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o soldado nu
origens da dança butô

Éden Peretta

2011

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Nota do autor
Com o objetivo de proporcionar uma maior fluidez para
o texto, a ordem dos nomes em japonês foi invertida,
adequando-a ao costume da maioria das línguas
ocidentais no qual o nome antecede o sobrenome. Pelo
mesmo motivo, as citações em língua estrangeira foram
por mim traduzidas livremente para o português.

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“Eu sou um soldado nu voluntário, forçando a
sua marcha para confrontar a movimentação das
pernas que foram domesticadas pelo chão”
(Hijikata, To Prison, 1961, TDR, 2000, p. 48)

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ÍNDICE

APRESENTAÇÃO [12]
CAPÍTULO 1
A CIDADE DAS CINZAS [16]
1.1) A AMBIVALÊNCIA OCIDENTAL [18]
1.2) PENUMBRAS E NOSTALGIAS [28]
1.3) RESQUÍCIOS DO OCIDENTE [44]

CAPÍTULO 2
O ANKOKU BUTŌ DE TATSUMI HIJIKATA [50]

2.1) DANÇA DO TERRORISMO [52]


2.2) O SOLDADO NU [54]
2.3) A ARMA LETAL QUE SONHA [73]
2.3.1) Tōhoku [74]
2.3.2) Literatura francesa [79]
2.3.3) Marginalidade urbana [84]
2.3.4) Vanguarda suja [88]
2.3.5) Kazuo Ōno [92]
2.4) OFICINA DE CARNE E SANGUE [94]
2.4.1) Metamorfose [99]
2.4.2) Nikutai: memórias e políticas do corpo de carne [106]

CAPÍTULO 3
O BUTŌ DE KAZUO ŌNO [114]

3.1) O CORPO COMO INTEIREZA [116]


3.2) O ARTESÃO [117]
3.3) AS VERDADES DO CORPO [137]

CAPÍTULO 4
BUTŌTAI: O CORPO BUTŌ [148]

4.1) CORPOREIDADE CRÍTICA [150]


BIBLIOGRAFIA [164]

