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Corpas Festivas em Práticas Estético-políticas de (RE)Existência1

Nina Caetano2

RESUMO
O presente texto trata de algumas práticas feministas que desenvolvo, como Shaitemi
DJ, em torno da discotecagem, pensando as relações entre artivismo, ocupação do
espaço urbano, movimentos sociais e políticas identitárias como caminhos possíveis
para a invenção de uma estética da existência, relacionada à nossa presença no mundo
e as possibilidades de nele re-existir.
PALAVRAS-CHAVE: performance feminista; carnavalização; festa política;
discotecagem feminista.

1 Trabalho apresentado durante o VIII Congresso Internacional em Estudos Culturais: Sexualidades e


Lazer.
2 Nina Caetano é pesquisadora da cena contemporânea, performer e ativista feminista. Doutora em Artes
Cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da USP, é professora do Programa de Pós-Graduação em
Artes Cênicas da UFOP, onde coordena o NINFEIAS – Núcleo de INvestigações FEminIstAS. Como
Shaitemi DJ, performa uma discotecagem feminista na qual privilegia músicas cantadas e compostas por
mulheres cis e pessoas trans, além de realizar eventos de fortalecimento de outras mulheres. Para conhecer
seu trabalho como DJ, acesse: https://soundcloud.com/caetano-nina . Email: caetano.nina@ufop.edu.br
A Igreja diz: O corpo é uma culpa.
A ciência diz: O corpo é uma máquina.
A publicidade diz: O corpo é um negócio.
O corpo diz: Eu sou uma festa.
(Eduardo Galeano3)

Bom dia, boa tarde, boa noite, pra quem está acompanhando a transmissão, seja
de Portugal ou do Brasil. Estou muito grata pelo convite e pela oportunidade de
participar deste Congresso, neste momento tão especial para nós brasileires 4. Queria
dizer que preparei a minha fala nos primeiros dias após findar o processo eleitoral para
presidência, no Brasil. Venceu o candidato da esquerda, Lula, e este momento é
bastante significativo para todes nós que vivemos sob um governo de extrema-direita
nos últimos quatro anos. Mas mais relevante ainda para as pessoas pobres e para os
corpos dissidentes que, desde 2018, viram seus direitos serem atacados dia após dia.
Depois de quatro anos tenebrosos, podemos voltar a sonhar e isso não é pouca coisa…
Podemos voltar a sonhar com a construção de um país no qual todas as pessoas possam
viver com um mínimo de dignidade. Viva o presidente Lula!
Mas por que trouxe o processo eleitoral e a vitória de Lula à tona aqui, neste
Congresso que trata de Sexualidades e Lazer? Porque, para além da importância
política deste fato, é particularmente significativa a sua celebração. Trouxe porque
quero lembrar, com vocês, o modo como as ruas se cobriram de vermelho 5 e como
festejamos esta vitória com muita alegria! E também porque, como afirma Castro
Júnior (2014, pp. 26-27):

A festa é formada por experiências históricas; é fruto das


movimentações e interconexões dos corpos-culturais que constituem
uma das formas mais reveladoras do modo de ser de um grupo, de
uma cidade e de um país (CASTRO JÚNIOR, 2014, p. 26-27).

Porém, antes de avançar na discussão do meu tema de hoje, eu vou me


apresentar e tecer algumas considerações sobre minha fala: como sabem, eu me chamo
Nina Caetano e sou ativista feminista, performer e DJ, além de professora e
pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade
Federal de Ouro Preto, onde coordeno o NINFEIAS – Núcleo de INvestigações
FEminIstAS que fundei em 2013, tendo como eixo de pesquisa em rede colaborativa a

