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Espetáculo: Agda

Em busca do Deus, por Nina Caetano

O cenário é simples: três painéis, no fundo do palco, delicadamente iluminados.


Vozes começam a soar, em sussurros ininteligíveis, ganidos de cães. Corpos se
movimentam no escuro, em gestualidade animal. Assim começa Agda, espetáculo que
é fruto da parceria, iniciada em 2001, entre a Boa Companhia e o Grupo Matula Teatro
(Campinas/SP). Como no conto homônimo de Hilda Hilst – no qual o espetáculo é
inspirado – Agda é também o nome da personagem central, mulher que, por romper
com os tabus da comunidade em que vive, atrai sobre si todo o ressentimento, fúria e
crueldade de seus habitantes.
Misturando elementos do teatro e da dança, Melissa Lopes, Aldiane Dala Costa
e Veronica Fabrini, as três atrizes em cena, personificam não só Agda, mas também as
vozes da aldeia, principalmente dos três homens – Kalau, Celônio e Orto – que são
seus amantes. E são justamente as vozes dos três que ouvimos soar, já no início do
espetáculo, como percepções supersticiosas da mulher: Agda-cadela, Agda-daninha,
Agda-lacraia. Agda, aquela que aparece, para cada um deles, como distinta e sempre
outra. Agda inapreensível. Como Orto diz, nesse primeiro diálogo que soa em off,
enquanto as três atrizes-bailarinas se movimentam, construindo e desconstruindo,
com seus corpos e vozes, imagens que remetem à animalidade dessa mulher, maldita
por todos: “muita coisa junta vive dentro de Agda e a nossa parte é nada”.
A partir do que poderíamos chamar de uma dramaturgia do corpo, o
espetáculo constrói com delicadeza a oposição entre Agda – mulher em busca da
transcendência, angustiada entre suas dimensões sagrada e profana – e o olhar,
violento e opressor, que a comunidade lança sobre ela. Para isso, coopera, além do
ótimo desempenho das três atrizes, a manipulação do figurino, assinado por Juliana
Pfeifer e Sandra Pestana. Simples, belo e versátil, encontra especial destaque nas saias
que, se transformando em calças, vão compor, juntamente com paletós e punhais, as
figuras masculinas. Ao serem manipuladas pelas atrizes, elas se tornam véus,
mortalhas, extensões do corpo de Agda. Ao final do espetáculo, às saias e paletós, as
atrizes acrescem panos vermelhos – que lembram, em chave metonímica, trajes
eclesiásticos – para compor os diversos tipos que habitam a aldeia e que se dirigem ao
público, como promotores, juízes e carrascos, na condenação da mulher da qual não
conseguem suportar a singularidade.
Essa mesma delicadeza está presente no movimento quase coreográfico – e
aqui quero destacar um dos momentos mais belos de Agda: o insólito tango dançado
pelos homens que relembram, com raiva e desejo, sua amante – bem como na
inspirada trilha sonora, composta por Mauro Braga e Silas de Oliveira, e no trabalho
vocal das atrizes, principalmente de Aldiane Dala Costa que, em alguns momentos,
consegue produzir suspensões poéticas, em outros, uma musicalidade quase
encantatória.
O texto, aliás, merece especial destaque: a potente transcriação dramatúrgica,
a cargo de Moacir Ferraz (que também assina a direção), não só conserva a natureza
híbrida do conto de Hilda Hilst – no qual se mesclam as instâncias dramática, narrativa
e lírica – como, ainda, mantém toda a intensidade de sua escrita, ganhando preciosas
nuances no jogo entre a poesia e os corpos que transitam entre as energias masculina
e feminina, entre o humano e o animal, entre o profano e o divino.

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