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Multiarte:

conectando linguagens

Todas as artes se mesclam e como nós já falamos mais


cedo, a arte, ela é um reflexo da realidade atual. E isso, isso
sempre, praticamente sempre. Claro que o que a gente
chama hoje de arte plástica, arte barroca, arte romântica,
arte pós-romântica, arte impressionista, arte expressionis-
ta, arte neoclassicista, isso tudo é de acordo com a época
que essa arte foi criada, mas no fundo, no momento que
essa arte foi criada, ela foi um reflexo da realidade. E acon-
tece que a primeira arte, que mais de imediato relata a rea-
lidade, sem dúvida é a literatura.

Os escritores são os primeiros que captam mais diretamen-


te os temas centrais de uma sociedade atual, portanto, da
realidade daquela sociedade. Depois, talvez venham as
artes ilustrativas, a pintura, o desenho e etc. Obviamente
hoje nós temos cinema né, que é uma arte relativamente
nova mas que relata de uma forma muito imediata também
a realidade da nossa sociedade. A música geralmente vem
como temporão depois disso, porque na música as expres-
sões são mais demoradas a serem definidas.

Talvez os músicos, os artistas, falamos também dos compo-


sitores, a gente está falando antes de mais nada da arte da
criação da música porque aqui nós já abordamos dois as-
pectos da arte da música, que é a arte de compor e a arte
de interpretar, a arte de apresentar a música porque a
música é a única que depende de um intermediador. O es-
critor escreve um livro e o público dele lê diretamente o
que ele escreveu, o pintor pinta o quadro e expõe aquele
quadro e ele é o mesmo quadro de sempre, de anos atrás e
com a música não é assim, a música pode ser... A mesma
música pode ser interpretada de formas diferentes depen-
dendo da época em que ela está sendo interpretada.

Por isso talvez, é a grande força popular da música, porque


a música consegue captar as emoções como nenhuma
outra arte. Acho que Nietzsche definiu bem quando disse
que “A vida sem a música seria um erro”, não faria sentido.
Alguns falam que a música é a língua dos anjos, enfim, a
música é sempre associada com algo, um pouco até sobre-
natural. Mas como todas as artes têm como ponto em
comum o retrato da realidade, as artes facilmente conver-
sam entre si.

É muito interessante perceber como, por exemplo, dois re-


presentantes de artes diferentes falam sobre o mesmo
tema, com as mesmas palavras. Se você, por exemplo, colo-
car um compositor impressionista para falar com um escri-
tor impressionista, eles vão falar das mesmas coisas e eles
vão falar com as mesmas palavras porque eles têm as
mesmas percepções do mundo. E isso no fundo se trata de
percepção do mundo, de como você entende o mundo,
como o mundo te impacta.
Então por mais que sejam duas artes, uma literatura, outra
a música, o tema principal é o mesmo, que é justamente os
conflitos e as questões, na grande maioria, sociais, ou
então... Aí a gente vai entrar numa conversa de quantos
tipos de arte tem no sentido de relato, alguns relatam da
sociedade, existe arte para entretenimento, existe a arte
sacra que é a arte religiosa, mas esses são outro temas que
talvez em uma outra oportunidade a gente pode falar, mas
em princípio, a arte traduz os anseios, os conflitos e as
questões de uma sociedade como um todo ou de um
grande grupo de pessoas ou de um país, aí, por exemplos,
temos as situações peculiares de cada país que é também
um tema super interessante mas sem dúvida por causa
desse ponto de partida, esse ponto de inspiração vamos
dizer assim, de cada criador, de cada tipo de criador de
arte, ela, a arte dialoga... as artes dialogam entre si com
muita naturalidade.