3 GALEANO, Eduardo. As Palavras Andantes. Trad. Eric Nepomucemo. São Paulo: L&PM, 1994.
4 Neste ensaio, opto pelo uso da linguagem não-binária (LNB) para que as referências às coletividades
humanas sejam feitas de forma neutra e inclusiva, ou seja, não demarcando o gênero (limitado ao feminino
e masculino) entre as pessoas que delas fazem parte. Além disso, a LNB será usada sempre que eu me
referir às pessoas que também não se conformam nas caixas dos gêneros binários. Assim, a letra ‘e’ marca
o final dos substantivos e adjetivos terminados em ‘a’ ou ‘o’; enquanto ‘ries’ será usado para palavras
terminadas em ‘res’, a exemplo de ‘pesquisadories’; e ‘les’ para o artigo definido ‘as’/‘os’.
5 Cor do Partido dos Trabalhadores, ao qual é filiado o presidente Lula.
performance e os feminismos. Com forte caráter extensionista, o núcleo – composto
atualmente por estudantes da graduação e da pós-graduação em Artes Cênicas da
UFOP – tem realizado diversas ações, tais como mostras artísticas, oficinas 6, cines
debates, atos públicos e rodas de conversa com pautas feministas urgentes em relação
ao contexto ouropretano, tais como a denúncia de abusos sexuais ocorridos nas
repúblicas estudantis e o apoio à criação da delegacia das mulheres na região. Então,
considero importante afirmar, antes de mais nada, que não só o meu pensamento, mas
sobretudo as minhas práticas, sejam elas cidadãs, pedagógicas, investigativas ou
artivistas, inclusive esta fala, são orientadas por uma perspectiva feminista anticolonial.
E uma das práticas que tenho investigado e que me é muito cara, sobretudo
porque se relaciona de maneira íntima com os feminismos, é a conversa. Tema que é
também um princípio metodológico, ou seja, um modo de desenvolver, elaborar e
articular outros tantos temas sobre os quais venho me debruçando nos últimos anos.
Um princípio que se orienta pela escuta atenta do outro, pressupondo aquilo que Clara
Valverde (2015) vai chamar de “empatia radical”.
E tenho feito conversas em espaços como este, de reflexão acadêmica, mas
também em produções textuais, em sala de aula, nas ruas e nas festas. Outro dia
mesmo, estava em Curitiba, num simpósio em que discutíamos práticas artivistas e eu
falava do meu último trabalho como performer, Chorar os Filhos. Esta é uma ação
bastante pesada porque costuro, numa mortalha, depoimentos de mães que perderam
ses filhes em operações policiais. Mas é também muito interessante, porque constrói e
se constitui como um espaço de conversa, como um espaço para a elaboração do luto
dessas mulheres7. Eu então falava sobre isso e uma pessoa da plateia me perguntou
como eu fazia para lidar com o desgaste emocional e psíquico de trabalhar com tanto
morte, com tanta dor. Eu respondi: Talvez eu devesse fazer terapia, mas faço festa. E
faço festa porque, como ressalta a antropóloga Rita de Cássia Amaral:

Isto é compreensível, já que ela pode ser não apenas o momento do


divertimento, do alegre gozo da vida, como também o espaço de
protestos, da afirmação cultural, da organização de grupos de relação
mais afetivas, de resistência à opressão cultural e social, ou mesmo de
catarse (AMARAL, 1998, p.90).

6 As oficinas abarcam desde aquelas de Igualdade de Gênero, realizadas em escolas da rede municipal, até
workshops dirigidos exclusivamente para mulheres da comunidade, atendidas pelo CRAS – Centro de
Referência da Assistência Social.
7 Para quem tiver interesse em conhecer um pouco mais a ação, está disponível em meu canal no YouTube
a vídeo-palestra-performance Queremos que o Estado pare de matar menino, que parte de uma conversa
com Ana Paula Nunes de Oliveira e Kaká Silveira, que integram o coletivo Mães de Maio MG, para propor a
escuta das dores de mães que perderam seus entes queridos vítimas das necropolíticas de um Estado
racista e classista. Link para acesso: https://studio.youtube.com/video/yQYcZHYtbws/edit .
Tratando dessa relação entre morte e festa ou, mais precisamente, entre o luto e
a festa, com a performer mexicana Brenda Urbina, ela me recordou que, em seu país, é
tradição fazer do próprio corpo um monumento à memória daquelas pessoas que não
mais estão aqui.