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APRESENTAÇÃO

Desde suas raízes, a dança Butō sempre esteve envolvida por uma
atmosfera feita de polêmicas, rupturas e continuidades. Filha indócil de sua
época, essa manifestação político-artística traz marcada em todo seu processo
de configuração histórica as contradições inerentes a um preciso espaço-tempo.
Construiu-se nos interstícios de uma cultura em ebulição; no solo fértil de uma
cultura experimental e promíscua que, paradoxal e contemporaneamente,
recusava e se alimentava de fragmentos tanto de suas origens nipônicas como
da cultura ocidental. Descontinuidades e releituras das mais diferentes matrizes
artísticas e culturais formam, portanto, o húmus do qual a dança Butō tirou
suas forças para afirmar-se enquanto uma nova epistemologia do corpo, capaz
de influenciar de modo contundente inúmeras linguagens artísticas no mundo
contemporâneo.
Polêmicas, e por vezes equivocadas, também são as leituras que muitos
pesquisadores ocidentais fazem da própria dança Butō, ao tentarem isolá-la
artificialmente ao interno de polos aparentemente contraditórios, rotulando-a
por vezes como um exclusivo exotismo cultural nipônico – e por isso de difícil
digestão para o gosto estético estrangeiro –, por outras, como uma
consequência direta da acidez do pensamento crítico ocidental. Exemplos desse
tipo de análise aparecem nas interpretações simplistas que buscam vincular a
estética e a filosofia que a dança Butō coloca em movimento ao trágico
episódio da bomba atômica. De outra parte, no outro polo de interpretação,
apresenta-se a insistente submissão do projeto político-artístico criado por
Tatsumi Hijikata aos princípios heréticos da obra de Antonin Artaud, como se a
“rebelião do corpo” colocada em cena pelo artista japonês fosse uma
materialização direta do projeto teórico-poético do subversivo ator francês.
Marginalizada e refutada enquanto manifestação artística no Japão por
muitas décadas, a dança Butō chegou ao Ocidente somente nos últimos anos da
década de 70 e, desde então, afirmou-se no campo artístico devido
principalmente à qualidade da presença cênica de seus dançarinos e ao impacto
gerado pelo universo simbólico e semântico que suas atuações descortinavam
diante do olhar ocidental. A década de 80 presenciou uma profícua difusão da
dança Butō nos mais diferentes âmbitos artísticos ocidentais. Tanto no Japão
como em muitos países da Europa e das Américas proliferaram diversos grupos
e performers que assumiram a dança Butō como matriz poética de suas práticas
artísticas, senão necessariamente no tecido dramatúrgico de suas obras, ao
menos nos fundamentos de suas técnicas de preparação corporal em busca de
uma eficácia da presença cênica. Assim, de forma mais instrumentalizada e
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despida de seus princípios subversivos, a dança Butō se apresenta atualmente
extremamente difundida nos meios artísticos ocidentais. Talvez por isso muitos
a considerem, equivocadamente, como mais uma “técnica” de dança, quando
não um exótico método de training.
Raros foram aqueles artistas que conseguiram, de fato, transcender a
superficialidade de uma instrumentalização estética (tão importante na
concepção artística ocidental, de matriz visual) e se aproximaram das raízes
desse verdadeiro projeto herético. Raízes essas que, apesar de serem passíveis de
uma relativa e linear reconstrução histórica, refutam qualquer idealismo
estagnante, afirmando a sua força justamente na reapropriação e na atualização
constantes às quais estão sujeitas, nos diferentes espaços e tempos onde são
vivificadas. A subversividade e a “revolta do corpo” reivindicadas pela dança
Butō são, portanto, dimensões vivas e instáveis, devendo ser reinventadas pela
cultura e pelas “trevas” nas quais estão submersos os mais diferentes corpos.
As pesquisas acadêmicas brasileiras sobre o Butō tiveram início já na
década de 80, juntamente com as primeiras experimentações em campo cênico.
Contudo, ainda hoje apresentam resultados muito modestos diante do enorme
potencial técnico, filosófico e poético presente nessa particular manifestação
corêutica. Os poucos livros e os diversos artigos publicados no Brasil até hoje
nos ajudam bravamente a reconstruir a sua densidade em fragmentos, uma vez
que buscam analisar o Butō por vezes através de relatos subjetivos de
experiências particulares, por outras se valendo de chaves de leitura atuais, tais
como aquelas oferecidas pelos estudos semióticos. Em grande parte dos
referidos estudos podemos também encontrar interessantes contribuições que
buscaram – mesmo que de modo pontual – reconstruir o seu processo de
configuração histórica.
A presente publicação tem como objetivo, portanto, contribuir com
esse esforço coletivo de análise e reinterpretação das inúmeras potencialidades
que a dança Butō oferece ao campo das artes cênicas contemporâneas. Para
tanto, busca desconstruir alguns equívocos predominantes em sua interpretação
ocidental, bem como apresentar novos elementos até então desconsiderados ou
desconhecidos por grande parte das pesquisas brasileiras sobre o assunto. A
reunião deste material em um único compêndio tem justamente a intenção de
oferecer ao público interessado nesta instigante manifestação corêutica uma
fonte histórica mais ampla e densa, que potencialize o desenvolvimento de
outros futuros estudos.
A pesquisa aqui compartilhada é resultado da tradução e da adaptação
de grande parte de minha tese de doutorado defendida junto à Universidade de
Bolonha e realizada com apoio do Programa Alban – Bolsas de Alto Nível da
União Europeia para a América Latina. O processo investigativo que deu
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origem ao trabalho baseou-se prioritariamente sobre uma abordagem
metodológica historiográfica, valendo-se da leitura de grande parte das
publicações em línguas ocidentais. A investigação foi potencializada pelo acesso
direto aos diversos materiais e fontes primárias existentes tanto no arquivo
Kazuo Ōno, hospedado pelo Departamento de Música e Espetáculo da
Universidade de Bolonha, na Itália, como no arquivo Tatsumi Hijikata
hospedado pela Universidade de Keio, em Tóquio, Japão. Buscando preencher
algumas lacunas e contradições identificadas durante essa investigação
bibliográfica, foram realizadas também entrevistas ao vivo com alguns
importantes pesquisadores, historiadores e críticos – japoneses e italianos – da
dança Butō, bem como com o dançarino Yoshito Ōno – filho e herdeiro
artístico do mestre Kazuo Ōno.
As linhas que se seguem não buscam, contudo, exaurir a discussão
sobre o argumento, congelando-o em uma reconstrução histórica
pretensamente monolítica. Tentam sim, pelo contrário, oferecer-se como uma
leitura de referência para os novos e os experientes pesquisadores da área de
Artes Cênicas. Uma leitura em movimento, cheia de fissuras, limites e potências,
passível de ser “escovada a contrapelo” – em uma imagem benjaminiana – e
também rediscutida em seus silêncios e ausências. Uma leitura singular desse
intrigante universo feito de amor, carne, trevas e poesia.

