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Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas

Escola de Comunicação e Artes


Universidade de São Paulo
Disciplina: Novas Formas do Diálogo: dramaturgia
e instauração do jogo
Professor: Jean-Pierre Ryngaert & Maria Lúcia de Souza Barros Pupo

Diálogos ocultos

Elvina M. Caetano Pereira


(Nina Caetano)
São Paulo, janeiro de 2009
O sétimo círculo
“Ó vós que aqui entrais, abandonai toda esperança”

Estudante – Agora que tinha chegado lá, gostaria de nunca ter ido.
Enfermeira – Nossa instituição é modelo! A melhor do estado, em termos de
segurança e de inovação no tratamento das nossas... hum... hóspedes. Saiu
em todos os jornais da semana, você viu?
Estudante – O estudo engloba pesquisa de campo. In loco. É um trabalho
árduo... São duas horas da tarde e aqui estou eu.
Diretor – Seja bem vinda, é um prazer recebê-la em nossa instituição! Veio
bem recomendada... Na cabeça aquele pensamento: gostosa delícia que
bunda boa
Estudante – Era sua primeira vez e ela tinha medo.
Diretor – A senhorita... Será que posso chamá-la de você? Acho que podemos
deixar de lado as formalidades...
Estudante – Ela não sabia como tinha se metido nessa enrascada. O projeto se
avolumava, imenso, à sua frente. Ela não daria conta.
Lúcia – Não sei por que todo esse estardalhaço... Eu nem sei por que estou
aqui.
Cida – Ela era puta, não era? E doida! Sabia que minha mãe morre de
vergonha toda vez que me vê aqui? Não é engraçado? A minha mãe é
enfermeira!
Estudante – Seria a mesma enfermeira que agora a conduzia pelos brancos
corredores de frio?
Conceição – Não tinha sido maldade, tinha sido falta de atenção. Uma mãe
não pode ter falta de atenção? Ela ficava muito cansada. Alisava o cabelinho,
dava de mamar até ficar com o peito murcho. Ele mamava muito. Eles sugam
tudo da gente. Tudo. E a gente fica um bagaço. Sabia que uma mãe não devia
falar assim. Mas era verdade. Sabia que gostava de cuidar dele. Mas tem hora
que dá vontade de sumir. De voltar atrás, de enfiar o menino de novo no
útero. Pra ele ficar lá quietinho, sem crescer. Sem dar trabalho. Porque
quando dá defeito, não tem como reclamar, não tem como devolver.

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Enfermeira – Uma por vez. Poderá gravar se quiser, mas nada de câmera. Só a
voz. Pareceu-nos que a espontaneidade fica garantida. Você poderá
entrevistá-las... Com meu monitoramento, é claro.
Estudante – Ela não devia ter vindo a esse lugar... Isso não ia dar certo,
aquelas mulheres... Ela queria ser forte, mas não era. Era sempre a última em
tudo... Que ilusão pensar que tinha chance de fazer algo grande.
Diretor – A senhorita é calada, não? Gosto de mulher assim... Dócil... Posso
chamá-la de você?
Cida – Eu também te atenderia, gosto de mulher, ainda mais loira... Isso me
lembra a piada do necrófilo: loira? Só gelada e em cima da mesa...
Estudante – Na verdade, ela começava a ficar enjoada...
Lúcia – Lúcia já tinha cansado daquele lugar feio, sem graça. Ela era diferente
daquelas mulheres. Tinha família. Nome. Dinheiro. Um jovem amante
esperando por ela. Tinha até belo título: a estrela fatal! Era bonito, tinha
saído em todos os jornais, noticiários, revistas, durante três meses inteiros.
Conceição – O jornal de hoje ainda não chegou. Todo dia chega uma notícia
nova de mãe que jogou filho na lagoa. De padrasto que estuprou, usou de
escudo. De pai que jogou pela janela ou esquartejou com o facão...
Enfermeira – Todo dia ela pede o jornal, recorta as notícias escabrosas e vai
colando pelas paredes. Mãe de papel. Foi esse o nome que deram para ela.
Mas o nome mesmo é Conceição... Mistura as histórias que lê com aquilo que
fez e que não gosta de lembrar.
Lúcia – Eu não sei o que estou fazendo aqui!
Cida – Não adianta gritar, lindinha... Vai estragar sua bela voz de madame,
educada em fonoaudióloga. Viu como sei falar difícil? Eu não tenho nome,
nem dinheiro, mas tenho clientes ricos...
Enfermeira – Hoje elas estão agitadas por causa da visita... Tem muito tempo
que ninguém procura essas mulheres. Mas não se preocupe, pois tenho tudo
sobre controle. Eu as trato com mão de ferro.
Conceição – Ela era tão molinha... Ela? Era ele ou era ela? E nome? Criança
tem nome? Criança tem é braço queimado, abandono. A senhora já reparou
que é sempre assim: “Criança espancada... Bebê recém-nascido encontrado
abandonado na lata de lixo...” Nunca é José, ou João. É sempre criança.

