimeira
identificaçãode estar na companhia de seres vivos

Aproposição de Trevarthen com certeza é muito


interessante,
uma vez que aponta para um tema fundamentalda vida psiquica,
que é ointeresse que um bebèpode ter em relação ao animado.
aoinanimado. O autor fala de explosões ritmicase de uma mancha
de luz solar, o que me remete às contribuições de D. Stern
em
relaçãoao conceito de "afetosde vitalidade. Esse autor indica aye
existe toda uma gama de experiências do bebê e do ser humano
que évivenciada fora da linguagem discursiva, expressando-se em
termos dinâmicos, cinéticos, como "agitação,
"desvanecimento
progressivo" "fugaz, explosivo, crescendo, "decrescendo "es.
tourado dilatado etc. Noque diz respeito ao vínculo mãe-bebë.
expressam-se por meio da forma como ocontato se estabelece
por exemplo, a forma como a mãe levanta o bebê, troca as fraldas.
ofereceeamamadeira; o beb capta os afetos de
vitalidade com que
se realiza a ação.
Stern (1985) assinala:

Cada categoria de afeto éexperimentada em ao menos


duas dimensões sobre o que háacordo: a ativação e o
tom hedonista. A ativação se refere à intensidade ou
urgência do sentimento, enquanto o tom hedonista de
Signa a extensão em que o sentimento é agradável ou
desagradável. (p. 76)
Ele dá como exemploum ataque de
cólera ou de alegria, a per"
cepçãode uma torrente de luz, umaonda de
pela música etc., e diz: a qualidade sentida desentimentos evocados
mudanças semelhantes éo que eu denomino afetoqualquer uma dessas
da vitalidade (p. 77).
víCTOR GUERRA 83

Omusicólogo F.Scampinato (2007) cita M. Imberty (ilósofo,


musicólogo epsicólogo), que estudou as bases corporais da expres
sividade musical, integrando acontribuição de Stern sobre afetos
de vitalidade, e escreve:

Os afetos de vitalidade consistem em variações do perfil


de ativação ao longo do tempo, seriam mudanças esque
matizadas dentro do tempo...oestilo musical de um
autor não seria mais do que uma arquitetura de afetos
de vitalidade. (p. 91)

Então, poderíamos dizer que obebê, comoo músico,tem desde


o nascimento uma sensibilidade especial para se adequar ou não
àforma como são apresentados os afetos de vitalidade a partir do
encontrorítmico com o outro? E talvez esse seja também um dos
pontos de interrogação sobre o interesse de alguns "bebês com
risco de autismo que atendem e olham muito mais para objetos
inanimados que animados.

Oritmo ea continuidade psiquica


Oritmo seria, então, uma das primeiras formas de inscrição da
continuidade psíquica, um núcleo primário de identidade (iden
tidade rítmica).
A. Ciccone (2003, 2007) fala de várias funções do ritmo, em
particular a de ser basede segurança. Ele rastreia esse conceito desde
a etapa fetal, apoiando-se nas investigações de S. Maiello sobre os
"audiogramas, de natureza eminentemente ritmica.
S. Maiello (2013) sustenta que, com base em diferentes investi
gações e na experiència de observação de bebês pelo método Esther
84 A PROPÓSITO DO RITMO

Bick,épossivel postular ahipótese de que as experiências pré.


auditivas de caráter rítmico não ficariam inscritas na
memória como
algo neutro, mas estariamligadas aemoções. Ela afrma que esses
ritmos pr¿-natais formariam um proto-objeto interno
percebido
como bom, ou seja, confiável em sua continuidade. Afirma
diferentemente dos sons corporais rítmicos, que são contínuosque,e
impessoais, a voz materna percebida pelo bebêé descontin1la -
inconfundivelmente pessoal.
"Enquanto pessoa, a mãecomunica å criança, por meio do ve
lume, do timbre, da cadência e do ritmo de vOz, nã só 0S
aspectos
dasua personalidade, mas também as tlutuações dos seus estadoe
emotivos? Eela postula sua hipótese fundamental:

Minha hipótese éque avoz materna representa oprincipal


estímulo externo" para odesenvolvimento protomental
do bebé pré-natal. Averdadeira eprópria matéria-prima
em torno daqual se forma oproto-objeto interno que
denominei "objeto sonoro". (Maiello, 2013, p. 8)