Para os povos indígenas do México, localizados na região centro-sul do


país, com efeito o complexo de práticas e tradições que prevalecem em
suas comunidades para celebrar os mortos ou antepassados constitui
um dos costumes mais profundos e dinâmicos que atualmente se
realizam nestas populações, bem como um dos fatos sociais mais
representativos e transcendentes de sua vida comunitária. (…) No
imaginário coletivo, as celebrações anuais destinadas aos mortos
representam de igual maneira um momento privilegiado de encontro
não somente das pessoas com seus antepassados, como também dos
integrantes da comunidade entre si (CONACULTA, 2006. Tradução
minha8).

Ao aprofundar nossa conversa sobre a festividade indígena do Dia dos Mortos,


recordamos também do ritual nagô do Axexê, “cerimônia fúnebre do Candomblé, que
dessacraliza o corpo sem vida, liberando o orixá protetor que ali reside” 9. Segundo a
mitologia iorubá, o rito funerário do axexê teria sido inventado por Iansã para seu pai
adotivo, que havia falecido. Em sua homenagem, ela fez um “carrego”, reunindo os
objetos de sua estima e preparando suas comidas prediletas. E então ela “dançou e
cantou por sete dias, espalhando por toda parte, com seu vento, o seu canto”
(PRANDI, 2001, p. 311). No Brasil, sobreviveram alguns traços dessa relação entre o
luto e a festa em velórios que ocorrem no interior do país, onde ainda é comum velar o
morto em casa, recebendo os visitantes com comidas. Nessas ocasiões, é costume
contar histórias divertidas sobre o falecido e beber em sua homenagem. A gente até usa
uma expressão que é “beber o morto”.
Então, para ultrapassar a dor, faço festas de maneira irreverente, mas,
sobretudo, as faço sabendo que nossas corpas10 festejantes “são capazes de estabelecer a
mediação entre a utopia e a ação transformadora” (AMARAL, 1998, p. 8), realizando,
assim práticas estético-políticas de (re)existência.

8 Texto original: “Para los pueblos indígenas de México localizados en la región centro-sur del país, en
efecto, el complejo de prácticas y tradiciones que prevalecen en sus comunidades para celebrar a los
muertos o antepasados constituye una de las costumbres más profundas y dinámicas que actualmente se
realizan en dichas poblaciones, así como uno de los hechos sociales más representativos y trascendentes de
su vida comunitaria. (…) En el imaginario colectivo, las celebraciones anuales destinadas a los muertos
representan de igual manera un momento privilegiado de encuentro no sólo de los hombres con sus
antepasados, sino también de los integrantes de la propia comunidad entre ellos”.
9 Trecho do Projeto_Barra_69, de autoria de Ceci Alves (2001).
10 A partir deste ponto, utilizarei o termo “corpas” para me referir aos corpos de pessoas que se situam
como dissidências sexuais e de gênero, em consonância com Fredda Amorim (2019): “corpo quando escrito
e reposicionado como feminino pode transgredir os cerceamentos da masculina linguagem em suas
potências de expressão. Se a linguagem constrói, quero destruir o corpo para abrir alas às corpas,
monstruosas, não-cisgêneras, desobedientes”.
Tendo sido, desde o período colonial, um fator constitutivo de relações
e modos de ação e comportamento, ela [a festa] é uma das linguagens
favoritas do povo brasileiro. Para ela são traduzidas muitas de suas
experiências, expectativas de futuro e imagens sociais. Ela é capaz de,
conforme o contexto, diluir, cristalizar, celebrar, ironizar, ritualizar ou
sacralizar a experiência social particular dos grupos que a realizam. É
ainda o modo de se resolver, ao menos no plano simbólico, algumas
das contradições da vida social, revelando-se como poderosa mediação
entre estruturas econômicas, simbólicas e míticas e outras,
aparentemente inconciliáveis. O festejar brasileiro, por suas
características peculiares pode ser considerada até mesmo,
contrariamente à idéia de “alienação” que o envolve, como uma
dimensão de aprendizado da cidadania e apropriação de sua história
por parte do povo (AMARAL, 1998, pp.7-8).

