Você está na página 1de 2

Espetáculo Borboletas de Sol de Asas Magoadas

Um soco no estômago, por Nina Caetano.

“Se a pessoa está tendo muito problema com a


sexualidade do outro é porque alguma coisa não
está bem resolvida dentro dela”

O Brasil é o campeão mundial de crimes contra LGBTT (lésbicas, gays,


bissexuais, travestis e transexuais). Contra 35 assassinatos ocorridos no México
(segundo lugar nas estatísticas) e 25 ocorridos nos EUA (terceiro lugar), no ano
passado, são aproximadamente 200 crimes por ano (cerca de um assassinato a cada
dois dias) no país. Destes, 37% são contra travestis. Ainda segundo o levantamento,
realizado pelo GGB (Grupo Gay da Bahia), os estados mais homofóbicos são a Bahia e o
Paraná que, só no ano passado, contabilizaram 25 mortes cada um. No Paraná, a
maioria das mortes é de travestis, sendo Curitiba a metrópole na qual mais
homossexuais foram assassinados no Brasil.
Construído a partir de uma pesquisa de campo realizada com travestis nas ruas
de Porto Alegre/RS, o espetáculo Borboletas de Sol de Asas Magoadas, com
concepção, criação e magnífica atuação de Evelyn Ligocki (que divide a direção com
Celina Alcântara), trata, justamente, do universo de brilho e preconceito, riso e
desprezo, violência e solidão em que elas vivem.
O espetáculo começa ainda no saguão de entrada, onde Bety, nossa anfitriã,
nos recepciona e nos convida a entrar em sua “casa”. É impressionante a mímesis da
atriz que, sendo mulher, representa um homem que quer ser mulher, superlativa em
sua feminilidade. Seus gestos, posturas, linguajar e inflexões vocais, minuciosamente
construídos, criam um jogo de ambigüidade (é homem ou é mulher?) que me parece
absolutamente necessário para o que será tratado em cena.
Com o público já acomodado, Bety transita pela platéia e chama alguns
espectadores para se sentarem no palco, junto a ela. Ela brinca, usa e abusa dos
trejeitos típicos das travestis, do jogo de cabelo, do vocabulário. Captada a simpatia da
platéia, ela vai, aos poucos, revelando-nos o seu dia-a-dia, no qual se misturam a
alegria e a dor: seus truques, mascaramentos e pequenas tragédias, como o
assassinato da amiga, sua “mãe de quadra”. Bety expõe seu corpo, chora, dá risada,
relata as agressões diárias que sofre e o seu trabalho na prostituição, aproximando-nos
da humanidade desses seres que, em geral, são vistos (e tratados) como aberrações.
No entanto, ao assistir ao trabalho ontem, no Cine-Teatro Ópera, fiquei com a
nítida impressão de que ele foi concebido para outro tipo de espaço, que permitisse ao
público, de fato, adentrar a intimidade da travesti, estar em sua casa. Nesse sentido, a
estrutura de palco italiano – que, nesse caso, parecia exigir outra forma de
dramaturgia – prejudica a cumplicidade que a atriz, por meio de uma relação direta,
olho no olho, constrói com o espectador. Este, em diversos momentos, se afasta dos
fatos narrados em cena: foi especialmente perceptível o momento em que Bety, ao
sair para o trabalho – a atriz se dirige para o fundo do palco, no qual simula uma rua da
zona de prostituição – é cuspida, depois espancada e estuprada. A ação toda é
construída a partir das reações da atriz, que simula as agressões com o próprio corpo.
A cena, embora forte e violenta, provocou risadas na platéia, talvez pela dificuldade de
construí-la, naquele espaço, com verossimilhança. Talvez pela dificuldade de construí-
la com verossimilhança, à vista do espectador.
Em seguida, machucada no corpo e na alma, Bety retorna à sua casa e este me
parece ser o momento chave do espetáculo, no qual, por meio do desabafo da
travesti, a atriz Evelyn pode colocar em cena o seu posicionamento e escancarar a
hipocrisia moral e social na qual vivemos mergulhados. Momento precioso em que,
devido ao patético da ação – na qual se misturam o sofrimento e a revolta, o choro
pungente e o espanto – esse desmascaramento encontra eco, pela contundência de
seu discurso, em nossa mais profunda humanidade.

Você também pode gostar