Todas essas experiências estão inseridas no que um autor como


S. Missonnier (2007) denominou o primeiro capítulo da vida, com
a necessária nidificação fetal, bem como
parental.
Em relaçãoao papel da voz materna (comoo formulou D. Anzieu,
que fala de uma espécie de envelope sonoro), M. Imberty (2007)
assinala que a voz surge como mediadora dos momentos de encontro
e descoberta do bebê: "graças à sua melodia, ela tece
uma primeira
unidade; graças àsua entonação,ela organiza umaprimeira narra
tividade" (p. 17).
Essa forma de comunicação primária, por sua vez, é uma as
primeiras formas constitutivas da experiência de ser contido. Há anos,
G. Haag (1986) elaborou sua hipótese sobre "a estrutura rítmica o
vÍcTOR GUERRA 85

primeiro continente."Na substância primitiva comum ena identi


ficaçãocontinente/contido dos primeiros estados psíquicos, parece
que unna estrutura rítmica oscilante de natureza quase biológica
mantémo estadoprimitivo de autossensação'.
Afalha desse primeiro continente rítmico, por exemplo, pode
levar algumascrianças autistas adefesas muito peculiares.

Nesses estados primitivos, o último recurso, além dos


apegos sensoriais Ou muitas vezes combinado a eles, éa
manutenção de uma cinestesia por meio de balanceios
do corpo ou da cabeça, ou da agitaço rítmica do próprio
objeto que procura a sensação de sobrevivência. (Haag,
1986, p. 3)

O
ritmo ea integraçãodas polaridades
A possibilidade de vivenciar a experiência rítmica intersubjetiva
comoum continente, que gera a sensação de continuidade psíquica
estruturante, depende de múltiplos fatores que desenvolveremos
aos poucos. Um deles, fundamental, éa possibilidade de integrar
experiências aparentemente opostas. Devemos recordar, juntocom
as contribuições de A. Ciccone (2007), que uma das primeiras for
mas de ritmicidade no encontro com o outroéa alternância entre
a busca doobjeto ea retirada narcisista. O bebê saide si mesmo em
busca de interação,depois se retraisobre si mesmo como forma de
metabolização da experiência.
Mas esse fenômeno de ida e volta, de alternância, se enraíza
na experiência corporal. Então, oritmo éuma forma de integrar
alternncias e opostos, o que implica tambémo valor fundante da
descontinuidade.
86 A PROPÓSITO DO RITMO

movi.
F Tustin (1996) fala do ritmo(de segurança)como um fortes
regulada de elementos
mento ou estruturacom umasucessão
diferentes". Aparentemente, um ritmo
efracos, de estados opostos ou
que ultrapasse os limites
regulado - ou seja, um ritmocompartilhado
autocentradas - assegura
exclusivamente
das práticas restritivas experimentarem em conjunto com
possibilidade de os contrários se
se modificar etransformar entre si. Assim
segurança, porquepodem criador.
nasce um intercâmbio
interessante de Tustinretoma caminhos di
Essa perspectiva concei.
interrogam a clínica e a própria vida. De sua
ferentes que
tomarei dois elementos: a superação do ritmo
tuação do ritmo,
possibilidade de que os contrários se experimentem
autocentrado e a
juntos com segurança.
autora sugere entãoque parece necessario o ritmo superar
Essa
autocentrada (encerramento narcisista)e se abrir em
experiência
a
poderíamos supor que, em parte,
um ritmo compartilhado. Portanto,
compartilhado seja uma condição para a instauração de
esse ritmno
relação objetal, bem como deum acesso àintersubjetividade?
uma
também, essa ideia da possibilidadede que os contrários se ex
E,
juntos poderia implicar, em termos freudianos, uma
perimentem
forma de intricação pulsional?
concordância que pode existir
Emuito interessante constatar a
jáque, por exemplo, N. Abraham
entre diferentes perspectivas teóricas,caracteriza a fusão` com amãe,
(1987)afirma que háum ritmoque
busca de um ritmo regular com repetição da mesma estrutura
e que a
maneira letal.
Corresponderia ao desejo de fusãototal, mas de
Isso nos leva a pensar nas contribuições de
Freud (1920) em
retorno do igual; ou seja,
relação àpulsão de morte como eterno
outro, que não se abre ao novo, a
um ritmo que não se abre ao
forma de "narcisismo
Surpresa doencontro, levariaosujeitoa uma
tanático" (Garbarino, 1986).
vÍcTOR GUERRA 87

