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Tradizer

Alexandre Nodari

Prefãcio de Algo infiel: corpo performance tradução, de Guilherme Gontijo Flores & Rodrigo
Tadeu Gonçalves, com fotografias de Rafael Dabul. Desterro: Cultura e Barbárie; São Paulo:
n-1 edições, 2017

A certa altura de Grande sertão: veredas, Riobaldo descreve a ação de seus companheiros
rastreadores por meio de um neologismo: “o Suzarte e o Tipote, e outros, com o João
Vaqueiro, rastreavam redobrados, onde em redor, remediando o mundo a alho e faro. Tudo
eles achavam, tudo sabiam; em pouquinhas horas, tudo tradiziam.” A tradicção aparece, assim,
como uma curiosa modalidade de tradução em que não há transporte de uma língua a outra,
mas sim um envio do corpo à letra: trata-se da conversão, por meio de um saber entre a
experiência e a adivinhação, de vestígios de gestos e afetos humanos e não-humanos, dos
movimentos dos corpos e sua interação com o mundo, em uma dicção que parece ser o
paradigma de todo pensamento (“para pensar longe, sou cão mestre – o senhor solte em
minha frente uma idéia ligeira, e eu rastreio essa por fundo de todos os matos, amém!”, diz
Riobaldo). Entre o dito e o não-dito, o tradizer rosiano aparece como um entre-dizer que
busca “ler o que nunca foi escrito”, como apregoava Hoffmansthal, fazendo da aletria, da
ausência de letra, uma hermenêutica, uma leitura de sinais, afinal, “A vida também é para ser
lida” (leitura e corporalidade). Mas esse tradizer é também um tresdizer, um dizer atravessado,
um dizer duplamente equívoco, pois composto, por um lado, de várias vozes ao mesmo
tempo (quem fala?, os rastreadores ou os animais e corpos do mundo com seus sinais?: uma
com-tradicção), e constituído, por outro, pela possibilidade do erro e do desvio, já que
Hermes, o deus da interpretação, também é o deus do engano (e é assim que um guia, em
um erro de leitura, faz o bando de Riobaldo andar “desconhecidos no errado”, um desvio
do sentido: uma contra-dicção).
Mas não seria a tradicção uma via de mão dupla? E se o movimento tradutório em
jogo fosse não apenas do corpo à letra, do rastro ao sentido, mas, radicalizando o equívoco,
também o contrário, ou seja, da letra ao corpo, do sentido aos sinais? Essa parece ser a aposta
em jogo nesses ousados fragmentos, rastros de uma reflexão e práxis profundas e engajadas,
de Guilherme Gontijo Flores e Rodrigo Tadeu Gonçalves. O termo rosiano, co-incidindo
nesse livro, ganha assim um outro sentido, um desvio de sentido: tomando a tradução como
inseparável da performance, a tradicção que aqui aparece implica o próprio corpo na letra,
não dobrando apenas a cultura sobre a natureza, mas também a natureza sobre a cultura.
Nesse modo de pensar e perfazer a tradução, a hesitação entre som e sentido que marca a
poesia segundo Valéry mostra-se, para retomar uma analogia lévi-straussiana por sua vez
sublinhada por Marco Antonio Valentim, uma hesitação entre natureza e cultura, em que o
dito serve de palco para o não-dito. “Ao tradizer,” dizem os autores (mas qual deles está
dizendo?), “não pretendo de modo algum atualizar a voz perdida, nem me alocar
milagrosamente no centro da antiga phônè. Quero, pelo contrário, virtualizar seus traços, quer
dizer, provar meu poder corporal e sensível no contato das virtualidades de seus traços”.
Trata-se, portanto, de um encontro de corpos que se dá no encontro de línguas e linguagens,
um encontro que é também um desencontro, já que infiel à origem, mas também infiel a si
mesmo, pois visa uma alteração. É como se o que estivesse em jogo fosse uma saída de si,
uma saída do presente, não rumo ao tempo do texto tradito, mas sim em direção a um
espaço-tempo estórico (para lembrar Rosa novamente), em que múltiplas historicidades e
presentes (o do original, o de suas inúmeras traduções e leituras, o tempo do tradutor) se
