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EXPERIÊNCIA EM YU-FU TUAN:

UMA LEITURA GEOGRÁFICA DO BATUQUE E DOS LUGARES

SILVA, Elisabete de Fátima Farias


Discente de mestrado no Programa de Pós-Graduação do Instituto de Geociências e Ciências
Exatas, UNESP - Campus de Rio Claro. Bolsista FAPESP.<lisa-geo@hotmail.com>

CASTRO, Bernadete Aparecida Caprioglio de


Docente no Programa de Pós-Graduação dos Instituto de Geociências e Ciências Exatas,
UNESP - Campus de Rio Claro. <bacco@rc.unesp.br>

INTRODUÇÃO: BATUQUE, LUGAR E EXPERIÊNCIA

Este trabalho é parte resultante da pesquisa de mestrado em fase final “Batuque,


entre corpos e lugares: experiências com a Congada e o Tambu em Rio Claro/SP”. O
que se descreverá aqui é uma leitura geográfica do Batuque e dos lugares a partir da
experiência com o “Grupo Folclórico Congada e Tambu de São Benedito rioclarense”,
entre os anos de 2014 e 2016, para tanto, escolheu-se compartilhar o sentido emergido
pela experiência nas apresentações e impressões em Guaratinguetá, Pirapora do Bom
Jesus e Aparecida do Norte, todas cidades do interior paulista.
Batuque, lugar e experiência são, pois, palavras-chave que se fizeram presentes
no desenvolvimento da pesquisa e nortearão este trabalho. Contudo, optou-se aqui por
focar na concepção de experiência. A obra “Espaço e lugar: a perspectiva da
experiência”, de Yu-Fu Tan, publicado no Brasil em 1983, é a principal referência deste
trabalho. A noção que Tuan aborda como experiência envolve percepção, emoção e
pensamento num continuum relacional da existência e lugar.

OBJETIVO:

Descrever a experiência geográfica com o Batuque e os lugares a partir da com-


vivência com o “Grupo Folclórico Congada e Tambu de São Benedito rioclarense” nas
cidades de Guaratinguetá, Pirapora do Bom Jesus e Aparecida do Norte.

METODOLOGIA: A EXPERIÊNCIA
Segue-se os pressupostos fenomenológicos a partir da Geografia humanista na
leitura dos lugares e descrição profunda do fenômeno (HOLZER, 2008;
MARANDOLA JR., 2005). Com-viveu-se com o “Grupo Folclórico Congada e Tambu
de São Benedito rioclarense” de 2014 a 2016 e é por essas experiências que a
pesquisadora expõe este trabalho, sem julgamentos a priori ou a posteriori, compreende-
se que se escreve dos mundos a partir do seu próprio e que é no contato com o outro que
se descobre e faz-se a si mesmo. (MERLEAU-PONTY, 1971).
Tuan (1983, p.10) afirma que a experiência implica na capacidade de aprender a
partir da própria vivência, arriscar-se a enfrentar o novo, a enfrentar o desconhecido e o
incerto. “Experienciar é aprender; significa atuar sobre o dado e criar a partir dele.” Já
que “O dado não pode ser conhecido em sua essência. O que pode ser conhecido é uma
realidade que é um constructo da experiência, uma criação do sentimento e
pensamento.”
E o corpo humano é a condição para experienciar o mundo. Entende-se corpo
não enquanto um somatório de sentidos, tendo o pensamento como o autor da verdade
Mãos, ouvidos, boca, nariz e olhos não possuem exclusivamente em si os sentidos
humanos, a percepção se dá com o corpo todo, o todo que sou, com preferências e
memórias.. O corpo sou eu e sei que o sou quando no contato com o outro. No encontro
com o diferente me delimito e, ao mesmo tempo, reafirmo-me enquanto ser. Por vezes,
nem se consegue expressar tal experiência: “As experiências íntimas, quer com pessoas
ou coisas, são difíceis de comunicar. As palavras apropriadas são evasivas.” (TUAN,
1983, p.163).