Osriscos de um ritmoidentico
K. Nassikas (2011)evoca um exemplo históricodo ritmo idêntico
como experiência humana dessubjetivizante com oritmo do tambor
por V. Klemperer em Alingua do II Reich. Segundo esse autor,
os nazistascriaram uma "língua, para abolir a experiência social
anterior ao nazismo e, assim, pautar uma subjetivação baseada na
aniquilaço da diferença.
K.Nassikas (2011) cita V. Klemperer,que descreve aexperiência
de observar um desfile militar nazista em 1932 com o passo militar
rítmico, idêntico, ao ritmo do tambor:

A tropainteira dava a impressão de ausência de vida


individual. Não podia entender o mistério dessa cena,
porque só formava um suporte sobre oqual se desdobrava
a única figuraque dominava e que me dominava: o ritmo
dotambor... a lingua do III Reich se impunha a todos
nós presentes. (p. 7)

transforma
Otambor eo ritmo que emitia mostrariam a terrível
sem
ção de todos os sujeitos da tropaem elementosde uma máquina
totalitarismo do III Reich.
alma, em expressão deuma língua: a do

A lingua do IIIReich buscafazer oindivíduo perder


Sua essència individual, anestesiar sua personalidade,
transformá-loem algo sem pensamento próprio, sem
vontade, que se sinta apenas um átomo em un bloco
de pedra que rola... Pareceria que a massificação do
idêentico, apartir do ritmo repetitivo do tambor e do
desfile da tropa, tinhaoobjetivo de limitar, ouantes, de
88 A PROPÓSITO DO RITMO

destruir as capacidades mentais de ligação dominadas


por vínculos linguísticos. (p. 8)

asseverava que a impor


Em oposição atudo isso, N. Abraham
poderia responder ao desejo
tância de pensar um ritmo "impar" ingo
separação, de discriminação. Tratar-se-ia, então, de um
de "mesmo" e o "diferente, entre od
entre o
permanente e estruturante
papel do outro é
conhecido e osurpreendente (inédito), no qual o
subjetivante, na medida em que
parte fundamental da experiência
do bebê.
possarespeitar o ritmopróprio
bebês e suas
Comodiz M. Imberty (2007), "a relação entre os
e sobre a
mães se ritma sobre aregularidade da pulsação repetitiva
novidade da variação` (p. 17).
Por isso,éimportante voltar àdefinição de ritmo, segundo aqual
essenciais. V. Beldent
a variação e a descontinuidade surgem como
(2014)se questiona: o que éo ritmo ?O tique-taque do pêndulo,
tão monótono queo convertemos em um tique-taque? O um,dois,
três da valsa oude um poema? Chega àconclusão de que sim,
sem dúvida, mas se trata de ritmos mecânicos ou de medidas. Um
único ritmo dissipado que introduza a irregularidade, a diferença
na repetição, que se oponha à medida, consegue incentivar e gerar
movimento. E os ritmos vivos ligadosàs batidas do nosso coração,
ànossa respiração, à nossa marcha, esses primeiros ritmos que nos
põem em movimento, são feitos de irregularidades esuperposiçóes.
Sobre o ritmo,Pierre Sauvanet identifica umacentena de definições.
Um leitmotiv retorna, insistindo: movimento ao qual se acrescenta
estrutura (nosso ritmo ternário) eperiodicidade (o ritmo cardíaco).
C.Athanassiou (1998) assinala algo muito interessante: o para
doxo de todo ritmo éconstituir uma linha de continuidade através da
descontinuidade repetitivaque o constitui. Na verdade, a inserçáoae
uma descontinuidade suscita um estado de ruptura que afetaem nós
vÍcTOR GUERRA 89

osfundamentos de um sentido de continuidade identitária. Desde


já, observamos aqui quea aliança entre a diviso e a ruptura, entre
dois opostos dessa ordem, provoca uma nova criação: um vínculo
ou um efeito de relaço. Obeb se apega aesse vínculo ao perceber
osurginmento de seus ritmos internos bem como os de seu objeto,
herdeiros de suas percepções uterinas. Aautora sepergunta: é ne
cessário se instalar uma descontinuidade para o ser vivo perceber
acontinuidade?

