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ARTE CULTURA DISTRAÇÕES ANTAGONISMOS

AS RODAS DE CAXAMBU COMO POSSÍVEIS LUGARES DE


MEMÓRIA

Clair da Cunha Moura Junior


Mestrando em Artes/UFES

Palavras-chave: Memórias – Caxambu – Patrimônio Imaterial

De acordo com o local em que é praticado, o jongo adquire outros nomes como
caxambu, batuque, tambu, tambor. Nas comunidades do sul do estado do Espírito
Santo, região de referência para este estudo, o termo caxambu é mais comumente
utilizado pelos praticantes para designar essa expressão cultural. No entanto, opta-
mos pelo termo jongo, pela identificação do tema com outras propostas de traba-
lho, inclusive com a do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan,
que utilizaram esta designação.

A articulação entre grupos jongueiros e movimentos sociais, especialmente aqueles


que congregam as comunidades negras, contribuiu para tornar significativo o jongo
como forma de expressão contemporânea. Esse processo se iniciou na década de
90 do século XX em busca pelo resgate da manifestação em algumas comunida-
des quilombolas, o que trouxe consequências importantes para os dias atuais. Tal
mobilização culminou na proclamação do jongo como patrimônio cultural imaterial
brasileiro.

O jongo do Sudeste foi proclamado patrimônio cultural imaterial brasileiro pelo Con-
selho Consultivo do Iphan e registrado no Livro das Formas de Expressão, em 2005;
reconhecimento que reforça a condição de pertencimento à identidade negra en-
quanto prática representativa da memória viva das origens culturais afro-brasileiras.

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Arrancado do lugar de origem e despossuído de qualquer bem ou artefato, o negro


era apenas portador de seu corpo e de sua memória. Escravizado, totalmente des-
territorializado, o negro tem no corpo seu único espaço de afirmação e de existên-
cia. E foi por meio do corpo que a memória coletiva pôde ser transmitida, ritualiza-
da. Em muitos casos, devido às contingências peculiares no período da escravidão,
os trabalhadores rurais negros, proibidos de qualquer forma de reunião, fora das
horas de descanso permitidas, concentravam nas rodas e nos batuques sagrados e
profanos toda a vivência social que lhes era negada no dia a dia de trabalho escravo.

Até hoje o jongo traz em seus cantos “memórias coletivamente cultivadas dos tempos
do cativeiro e da abolição”, que remontam à chegada de africanos e de seus descen-
dentes vindos de vários lugares da África e do Brasil nas lavouras cafeeiras, à escravi-
dão e à libertação (IPHAN, 2007, p. 25-30).

Ao observar as rodas de jongo contemporâneo busco compreender por meio dos


conceitos “lugares de memória”, de Pierre Nora; e de “memória coletiva”, de Mau-
rice Halbwachs, como se dão os processos de rememoração, reatualização e de
revivificação das memórias que se manifestam por meio dessa expressão cultural.

As rodas de jongo são lugares de referência na memória dos indivíduos praticantes


dessa expressão cultural, porque é donde se percebe que as mudanças empreen-
didas nesses lugares acarretam mudanças importantes na vida e na memória dos
grupos. Embora demarcados simbolicamente, pois não necessitam de muros e de
cercas para delimitá-los, são lugares de memória e, de acordo com Nora (1993, p.
14), por serem vividos do seu interior, têm menos necessidade de suportes externos.
Eles são espaços de atuação e de ação, ocupados por sujeitos vivos de história que
por meio de cantos e bailados preenchem suas vidas.

Cabe ressaltar que as memórias individual e coletiva têm nos lugares uma referência
importante para a sua construção, ainda que não sejam condição para a sua preser-
vação. Do contrário, povos nômades não teriam memória. As memórias dos grupos
se referenciam também nos espaços em que habitam e nas relações que as pessoas
e os grupos constroem com estes espaços.

A partir disso, pode se considerar as rodas de jongo como meio de memória e lu-
gares de memória, por seu valor imaterial e material, na medida em que são reves-
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tidos simultaneamente de três aspectos considerados fundamentais, segundo Nora


(1993), para se classificarem nessa categoria. São lugares de memória por conterem
um caráter funcional, devido a serem lócus de um ritual, além de possibilitarem
alicerçar memórias coletivas. Seu valor é material por estarem investidas de aura
simbólica, devido à imaginação a elas atribuída que proporciona uma apreensão por
meio dos sentidos. É são simbólicas pelo fato de que nesses espaços há um recorte
temporal que serve periodicamente para um chamamento concentrado da lembran-
ça, permitindo que a memória coletiva se expresse.