O BATUQUE E OS LUGARES NA EXPERIÊNCIA COM A CONGADA

O Batuque é aqui tomado enquanto expressão sonora de um conjunto de


tambores e outros instrumentos de percussão, associado a expressão corporal de bailado
e rituais específicos, tendo seu fazer e manifestar musical próprio. O Batuque tem sua
geograficidade (DARDEL, 2011) e, nesse sentido, buscou-se a leitura da experiência
geográfica do fenômeno: não apenas ouvir a música, mas também vê-la manifestar-se
pelos corpos, cheirá-la nos alimentos que, tradicionalmente, servem-se quando das
festividades, senti-la na pele ao calor das fogueiras que aquecem os tambores e também
no ritmo marcado do bater dos bastões na Congada, no suor salgado provocado pela
cadência a fazer/ser Batuque nos lugares e corpos:

Não se tratará, certamente, para a reflexão fenomenológica, de


renunciar à objetividade científica, mas de reintegrar o mundo da
ciência ao mundo da vida. Pois, se não encontramos a vida no mundo
da ciência é talvez porque a ciência não é senão uma produção da
vida e porque esta permanece com relação a uma prática que, no
entanto, ela determina e que não basta, pois, para explicar-se a si
própria [...] (DARTIGUES, 2008, p.71).

Entre tantos Batuques no Brasil, experienciou-se o fenômeno a partir da com-


vivência com um grupo de Congada. Esclarece-se nesse sentido que tal manifestação é
mais do que rezas cristãs com louvação a santos negros em cortejo e percussão:

Ao ingressarmos no universo atual das manifestações afro-cristãs, por


mais que os ícones católicos estejam totalmente presentes, as formas
de cantar, de dançar, de rezar, a relação com a festa, com a comida,
com a partilha e com a coletividade traduzem uma forma de estar no
mundo que evidencia a ancestralidade banta, bem mais do que
heranças europeias. Os santos católicos não representam outras
divindades. Eles são cultuados por si sós, à maneira própria deste
afrocatolicismo. Assim como também são reverenciados os ancestrais
negros, próximos e distantes, líderes familiares e da comunidade ao
longo dos tempos. É tudo muito intrínseco e tudo se retroalimenta.
(SOARES, 2013, p.45).

Criado nos anos 2000, o “Grupo Folclórico Congada e Tambu de São Benedito
rioclarense”1 é uma tradição inventada (HOBSBAWN, 1997) no contexto cultural de
Rio Claro/SP. Nesse período, o contexto da cidade era de fortalecimento do movimento
negro local e retomada de espaços e tradições no seio da Irmandade Negra de São
Benedito e do Conselho da Comunidade Negra de Rio Claro – CONERC.
Atualmente com cerca de 30 integrantes, o “Grupo Folclórico Congada e Tambu
de São Benedito rioclarense” é formado em sua maioria por mulheres brancas, com
mais de 50 anos e muitas delas desconhecem o mundo do Batuque e seus significados.
De ritmo lento e pouco cadenciado, o grupo tem poucas músicas próprias e um baixo

1O capitão do “Grupo Folclórico Congada e Tambu de São Benedito”, senhor Ariovaldo, afirma que em
1974, em Rio Claro, havia um grupo de Congada comandado por um mineiro de nome Barbosa, mas não
se encontrou nenhuma outra comprovação (documentos ou depoimentos) que relatassem tal histórico.
número de batuqueiros, tem no seu capitão a liderança e o carisma, mas encontra
dificuldade em estabelecer vínculos com a comunidade negra local (que em muitas
ocasiões demonstrou desconhecer a existência do grupo na cidade). A Congada de Rio
Claro faz pouquíssimas apresentações em sua cidade de origem e prefere se apresentar
em outras, com o discurso de que leva o nome da cidade para fora. Essa condição de
mais viajar do que fortalecer vínculos dentro de Rio Claro expressa a visão de mundo de
sua atual configuração – além do sentido dado ao grupo em seu autodeterminar
“folclórico”.
Nessas viagens com o grupo pode-se experienciar o Batuque e os lugares. Cada
lugar uma feição em especial da manifestação é ressaltada e, nem por isso, desfigura-se
a essência que lhe constitui e lhe dá existência. É no lugar e pelos lugares que se sente o
mundo, que se pensa as escalas e que se vive as relações sociais. Esse mundo do
Batuque se encontra nos lugares, não a toa é Rio Claro, Guaratinguetá, Pirapora do Bom
Jesus e Aparecida do Norte no âmbito da manifestação Congada. A formação
socioespacial dessas cidades, a localização geográfica e os caminhos históricos que
ligavam e ligam o fluxo cultural entre esses lugares rememora os antigos Batuques e
atualiza o fenômeno no estado de São Paulo:
Desde as primeiras décadas do século XX, era hábito entre as
populações negras da capital, moradoras de bairros como Barra
Funda, Cassa Verde, Bixiga, Camos Elísios, Vila Brasilância, a
organização das romarias e excursões para Festas Negras do interior
paulista, como a de São Benedito em Tietê e Aparecida do Norte, e a
de São Bom Jesus em Pirapora. As festas de Tietê eram celebradas
com batuque, e as de Pirapora, com samba rural (samba-lenço, samba
campineiro). (BUENO, TRONCARELLI, DIAS, 2015, p.236).

