Você está na página 1de 15

Neste breve ensaio, buscarei articular alguns dos textos das aulas “"Implicações entre

formas e usos" e "Magia das palavras e dos corpos", ambas inseridas no programa da
disciplina de Antropologia e Narrativa ofertada pela professora Vânia no primeiro semestre de
2021. Talvez o caminho entre uma ideia e outra seja mais tortuoso do que eu gostaria – mais
como um cipó torcido na floresta do que uma rua na cidade que liga via asfalto do ponto A ao
B. Pretendo, especialmente através dos textos de Leda Martins (ano), Hampaté-Ba (ano) e De
Certeau (ano), percorrer e experimentar àquilo que trata de memória, caminhos, enunciados,
grafias, lugares, espaços. Para tanto, vou passar por cada um dos textos – nessa ordem – e por
fim, se ainda houver fôlego, condensar percepções através do texto Singing the land, signing
the land, de Chambers e XXXXX (ANO).

Inicio

Pensei em articular alguns dos textos das aulas "Implicações entre formas e usos" e "Magia
das palavras e dos corpos". Pensei especialmente em tecer uma composição entre algumas
relações do texto de De Certeau, entre memória, caminho, enunciação como percurso, com a
noção de Hampate Bá da palavra ser vivificada através da vibração. Você comentou de um
texto de Maria Eugênia, que vou solicitar a ela; e ficou de me mandar o pdf de "Lines" do
Ingold e também o pdf de Steven Feld, "Birds, weeping, poetics and song in Kaluli
experiences". Já eu, fiquei de te mandar essa maravilha aqui, o livro-exibição de um pessoal lá
da Austrália que chama "Singing the land, signing the land":
http://singing.indigenousknowledge.org/

MARTINS, L. Perfomances da oralitura: corpo, lugar da memória. Letras


PGGL/UFSM, n. 26, 2003.

discorre, no caso congadeiro, como o saber institui-se também espacialmente. "Espaço


visitado é sítio consagrado, reterritorializado."

Martins busca descrever outros ambientes nos quais a memória “se inscreve, se grafa e se
postula” (p.63), para além da escrita: a voz e o corpo, e esses na performance da oralidade e
das práticas rituais, especialmente àquelas de matriz africana. O primeiro ponto que me
chamou atenção foi o apontamento da oralidade enquanto uma textualidade, pois justamente
opera por inscrições, ainda que em outros suportes (papel - corpo) e outros registros (o
graphen grego: “os locais da memória não se restringem à sua inscrição alfabética, à escrita”
(MARTINS,p.64),). Assim, convoca a relação memória-escrita-letras-visão-conhecimento-
cognição a se ampliar a outras possibilidades de inscrição e grafia: o corpo. Nesse feixe, não
pude deixar de pensar que o campo de percepção da escuta emerge com certo potencial,
especialmente quando em relação ao que a autora mobiliza em relação a voz. Com sua breve
descrição do que entende por performance (oral), pude compreender melhor as aplicações e
agenciamentos do termo: “numa performance da oralidade, por exemplo, o gesto não é apenas
uma representação mimética de um sentido possível, veiculado pela performance, mas
também institui e instaura a própria performance” (p.65). A escrita de Leda em certo sentido
parece brincar com essa ideia sempre dupla - “o gesto não é simplesmente narrativo ou
descritivo mas performativo” (p.65) - – pensar a caminhada (de certeau) como gesto. - que
convoca posteriormente em relação ao tempo, em relação à palavra poética que não só
representa mas agencia, em relação aos modos simultâneos de fazer, díspares mas não
contraditórios - ou, caso contraditórios, não excludentes.