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1.1) A AMBIVALÊNCIA OCIDENTAL

A dança Butō nasce ao interno de um movimento de contracultura no


Japão do pós-guerra, como resposta de uma cultura derrotada e humilhada que
se encontrava submissa à invasão dos valores e das práticas culturais ocidentais,
impostos como novos paradigmas de beleza e verdade. Neste sentido, tentar
entendê-la em sua complexidade requer necessariamente um exercício ulterior
de reconhecimento deste contexto mais amplo que a configura interna e
externamente, permeado por fatores sociais, históricos, políticos, artísticos e
culturais que nela deixaram suas profundas marcas.
Mesmo que a primeira performance de dança Butō1 seja datada
oficialmente pelos historiadores no ano de 1959, é possível afirmar que esta foi
apenas um dos cumes de um intenso processo iniciado muitos anos antes e que
encontraria seu ápice somente mais de uma década depois. Kinjiki foi apenas
um primeiro esboço de uma revolução corêutica que já estava em movimento,
em um plano formal, ao menos desde 1949 – quando Tatsumi Hijikata já fazia
suas experiências amadoras na dança e assistiu pela primeira vez uma
performance de Kazuo Ōno, sendo profundamente tocado por sua
“temporalidade doente”. Sob um plano informal, ao invés, desde a sua distante
infância na região fria e agrícola do Tōhoku, no nordeste do Japão, Hijikata veio
construindo a sua poética permeada por fortes ventos, plantações de arroz,
barro e solidões.
Neste sentido, para se compreender o processo histórico de construção
da dança Butō é necessário concentrar-se principalmente no período do
segundo pós-guerra japonês, tentando assim colher a atmosfera que envolvia
aqueles anos e, com isso, tocar com as duas mãos no húmus que possibilitou o
surgimento desta manifestação tão singular.
Em agosto de 1945, com o fim da Segunda Guerra Mundial e a derrota
humilhante sofrida pelo exército japonês, teve início um longo período de
ocupação política, cultural e geográfica do território japonês por parte das
forças armadas norte-americanas, chefiadas pelo então general Douglas
MacArthur. Uma nova constituição foi redigida e imposta ao povo japonês,
instituindo novas formas de relações jurídicas e militares que o submetiam ao
poder quase onipotente de seu novo administrador. Com a assinatura do
polêmico Tratado de Mútua Defesa (Nichibei Anzen Hoshō Jōyaku), renovado a