Falamos agora há pouco sobre cinema e o cinema é talvez


o maior exemplo de tudo isso porque ali nós temos um
teatro, talvez, uma cena de teatro, duas pessoas, nós temos
a trilha sonora, nós temos a iluminação, nós temos a
imagem, nós temos a tecnologia. Enfim, o cinema é talvez
é o grande representante desse diálogo entre vários de
arte, existe cinema onde tem dança.. enfim, cinema onde
tem mais música que diálogo, existe o teatro musical que
talvez seja o fundamento disso, que é também o grande re-
presentante da fusão das artes. Você tem o roteiro, então
você tem o texto, você tem a dança, você tem música e
você tem o teatro.
A ópera também é um... talvez seja o primeiro exemplo de
fusão entre as duas artes, entre duas grandes artes que são
o teatro e a música. Que a ópera nada mais é que uma
novela musicalizada, digamos assim. As tramas que são de-
senvolvidas nas óperas não são muito diferentes das nove-
las que vemos hoje em dia, que também tem trilha sonora,
que também tem, por vezes, dança, tem cenas de dança,
tem cenas mais coletivas, tem cenas mais camerísticas,
mas sem dúvida a fusão da arte sempre funciona para uma
fortalecer a expressão da outra, para uma acentuar a ex-
pressão da outra.

Na Rio Art Orquestra já tivemos esse tipo de experiência,


aliás, nessa orquestra, a gente teve algumas experiências
interessantíssimas de fusão de arte que foi com cenas de...
cenas documentais, aliás, até onde eu me lembro. Cenas
documentais que nós fazíamos como se fosse uma trilha ao
vivo. Recentemente eu participei também de um projeto da
minha orquestra, a Orquestra Sinfônica Brasileira, onde eu
trabalho, onde a gente apresentou a trilha inteira do filme
Guerra nas Estrelas ao vivo, com o filme sendo projetado
por trás.

A trilha toda do filme, a trilha foi projetada completa e o


filme todo estava sendo apresentado ao vivo. Isso é justa-
mente para potencializar a percepção do papel das músi-
cas naquelas cenas. A gente falou agora há pouco do Hit-
chcock, é exatamente a mesma lógica, uma arte, um tipo
de arte complementa a outra porque no final se trata tudo
da mesma coisa, só que os meios são outros. Os meios ar-
tísticos musicais são outros dos meios artísticos teatrais,
mas o fim é o mesmo, que é um ponto de vista pessoal de
um criador que decidiu discutir temas relevantes do meio
em que ele vive.

Multiartes, multilinguagens... Eu sou a pessoa com quem


conversar sobre isso porque vocês já perceberam no meu
sotaque que eu não sou brasileira. Eu sou uma americario-
ca louca, americana, amerolatina, afro-sei lá o quê. Então
eu acho que eu sou o corpo dessas linguagens musicais
tanto linguais. Eu pessoalmente uso música para comuni-
car emoção. Cada artista tem uma missão diferente, mas
para mim é isso. A gente trabalha com emoção, a emoção
da pessoa é um serviço público, eu acredito com toda fibra
da minha pessoa que eu sou uma servidora pública de
emoção humana. Mas isso envolve linguagem e comunica-
ção. E se a gente não entende o processo de cada parte da
comunicação que a música pode fazer para gente , que a
dança pode fazer para gente, como conhecer o diretor mu-
sical, o líder de orquestra, como Rio Art Orquestra, se a
gente não entende dessas coisas a gente não vai conseguir
acessar as linguagens.

Dentro do Rio Art Orquestra a gente trabalha com diversas


linguagens, a gente fala de improviso, de composição, de
como a gente improvisa juntos, quais são ... diversas meto-
dologias, como a gente pode compor juntos no momento,
na liberdade da espontaneidade, mas falar sobre as lingua-
gens em si, elas são muito didáticas.

O improviso tem um caminho que cada um pega e cada um


começa a se acostumar e repetir, e isso é muito importante:
linguagem precisa de repetição, eu sei porque eu aprendi
português gente, amém a Deus, porque não foi fácil, eu
tenho que repetir muitas vezes “não, sim, não” para conse-
guir o tipo de pronúncia necessária. Na música é igualzi-
nho, se eu vou tocar uma nota (som de notas) essas três
vezes não foram iguais. Não foi igual.
Foi diferente cada vez, por causa de que? Dinâmica. Dinâ-
mica e linguagens andam mão a mão. O que é dinâmica?
Uma palavra que pode significar muitas coisas, a gente usa
na física, a gente usa na ciência e a gente usa na música. Há
gamas de dinâmicas, significa o quê? O mais baixinho para
o mais explosivo. A gente tem uma curva muito grande
para isso e cada curva pertence a cada músico, a gente não
tem uma escala perfeita, correta que esse é o mais baixo,
esse é o mais médio e esse é o mais alto. Não existe essa
escala.