“o corpo em performance é,não apenas, expressão ou representação de uma ação, que nos
remete simbolicamente a um sentido, mas principalmente local de inscrição de conhecimento,
conhecimento este que se grafa no gesto, no movimento, na coreografia; nos solfejos da
vocalidade (...) o que no corpo se reprete não se repete apenas como hábito, mas como técnica
e procedimento de inscrição, recriação, transmissão e revisão da memória do conhecimento”
(p.66)  Cantos, conhecimento grafado no corpo via ressonancia e reverberação da voz,
vibração

Diferenciação entre LUGARES e AMBIENTES da memória: (Pierre Nora (1995): “a


memória do conhecimento não se guarda apenas nos lugares de memória (lieux de mémoire),
bibliotecas, museus, (...) etc., mas constantemente se recria e transmite pelos ambientes de
memória (milleux de mémoire), ou seja, pelos repertórios orais e corporais, gestos, hábitos.”
(MARTINS, p.67)

“Palavra poética, cantada e vocalizada, ressoa como efeito de uma linguagem pulsional e
mimética do corpo, inscrevendo o sujeito emissor, que a porta, e o receptor, a quem também
circunscreve, em um determinado circuito de expressão, potência e poder. Como sopro, hálito,
dicção, acontecimento performático, a palavra proferida e cantada grafa-se na performance do
corpo, portal da sabedoria.” (p.67)
Encruzilhada: “lugar sagrado das intermediações entre sistemas e instânciasde conhecimento
diversos” (p.69) “a encruzilhada é lugar radical de centramento e descentramento, interseções
e desvios, texto e traduções, confluências e alterações, influências e divergências, fusões e
rupturas, multiplicidade e convergência, unidade e pluralidade, origem e disseminação.”
(p.70)

“Operadora de linguagens e de discursos, a encruzilhada, comoum lugar terceiro, égeratriz de


produção sígnica diversificada e, portanto,de sentidos plurais. Nessa concepção de
encruzilhada discursiva destaca-se, ainda, a natureza cinética e deslizante dessa instância
enunciativa e dos saberes ali instituídos (cf. MARTINS,1997, p.25-26)” (p.70)

No âmbito da encruzilhada, a própria noção de centro se dissemina, na medida em que se


desloca, ou melhor, é deslocada pela improvisação. (p.70)

“ A palavra, índice do saber, não se petrifica num depósito ou arquivo imóvel, mas é
concebida cineticamente” (p.76)  conectar c la em cima qd trata da palavra-movimento

Esse modo duplo que transpassa o texto conflui na noção de “oralitura”, termo que, para além
de remeter ao repertório da tradição verbal (e aqui me pergunto se existe diferença entre
“oral” e “verbal” que priorize a escolha de um e não de outro?), tem ênfase “ao que em sua
performance indica a presença de um traço residual (...) inscrito na grafia do corpo em
movimento e na vocalidade [aqui, de novo - por que não oralidade?]”. Esse corpo surge como
“o local da memória, o corpo em performance, o corpo que é performance (...) é um portal
que, simultaneamente, inscreve e interpreta, significa e é significado, sendo projetado como
continente e conteúdo, local, ambiente e veículo da memória” (p.78). “o fazer não elide o ato
de reflexão; o conteúdo imbrica-se na forma, a memória grafa-se no corpo, que a registra,
transmite e modifica dinamicamente.” (p.78)

HAMPATÉ BA, A. A tradição viva. In: Joseph KI-Zerbo (org). História geral da África.
2. Ed. Brasília: UNESCO, 2010.
Essas palavras - ecoar, ressoar - em especial, mas não só, parecem fazer o texto vibrar, o que
me leva a um ponto que me chamou muita atenção no texto de Hampâté-Bâ: o da fala como a
materialização das vibrações das forças - ou as potencialidades do poder, do querer e do saber
em estado de repouso até serem vivificadas pela Palavra divina, momento em que elas
começam a vibrar. A palavra enquanto movimento (Martins remete à raiz ntanga de uma das
línguas bantu do Congo donde derivam os verbos escrever e dançar). Além disso, Hampâté-
Bá indica “falar” e “escutar” como termos muito mais amplos do que costumeiramente o
tomamos: trata-se de uma “percepção total, de um conhecimento no qual o ser se envolve na
totalidade” (p.172)