1 Kinjiki – “Cores proibidas”, performance criada por Tatsumi Hijikata, com a


participação de Yoshito Ōno e inspirada no romance de Mishima sobre a
homossexualidade. Mais detalhes sobre este polêmico espetáculo que revolucionou a
dança moderna japonesa serão trabalhados nos próximos capítulos.
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cada dez anos, o Japão renunciou oficialmente à recriação de suas forças
armadas nacionais, permitindo-se somente a gestão de uma guarda nacional
interna, situação esta que permanece até os dias atuais.
Segundo Barber (2006, p. 11), a ocupação norte-americana do solo
japonês durou oficialmente sete anos, construindo durante todo este período
uma estranha situação na qual a relação entre os dois países baseou-se sobre
uma paradoxal ambivalência, pois o “inimigo” que havia destruído o Japão
agora se apresentava como um “amigo” que procurava auxiliar na sua
reconstrução. A partir deste momento, o processo de modernização do país,
iniciado quase um século atrás com a abertura cultural da Era Meiji, cresceu em
modo exponencial e sofreu um forte deslocamento no que se refere à sua
matriz cultural de referência, abandonando o modelo europeu em favor de um
projeto americano de sociedade. Assim sendo, o conceito de “modernização”
do Japão pós-guerra tornou-se automaticamente um sinônimo de
“americanização” das relações e de seus processos de desenvolvimento.
A dominação política e o projeto de reconstrução comandado pelo
general MacArthur acabou modelando uma nova paisagem para o Japão. A
gigantesca expansão industrial e empresarial realizada na segunda metade da
década de 40 trouxe consigo não somente mudanças no plano político e
econômico, mas principalmente na vida cotidiana dos cidadãos. Em menos de
uma década, as marcas da poluição eram já evidentes seja nas transformações
profundas sofridas pelo meio rural e urbano, seja na evidente intoxicação de
seus habitantes, os quais se viam submetidos a mudanças profundas também
em suas dinâmicas sociais.
As novas leis civis impostas pelo governo propiciaram substanciais
alterações nas relações humanas e comunitárias, impondo novos modelos na
instituição da família, mudanças na relação entre homens e mulheres, e uma
reforma no sistema das terras agrícolas. A rápida urbanização realizada no meio
rural e na reconstrução das cidades impôs um novo modelo de relações
comunitárias, uma vez que instituiu a criação de condomínios e, assim, alterou
significativamente a antiga relação de intimidade que existia entre os vizinhos e
com a própria vila.
O início da década de 50 assistiu a reedificação de um Japão
profundamente subjugado militar, cultural e sexualmente pelos Estados Unidos
da América. A administração do general MacArthur, além de projetar as bases
de um futuro Japão, procurava também reconstruir o seu passado, atuando
incessantemente com um departamento de censura que se responsabilizava em
analisar e selecionar as manifestações artísticas – como filmes e espetáculos –
buscando apagar as imagens de um passado feudal japonês e, principalmente, as
possíveis memórias da própria ocupação norte-americana.
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Mesmo com o fim da ocupação, em 1952, e a consequente retirada
oficial dos Estados Unidos, a cidade de Tóquio ficou ainda assim marcada
fortemente com um acento norte-americano. Com sua retirada administrativa e
geográfica, os Estados Unidos deixaram como uma herança imposta resquícios
físicos e culturais de sua presença. Assim sendo, a partir da década de 50, o
povo japonês passou a conviver cotidianamente com a onipresença das bases
militares, os filmes, as músicas, as danças e os entretenimentos sexuais criados
pelos norte-americanos.
O Tratado de Mútua Defesa, que institucionalizava permanentemente a
subserviência japonesa aos Estados Unidos, começou a ser questionado pela
população e já nos últimos anos da década de 50 começaram as primeiras
manifestações populares organizadas que pediam o seu fim. O ano de 1960
ficou marcado pela forte contestação e pelos tumultos provocados pelos
movimentos sociais organizados de oposição devido à assinatura, por parte do
governo, da renovação do tratado, explodindo em grandes conflitos de rua2.
Estes movimentos de resistência começaram a crescer e organizar-se,
exacerbando-se nos primeiros anos da década de 60 principalmente quando as
bases militares norte-americanas sediadas no Japão começaram a servir como
base de lançamento e fornecimento de armas para as forças armadas norte-
americanas que atacavam o norte do Vietnã naquele período.
Toda essa atmosfera tensa de conflitos, submissões e rebeliões não
ficou isolada somente em um âmbito político, mas começou a mover-se
também para o interior de outros domínios sociais, como a arte e a cultura
experimental. Para Barber (2006, p. 32), um dos principais fatores que
proporcionaram esta singular costura entre arte e protesto foi a destruição total
de Tóquio. Com os bombardeamentos sofridos durante a Segunda Guerra
Mundial, a cidade foi completamente destruída, todas as edificações foram
derrubadas, deixando os sobreviventes do extermínio sem nenhuma referência
física ou visual. A “cidade das cinzas” acabou gerando assim nos jovens da
época um estranho sentimento de retorno ao zero em diferentes sentidos: um
paradoxal sentimento de liberação.