A roda se faz como um espaço no qual se fazem lembrar e esquecer determinados


valores, práticas, rituais, dinâmicas que em cada ocasião se transformam, revitalizam-
-se, fortalecem-se, mas que também se destroem, desaparecem como se realmente
não houvesse mais a capacidade de guardar essa memória nesses lugares que aos
poucos vão sendo levados ao sabor do vento, com sérios riscos de desaparecer.

Para que esse espaço se torne um lugar de memória, precisa ser vivido pelos sujei-
tos que o perpassam. O jongo, nesse sentido, tende a manter uma tradição que se
manifesta na sua estrutura ritualística e na ênfase que se dá à transmissão oral do
conhecimento.

Nas rodas de jongo há uma expressão vocal, chamada de ponto, que se trata de um
longo colóquio com exibições de argúcia, de debates entre solistas, que se sucedem
junto aos tambores e aos diálogos continuados entre solistas e coro. Numa roda que
acaba de se formar, quem dá inicio aos pontos geralmente ocupa uma posição de
destaque no grupo, seja por sua idade e respeitabilidade, seja por sua capacidade
de liderança.

Em Halbwachs, a memória coletiva se apresenta como tradição porque ela se estrutu-


ra internamente como uma partitura musical, possibilitando sua apreensão tal qual um
sistema estruturado, no qual os atores sociais ocupam determinadas posições e de-
sempenham determinados papéis. E o produto dessa rememoração, a sinfonia final,
resulta das múltiplas ações de cada agente em particular. Isso implica que a memória
coletiva deve necessariamente estar vinculada a um grupo social determinado, pois é
o grupo que celebra sua revivificação. Por sua vez, o mecanismo de conservação do
grupo está estreitamente associado à preservação da memória. No caso do jongo,
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há momentos em que os solistas, ao “lançarem” ou “rezarem” os seus versos de ma-


neira metafórica, abordam na roda temas contemporâneos particulares ao cotidiano
do grupo, como também assuntos externos considerados relevantes à comunidade.
Como afirma Paulo Dias:

Suas canções tecem comentários sérios ou jocosos acerca de eventos presentes e passa-

dos das comunidades, bem como de seus personagens conhecidos de todos. Reafirmam-

-se assim valores morais, éticos e religiosos, inserindo-se a crônica cantada nos mecanis-

mos de controle social do grupo (DIAS, 2001, p. 880).

O jongo prioriza a palavra. Nesse sentido, o conceito de diálogo bakhtiniano possi-


bilita compreender a polifonia inerente ao movimento de circulação social da pala-
vra. Palavras que não são somente sinais, mas signos com os quais discorrem sobre
fatos, pessoas, que são trazidos à roda. Para Bakhtin “a palavra está sempre carre-
gada de um conteúdo ou de sentido ideológico ou vivencial’’ (Bakhtin, 1992, p. 95).
Por isso, toda e qualquer palavra só pode ser lida, ouvida, compreendida a partir
de um contexto histórico preciso. É esse contexto particular que determina e que
orienta toda a compreensão.

Com relação aos eventos passados, as narrativas trazidas para a roda fazem refe-
rência a períodos do tempo do cativeiro, da abolição e/ou próximos a essa última.
Nesse momento, ao adotar a perspectiva de Halbwachs, na qual argumenta que o
indivíduo que lembra é sempre um indivíduo inserido e habitado por grupos de re-
ferência; e a memória, que é sempre construída em grupo, é também, sempre, um
trabalho do sujeito.

Das suas bocas, o que sair e for respondido pelo coro, está sendo legitimado e sacramen-

tado pelos séculos dos séculos. Assim como o jongo é a palavra antes do ritmo, o cantador

é o individuo, antes do coletivo. E, dessa forma, o centro da atenção é ele, através de cuja

vivencia foi criado um ponto que é e será sempre comungado por todos (TEOBALDO,

2003, p. 60).