A gente só tem anotações que falam “pianissíssimo”,


pianíssimo, piano, mezzo piano, mezzo forte, forte, fortíssi-
mo e “fortissíssimo”. Só isso. E ela pode ser interpretada da
forma que seu grupo interpreta, no RAO a gente interpreta
ela através do nosso maestro Mike Ryan, ele que vai deter-
minar o que é pianissíssimo, no RAO, entendeu? Então a di-
nâmica e a linguagem são muito importantes, porque como
orquestra a gente vai diminuir juntos e a gente vai crescer
juntos, a gente vai improvisar juntos e a gente vai improvi-
sar diferente. A gente vai dançar, cantar, improvisar e “dina-
micar” juntos, e a gente ainda vai tentar pegar essa energia
da plateia e envolvermos dentro disso um pouquinho dessa
linguagem para eles, mas são multilinguagens.
A gente está falando de improviso, composição, risco, es-
pontaneidade, “fisicalidade” e dinâmica. Quando a gente
entende disso, a gente entende que as artes são infinitas e
a gente está em constante construção. Nós somos pessoas
teóricas, então a gente está aberto a novidades, as coisas
novas que vão vir, aos pensamentos novos que vão vir, aos
tons, aos sons, aos volumes que vão vir. Tudo isso vai ser de
novo para gente, porque a gente não conseguiu uma ano-
tação perfeita, que escreve a cada microrritmo, que você
consegue fazer com pandeiro, por exemplo. Não existe
anotação para o pandeiro perfeita, que faz aquele *imitan-
do o som do pandeiro*, não tem. A gente modifica o que a
gente tem, as ferramentas que a gente tem para poder
botar numa linguagem razoável para alguém aprender ra-
zoavelmente um instrumento. Isso serve para todos os ins-
trumentos. Estamos ainda em teoria, estamos ainda em
construção das nossas linguagens artísticas.

O trabalho que eu executei com a RAO foi um trabalho que


teve muita relação multiarte, basicamente todo ele, porque
meu trabalho era de intérprete bailarina, eu estava traba-
lhando com músicos de uma orquestra ao vivo e passando
ainda um sentido que era o que tinha sido bolado pelo
Mike. Então ali, nesse trabalho eu tive que conhecer o tra-
balho dos músicos, saber o que eles iam fazer na hora, no
momento e também o sentido que o Mike queria passar e
ainda a minha dança que era improviso, por mais que hou-
vesse uma mensagem, que houvesse uma música, que hou-
vesse toda uma questão já pré programada, a coreografia
não existia, tinha que fazer na hora.
Então teve uma grande relação com todas as artes envolvi-
das aí com a própria música, com a interpretação, com a
dança, com o improviso. Isso foi muito importante na hora
de montar isso, toda essa integração com tudo isso que
aconteceu, com essas artes unidas é que eu consegui tra-
duzir no meu corpo a mensagem que o Mike queria passar
e fazer um espetáculo a partir disso.
E nos espetáculos da RAO não existem músicos separados
ou bailarinas separadas, um tá lá em função do outro, todo
mundo com a mesma finalidade, participando do mesmo
espetáculo e com o mesmo grau de importância. A bailari-
na interage com os músicos, os músicos interagem com a
bailarina e todos fazem uma só mensagem para passar
para o público.