Essas duas observações me fazem lembrar dos Guarani, de quando escutei de um amigo que -
endu é tanto “escutar com o ouvido” mas também “escutar com o corpo”, por isso que
geralmente os Guarani traduzem essa palavra tanto como “sentir” quanto como “escutar”.
Contextos em que a palavra é vinculada a uma origem parecem convocar outros tipos de
escutas e pôr a prova que é mera limitação sinestésica relacionarmos a escuta ao escutar-com-
o-ouvido e parar por aí. E a escuta, ao menos no caso dos Guarani, parecem vincular-se a
vibração - a vivificação da palavra divina via vibração: a palavra nhembodjaity, que parece
tratar de certa afinação que a pessoa deve ter com o corpo para poder acessar e alcançar certos
saberes, repercute - conforme uma amiga guarani me explicou - nessa relação escuta-vibração
(que tenho chamado de reverberação). Essa amiga me contou de um órgão, como um
aparelhinho, que tem dentro do corpo, que liga o ouvido ao coração (não sei indicar que parte
do corpo - vale perguntar a ela quando retornar). É esse aparelhinho que vibra quando se
escuta os mborai, os cantos, as ayvu porã, belas palavras. Assim, a reverberação dessas
palavras - ressonâncias - nos corpos parece ser a condição para a vivificar a memória
originária - o que, de alguma maneira, também é por em movimento.

Uma ideia presente em diversos momentos de sua argumentação é a de Vibração!

Retomando a origem divina da Palavra na tradição Bambara, Hamapate Ba aponta a


tradição oral como divina no sentido descendente e sagrada no sentido ascendente, sendo a
corporalidade o local de transmutação da divinidade em sacralidade, com a capacidade de
emitir vibrações sagradas que estabelecem comunicação. Este apontamento me lembra o
ditado “quem não sabe rezar, xinga a Deus!”

Ao ressaltar a “fala humana como poder de criação”, ele argumente como as


potencialidades do poder, do querer e do saber são colocadas em movimento através da fala,
considerada como vibrações das forças. Assim, se no Universo tudo é fala que virou coisa,
então tudo vibra! A concepção de que palavra é movimento e ritmo e transmite força no texto
está associada a sua dupla função de conservar e destruir, razão pela qual é a grande agente
da magia. Além disso, considerando a presença do movimento apontado pelo autor e
pensando com Bunseki Fu Kiau, que fala sobre o complexo cantar-dançar-batucar, como
forma expressiva fundamental da cultura Bakongo, seria interessante pensar as imbricações
dessas postulações, abordando, por exemplo, o dançar como manifestação, vibração, da
palavra no corpo.

“Assim, sacralizada pela Palavra divina, por sua vez a corporeidade emitiu vibrações sagradas
que estabeleceram comunicação com Maa Ngala” (HAMPATE BA, p.171)

A fala tem poder de manutenção, de conservar e de destruir.

"Ma Ngala, como se ensina, depositou em Maa as três potencialidades do poder, do querer e
do saber, contidas nos vinte elementos dos quais ele foi composto. Mas todas essas forças, das
quais é herdeiro, permanecem silenciadas dentro dele. Ficam em estado de repouso até o
instante em que a fala venha colocá-las em movimento. Vivificadas pela Palavra divina, essas
forças começam a vibrar. Numa primeira fase, tornam-se pensamento; numa segunda, som; e
numa terceira, fala. A fala é, portanto, considerada como materialização, ou a exteriorização,
das vibrações das forças." (HAMPATE BA, p.172)

 A fala coloca potencialidades [do poder, do querer e do saber] em movimento.


“Vivificadas pela Palavra divina, essas forças começam a vibrar.” (p.172)
 A fala como força cria a ligação de vai e vem [percursos, deslocamentos] que gera
movimento e ritmo. “Se a fala é força, é porque ela cria uma ligação de vaivém (...)
que gera movimento e ritmo, e, portanto, vida e ação.” (p.12)
 “(...) no universo tudo fala: tudo é fala que ganhou corpo e forma.” (p.172)
 “Em Fulfude,a palavra que designa fala (haala) deriva da raiz verbal hal, cuja ideia é
“dar força” e, por extensão, “materializar” (p.172) --- caminhos fazendo territorios

DE CERTAU, M. “O tempo das histórias” e “Caminhadas pela cidade”. In: DE


CERTAU, M. A invenção do cotidiano. 3.Ed. Editora Vozes: Petrópolis, 1990.