Para pensar as potências disruptivas da festa quero, então, neste espaço de


escuta, nesta conversa que está se dando sob uma perspectiva feminista anticolonial,
isto é, de um ponto de vista crítico, interseccional, engajado e liminar; tratar de
algumas ações que realizo como DJ. Para isso, trago minhas reflexões de maneira
ensaística, a partir da premissa de que a festa “comporta uma poderosa desorganização
das regras estabelecidas” (AMARAL, 1998, p. 48). Assim, entrelaço questões de ordem
teórica, estética, política e pessoal, de forma que as referências, conceitos e noções
centrais – tais como mulheridades, interseccionalidade, zona autônoma temporária,
liminaridade, micropolítica, entre outras – possam surgir, muitas vezes, quase “à
deriva”, em meio às notas sobre meus fazeres e existência.
Comecei a discotecagem em meio às experimentações cênico performáticas do
obsCENA11, agrupamento independente de pesquisa cênica que integro desde 2007.
Essas experimentações foram as primeiras incursões no vasto território das práticas
cênicas urbanas que, desde então, forjam o meu trabalho e, nelas, utilizávamos, como
um dos principais procedimentos metodológicos, uma proposição teórico-prática
desenvolvida pela pesquisadora e performer brasileira Eleonora Fabião: o programa
performativo. Este seria “um conjunto de ações previamente estipuladas, claramente
articuladas e conceitualmente polidas a ser realizado pelo artista, pelo público ou por
ambos sem ensaio prévio”. Para Fabião, é justamente “este programa/enunciado que
possibilita, norteia e move a experimentação”. Em relação a esse aspecto, ela vai dizer
que o programa seria um “motor de experimentação porque a prática do programa cria
corpo e relações entre corpos; deflagra negociações de pertencimento; ativa circulações
afetivas impensáveis antes da formulação e execução do programa”. Em outras
palavras, um programa é um “motor de experimentação psicofísica e política. Ou, para

11 O obsCENA – que, hoje em dia, é composto, além de mim, por les artistas-pesquisadories Clóvis
Domingos, Frederico Caiafa, Idelino Jr., Joyce Malta, Lissandra Guimarães, Matheus Silva e Saulo
Salomão – atua em rede colaborativa, privilegiando a troca e a provocação artística com outres
pesquisadories da cena contemporânea e também com movimentos sociais e comunidade, em geral.
citar palavra cara ao projeto político e teórico de Hanna Arendt, programas são
iniciativas”12.
No caso da pesquisa do agrupamento – que se dava, em sua maioria, nos
espaços públicos e abertos da cidade – a possibilidade de ativar circulações afetivas que
sequer cogitávamos antes da realização de nossas ações, era ponto de partida para
programas performativos como: “abandonar cartas de amor pela cidade”; “ouvir
histórias de mulheres e perfumar suas dores”, “ler para alguém um poema no ônibus ou
no metrô”, “convidar um estranho a dançar com você uma música”. Alguns desses
programas eram desenvolvidos coletivamente, caso de “Festa no Metrô”, em que
experimentávamos a festa como lugar de intervenção social.

(...) a festa toma a seu cargo os mesmos sujeitos, objetos e estrutura de


relações da vida social e os transfigura. A festa exagera o real. Ela se
apossa da rotina mas não a rompe; excede sua lógica, e é nisso que ela
força as pessoas ao “breve ofício ritual da transgressão” (AMARAL,
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Foto: Matheus Silva.

A ação consistia em ir bem-vestide para a estação de metrô mais próxima,


embarcar numa direção qualquer, munide de uma taça e de fones de ouvido. Dançar
nos vagões e experimentar dividir a experiência com outres usuáries, convidando-les a
ouvir sua música e também se mover. Encontrar todes les demais na Estação Central,

12 FABIÃO, 2013.
em determinada hora, e lá experimentar a ação coletivamente, até sermos retirades
pela segurança do metrô, uma vez que não solicitávamos autorização para fazê-la,
aspecto comum aos nossos experimentos.
Também já experimentamos realizar festas em itinerância pelas ruas e bares do
centro da cidade, agregando pessoas que por nós passavam e que se sentissem
impelidas a seguir nosso bando13. Nessas ocasiões, em geral levávamos uma caixa de
som portátil com bateria, o que permitia maior compartilhamento da música. Outra
produção que nasceu de nossas experimentações festivas foi o show Sonoridades
Obscênicas. Cito:

(...) composto de poemas, impressões, imagens, palavras e manifestos,


tendo a vida nas ruas da cidade como inspiração sensorial/erótica.
Uma profusão de sons, ruídos e ritmos brasileiros é somada a estes
textos, criando uma ação cênico musical que busca um contato direto
com a plateia. Um encontro mítico afetivo com a cidade. Uma
performance que transita entre a poesia política e o bloco na rua, entre
o coro de vozes e os pontos de umbanda, entre a cena teatral e a
paródia da cultura pop. Uma performatividade política dos corpos,
espaços e afetos que mistura festa, alegria e protesto (SANTOS, 2018,
p. 196).