Não existe você ir para um espetáculo da RAO esperando


ver apenas os músicos e ter uma bailarina para fazer uma
“ponta”. Tudo é convertido em função da mensagem que a
gente quer passar, é uma integração artística além de uma
multiarte, é uma integração, é um coexistindo com o outro,
conhecendo o trabalho do outro, interpretando a mensa-
gem com o outro e utilizando dos meios que o outro
estuda e executa para fazer o seu. Então é tudo convertido
numa coisa só que é a passagem da mensagem artística.
Multiarte é usar combinações de expressões artísticas con-
trastantes. Há dois anos atrás, em Montreal, eu apresentei
uma peça chamada “O Dilema de Feliciano”, foi maravilho-
so. Feliciano foi um brasileiro que me ligou às quatro horas
da madrugada na Austrália, é uma história interessante.

Nessa apresentação em Montreal eu usei as imagens de


de Alice Kohler de índios do interior do Brasil, imagens
lindas. Ela é famosa, gente boa, morou com os índios, ficou
quatro meses morando, amando, respeitando eles. E ela
liberou, até hoje, suas fotos para eu usar nas minhas produ-
ções. Eu usei também as coisas que vocês vão ouvir, sentir,
reagir sensorialmente, em dezembro, na nossa apresenta-
ção do Rio Art Orquestra, RAO, RAO, RAO. Não pude resis-
tir...

Então você vai ver essas coisas, você vai ouvir e ver o movi-
mento da Alma (Thomas) em uma peça chamada "Eu Amo
Minha Múmia”. Vou usar sons, estilos de músicas diferentes,
movimentos que refletem estilos de dança como ballet,
movimentos de funk carioca, coisas contrastantes e mul-
tiarte de movimentos corporal, coisas concretas como ima-
gens. Isso é uma coisa interessante, como sou um pesqui-
sador, o "etnomusicólogo" é um pesquisador de música do
mundo, sempre com respeito às culturas e às coisas, os
limites de uso das coisas. Usei muita coisa, muitas imagens,
muitos estilos de movimento.

Em dezembro, em "Coletando Nuvens" eu dediquei para as


freiras católicas, que fizeram minha avalição como "bonzi-
nho" quando criança. Eu uso os sons dos indígenas da Aus-
trália, os aborígenes, os sons do didgeridoo.

Essas coisas interessantes, eu uso esses sons e imitei os


sons os aborígenes tocando, eles usam respiração circular.
Como se diz whale (baleia)? Esse bicho do mar que tem um
buraco na cabeça, eu tentei vibrar e não consegui, fazer
som sem respirar, fazer o som parando, você precisa engo-
lir o ar e vibrar, não consegui. Mas você vai ouvir isso, é inte-
ressante. O que eu fiz para botar esse som do didgeridoo e
os cantos dos indígenas, eu gastei dinheiro, paguei as via-
gens, hotéis para eles? Não! Eu não teria essas condições,
mas existem gravações que você tem permissão para usar.
Os artistas disponibilizam seus trabalhos, por exemplo,
como Alice Kohler disponibilizou suas imagens para "O
Dilema de Feliciano".

O mais importante, os sons da sua, você vai ouvir como eu


uso esses sons que existem no seu mundo, no dia a dia, e
você pode até gravar de seu celular. Eu tenho uma dessas
montagens de sons de multimídia, gravações que eu fiz no
nordeste do Brasil, como pesquisador, coisas que eu gravei
com permissão e uso. Essas viúvas em um Quilombo, em
Belo Horizonte, o som das viúvas que cantam na rua para
pessoas, a família que já morreu, os maridos, essas coisas
que eu boto com permissão; essas gravações de futebol,
essas coisas que eu uso.
Mas tem coisas imediatas, eu gravei na Conde de Lages
(rua da Lapa, RJ) uma mulher vendendo sardinha. Eu
lembro! Eu morei vinte anos nesse lugar, isso é interessan-
te... “Vinte laranjas, um real, vinte laranjas um real”. Isso foi
em 2000. Eu introduzi essa coisa de multimídia dentro da
realidade dos vendedores da feira da minha rua, então co-
mecei a interagir com eles enquanto estavam trabalhando.