Nota introdutória: Relações entre memória - espaços - enunciados - caminhos - sonhos em


Certau. Lembrei de aspectos da filosofia budista e tentei explicar o que pensei. (Talvez o
pensamento tenha ido longe demais, mas foi o lugar (ou o espaço de um "não-lugar"?) que
chegou...)

MEMÓRIA DESLOCAMENTO ESPAÇOS CAMINHOS

Certau, chamou-me atenção as relações tecidas entre narratividade, memória, espaços,


percursos, caminhos. O autor, na tentativa de esmiuçar a memória e suas operações,
desenvolve alguns aspectos que parecem importar no modo de a conceber. Um deles é o de
que a memória está num “‘espaço’ de um não-lugar” (p.165), “vem de alhures (...) e se
desloca” (p.163). Além de elaborar sobre a localização ou a espacialidade da memória, aponta
a impropriedade da memória, que “produz num lugar que não lhe é próprio" (p.162). Esse
espaço não-lugar e impróprio se relaciona com a impropriedade dos percursos que tecem a
cidade, das pessoas que passam (passeam: inscrevem passos) mas sem territorializar (como
escreveu Rui, aqui no fórum), incluso reterritorializando e desterritorializando: os lugares, a
cidade, a memória, implantação do outro pelo “eu:” “articulação conjuntiva e disjuntiva de
lugares” (p.178). Movimentos que não se localizam, mas espacializam (p.176).

Essa mobilidade (da memória e seus deslocamentos, conforme Certau coloca, mas
penso também na mobilidade do ato de caminhar) se associa com a noção alteração (dupla
alteração: de si e do objeto que só conserva quando desaparece (p.162)). Inclusive, Certau
expõe que é deste modo que a memória obtém sua força de intervenção, “de sua própria
capacidade de ser alterada - deslocável, móvel, sem lugar fixo” (p.162). Penso nas
reverberações possíveis dessas qualidades da memória e do movimento do caminhante e do
caminho. Tece associações entre enunciado enquanto percurso, ou o “O ato de caminhar (...)
como espaço de enunciação” (p.177). Desenvolve como “os passos falam” nos trajetos
traçados pela cidade, mas não como um mapa, pois não cessam de criar e recriar os caminhos
possíveis, ou as espacialidades mesmas constituídas pela caminhada. "A caminhada afirma,
lança suspeita, arrisca, transgride, respeita etc, as trajetórias que ‘fala’.” (p.179). Se a
memória surge de alhures, de um não-lugar, o caminho parece ser essa instauração de um
entre-lugar, entre “cá e lá” - “caminhar é ter falta de lugar” (p.183). Apesar de uma aparente
diferenciação, o ato de caminhar e instaurar essas espacialidades na “cidade” parece
assemelhar-se a uma outra operação da memória: “Traço permanente: ela se forma (e seu
"capital") nascendo do outro (uma circunstância) e perdendo-o (agora é apenas uma
lembrança)” (p.162).

MOVIMENTO SONHO LUGAR


Antes de finalizar, gostaria de ressaltar algumas aproximações que Certau, enquanto
desenvolve sobre o “movimento”, tece entre a prática do espaço e o lugar sonhado. Ele aponta
que a prática do espaço (o caminhar) e o lugar sonhado são “o processo indefinido de estar
ausente e à procura de um próprio” (p.183). Não sei se entendi bem essa proposta. Mais
adiante, Certau afirma certo paralelo entre um não-lugar e lugares sonhados, mas me soou
passar despercebida uma distinção, que creio que ontológica, importante. Ou, na verdade, o
que eu gostaria de esboçar é modos de alongar essa percepção, esse paralelo. Penso em quais
são as implicações dessa análise se levarmos em conta radicalmente que a realidade tem “um
quê” de sonho. Lembro de uma frase de uma sadhana (livro de práticas) budista, uma filosofia
assídua na descrição da “realidade”: “possa eu perceber todas as experiências como sendo tão
insubstanciais quanto o tecido do sonho durante a noite”. Evoco também o estudo de
Prajnaparamita (vacuidade): “forma é vazio, vazio é forma” - não só a forma do sonho é vazia
(sem lugar), mas essa que nos soa real também. (Bom lembrar que não é porque é forma é
vazia que não “brilha” e produz realidades - nada de nilismos mau humorados). Assim, não
que não faça sentido associar o lugar sonhado como um não lugar, mas seria interessante
experimentar como esse tom de olhar para o lugar sonhado pode reverberar também nos
“lugares reais”. De alguma maneira, talvez o ato de caminhar dê essas pistas, no sentido de
fazer emergir os caminhos conforme os passos, de estar entre cá e lá, na instauração do outro
que surge relativo ao “eu”.