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Bebê. Assim, sem nome. Disso ninguém fala, todo mundo gosta dos filhos!
Então por que tem tanto menino solto na rua?
Estudante – Eu talvez precise voltar, tem muitas coisas que gostaria de
fazer... Não sei se estão dispostos a me receber de novo...
Diretor – Claro, mas isso vai depender das suas intenções... São todas iguais!
Se fazem de difícil, mas no fundo estão todas doidas com a mesma coisa...
todas gatas no cio. A senhorita, por exemplo, gostaria de fazer o quê? Ou
posso chamá-la de você?
Estudante – Naquele lugar estavam aquelas que nenhuma prisão aceitava
porque eram doidas. E nenhuma casa de saúde aceitava porque eram
assassinas.
Enfermeira – São todas iguais! Essa matou o filho, aquela o marido, essa aqui
esquartejou o cliente. Mas nenhuma admite, é tudo inocente.
Estudante – Manicômio Judiciário Feminino. São duas horas da tarde e aqui
estou eu.

fim

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À luz das questões referentes às noções de diálogo e conversa, bem
como das práticas experimentadas ao longo da disciplina Novas Formas do
Diálogo: dramaturgia e instauração do jogo; busquei construir uma
dramaturgia na qual “eu me afirmasse como autora”.
Para a construção do texto, elegi, das duas máquinas propostas pelo
professor Ryngaert, a Máquina II. O trabalho com a máquina exigiu um projeto
de escritura que contivesse regras internas para o estabelecimento do jogo
dramatúrgico, regras necessárias para balizar a construção do diálogo numa
perspectiva contemporânea. Segundo Ryngaert, sem ação, com uma fábula
mínima e personagens enigmáticos, na dramaturgia contemporânea o que
sobra é a palavra. Não mais a serviço da situação e do desenvolvimento da
ação dramática, o diálogo contemporâneo não se caracteriza mais pelo modelo
dramático, no qual um “eu” fala e um “tu” responde.
Mas o texto resultante desse trabalho com a máquina poderia ser
considerado um diálogo ou ele se aproximaria mais da noção de conversa
estabelecida ao longo da disciplina? Segundo Ryngaert, a conversa é pensada,
a priori, como não intencionada, acidental. Ela não é elaborada e não visa
modificar o estado dos interlocutores: estes terminam a conversa como
começaram. Ainda pensada como acidental, a conversa pura pressupõe a
plena existência de implícitos e a observância de determinadas “regras” de
conversação, como a noção de cooperação e os rituais de abertura, por
exemplo.
O diálogo, por outro lado, seria “fabricado”, intencionalmente produzido
em relação a um projeto artístico e, portanto, levaria em consideração o
espectador da cena. Nesse sentido é que Ubersfeld 1 define o teatro como um
sistema de “dupla enunciação”: a fala é dirigida ao personagem e,
indiretamente, ao público, ou seja, “toda fala está em busca de um destinatário,
no teatro” (Ryngaert). No entanto, quando se fala do texto contemporâneo, é
necessário considerar as características da conversa pura, pois o diálogo
contemporâneo se encontra impregnado de suas marcas. Ao colocar em xeque
as formas dialogadas, o texto contemporâneo coloca também em xeque o
estatuto da palavra: de onde vem essa palavra? Para onde vai? Para quem ela