Isso é multimídia na vida real, como uma composição na


rua em tempo real. Toda quinta feira faço as compras, e
começo assim: “Vinte laranjas, um real, vinte laranjas, um
real!”, e algum vendedor, que também estava há 20 anos
“Vinte laranjas, um real, vinte, laranjas um real”. Man, isso é
bom demais! Então a coisa cresce, eu introduzi uma lem-
brança para provocar e foi bom porque virou uma compo-
sição coletiva.

Então nessa rua tem pessoas ligadas aos vendedores e


ligadas aos compradores, aos consumidores. Foi ali que eu
fiz uma composição, eu iniciei uma atividade que foi uma
composição em tempo real, usando multimídia do passado,
de coisas do passado. Isso é importante. Então brincamos
e aí começa a criatividade: “Vinte laranjas, dez reais, vinte
laranjas, vinte reais!” As pessoas começaram a brincar can-
tando!

Quando eu entro na rua, sempre às quintas feiras, às sete e


meia para pegar as mangas, (manga na Austrália é uma for-
tuna, eu amo manga demais!), entao eu já pego as boas
mangas e começo a brincadeira. Na hora que as pessoas
me veem, eu começo "uauauá" - o vendedor do “Vinte la-
ranjas, um real” sempre começava com esse som para atrair
a atenção. Então quando eu chego na rua, eu tô ligado às
pessoas da rua e brincamos!

Se alguém tem medo ou está triste por causa do coronaví-


rus, começa uma loucura. Artisticamente, usando multimí-
dia no tempo real no seu contexto, você pode instigar e
pode provocar, é um risco... ou não. Para você calcular qual
é o risco, alguém pode dizer : "Eu não gostei, meu tio
morreu, não canta isso!", mas tudo na vida é um risco.
Quando você entra em um contexto, conscientemente ou
de propósito, tudo que fazemos na vida é um risco. Eu
estou falando isso porque se você parar para pensar por
um momento sobre essa coisa de preconceito de instru-
mentos que existe, mas deixa isso para lá, quebra o padrão.
Conforme você se desenvolve, abrace tudo, use qualquer
coisa que é possível. E se você não tem condições, pode
usar uma gravação que está liberada. Em dezembro, você
vai ouvir no meio de “Eu Amo Minha Múmia” você vai ouvir
*sons* um elefante. Por que esse elefante está aí? Porque
eu fico tão envolvido no meu mundo criativo que Henry
começa a existir, ele vira uma parte de mim.

Eu sou eu, com Henry, e como a montanha grande, eu sou


eu como os elefantes. Então quando eu estava compondo,
eu tinha uma gravação das viúvas do Quilombo, em Fidal-
go, em Minas Gerais; tenho coisas de candombe, que eu
gravei no interior e, eu, com permissão, uso essas ao lado
do jazz. Eu vou provocar os músicos, vou apontar para eles
e fazer movimentos que saem de multimídia, de direção, de
arte, de dança; vou instigar para que eles respondam na
hora. *cantarola* com todas essas coisas de multimídia *ba-
rulhos*. Eu botei um gato, tem uma homenagem aos gatos
em uma parte. Quanto eu paguei para o gato? Fui lá,
peguei um gato? Não! Tem gravações disponíveis para uso,
ou se você tem um gato, ele vai virar uma estrela. Só de-
pende de você!

Não tem limites. Tem limites, tudo na vida além de ser um


cálculo de risco, tudo tem limites. Mas se você pensa nos
tipos de limites que existem, vamos pensar em vários limi-
tes, limites da lei. A lei diz que você não pode e se você faz
isso você vai pagar, de uma forma ou de outra. Então você
faz um cálculo de risco e corre o risco, se não há alternativa.

Tem limites da lei, da sociedade em que a gente mora. Mas


há limites que as pessoas botam imposições em cima de
você: “Não pode”, pela lei? "Não, você não pode". Vou ex-
plorar isso porque, essencialmente, antes de fazer um cál-
culo do risco e ver se é ofensivo ou se estou estou quebran-
do alguma lei, eu vou entender os limites que você dá, que
você está impondo em cima de mim.