“O discurso produz então efeitos, não objetos. É narração, não descrição. É uma arte do
dizer.” (p.154)

“O relato não exprime uma prática. Não se contenta em dizer um movimento. Ele o faz.”
(p.156)  reverberação hampate-ba, performance leda Martins.
DE CERTAU,
1999, p.162

“A memória vem de alhures, ela não está em si mesma e sim noutro lugar, e ela desloca”
(p.163) – por isso faz caminhar?

“O modo da rememoração é conforme ao modo da inscrição”  Tlvz pensando nos guarani


aqui uma das importância d e fazer cm os antigos faziam ou cm ks nhanderu para vivificar e
acessar essa memor

CAMINHADAS PELA CIDADE

“Essas práticas do espaço remetem a uma forma específica de ‘operações’ (‘maneiras de


fazer’), a ‘uma outra espacialidade’ (uma experiência ‘antropológica’, poética e mítica do
espaço) e a uma mobilidade opaca e cega da cidade habitada” (p.172) aqui De Certeau refere-
se às práticas do espaço na cidade, mas penso utilizar essas primeiras duas definições –
operações e outra espacialidade – para pensar a constituição de espacialidade guarani.
”O ato de caminhar parece portanto encontrar uma primeira definição como espaço de
enunciação” (p.177)

“No quadro da enunciação, o caminhante constitui, com relação à sua posição, um próximo e
um distante, um cá e um lá.”  Como pensar a memoria nesse movimento do caminhante?

 Percurso como enunciado (p.179)

“A caminhada afirma, lança suspeita, arrisca, transgride, respeite etc., as trajetórias que
‘fala’ (...) Indefinida diversidade dessas operações enunciadores. Não seria portanto
possível reduxi-las ao seu traçado gráfico.” (p.179)

 “A arte de ‘moldar’ frases tem como equivalente uma arte de moldar percursos.”
(p.179)

Similitude entre discurso e sonho:

”o seu desenrolar
discursivo (verbalizado, sonhado ou andado) se organiza em relação entre o lugar de onde sai
(uma origem) e o não-lugar que produz (uma maneira de ‘passar’)” (p.183)

Ainda das relações entre enunciados e caminhadas, agora com o onírico: “descobrir nessa
outra face aquilo que numa prática do espaço é indissociável do lugar sonhado. Caminhar é
ter falta de lugar. É o processo indefinido de estar ausente e à procura de um próprio”.

“De fato, a memória é o antimuseu: ela não é localizável” (p.189)  vivência guarani
anticolonial no fundamento
Infâncias e metáforas de lugares

“A metáfora é a transposição para uma coisa do nome que designa uma outra diferente”
Aristóteles, Poética, 1457b (p.190)

“O memorável é aquilo que se pode sonhar a respeito do lugar” (p.190) (sonho do seu Carlito)

exibilão 5, trata dos distintos tipos de metáfora - tanto europeus qt yonglu - para tratar
da terra, do território. o modo yonglu de situar o território e de situar-se no território é
cantando-o. são outro tipo de metáforas, onde a base das reivindicações em relação a terra e
território tem como prioridade ontológica do Sonho. A metáfora aqui se dá através do canto e
da dança. é assim que resume-se a maneira pela qual o mundo tornou-se significativo - foi
sendo significado, foi-se fazendo seu sentido - pelas ações e jornadas dos Ancestrais. lembra,
àqueles que foram instruídos, os sinais de vida dos ancestrais que podem ser vistos na
paisagem. os ancestrais iam caminhando e nomeando, assim foram criando wana (unidades de
terra) e criando também relações entre elas, entre diferentes grupos. cada grupo que pertence a
uma terra específica está ligado a outros por pelo menos uma linha musical principal
(songline) (às vezes duas, às vezes mais). essas viagens dos ancestrais, caminhadas, são
recriadas rotineiramente nos cantos e danças narrativas. as metáforas que formam a ordem
social são do conhecimento dos yonglu.