Aqui não pretendo me deter nessa realização do obsCENA e indico a leitura,


caso queiram conhecer mais o trabalho do agrupamento, da tese de doutorado do
pesquisador Clóvis Domingos dos Santos, que acabei de citar. Mas antes de seguir
adiante, me parece importante tratar de uma última experiência, realizada com este
coletivo. Lembro-me que, por volta de 2010, estávamos trabalhando junto às
adolescentes que, em conflito com a lei, estavam privadas de liberdade em um centro
socioeducativo de abrangência estadual, localizado no bairro Horto, em Belo
Horizonte/MG. Junto a elas criávamos, todos os sábados durante alguns meses, o que
posso chamar de “zonas autônomas temporárias” (BEY, 2018): às vezes eram
piqueniques, noutras performances e, num belo sábado, um baile na quadra, com
direito a “funk até o caroço”14, como elas nos tinham encomendado. Ali nascia, ainda
sem muitas pretensões, o coletivo de discotecagem Obscenidades na pista!, composto
por mim como Shaitemi DJ, por Joyce Malta (DJota) e Frederico Caiafa (DJ Freeda),
além do VJ Eclético (Admar Fernandes).
Naquele dia, trabalhava, além de mim e Joyce, a performer e produtora cultural
Erica Vilhena. Como espaço socioeducativo para adolescentes encarceradas, aquela

13 Hakim Bey define o bando como “um grupo que divide afinidades, os iniciados que
juram sobre um laço de amor”. Segundo ele, “o bando não pertence a uma hierarquia maior, ele é parte de
um padrão horizontalizado de costumes, parentescos, contratos e alianças, afinidades espirituais etc.”
(BEY, 2010, p. 09).
14 Menção à música de Bnegão e Seletores de Frequência, disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=K4qUYO3LlA8 . Acesso em 11/11/2022.
instituição deveria cuidar da formação das jovens, mas o que víamos era, sobretudo,
um controle extremo sobre elas, de forte viés moralista. Havia cartazes com regras e
assertivas morais espalhados por todo o edifício. Havia um controle explícito sobre a
manifestação de quaisquer expressões individuais. E havia a proibição de toques,
fossem entre elas ou delas conosco. Mas, apesar disso, conseguimos instaurar, por meio
da música e da dança, um espaço comum em que, como elas mesmas posteriormente
relataram, puderam se conectar com os dias de liberdade. E que despertou meu
interesse por um gênero musical que, até aquele momento, eu via com um olhar
classista e preconceituoso: o funk carioca.
Entre as músicas pedidas por elas, estavam algumas que se tornaram “clássicas”
no meu set feminista, como “Larguei meu marido, virei puta” (Gaiola das Popozudas 15)
e “A porra da buceta é minha” (Deize Tigrona16). Muitas pessoas discordam deste ponto
de vista, de localizar o funk como feminista, mas me alinho com a pesquisadora Carla
Rodrigues, professora do departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ) que, em 2012, publicou um artigo de opinião intitulado, justamente, “O
funk é feminista”:

Ela [Tati Quebra Barraco], Deise da Injeção e As Danadinhas são


algumas das representantes, no funk, da demanda por liberdade
sexual, que traz junto ao direito ao sexo e ao prazer as bandeiras de
igualdade, exatamente como as feministas fizeram na década de 1970.
Quando cantam suas letras consideradas obscenas, estão
reivindicando mais do que prazer na cama e denunciando as opressões
às quais foram historicamente submetidas. De quebra, rompem com
os padrões de beleza: nenhuma delas é loura ou magra, e nem por isso
deixam de exibir o corpo, dançar ou se apresentar como mulheres
desejáveis. Sem nenhum respaldo teórico – e, diga-se de passagem, já
sem precisar da teoria, na medida em que a prática da igualdade entre
os sexos têm se espalhado na sociedade (...) –, as meninas do funk
sabem na pele o que é preconceito: são pobres, negras e faveladas. O
que não falta, portanto, é estigma17.