Ocomentário dessa autoraé muitorico e aberto, uma vez que


nesse par dialético, senma articulação da descontinuidade, avivência
da continuidade estruturante não existe. Mas aquestão que quero
ressaltar é que se refere a uma forma de estruturar triádica. Não se
trata de continuidade-descontinuidade, mas do papel do entre-dois.
Surge dentro do "entre-dois" uma nova criação que ela chama de
efeito de ligação, eéaí que o bebêvai se agarrar. C. Athanassiou
abreo conceito do "entre-dois" como experiência criativa, que se
relacionaevidentemente com oespaço transicional. Podemos pensar,
por exemplo, que esse entre-dois' se prefigura pelas diferenças,
pelas ausências de resposta, jápresentes dentro da continuidade das
primeiras formas do outro maternal e que pernmitem ao bebê viver
aexperiência criativa de criação do objeto.

Oritmoeaintegração das polissensorialidades


Na atualidade, poderíamos dizer que há certo acordo entre teóricos
de diferentes perspectivas que pensam que o bebê vemao mun
outro.
do com a potencialidade de interaço comunicativa com o
Provavelmente, isso tem alguma forma de relação com toda uma
série de descobertas no campo da psicologia do desenvolvinmento
(em particular, a partir de B. Brazelton)sobre a disposição do beb
para interagir. Essa potencialidade comunicativa do beb, como
90 A PROPÓSITO DO RITMO

disse Trevarthen eo
uma forma de apetitede sociabilidade', como
Sua sensibilidade rítmica
encena no teatro de seu própriocorpo, em
polissensorialidades.
e na importância das
perspectiva psicanalítica, a experiência de observacio
A partir da contribuição funda.
método Esther Bick (1964)é uma
de bebês pelo polissensorialidades
campo das
mental para podermos pesquisar esse mostrou aimportância d.
trabalho pioneirode 1967, Bick
Em seu bebês observados.
dos
observar as preferências sensoriais
pós-kleinianas, a sensorialidade
A partir das contribuições
preponderância, com autores como D
vem cobrando um papel de autistas.
crianças
MeltzereE Tustin, no campodo trabalh0 com
contribuições sobre o que ele
e também graçasa T. Ogden e suas
articulação da
denomina "posição autista-contígua, em que a
sensorialidade e o ritmo são fatores prioritários de construção
subjetiva e abordagem analítica.
senso
B. Golse contribuiucom umasérie de ideias em relação à
rialidade, a partir da alternância do mantelamento-desmantelamento
bebê. Ele ressalta
e de sua relação com os processos de cuidado ao
que, a partir da experiência que Meltzer já descrevera de atração
consensual máxima, durante a alimentação ao seio, o bebê teria a
oportunidade de viver uma experiência de integração das polissen
sorialidades que se organizam apartir do ato da amamentação, dos
cuidados e do ritmo que estabelece com a mãe.
EB.Golse (2006) insiste na importância dos precursores corpo
rais da linguagem, porque: cada modalidade sensorial reconhece
uma organização rítmica compatível com outras modalidades sen
,compatibilidade que deveria resultar de uma harmoniza
ção, ou sintonização progressiva das interações (é essa noção de
Compatibilidade rítmica que nos permite, numa escuta musical,
compreender os diferentes instrumentos simultaneamente e dis
tingui-los dosoutros)"
vÍcTOR GUERRA 91

Opróprio Golse correlaciona a relação


as modalidades sensoriais com a
existente entre o bebê e
escuta musical.
Como temos asseveradoneste trabalho, muitas
vezes os artistas
nos fornecem pistas sobre essas mesmas
experiências no que diz
respeito aos proceSsOS de criação. E por isso que afirmamos que há
umafertilidade mútuae variados níveis de
correspondncia entre
o que aobservação e ateorização da subjetivação do bebê nos dão
eos processos de criaçãodos artistas.
Por exenplo, opoeta Amado Alonso (1986) nos ofereceu uma
frase muito interessante sobre a função do ritmo na poesia em
relação à polissensorialidade.