Mas essas cidades não são por inteira o lugar, o lócus da manifestação. Existem
pontos específicos de referência para a comunidade que com-vive pelo tambor: Praças,
Igrejas, Clubes, Bairros. Em cada cidade, uma referência, em cada referência uma
vivência do fenômeno Batuque, nesse emaranhado de lugares a geograficidade.
Sobre a perspectiva das negações históricas do Batuque, assim como de todas as
outras práticas culturais dos negros quando ainda não apropriadas pelos brancos
enquanto produto comercializável, compreende-se que os lugares em Rio Claro e em
outras cidades que se manifestam o Batuque são, sim, um lugar de resistência. Tendo a
possibilidade de se manifestar mais abertamente do que no século passado, a cultura de
origem afro foi apagada também pelos próprios negros para que, sendo aceitos
socialmente, pudessem ascender da situação em que se encontravam.
Quando a manifestação do Batuque não é mero espetáculo, mas traz em si o
sentido do com-viver e celebrar a essência dos Tambores, o lugar da manifestação se faz
resistência por, entre tantas possibilidades de não sê-lo - de ignorá-lo, esquecê-lo tal como
se faz com uma dor latente -, insiste em ressoar e atrair com roupas, toques e rituais a
memória de uma situação tão recente historicamente no Brasil, que diz respeito a matriz
do povo brasileiro.
Desde os anos 1990, interpretações sobre lugar floresceram e foram
refinadas. As interpretações são frequentemente contraditórias e
muitas vezes contestadas, mas na base parece haver uma visão geral
de que lugar tem um papel importante a desempenhar para
compreende e, talvez, corrigir a insistência neoliberal na eficiência
global de ganhos que diminui a qualidade de nossas vidas, erodindo
tudo o que é local. Em suma, estudar e promover o lugar, seja de uma
perspectiva humanista, radical, seja de uma perspectiva arquitetônica
ou psicológica, é uma prática de resistência. (RELPH, 2014, p. 21).

E, na lógica do global/local, tendo a possibilidade de se ligar a outras


manifestações musicais ou mesmo a nenhuma delas, os batuqueiros decidem sê-lo e
ressaltam a resistência do lugar chamando para a si as dores e riquezas do povo negro
aqui escravizado. O tambor do Batuque, sentido nas mãos que batem e nos corpos que
se deixam guiar, ressoa também para que, pelo lazer e diversão, resgate-se
rememorando os que primeiro tocaram os tambores e por eles foram tocados.
Promover Rio Claro enquanto lugar de resistência por ter presente o Batuque,
manifestados no Tambu e na Congada, é também assumir que, mesmo com a
amenização dos conflitos existentes quanto as questões sociais no Brasil amplamente
amparada pela falta de discussão e problematização nas políticas públicas, sistema
midiático e de ensino, tem-se na manifestação espontânea da cultura popular uma base
que incita a crítica e recorre ao Batuque para dar voz aos que foram silenciados.
Em cada lugar de apresentação, a manifestação de sentidos diversos do Batuque,
em todos a mesma essência: com-viver pelos tambores. Nas igrejas, praças, ruas e
clubes, em cortejo ou em palcos, em apresentação para muitas ou poucas pessoas, com
caráter religioso ou não.
Na ordem temporal da sociedade hegemônica, quanto mais o mundo
se torna global, mais requer uma singularidade forte, perspicaz, ativa.
Daí nasce a possibilidade efetiva de “empiricizar a totalidade”. O
sujeito contemporâneo engaja-se no mundo cuja ponte são os lugares e
suas rugas. Nos lugares, o sujeito existe e o mundo mostra a sua
identidade. Viver é, nessa condição, sentir o mundo, pensá-lo e
exercê-lo com o corpo exposto ao movimento, isto é, ao tempo, como
tempo, temporalizando ruas e bairros, esquinas, bares, instituições etc.
(CHAVEIRO, 2014, p.275).