2 Segundo Packard (in Centonze, 2009, p. 163), “as manifestações no Japão pós-guerra
– conhecidas em japonês como ‘demo’– transformaram-se parte em ritual, parte em
recreação, e parte em protesto, com suas proporções variando de acordo com a ocasião
e com seus participantes. Ao contrário do que indicado em algumas notícias, elas não
eram ‘motins’, ainda que tenham gerado motins; tão pouco eram espontâneas, sendo
cuidadosamente organizadas e rigidamente disciplinada. Existiram 223 demo envolvendo
estimativamente 961,000 pessoas em Tóquio entre abril de 1959 e julho de 1960”.
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É interessante perceber como este libertador sentimento de total
destruição e ruína formou uma componente integral das novas estratégias
criativas em Tóquio nas décadas pós-guerra. Praticamente toda a cidade tornou-
se ela mesma uma espécie de material maleável para ser recriada por atos de
performance, transformando-se em uma gigantesca arena de experimentações
urbanas por todo o período dos anos 60.
Alimentando-se deste contexto, a arte japonesa do pós-guerra
refundou-se e desenvolveu-se a partir de ações entorno à problemática do
corpo e do lugar. Floresceram assim muitas experiências baseadas em trabalhos
físicos e na exploração de lugares não específicos, pesquisando as relações entre
as possibilidades de expressão corporal e as potencialidades presentes nas
características dos lugares e dos ambientes. Fraleigh e Nakamura (2006, p. 74),
ressaltam tal evidência quando afirmam que: “como a arte moderna de Jackson
Pollock na América na qual ele jogava tinta sobre as telas para ter seu corpo
visceralmente envolvido, o movimento e a arte antissocial no Japão foram
orientadas para a ação, colocando importância no processo temporal da
experiência”.
Neste sentido, é possível perceber como a cultura urbana do pós-guerra
foi também a cultura do corpo humano, reelaborando-o, ressignificando-o,
reinventando-o, caracterizando-se assim como um refluxo que se contrapôs ao
conjunto de perspectivas que o restringiam brutalmente logo após a guerra, no
que diz respeito às suas formas e ao seu status. Deste modo, começam a ser
colocadas as bases para a edificação de um imaginário e de uma linguagem
gestual próprias a um corpo constantemente novo, buscando recuperar as
supostas idiossincrasias do “corpo japonês” para, de alguma forma, tentar
salvá-lo do dualismo imposto pelos ocidentais.
Este sentimento do “novo”, de alguma maneira, já tinha sido
desenhado também pelos poetas e artistas japoneses dos anos 20, os quais
puseram os fundamentos do movimento surrealista no Japão, fortemente
influenciados pelos seus contemporâneos surrealistas franceses, do quais
traduziram um grande número de obras. Historicamente, enquanto
movimentos artísticos europeus, o Dadaísmo antecedeu o Surrealismo,
introduzindo categorias que posteriormente foram apropriadas, negadas ou
reelaboradas pelos movimentos subsequentes, tais como a negação da cultura e
o antirracionalismo. Objetivamente, entre as décadas de 10 e 20, no Japão não
existiu um movimento paralelo ou equivalente, a não ser o posterior
movimento neodadaísta que no início dos anos 60 apresentava-se já constituído
e, juntamente com os resquícios do surrealismo japonês, influenciava
significativamente a poética da vanguarda daqueles anos.

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Em meio ao fermento da arte urbana dos anos 60, o corpo humano
começou a ser projetado por manifestações que exaltavam o tumulto sexual e a
dissidência social, as quais, quando somadas, moviam e potencializavam a
cultura artística experimental de oposição no pós-guerra. É ao interno deste
contexto que surge aquilo que a mídia da época intitulou de “vanguarda suja”,
isto é, um conjunto de artistas provindos das mais diferentes formas de
expressão que se uniam em eventos e happenings em diversos ambientes,
explorando os limites extremos do corpo, do poder social e dos atos sexuais.
Deste modo, procuravam contrapor-se aos paradigmas impostos pela cultura
vigente que proclamava a construção de um “limpo e iluminado” Japão.
É interessante observar que neste período, no início dos anos 60, este
coletivo de artistas da “vanguarda suja” que impulsionava a cultura artística
japonesa, mesmo confrontando-se com os valores oprimentes provindos da
cultura ocidental, contemporaneamente, tinha também como fonte de
inspiração os contra-movimentos endógenos a esta própria cultura. Quase toda
a arte experimental dos anos 60 possuía uma intimidade e, portanto, sofria
influências das obras de grandes nomes seja da literatura crítica francesa como
da ácida filosofia alemã.
A literatura francesa, particularmente através de nomes como Conde
de Lautréamont, Jean Genet e Marquês de Sade, figurava como leitura de
cabeceira de muitos dos personagens mais importantes da revolução artística do
pós-guerra japonês. Isto porque através de seus escritos poéticos conseguiam
dar forma à centralidade de um corpo constantemente em oposição, à uma
sexualidade metamórfica e ilegal, as quais pareciam apresentar-se em uma
perfeita sintonia com a aura de dissidência social e revolução corporal gerada
pelas ruas de Tóquio naqueles anos.
A vanguarda artística dos anos 60, com sua postura de ruptura e
rebelião3, direcionava seu antagonismo não somente às manifestações e
instituições ocidentais, mas também às manifestações japonesas que se
construíram nas décadas precedentes sob influência dos valores e paradigmas
provindos do ocidente. Sob a ótica deste coletivo, estas também tinham se
tornado conservadoras e por isso estavam prontas para serem subvertidas pela
nova geração, a qual não se satisfazia mais com propostas que julgava