Halbwachs aponta para o fato de que não há uma vivência solitária e que sempre há
testemunhos. A memória não é somente individual, mas coletiva, pois, ao utilizar-se
de fragmentos de lembranças que são fornecidos por indivíduos diversos, faz desses
fragmentos a formação/composição do discurso da memória.
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Nesse sentido, pode-se dizer que o que dá consistência às lembranças (que, por sua
vez, formarão a memória) é a existência de uma comunidade afetiva, a existência de
um grupo de referência e o fato de o indivíduo permanecer apegado a esse grupo
ou a essa comunidade. A memória é esse trabalho de reconhecimento e de recons-
trução que atualiza a imagem completa do quebra-cabeça, ou seja, pega cada lem-
brança e as articula entre si construindo um “quadro social” completo.

A memória coletiva pega as imagens do passado e os traz para o presente fazendo


uma reconstrução dos acontecimentos, de modo que esses se aproximem ao má-
ximo do real e possam transmitir ao indivíduo a importância que um determinado
fato teve em sua vida. Essas lembranças individuais que sofrem uma articulação em
nossa mente irão se constituir em memória, o que as manterá gravadas ali com a
capacidade de influenciar os conceitos e as atitudes do indivíduo.

A memória coletiva tem assim uma importante função de contribuir para o senti-
mento de pertença a um grupo de passado comum que compartilha memórias. Ela
garante o sentimento de identidade do indivíduo calcado numa memória comparti-
lhada não só no campo histórico, do real, mas, sobretudo, no campo simbólico.

Sodré (2002), ao definir o conceito de território, recorre à etimologia da palavra patri-


mônio como sendo uma metáfora para o legado da memória coletiva, ou seja, de algo
culturalmente comum a um grupo. E adjetivando o conceito de patrimônio cultural, in-
serimos o termo imaterial que trata da manifestação por meio dos saberes e modos de
fazer, das celebrações, das formas de expressão e dos lugares de concentração de práti-
cas culturais coletivas, como constituintes de referências para a memória e a identidade
dos grupos formadores da sociedade brasileira e que possuem continuidade histórica.

A partir do reconhecimento por parte do Estado da importância dessa forma de


expressão para a conformação da multifacetada identidade cultural brasileira, con-
tribui-se para que, ao valorizar a memória de uma comunidade negra, o jongo se
torne fator de integração, de construção de identidades e de reafirmação de valores
comuns, pois, usando de estratégias em que a memória e a criatividade são funda-
mentais, ele fortalece os laços de identidade entre as suas várias gerações.
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REFERÊNCIAS

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Faculdade de Letras, 2008. Dissertação de Mestrado.

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LARA, Silvia H. & PACHECO, Gustavo. Memória do Jongo: as gravações históricas


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NORA, Pierre. Entre memória e história – A problemática dos lugares. Tradução de


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RIBEIRO, Maria de Lourdes Borges. O jongo. Rio de Janeiro: Funarte/Instituto Na-


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SODRÉ, Muniz. O Terreiro e a cidade: A Forma Social Negro-Brasileira. Rio De Janei-


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TEOBALDO, Délcio. Cantos de fé, de trabalho e de orgia: o jongo rural de Angra


dos Reis. Rio de janeiro: e-papers, 2003.

Artigos de jornal

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“Mãe África, Pátria Amada Brasil”. Gazeta on line. Vitória, 31/07/2009. Dis-
ponível em: http://gazetaonline.globo.com/_conteudo/2009/07/117287-
-mae+frica+patria+amada+brasil.html. Acesso em: 03 mar. 2011

AMARAL, Rossini. O povo no ritmo dos tambores. A Gazeta, Vitória, 03 Ago. 1994.
Caderno Dois.

LACERDA, Anete. Religião e modernismo são ameaça ao caxambu. A Gazeta, Vitó-


ria, 05 Set 1999. Caderno Especial.

Clair da Cunha Moura Junior cursa o Mestrado em Artes da Universidade Federal


do Espírito Santo, possui graduação em Relações Internacionais pelo Centro Univer-
sitário da Cidade. Tem experiência na área de gestão cultural, com ênfase em pa-
trimônio cultural imaterial, atuando principalmente nos seguintes temas: educação,
cultura e comunidade.

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