Guaratinguetá2: 04 de abril de 2015, saímos do centro-leste do estado de São Paulo, de


Rio Claro das colinas de topos amplos e de declividades baixa para o Vale do Paraíba,
rumo ao relevo mamelonar de Guaratinguetá, a “cidade das muitas Garças Brancas” (do
Tupi-Guarani: guará=garça, tinga=branca, eta=muito), de ares frescos aos pés das
escarpas da Serra da Mantiqueira. Foi a partir da viagem para Guaratinguetá, que a
primeira experiência geográfica com a manifestação cultural Congada aconteceu e, hoje
percebo que, na verdade, ela se iniciou num contínuo processo de interpretação. Nessa
experiência geográfica com o Batuque em Guaratinguetá se pode compreender a
sobreposição das categorias espaço, lugar e tempo. Era o espaço profano e espaço
sagrado (GIL FILHO, 2008) e, em todos, o espaço de festejar. Era o tempo de rezar, o
tempo de batucar, o tempo de comer, o tempo de lazer e, em todos os momentos, tempo
de com-viver. E, naquela situação, a rua, a igreja, a praça, a escola e os salões onde
dormimos e recebemos alimentação era o lugar da manifestação: impondo seu tempo no
passo lento e cadenciado dos batuqueiros e fiéis que enchiam as ruas e impediam os
carros de circular, o trânsito da cidade era o trânsito do Batuque; e nos almoços
demorados com cantoria e bailado em agradecimento pelas centenas de pessoas que
eram alimentados gratuitamente na festa do santo negro cozinheiro, a paisagem sonora
era a do Batuque e das melodias chorosas da Folia de Reis e grupos de São Gonçalo lá
presentes. Em cortejo, os diversos grupos subiam e desciam as antigas ruas de
pedregulho, o relevo mamelonar foi sentido pelos joelhos das senhoras de Rio Claro
que, durante o percurso acompanhado de cantorias e Batuque, demonstravam em seus
rostos a fadiga provocada pela longa procissão naquele sábado de céu aberto e radiante
sol. “Lugar e corpo assumem múltiplas dimensões num nível de conexão que aglutina o
existencialismo-fenomenológico com a leitura da materialidade espacial de Santos [...] Os

2
No trecho do relato das experiências geográficas nos lugares Guaratinguetá, Pirapora do Bom
Jesus e Aparecida do Norte tomou-se a liberdade de escrever o texto em primeira pessoa para
melhor descrever a situação.
lugares aqui não são apenas concebidos, mas vividos pela experiência do corpo.” (CHAVEIRO,
2014, p.268). Alimentação simples, mas farta; Batuque e danças do primeiro ao último
momento. Na experiência geográfica em Guaratinguetá o destaque para a devoção dos
fiéis que no ritmo dos coloridos, diversificado e longos cortejos tomam a cidade,
sacralizando o espaço e tornando o local público o lugar da manifestação. De igreja em
igreja que o cortejo se fez, de casa em casa que se parou para louvar São Benedito,
Guaratinguetá expressa a tradição da Congada com os elementos mais característicos
desse universo, aglomerando em seus festejos os grupos mais antigos. No salão de um
dos cafés da manhã percebi a diversidade da manifestação Congada, vários sotaques e
trejeitos, alguns grupos com vestes tão simples como se fizessem menção aos negros
escravizados e outros com tanto brilho como se fossem de uma corte real europeia.
Revestidos de sedas e veludos, com coroas, carmim no rosto, falsos
chapéus dos nobres da Colônia e espadas, dão a ver justamente isto: o
disfarce branco sobre o corpo negro. Não é só no carnaval das escolas
de samba que os “pobres e pretos” gostam das cores e papéis da
nobreza. Isso é mais ilusoriamente visível nas festas tradicionais de
negros católicos. Mas é também porque nelas, finalmente, eles se
livram por uma trinca de dias da desconfiança que precisam ter diante
do olhar, da máquina, mais ainda, do outro. A pessoa teme, a
personagem não. (BRANDÃO, 1989, p.110).