Eu tenho liberdade de me expressar como ser humano,


como indivíduo, como artista multimídia, eu tenho essa
liberdade. Há uma dinâmica de respeito e liberdade. Você
tem esses limites que você coloca em cima de você e não
saem, imposições do seu contexto, da sua vida. Essas
coisas, "ah, não posso, não posso”. Você pode! Se não
magoar, se não ofender, se está dentro da lei, como indiví-
duo, você tem direito à criatividade usando as coisas dis-
poníveis dentro da sua realidade, com respeito e calculan-
do os riscos. Não é complicado. Então nessa coisa de multi-
mídia, tem coisas que você pode usar, coisas que não pode;
mas tem muita coisa que pode.

Vou te contar mais uma coisa sobre responsabilidade e in-


tenções. Tô olhando vocês aqui e já vejo muitas pessoas
que já estão tocando, já estão criando... Não tô presumindo
uma imposição, que estou falando com pessoas que não
sabem nada... vocês já sabem como a vida é. Sabem
mesmo! Você sabe seus limites calcula os riscos todos os
dias. Cálculo de risco tem um lado particular e um lado co-
letivo.
A última coisa que eu quero falar com você, tem uma coisa
importante que influencia, um conceito que eu vou passar
para vocês, o mundo onde nós existimos - estou improvi-
sando! - esse mundo é por bem ou por mal, binário. Biná-
rio? Eu tô morando em dois mundos? Eu tô morando em
um mundo binário, é simples. Bom x ruim, magro x gordo,
alto x baixo.

Isso é importante para você entender e ter responsabilida-


de com suas criações, e também como usar esse conceito
nas suas criações. Porque eu uso isso. Meu mundo é um
jogo de criatividade no contexto global dessa dinâmica
fundamental de dentro x fora. Vou te dar um exemplo... É
fácil ser preso por transgressão na Coreia do Norte, posso
ir para a cadeia e nunca mais sair. O que aconteceu dentro
das normalidades dessa cultura. Wow, man... Semanas
atrás cortaram a cabeça de uma pessoa que fez uma brin-
cadeira com o Islã. Ele tinha o direito de se expressar e eles
cortaram a cabeça dele na rua!

E isso, como uma coisa essencial, fundamental, é isso que


vai dirigir suas decisões de uso de multiarte, de criar coisas
e calcular os riscos, porque meus cálculos sempre são in-
fluenciados por essa dinâmica de dentro x fora.

Quando você está "dentro" (convencional), você está em


um coletivo de opiniões. "Eu vou te provocar, eu gosto de
sorvete!". Quem não gosta de sorvete? Isso não é uma pro-
vocação, isso é uma afirmação. Você está dentro de um
pensamento coletivo.
Se você entrar na Sorveteria Itália, e começar a gritar: "É
contra minha religião comer sorvete, e vou matar quem
consome sorvete!", você está totalmente "fora" do consen-
so.

Como aplicamos isso? Já falei que, quando usamos coisas


multimídia, você deve pegar as coisas com permissão, com
respeito, pensar se essas coisas estão desfiando um jeito
de pensar coletivo, podem criar uma situação desagradá-
vel ou perigosa.

Vou te dar exemplos, Picasso, o artista. Ele ficou famoso


por colocar os dois olhos da pessoa no mesmo lado da
cabeça. Uma coisa tão óbvia, entre dez bilhões de pessoas
no mundo, foi ele quem pensou em pintar uma mulher com
um olho aqui e outro olho ali. Ele ficou famoso por isso! Ele
provocou as normalidades da existência corporal do ser
humano.

Mr. Bean, a comédia. Eu amo quando ele pega os sons es-


senciais da língua francesa e ele exagera *imitando sons*.
Então o que ele tá fazendo? Ele pega a normalidade, e ele
tá exagerando, provocando, porque ele exagera tanto; ele
faz muito essa provocação de tirar uma coisa fora da nor-
malidade.

John Cleese, outro comediante, que andava desse jeito...


normalmente, o jeito de andar é um-dois, um-dois.