No centro da polêmica sobre o funk, há também, conforme ressaltou a


pesquisadora, muito de preconceito classista e racista, como é possível perceber no
modo como tem sido feita uma necessária discussão sobre a pornificação da cultura e a
objetificação das corpas femininas que, ao contrário do que muitas pessoas defendem,
tem se tornado mercadoria bastante rentável na cultura pop como um todo e não
somente neste contexto. Por isso, considero importante celebrar a projeção que muitas
artistas têm conquistado através do funk, como é o caso do reconhecimento
internacional alcançado por Anitta e Ludmilla, ambas mulheres nascidas nas favelas

15 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=1AExAjzbNkM . Acesso em 11/11/22.


16 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=3DWh3Hd3SQg . Acesso em 11/11/22.
17 Disponível em: https://super.abril.com.br/cultura/o-funk-e-feminista/ . Acesso em 11/11/2022.
cariocas e hoje convidadas e premiadas por alguns dos eventos mais importantes do
cenário musical mundial, como é o caso do Grammy 202218.
Com o Obscenidades na Pista! realizamos diversas festas em que pude
aprofundar minhas pesquisas em torno de uma discotecagem feminista, centrada no
protagonismo musical de “pessoas que vivem ou viveram as mulheridades,
independente da identidade de gênero” (SANTANA, 2021, p. 2), ou seja, que
vivenciaram, como compreende a artivista feminista Renata Santana (2021, p. 3), “os
aspectos socioculturais relacionados ao feminino, que culminam em uma série de
violências de gênero que são inscritas em corpos que os performam em algum
momento da vida”. Dentro dessa vasta categoria estariam incluídes “pessoas não
binárias, homens trans, mulheres cis e trans” (idem). Além disso, o foco era em letras
que questionassem o machismo tão presente não só na sociedade, como também na
música brasileira.
Deste questionamento nasceu a ação Dialética, em que experimentei, no espaço
urbano, propor um “duelo” entre determinadas músicas machistas e sua resposta
feminista. Ela foi realizada pela primeira vez em março de 2018, tendo sido a
discotecagem acompanhada por ações das performers Marina Viana e Marcelle
Louzada, bem como por uma intervenção em muros e postes que fizemos com cartazes
contendo trechos de letras feministas.

18 Em que Ludmilla recebeu o prêmio de melhor álbum de pagode por Numanice#2, disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=wHEujOBPIf8&list=OLAK5uy_nlIf2kcTIMmim0qEsNcIwO_tn1KwU
pLGE
Imagem 2: Ação Dialética. Foto: Marcelo Zuca.