Ao longo da exibição (a partir da página dois) colocam em comparação os dois sistemas


de manipular e perceber a terra – o europeu e o yonglu. Afirmam que “ambos sistemas
apoiam-se na metáfora, mas os tipos de metáfora e as maneiras em que cada metáfora é
considerada e usada são um pouco diferentes.” (p.2 – exibição 5)

Songlines are maps of the land Aboriginal people live on. People sing as they walk, about the
country they are passing through and the stories and their relationship to it. They are
connected to Dreaming Stories and to the stories told in dot paintings.

Songlines são mapas da terra em que os aborígenes vivem. As pessoas cantam enquanto
caminham sobre o país pelo qual estão passando e as histórias e sua relação com ele. Eles
estão conectados às histórias de sonho e às histórias contadas em pinturas de pontos.
songlines marcam o território, são como mapas. “singing the world into the existence”. para ir
de um lugar a outro, incluso para formar novas aldeias, se caminhava pelas linhas de som,
cantando o novo lugar a onde caminhavam,
By singing the world into existence, he said, the Ancestors had been poets in the original
sense of poesis, meaning 'creation'. chatwin

“A dança tão nitidamente captada e a canção que teria acompanhado sua elaboração
delimitam uma unidade de terra por meio do canto e da encenação de uma narrativa. Aqui
vemos uma forma bem diferente de metáfora, uma narrativa que registra o investimento de
uma determinada unidade de terra nomeada em um determinado conjunto nomeado de
pessoas. Ele resume a maneira pela qual o mundo se tornou significativo pelas ações e
jornadas dos Ancestrais. Lembra aqueles que foram devidamente instruídos dos sinais da vida
dos Ancestrais que podem ser vistos na paisagem. A dança e a música aludidas aqui afirmam
o título de uma unidade de terra e evocam um conjunto de fronteiras que foram constituídas
em uma rede de poder do conhecimento contestando e em conflito com a rede de poder do
conhecimento dentro da qual o mapa de Sydney Cove e os limites que ele registra teve vida.

A dança, no entanto, é apenas uma das formas de texto pelas quais o título de propriedade da
terra é afirmado e confirmado na Austrália aborígine.” (exibição 5, página 2)

Em inglês: “The dance so woodenly captured and the song which would have accompanied its
elaboration delimit a unit of land through singing and acting out a narrative. Here we see a
quite different form of metaphor, a narrative which records the investment of a particular
named unit of land in a particular named set of people. It summons up the way in which the
world was made meaningful by the doings and journeys of the Ancestors. It reminds those
who have been properly instructed of the signs of the Ancestors' living which are to be seen in
the landscape. The dance and song alluded to here assert title to a unit of land and conjure up
a set of boundaries which were constituted in a knowledge-power network contesting and
conflicting with the knowledge-power network within which the Sydney Cove map and the
boundaries it records had life.”

The dance, however, is just one of the forms of text by which title to land is asserted and
confirmed in Aboriginal Australia.” (exibição 5, página 2)

Paths were made by walking, or if the journey is by sea they might have paddled in a canoe.
A path might be symbolised in other ways, the flight of a mosquito, a bird or a bee, the
swimming of a shark or a fish. In social terms a journey links the groups of people in whom
the Ancestral beings vested land, and it links them in particular ways. Each landowning
group is linked with others by at least one major songline, two such songlines are usual and
more than two, frequent. These journeys are routinely re-created in narrative song and dance
in the Laynhapuy. The metaphors which form the foundation of the social order are common
and everyday knowledge amongst Yolngu.