Tem muitos artistas que usam isso. Punk rock é uma provo-
cação artística forçando as normalidades do coletivo.
Eu gosto de fazer isso, mas sempre faço com respeito, eu
não quero iniciar, provocar uma coisa negativa. Então, não
só em multiarte, mas cuidado com quem você coloca lado
a lado.

Em "Simplesmente Complicado", eu falo sobre esse concei-


to de mundo binário. É uma composição que vamos apre-
sentar em dezembro, eu botei vários desses conceitos
juntos. Você vai ver Alma como um japonês, como kabuki
(teatro japonês). Você vai ouvir em multimídia os sons de
instrumentos, " porque é uma história de um terráqueo que
se apaixona por um alien. O alien vira a cabeça quando ele
fica curioso, para ele, "a no means yes", "um não quer dizer
sim". Eu tinha como gravar um alien, mas usei uma impres-
sora para ser o som do alien virando a cabeça, no meio
disso entra um elefante, eu boto tudo! Eu não tenho limites,
eu sou eu! Estou brincando com essa essa dinâmica de bi-
nário: dentro x fora, aceitável x ofensivo, bom x ruim.

Eu escrevi uma música, "Gente boa", sobre uma coisa que


aprendi no Brasil, "ah, ele é gente boa!". Há dois anos atrás
com a RAO, RAO, RAO, começamos o show na Cidade das
Artes, os músicos estavam sem sapatos na sala de música
de câmara. Eu entrei no palco, olhei a plateia e gritei,
"Gente boaaa"! Comecei a apresentação desse jeito, virei
para a orquestra, todos gritaram e começou uma multimí-
dia. A multimídia estava provocando a mídia, a mídia tem a
opinião que a gente compartilha como uma parte de iden-
tidade coletiva dela.

Essa coisa de gente boa, como eu aprendi no Brasil, é inte-


interessante. Talvez seja a percepção de uma pessoa de
outro país mas, do jeito que vocês falam, não dá para ser
meio gente boa - perguntei isso para a plateia antes de co-
meçar a música.

Eu vi uma camisa, quando eu estava na Glória - na Glória,


tudo é possível, a dinâmica de dentro x fora, na Glória, é
uma maravilha - eu vi uma camiseta em que estava escrito
"O futuro está chegando em breve". Eu amei! Corri para
casa e fiz uma composição, "The Future is Coming Soon".
Eu imaginei a época dos Beatles, em Londres, pessoas ven-
dendo coisas na rua, anunciando "Prestem atenção! O
futuro tá chegando em breve!". Saiu uma composição!

Compus também sobre WhatsApp, o aplicativo. Eu não


gosto... se você receber um telefonema de madrugada, fui
eu, com meu dedão, que fiz alguma coisa errada... Até hoje,
tô velhinho e não aprendi a usar essa coisa... que gente boa
usa. Até os elefante de três olhos usam e eu não consegui!