PIRAPORA DO BOM JESUS: em 30 de agosto de 2015 o “Grupo Folclórico de


Congada e Tambu de São Benedito rioclarense” foi o responsável por encerrar a
festividade dos 290 anos do encontro da imagem do Bom Jesus nas águas do Tietê - fato
que dera origem aquela cidadezinha. A Congada de Rio Claro já havia ido se apresentar
mais de uma vez em Pirapora, mas como o grupo tinha formação recente eram poucos
os integrantes que sabiam da carga histórica que Pirapora demonstrava com o seu samba
de alta qualidade e seu povo de fé fervorosa, inclusive eu. As ruas apertadíssimas, a
grande Igreja demarcando a centralidade, a tradicional feira de rua com oferta de mil
apetrechos, os pequenos e coloridos restaurantes e os numerosos turistas que circulam
por lá a cada fim de semana indicam que a história daquele lugar marcou seu nome
como referência turística e polo de atração ainda hoje, e sua referência é o samba, o
samba de Pirapora. No cortejo, dividíamos a estreita rua com carros, barracas de
artesanatos e transeuntes com sacolas de compras. Na praça, batucamos bastante e o
capitão do grupo aproveitou para pedir esmolas – prática comum nas primeiras
Irmandades Negras e grupos de Congada, inicialmente para alforriar escravos velhos e
crianças. Pois quando o padre viu o grupo a passar pela porta da catedral do Bom Jesus,
convidou-nos a entrar e tocar um pouco durante a celebração da missa. Um dos
batuqueiros ficou inconformado, afirmou que Congada não batia tambor na missa e que
o lugar dela era do lado de fora. Num ponto de encontro turístico denominado “Casa do
Samba”, pendurado nas paredes estão muitos quadros de fotografias, quadros dos vários
sambas de São Paulo que geografizam o interior paulista como importante compositor
dessa história, lá estão as fotos do samba-lenço, do samba de umbigada, do samba de
roda, do samba de bumbo. Em todas aquelas estáticas imagens, o registro do movimento
das manifestações negra, de regras ocultas, cada ritmo e festa com seu ritual próprio e
em cada lugar de manifestação uma barreira, cada manifestação um mundo, em
essência: o Batuque. Foi interessante ver a reação das pessoas ao perceber que a
história de Rio Claro tinha um fluxo tal quanto ao Batuque que, foi emoldurada e,
ganhou espaço nas paredes em Pirapora do Bom Jesus. Na experiência geográfica em
Pirapora do Bom Jesus destaque para a memória de outros Batuques negros e tempos
idos. Lá foi a ocasião em que mais me tocou a relação: Batuque, catolicismo popular e
as religiões de matriz africana como a Umbanda e o Candomblé, foi em Pirapora que
pessoas de religiões de matriz afro se aproximarem do grupo de Congada e vieram nos
cumprimentar com suas guias e expressões de terreiro, houve casos de incorporação
enquanto se batucava e outros mais distantes, apenas com o olhar demonstravam a
satisfação em ver na rua um grupo com trejeitos que rememoram o contexto de
escravidão negra no país e a luta por inserção da cultura afro, com colares, contos e
cantos, cantando a libertação, clamando os pretos velhos e louvando os santos negros –
sabe se lá se em menção aos velhos negros escravizados ou a outras entidades.
O samba, enquanto divertimento coletivo esteve constantemente
presente nas festas religiosas, sobretudo nas oferecidas a São
Benedito, além das festas de Santos Reis, Nossa Senhora Aparecida,
São João, Bom Jesus, entre outras. Em sua condição de escravos e
também passando por constantes processos de mestiçamento de seus
costumes, os negros forjavam táticas para a continuidade de suas
manifestações culturais, reforçando suas formas de sociabilidade
transmitidas por seus ascendentes. Pode-se entender as manifestações
culturais negras, neste contexto, enquanto focos de resistência à
redução do corpo negro enquanto uma máquina no sistema
escravocrata, ao passo que elementos do universo cultural africano
eram reafirmados e constantemente vivenciados. (DIAS, 2008, p.20).
Aparecida do Norte: 3 de abril de 2016 lá estava o “Grupo Folclórico de Congada e
Tambu de São Benedito rioclarense”, mas desta vez eu não estava enquanto integrante
do grupo, afim de sentir a “107ª festa de São Benedito de Aparecida do Norte” de
maneira mais independente. Na experiência geográfica em Aparecida, o maior destaque
foi a proporção e a diversidade. A multidão que se abarrotava nas ruas e os diferentes
grupos participantes daquela gigantesca estrutura festiva demonstravam a proporção do
universo das Congadas – principalmente no centro-sul do país. Maia (2010, p.105)
dialoga que “[...] o que consideramos “pessoas” é melhor definido nos deslocamentos
ritualísticos por “copresenças”, ou seja, modo de ser­no­mundo que implica o reconhecimento
dos “outros” também em seu ser-no-mundo.” Nesse sentido, aquelas milhares de pessoas que se
aglomeravam na praça da igreja de São Benedito, vindas de diversas cidades e estados, eram
copresenças do fenômeno Batuque pelas Congadas e, nas diferenças entre elas, sentia-se
companheiro do mesmo mundo de sentidos: “[...] Na lida ritualística, há passagem do
“individual ao coletivo”, pois o partícipe se vê na qualidade de “ser­com” tanto quanto os
demais partícipes[...]”. Contudo, Maia (2014) argumenta que nessa copresença não se exclui da
lida ritualística hierarquias, negociações, resistências, conflitos, tensões. Numa festa de
proporção tal que chega a aglomerar quase 9 vezes mais do que sua população original, a
paisagem do lugar é totalmente modificada e a serviço da festa religiosa que movimenta milhões
de reais e sustenta famílias inteiras. Durante o dia é o tempo da festa religiosa, das centenas de
grupos que se apresentam e em cortejo tomam as ruelas e becos de vários bairros com seus
passos ritmados e tambores marcantes, quando os grupos se encontram na frente das igrejas
visitadas trocam músicas e experiências, aprendendo uns com os outros; à noite, a praça de São
Benedito é tomada pelos jovens que também reivindicam para si o espaço público e misturados
aos congueiros, às famílias mais tradicionais e ricas da região que ajudam a custear a festa e às
mais empobrecidas que dependem da festa ou apenas querem, de alguma forma, aproveitar dela
– à noite, o espaço da praça é o espaço da com-vivência entre mundos distintos, mas que pela
proporção e diversidade da festa se reúnem e ocupam o mesmo lugar dando diversos sentidos a
ele.