Os caminhos eram feitos a pé ou, se a viagem fosse por mar, poderiam ter remado de canoa.
Um caminho pode ser simbolizado de outras maneiras, o vôo de um mosquito, um pássaro ou
uma abelha, a natação de um tubarão ou um peixe. Em termos sociais, uma jornada liga os
grupos de pessoas aos quais os seres Ancestrais investiram terras e os liga de maneiras
particulares. Cada grupo de proprietários de terras está ligado a outros por pelo menos uma
linha musical principal, duas dessas linhas musicais são usuais e mais de duas, frequentes.
Essas viagens são recriadas rotineiramente em canções e danças narrativas no Laynhapuy. As
metáforas que formam a base da ordem social são do conhecimento comum e cotidiano entre
os Yolngu.

Imagem 5.12 (exibição 5 página 4): Grid of


songlines from Central Australia.Peter Sutton suggests that much of the art of the Western
Desert Aboriginal people draws from 'a potentially infinite grid of connected places/
Dreamings/ people, in which real spatial relationships are. . . represented by connected
roundels' (Peter Sutton (ed.), Dreamings: The art of Aboriginal Australia, Viking, Penguin,
Ringwood, Vic., 1988, pp - 84, 85).
Tradução: Grade de canções da Austrália Central. Peter Sutton sugere que grande parte da arte
do povo aborígene do deserto ocidental se baseia em 'uma grade potencialmente infinita de
lugares/sonhos/pessoas conectadas, nas quais estão as relações espaciais reais. . . representado
por roundels conectados'

“Each landowning group is linked with others by at least one major songline, two such
songlines are usual and more than two, frequent.”  “Cada grupo de proprietários de terras
está ligado a outros por pelo menos uma canção principal, duas dessas canções são usuais e
mais de duas, frequentes.” (exibição 5, página 4)

“These journeys are routinely re-created in narrative song and dance in the Laynhapuy.”

DOMÍNGUEZ, M. Sentido na Dança. Sobre os movimentos no Arete Guasu dos Guarani do


Chaco Boreal Paraguaio. 2021. No prelo.

“Além das rodas de dança, considera-se também os deslocamentos do conjunto de músicos e


dançarinos por diferentes pontos do espaço das comunidades, observando as linhas que tais
deslocamentos desenham como uma teia de relações que dá forma à presença e marca o lugar
dos guarani nesse espaço. (p.6)

“Neste ensaio, dialoga-se com esse corpus de estudos, buscando complementar as análises
existentes por meio do exame da dança e dos movimentos como formas esteticamente
elaboradas de marcar o espaço chaquenho como um lugar guarani.” (p.7-8)

“Como acontece com outros gêneros musicais, em outros contextos, percebe-se aqui uma
associação estreita – que é parte dos conhecimentos associados ao ritual – entre determinados
sons e determinados movimentos.” (p.9)

“E, do mesmo modo que em muitas festas das terras altas, o desenho ou as formas visuais que
o deslocamento produz também são elementos centrais na estética do evento. O desenho que
se forma no chão de terra batida, a partir dos deslocamentos durante os três dias do arete
guasu, cria uma malha que agrega diferentes pontos do espaço da comunidade. A forma visual
que resulta da união dos pontos que o conjunto de músicos e dançarinos percorrem ao longo
dos três dias de festa é a de uma rede de várias camadas que liga esses pontos do espaço por
meio de linhas resultantes das caminhadas.” (p.17)
“Por sua vez, o deslocamento do som do arete, acompanhado ininterruptamente por um passo
de dança regular e simétrico, conduz à percepção de uma forma no espaço físico da
comunidade. Essa forma é composta por linhas que unem determinados pontos, formando
uma rede ou teia que relaciona as casas.” (p.20)

“Aqui o oguata, a caminhada, mais do que corroer ou diluir chefias consolidadas, reforça as
alianças que as sustentam. Este recurso é explorado sistematicamente ano após ano,
atualizando, por meios estéticos, a experiência das linhas e da forma singular que os
movimentos criam. Trata-se de uma construção sensível que se articula graças à gramática
redundante do ritual. Nela, os sons, as imagens e os movimentos, simultaneamente, dão forma
a uma experiência multissensorial do espaço que o transforma num lugar – um lugar guarani
no Chaco.” (DOMÍNGUEZ, 2021, p.20-21)

Você também pode gostar