O ritnoé de natureza emocional e há de se considerá-lo


um produtor. Mas oritmo nãoémera descarga edesague
daemoção, éestrutura. Diríamosque oritmo éo prazer
de ir organizando pouco a pouco no tempo elementos
sensiveis sensorialmente perceptíveis. Oprazer de criar
umaestrutura. (p. 122)

Poderíamos fazer dialogar essa frase sobre o papel do ritmo


na criação de um poema com a subjetivação do bebè: como no
poema, o ritmo que cocriam amãe e o bebê faz parte do prazer de
ir organizando a temporalidade e as polissensorialidades do bebè
¬, dessa forma, se coconstrÑi parte da estrutura psiquica do bebè.
Devemos recordar as contribuições de autores como D, Houzel
(2011), B. Golse (201 la)e J. Larban Vera (2013), no que diz respeito
auma das tarefas fundamentais do beb, que éorganizar e coorde
nar seus diferentes fluxOs sensoriais e, para isso, e tundanmental o
encontro rítmico, de atenção e narrativo cOm o ouro.
Partimos da base de uma sensorialidade inata do beb que une
ointerior eo exterior por intermédiodos órgåos sensoriais e das
92 A PROPÓSITO DO RITMO

excitações que recebem egeram sensações nele (Granjon, 1990). Essa


sensorialidade primitiva configuraria fluxOS Sensoriais (Houzel, 2011)
diferenciadas.
a princípio indiferenciados. As excitações se tornarão papel
meio do
coordenadas e integradas, entre outras coisas, por
subjetivante, que, ao refleti-las, espelhá-las e traduzi-las.
do outro
conjunta" no vínculo.
possibilitaráque se gere uma ritmicidade
polissensoriali
Ritmo que funcionarácomo organizador das ditas
dades (Golse, 2011a).
do encontro com o
Segundoessa perspectiva, a ritmicidade
que possibilitaria.
outro (intersubjetividade) seria um dos fatores
vivência de integração do
juntamente com osrecursos próprios, a
self (subjetivaço).
contribuiçõesnotáveis sobre
Por sua vez, G. Haag (1990) fez
autistas:
este ponto em relação às crianças

Como podemos compreender que os extremos se juntam


noautismo em relação ao vaivém apoiado nas trocas
ritmicas que permitem modular todos os registros sen
soriais, inclusive a cinestesia, portanto, incluindoo tom
eamotricidade? A hipótese que postulo eque não foi
formulada tão enfaticamente por Tustin é que frequen
temente, em virtude de experiências pré-natais, para
muitas crianças futuramente autistas, as ritmicidades,
especialmenteas motoras e, entre elas, as de cantoe
dança, foram perturbadas inicialmente, e alguns bebês
futuramente autistas, em especial, por exemplo, os que
nasceram anoréxicos, ficaram tensionados eaprisionados,
perdendo sua primeira ritmicidade. (p. 89)

Essa autora nos mostra em sua vasta experiência de trabalho


Com crianças autistas que, para ela, uma função possível doritmoe
vícTOR GUERRA 93

modular todos os registros sensoriais, e que uma falha na instauração


da ritmicidade (quer concordemos ou não sobre acausa desta) marca
uma forma de disritmia potencialmentepatogênica.

Oritmoea lei naterna

Oritmo, como o vimos progressivamente concebendo, seria um


dosprimeiros organizadores do encontro intersubjetivo, base do
advento do bebê como ser humano. Mãe-bebê, pai-bebê formam
paulatinamente um ritmoem comum, como música necessária e
fundante da dança da subjetivação. Dança que tem comno instrumento
central a comunicação e a linguagem corporal.
H. Meschonnic (2009) nos lembra o papel decisivo do corpo:
"Éo corpo que fala. Um gesto, uma postura, uma expressão parti
cular, unma mímica, uma vOz, uma entonação, sejam quais forem as
variáveis. Falamos com as mãos, como rosto.
E essa comunicação básica, parte do necessário "compartilhar
estético e emocional (Roussillon, 2004), habilitaráas primeiras
formas de "simbolização em presença" (Roussillon, 2010). Experiência
fundante que possibilitará a elaboração da ausência e o acesso à
representação do objeto.
Mas essa experiência rítmica subjetivante é também a possibi
lidade de criar uma língua própria. Uma língua primária, território
do in-fans que Pontalis (1979) relatara e que precede a "tirania das
palavras, da qual somos exilados (Gómez Mango) e àqual retor
namos, por exemplo, na experiência do amor, da paixão, da arte, da
análise e do contato com um bebê.