RESULTADOS PRELIMINARES

No contexto dos festejos de Congadas a cidade de Guaratinguetá é, historicamente, a


mais antiga dentre as visitadas devido a sua formação socioespacial, ainda no início do
século XVIII, marcada por grandes fazendas de café e trabalho escravo negro,
Guaratinguetá faz parte da antiga estrada dos romeiros no estado de São Paulo que,
depois se interiorizou mais e fez um novo ponto de encontro às margens do rio Tietê,
em Pirapora do Bom Jesus, por volta de meados do século XVIII. Pirapora já não teve
uma ligação religiosa tão expressiva nos Batuques das Congadas tal como
Guaratinguetá e Aparecida, já que os negros eram apartados dos brancos em barracões
mais afastados da igreja principal (GONÇALVEZ, 2014). Ao se construir o santuário de
Aparecida do Norte e sagrar a imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida como
padroeira do Brasil, no ano de 1930, a cidade passou a ser, atualmente, o principal
encontro de Congadas no estado de São Paulo, aglomerando grupos de diversas regiões
do país.
A oportunidade de viajar com o grupo de Congada para outros lugares despertou
e ampliou, nesta pesquisadora, o “sentido de lugar” que Relph (2014, p.24) descreve
como sendo a “capacidade de apreciar lugares e apreender suas qualidades”. Em cada
lugar de Batuque com a Congada uma aprendizagem, uma particularidade e uma
significação a ser compreendida. É tamanho prazeroso abrir-se ao desconhecido e vivê-
lo: deixar que o sentido emerja da experiência e se compreenda a manifestação do
fenômeno numa leitura geográfica da relação existencial do Batuque nos lugares e os
lugares no Batuque. Depois compará-la a outros lugares e a outras experiências, outros
tempos, outras relações. E, com o auxílio dos livros, costurar, quando possível, a teoria
com a experiência e, assim, dispor-se a compreender e registrar os fenômenos
geográficos e, pois, fazer Geografia e Ciência. Quiçá, quando lido por outros, este
registro da experiência geográfica nos lugares com o Batuque suscite novas pesquisas e
questionamentos, lacunas, refutações e confirmações por parte de outros. E, assim, a
experiência seja um continuum apreender-se geograficamente.

BIBLIOGRAFIA

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