Ainda o WhatsApp. Tinha uma pessoa da América Central


que morava aqui, fazia doutorado, estudava os movimen-
tos do candomblé; e organizamos para ela entrar, no meio
da apresentação, gritando com o celular no WhatsApp! "Ô,
pai, você não me mandou dinheiro ainda, tá ficando difícil
aí?". "Ô, ô!"...e parei a orquestra! Essa ideia saiu de um ce-
nário, de um mundo de dramatização. Então tudo, imagens,
sons... Em multimídia, o que você não pode acessar por
conta dos limites materiais, você usa a imaginação. Acho
que, ao invés de te levar à uma linha abstrata, eu vou tentar
unir essas ideias que compartilhei com vocês com amor.
É simples. Vamos voltar ao conceito de dentro x fora em
culturas contrastantes específicas. Por exemplo, quando eu
estava viajando pela África, eu tinha cabelo longo nos anos
60, era um hippiezão. Eu cheguei na fronteira do Malawi,
um país muçulmano. Eu tinha que atravessar 24h para ir à
Rodésia, ou Zâmbia, não lembro. Parei na fronteira e não
pude entrar. "Eu estou em trânsito, só preciso de 24h para
entrar em outro país". "Não. Com esse cabelo você não
pode". Para os muçulmanos, não pode. Minha mulher
também não podia mostrar as pernas. "Não entram!". O
que fazer? Ela tinha uma tesoura de unhas, cortei todo o
meu cabelo lindo só para atravessar de um país para o
outro...
Então são essas coisas de dentro x fora que precisamos
respeitar, e elas não tem só uma direção. Porque nós temos
direito de insistir que as pessoas fora do Brasil respeitem as
normas aqui dentro. Não é unilinear, não é só em uma dire-
ção. A coexistência do mundo depende desse tipo de dinâ-
mica de respeito.
Vamos botar tudo em um modelo de dentro x fora; para
mim, o mundo artístico são manipulações e cálculos de
riscos entre dentro x fora. Se eu fico "dentro" demais, eu
não vou ganhar dinheiro; se eu ficar "fora" demais também
não, é uma dinâmica interessante.
Vamos pensar nessas coisas consensuais comuns à existên-
cia coletiva do ser humano, por exemplo, o jeito de andar,
um-dois, um-dois... Tinha um artista na Austrália que ficou
famoso, fez uma música, e usava um bastão como se fosse
uma terceira perna, completamente "fora" (não convencio-
nal)! A composição dele era "I'm Jake the Peg / diddle-id-
dle-iddle / With my extra leg / diddle-iddle-iddle". "Eu sou
João Bastão / com minha perna extra". E ele andava segu-
rando essa terceira perna. Como, em geral, as pessoas tem
duas pernas, então, essa provocação fez ele ficar famoso.

Se eu falo: "estava trabalhando em volta da lagoa, tinha um


buraco, estava chovendo, eu parei e eu puleeei...". No
tempo real não é possível isso. "Eu puleeei' soa como pular
um buraco de 30 metros, mas o buraco só tem 1 metro.
Então essa manipulação da palavra é dentro x fora. Na Lua
você até pode pulaaaaar porque não há gravidade, mas
aqui não. Tem um buraco, parei, pulei e continuei; e é isso
que manipulamos.

Então, no mundo dos movimentos fisicos, se você está ao


meu lado e, eu faço isso, de repente, sem avisar que vou
fazer uma coisa completamente inesperada, um movimen-
to súbito, isso é fora do consenso!
Na Austrália eu tive sorte de trabalhar dois anos no Institu-
to Nacional de Arte Dramática. Fui professor, manipulando
os conceitos de movimentos x música, trabalhando com
jovens atores. Exploramos esses movimentos e o conceito
de dentro x fora. Se você pensar no corpo, o jeito de ser do
ser humano, em geral e corporalmente, nós estamos procu-
rando um caminho de menos resistência. Então se eu sento
aqui, não vou sentar desse jeito porque é desconfortável!
Então, nos movimentos corporais, a referência coletiva é o
repouso.

Os movimentos corporais que eu descobri na África


quando instalava postes de luz tinham uma função no tra-
balho.
As coisas de saíram da dança, no ballet, os movimentos ex-
pressivos fora da normalidade do andar, é isso que manipu-
lamos no tempo × espaço. Nessas relações tempo x espaço
é parte do consenso de existência do ser humano. É isso
que manipulamos em dança, esses movimentos exagera-
dos e estilísticos, como no kabuki, como você vai ver em
dezembro Alma Thomas fazendo esses movimentos com
os olhos e braços inspirados no teatro japonês. Essas cone-
xões são provocações conscientes entre as manipulações
normais dentro e fora de movimentos no tempo x espaço.
É assim que manipulamos... Contradições, movimentos rá-
pidos nos braços, palavras lentas... o jogo é esse em tudo.
Em como juntar esses ingredientes juntos, ocupando
tempo x espaço. Sons, instrumentos que historicamente
não existem juntos, manipulação dentro x fora, tempo x
espaço. A dinâmica é essa, com respeito. Acabou!

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