encavalgassem sobre aquele que tradiz. Ao enfatizar a performance, ou melhor, mostrar a
sua indissociabilidade com a tradução, a experiência (experimento e vivência) tradutória dos
autores parece, assim, questionar o estatuto do original de uma forma radical, apontando pra
ideia de que aquilo que chamamos de “texto” não é o original, mas o conjunto de suas
variações, ou seja, de suas performances (traduções, leituras), incluindo a original (que passa,
assim, a ser considerada como apenas mais uma performance). Isso quer dizer que não é o
“texto original” que contém virtualmente suas traduções, suas possibilidades: o “original” é
ele mesmo uma possibilidade de tradução do “texto”.
Para colocar de outra maneira: a teoria da tradução que se desenvolve nesse livro
talvez seja da ordem do perspectivismo (de Leibniz, Nietzsche, Ortega y Gassset, e também
obviamente do pensamento ameríndio tal como tradito por Eduardo Viveiros de Castro e
Tânia Stolze Lima). Ou seja, o que mudaria na tradução não seria o enunciado, mas a
enunciação; é como se, para usar uma imagem paradoxal, o que mudasse na tradução não
fosse o que é dito, o texto, que permaneceria literalmente igual na língua de destino ou em cada
leitura, inclusive graficamente, mas o mundo (o não-dito) em que é dito. Isso significa dizer
que em toda tradução, o que resta, o que fica do texto, é a letra. Não teríamos chegado, às
avessas, em um novo essencialismo nessa tresleitura do livro? Talvez, mas só se ignoramos
que em toda letra, como em toda língua, há um corpo implicado: “A língua chinesa clássica”,
afirma Fabián Ludueña, “revela uma propriedade que, paradigmaticamente, habita também
todas as línguas do Ocidente. A língua é o guardião de alguns gestos fundamentais do
ánthropos, de fórmulas de pathos que deixam seu arqui-traço na escritura. Portanto, no
princípio não era a escritura, mas o gesto patético fundacional que deixa seu traço na
escritura. Existe, efetivamente, um arqui-traço, mas se trata de um ‘arqui-pathos’ que é gesto,
voz e affectus condensados. A escritura, ao guardar o traço do gesto, atesoura a marca do
corpo na escritura (e não apenas a marca da escritura no corpo como sustenta uma tradição
que encontra seu caminho entre Nietzsche e Kafka). A metafísica ocidental privilegiou o
escrito como signo frente ao fônico como propriedade distintiva, mas esquece assim o
elemento constitutivo das articulações do Logos: o corpo fono-poético. O dizer e o escrito se
sustentam em e com o corpo. Por isso, a escritura como letra morta é arqui-traço do corpo
vivente que a engendrou. Consequentemente, não há hermenêutica verdadeira se esta se
coloca, unicamente, como vivificadora do espírito da letra escrita e não como restituição do
corpo atravessado pela hiância do pathos espectral”. São esses vestígios dos corpos, esse
atravessamento pelos fantasmas que Guilherme e Rodrigo querem fazer ecoar nos seus e
nossos corpos: ecoar, isto é, repetir (à letra) com diferimento e diferença, fazendo atravessar
essa diferença nos seus próprios corpos, mas também no corpo do texto, no corpo da letra.
O literal se revela nesse tradizer como um litoral, para retomar Lacan – e lembremos também
do que dizia Lévi-Strauss: todo mito se situa na fronteira entre povos, todo mito é tradução
de outro mito. Trata-se de uma margem pela qual corpos e histórias enviam-se uns aos
outros, tocam-se, atravessam-se: o espaço estórico, o espaço da leitura, cuja forma mais
extrema, ao mesmo tempo mais ousada e mais arriscada, mais aberta ao equívoco, é a
tradução. Ou melhor, a tradicção. Cabe, assim, ao leitor se deixar atravessar pelo que é dito
a muitas vozes no livro. Ou melhor, atravessá-lo ele mesmo em direção ao não-dito,
experimentá-lo em seu próprio corpo, tradizê-lo.

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