1 As referências presentes são oriundas de anotações feitas em sala de aula.

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é dirigida? Uma vez que não há mais personagens psicologicamente definidos,
com ações oriundas dessa consciência única, como se dá o compartilhamento
das vozes presentes no texto contemporâneo?
Levando em consideração essas questões, estabeleci, então, alguns
elementos para o jogo dramatúrgico: ele teria um foco central com quem todos
os outros, a princípio, dialogariam. Para esse diálogo, busquei também
trabalhar com instâncias narrativas diversas como, por exemplo, falas em
primeira e terceira pessoa, o que permitiria ter acesso aos pensamentos e
emoções dos interlocutores. Busquei, ainda, criar associações entre as falas,
como se o diálogo se estabelecesse por palavras comuns ou campos comuns
de sentido entre a fala de um e a do outro. A intenção, como autora, era
produzir diálogos paralelos e entrecruzados, tornar presente a voz da autora
pela montagem do texto, buscando propor ambigüidades a partir do jogo que
eu pensava construir com as falas.
Ao contrário da primeira máquina, a qual tem como foco certas relações
discursivas (alguém introduz o assunto, outro alguém só poderá se expressar
por perguntas, outro deverá introduzir anedotas etc.), a máquina eleita tem
como foco a vontade, ou a intenção de exercer algum efeito sobre o
interlocutor2. São seis essas “vontades” em exercício: causar piedade, fazer rir,
provar a competência, brilhar, seduzir, ser desagradável. Buscando “fazer valer
o limite das instruções” da máquina, procurei definir uma situação inicial de fala
a partir dos materiais temáticos que orientam a investigação que venho
realizando junto ao Obscena – agrupamento de pesquisa teórico-prático 3 do
qual faço parte em Belo Horizonte – quais sejam: a formação da mulher.
Dentro da questão maior da formação da mulher, outros elementos me
pareceram interessantes para a investigação da construção do texto em uma
perspectiva contemporânea: especificamente o papel da mãe e sua culpa, o
que me levou a algumas referências textuais mais específicas, como a Divina
2 Seja ele o outro que está no jogo ou o espectador do diálogo.
3 Desde março de 2007, o agrupamento vem pesquisando experimentos cênicos que têm
como referência o universo marginal da mulher e que propõem a revisitação e reterritorização
das relações entre o teatro e o espectador, o público e o privado, a teatralidade e a sociedade
do espetáculo. A criação se dá em uma rede colaborativa, em que as experimentações se
retroalimentam através não só de um diálogo constante entre os pesquisadores envolvidos,
mas também por meio da participação do espectador/colaborador. Do agrupamento,
coordenado por mim e pela atriz Lissandra Guimarães, participam os diretores e atores Idelino
Júnior, Clóvis Domingos e Marcelo Rocco, as atrizes Erica de Vilhena e Joyce Malta, além dos
atores Saulo Salomão e Didi Vilela e do videomaker Fernando Sete.

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Comedia, de Dante. Pareceu-me instigante o Inferno, por sua divisão em
círculos, nos quais os pecadores são colocados pela espécie do “crime” que
cometeram: contida na imagem dos círculos infernais e da punição dos
pecados, estava a idéia da prisão. Resolvi, então, estabelecer uma visita a uma
prisão feminina. Teríamos o (a) visitante, o (a) cicerone e as mulheres presas. A
partir dessa idéia inicial, acabei optando por localizar o diálogo em um
manicômio judiciário feminino. Teríamos uma estudante de psicologia, o diretor
da casa e uma enfermeira ou guarda, além das três pacientes: uma prostituta
viciada, uma mulher que matou o marido cruelmente e uma mãe que matou o
filho e não se lembra.
Estabelecidas as “personagens” ou “figuras” que falam, faltava definir o
que seria o foco de cada uma: para a estudante, defini como intenção provocar
piedade. O diretor do manicômio teria como vontade seduzir e a enfermeira,
provar sua competência. Para as três internas do manicômio, optei por colocar
a intenção de brilhar para Lúcia, assassina do marido; a de ser desagradável
para Conceição, a infanticida e, para a prostituta Cida, a de fazer rir.
Para o trabalho a que me propunha não só considerei pertinente, mas
de extrema importância, os limites impostos pela máquina, os quais
funcionaram, a meu ver, como as instruções nos jogos teatrais e garantiram o
desenvolvimento do texto não mais pela ação dramática, mas pelo jogo da
palavra, uma vez que “o texto é o próprio aflorar da língua, e porque é no
interior da língua que a língua deve ser combatida, desviada: não pela
mensagem de que ela é instrumento, mas pelo jogo de palavras de que ela é o
teatro”4.

Referências Bibliográficas
ALIGHERI, Dante. A divina comedia. Coleção Clássicos. São Paulo: Editora Abril, 1992.
BARTHES, Roland. Aula. Tradução Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 1996.
PUPO, Maria Lúcia de Souza Barros. Entre o Mediterrâneo e o Atlântico: uma aventura teatral.
São Paulo: Perspectiva, 2005.
RYNGAERT, Jean-Pierre: Ler o teatro contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

4 Barthes, 1996: 17.

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