Como exemplo de duelo, trago o que ocorreu entre o pagode “Depois do prazer”,
do grupo Só pra Contrariar, e o funk-resposta de MC Jessica: “Tô fazendo amor com a
favela toda”. Enquanto o pagode, cínica e neuroticamente, canta o amor por uma
mulher exibindo o sexo feito com outra – “Tô fazendo amor/ Com outra pessoa/ (Mas
meu coração)/ Vai ser pra sempre teu/ O que o corpo faz a alma perdoa/ (Tanta
solidão)/ Quase me enlouqueceu” – a funkeira debocha: “Tô fazendo amor com a favela
toda/ mas meu coração/ vai ser pra sempre seu/ o que minha xota faz sua pica perdoa/
foi tanta ostentação/ que me enlouqueceu”. Em outro trecho, o pagode ressalta
sadicamente: “Fica dentro do meu peito sempre uma saudade/ Só pensando no teu
jeito/ Eu amo de verdade/ E quando o desejo vem/ É teu nome que eu chamo/ Posso
até gostar de alguém/ Mas é você que eu amo”. A funkeira dá então, no contraponto do
cinismo, o golpe de misericórdia: “chupa o bico do meu peito/ e mete com vontade/
sussurrando desse jeito eu gozo de verdade/ e se lá no vai e vem outro nome eu chamo/
não liga não amor/ posso ter dado pra geral, mas é você que eu amo/ você é meu
banco…”.
Trouxe esse exemplo porque “Tô fazendo amor com a favela toda” me faz
lembrar de uma experiência instigada pela relação com as músicas que a discotecagem
despertou. Não sei se deixei isso evidente, mas o fato é que as minhas práticas acabam
se misturando e se influenciando mutuamente e, no caso da experiência que vou
contar, ela foi vivida no contexto da disciplina Arte e Contemporaneidade, que ministro
para a graduação em Artes Cênicas da UFOP, mas partiu de minhas pesquisas como DJ
e das práticas de deriva que desenvolvíamos tanto no obsCENA como no NINFEIAS.
Na ocasião, a disciplina estava sendo oferecida no horário noturno e tinha uma
grande maioria de corpas femininas matriculadas. A pesquisadora Thais Azevedo, que
participou da organização deste Congresso e sugeriu meu nome, talvez se lembre desse
dia porque, não somente ela era uma das estudantes matriculadas, como foi quem me
apresentou o funk em questão. Bom, eu havia proposto um programa performativo a
ser realizado pelas mulheridades da turma e por outras que quiséssemos convidar:
numa noite de lua cheia, caminhar pelas ruas de Ouro Preto fazendo festas
instantâneas nos lugares em que mais sentíamos medo de caminhar sozinhas.
Havíamos mapeado estes espaços e preparado comidas, bebidas, músicas e panos para
servir de assentos. O “bonde” saiu da UFOP com uma caixa de som portátil, uma bela
lua no céu e muita alegria no peito. Outras se juntaram a nós, no caminho, e bebemos
vinho, rimos, ouvimos música e escrevemos “coragem”, clandestinamente, em alguns
muros. Naquele dia, percebemos que, como afirma a historiadora Mary Del Priore
(apud AMARAL, 1998, p. 89), a festa pode ser entendida como um “espaço para a
revolta ritualizada, território de símbolos que anuncia a insatisfação social". Ou, como
afirma Bakhtin, em relação às festividades medievais:

Por um breve lapso de tempo a vida saía de seus trilhos habituais,


legalizados e consagrados e penetrava no domínio da liberdade
utópica. O caráter efêmero dessa liberdade apenas intensificava a
sensação fantástica e o radicalismo utópico das imagens geradas nesse
clima particular (BAKHTIN,1987, p. 77).

Então, para finalizar minha fala, volto ao início, quando mencionei a celebração
da vitória de Lula. Em nosso país é costume dizer que “aqui tudo acaba em festa” para
destacar o que seria um aspecto inconsequente do povo brasileiro em relação às ações
de indivíduos ou instituições, significando que não haverá responsabilização ou
punição para crimes. Ou seja, “a associação do caráter brasileiro à festa aponta para a
concepção de uma certa alienação, uma certa displicência e tendência ao descaso com a
lei e a ordem (AMARAL, 1998, p. 7). No entanto, é necessário perceber que a festa pode
ser um poderoso instrumento de expressão da nossa diversidade cultural, bem como
mediadora de valores e sentidos, além de espaço de construção de cidadania, como
salientei no início de minha fala.

Por fim, se quisermos dizer que, no Brasil, nem tudo acaba em festa,
devemos lembrar que, com certeza, muitos projetos e
transformações, muitos sonhos, começam e são vividos na festa, razão
portanto para que ela seja querida e cresça, crescendo também o
orgulho brasileiro de festejar. Afinal, “a gente não quer só comida. A
gente quer comida, diversão e arte”19. A gente quer festa (AMARAL,
1998, p. 279).

19 Trecho da canção “Comida”, lançada pelo Titãs em 1987. Aqui, magistralmente cantada por Marisa
Monte: https://www.youtube.com/watch?v=2Vl_5wDBsgo . Acesso em 11.11.2022.
Referências
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SANTOS, Clóvis Domingos. Rua dos Encontros: liminaridade, memória, festa e
insurgência nas ações do agrupamento obsCENA (Belo Horizonte). Tese de
doutorado, Programa de Pós-Graduação em Artes. Belo Horizonte: UFMG, 2018.

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