Esse ritno em conmumque chamamos de "ritmicidade conjunta


pulsaráospares dialéticos presença-ausência, continuidade-descon
tinuidade, articulados com apalavra, como o expressa a escritora
94 A PROPÓSITO DO RITMO

S. Hustvedt (200 1, p. 124): "Nãose pode ter presença sem ausência e


a própria linguagem nasce desse ritmo. As palavras podem interpelar
entre
o que falta. Onde habitam as palavras senão numa zona situada
'entre-idade"
presença e ausência? Uma zonade
do ritmono
A palavra aparece como companheira inseparável
processo de subjetivação. "Nascemos para a vida psíquica" (Ciccone.
2007) em um encontro de ritmoS que se abre para a significacão
nascente da palavra.
Dessa forma, a função de cocriação de um ritmo seria uma
função materna fundamental, base dos processos de subjetivação.
Poderíamos englobar isso sob oconceito de lei materna, que seria o
quarto elemento do ritmo?A mãe, ao colocar emjogo seus recursos
rítmicos, transforma a angústia do bebêpor meio da cocriação
(simbolização) de um novo ritmo com o bebê.
Ao falar de lei materna, não me refiro àancoragem de uma
perspectiva estruturalista, mas àideia de princípios organizadores
do encontrocom consequências na estruturaçãopsíquica do infans.
Mas gostaria também de sublinhar o papel de René Roussillon
(1991), jáque foi o primeiro a falar do conceito de "lei materna": no
seu livro Paradoxos esituações limites da psicanálise, ao dedicar a sua
elaboração aos conceitos de ritmo e ritmo compatível, transmite o
conceito deque, se houvesse uma lei materna, ela seria ado respeito
pelo ritmo do sujeito (bebê).
Nessa obra, ele realiza uma análise notável do ritmo na vida
psiquicae na obra de Freud, especialmente no "Projeto de uma
psicologia para neurologistas'", com o conceitode "período". Ao falar
do trauma psíquico, diz que "o traumatismo psíquico, a dor, serd
pensável como fracasso dessa solução de socorro. Sua figura tipica
éa disritmia". Assim, evoca uma possível"lei do ritmobiológico e
escreve oseguinte: "Poderíamos antecipar que se trata da lei materna
lei do respeito ao ritmo própriotão ausente nas patologias narcisistas':
vícTOR GUERRA 95

E insiste empensar: "otraumatismo como efeito de uma disritmia,


do nãorespeito àlei bilógica, ao ritmo próprio do sujeito"
Opróprio Roussillon (1991) nos dáuma pista ao falar da apro
priação egoica por parte da criança e afirma que o ritmo próprio
da criança, o respeito ao seu tempo, éo que vem sustentar essa
apropriação egoica. Diante de um ritno rápido demais, a criança
se sentirá despossuída, liquefeita, inconsistente, confrontada com a
angústia de esvaziamento, de evacuação, poderia então transtorná -la
sobre si numa defesa paradoxal, em vez de pensá-la. Diante de um
ritmolento demais, a experiência perderásentido,valor e vida, e o
objeto intermediário se perderána noite do tempo, mobilizando as
angústias de perda de objeto e de abandono.
Seique falar de lei materna éumaquestão polêmica, mas consi
deroque uma forma de fazê-lo seja pela via de processos empáticos,
funcionamento
de regulação (como toda lei faz) de algum aspecto do
outros. E a "lei
dosujeito, para possibilitar a convivência com os
materna do encontro, para mim, éum princípio organizador da
vida afetiva, como bebecomo sujeitonascente que, muitas vezes,
encontra-se gravemente distorcido naspatologias precoces.
Por isso, retomando esses conceitos comoponto de inspiração,
proponho a hipótese segundo a qual a "lei materna" se forma por
ao menos três elementos:

respeito pelo ritmo próprio do sujeito (adequação aos tempos


do bebê) ecocriação de um ritmo comum;
espelhamento, tradução e transformação das suas vivÁncias
afetivas;
abertura àpalavra,ao jogo e àterceiridade.
dinâmica de
Esses três elementos, junto a outros, estariam na
um encontroestruturante, fonte também da gestação dos processos
de simbolização, a partir de uma perspectiva intersubjetiva. Eles
seriam parte do que poderíamos denominar "trabalhoem presença:

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