3 Neste período, os protestos em âmbito artístico foram estimulados pelo movimento


de vanguarda angura (teatro underground).“Angura sintetizou a problemática que envolvia
não somente questões japonesas, mas também questões ‘globais’ – se não
contemporâneas – da existência humana” (Centonze, 2009, p. 163).
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ultrapassadas, como o próprio Shingeki4, impulsionando assim a criação de
novos grupos alternativos.
O Shingeki, enquanto um movimento social politizado e filiado ao
Partido Comunista Japonês entre os anos 20 e 30, foi fortemente censurado e
reprimido pelo governo militar durante a Segunda Guerra Mundial, voltando
com toda a sua força no período da ocupação norte-americana, cristalizando-se,
porém, dentro a uma ortodoxia que monopolizava o teatro já no final dos anos
50. Esta cristalização foi apenas um dos motivos para que, na leitura dos jovens
artistas experimentais, o Shingeki já não fosse mais capaz de concordar
significativamente com os interesses do Japão contemporâneo do pós-guerra,
mesmo tendo contribuído substancialmente para a sedimentação de uma
proposta que revolucionou o teatro japonês no início do século XX.
As tragédias ocidentais, com seus conceitos filosóficos e moralizantes,
somados à sua precisa concepção de liberdade individual, eram completamente
rejeitadas pela vanguarda teatral, da mesma forma que o eram também as
temáticas colocadas em cena pelo Shingeki, nas quais o ocidente figurava
tendencialmente como protagonista e o Japão parecia possuir somente um
papel marginal. Em contraposição, os jovens artistas buscavam construir em
suas experimentações uma estrutura verdadeiramente anômala que fosse capaz
de utilizar de modo radical os termos universais, para expressar propostas que
pudessem destruir a linguagem hegemônica (Viala e Masson-Sekine, 1988, p.
14).
Estas experimentações artísticas tinham como eixo principal - como já
visto - as possíveis relações entre o corpo e o lugar, acontecendo dentro a uma
atmosfera rica e promíscua na qual as fronteiras entre dança e teatro eram
praticamente indistinguíveis. Neste contexto, a busca por uma verdadeira
identidade japonesa era o verdadeiro elemento transversal e referencial para os
coletivos experimentais, sendo assumida e reinterpretada a partir de diversas
linguagens artísticas. Os dançarinos, por sua vez, preocupavam-se em libertar a
dança da dominação ocidental, apostando nesta suposta autenticidade japonesa
como uma nova referência.
Na verdade, a dança ocidental no Japão até os anos 505 não possuía
muitas ligações com os interesses políticos da revoltosa juventude daquele

4 Shingeki significa literalmente “novo teatro” e nasceu no início do século XX como


“uma tentativa radical para se estabelecer um teatro japonês que poderia ser modelado
para além do estilo teatral de Ibsen e Stanislavski. Ele rejeitou seja o Kabuki como o
Shimpa, a forma teatral que no final do século XIX tentou alcançar uma síntese entre o
teatro ocidental e aquele nativo do Japão” (Klein, 1988, p. 10).
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tempo, justamente por nunca ter apresentado uma característica política
significativa, como aquela demonstrada pelo Shingeki, e, por isso, tornou-se
muito mais vulnerável aos ataques dos jovens sedentos por inovações. Foi com
início dos anos 60, porém, que essa aversão se consolidou e fez com que os
jovens da dança e do teatro assumissem definitivamente uma postura mais
radical, política e culturalmente contrárias ao Ocidente.
Foi justamente essa cultura de protesto que formou o contexto urbano
para o desenvolvimento do Ankoku Butō (“dança das trevas”) de Tatsumi
Hijikata: a materialização de um ambicioso projeto de transformação anatômica
que pôde apresentar aos jovens desafetos com o tradicionalismo das artes do
espetáculo uma filosofia alternativa e persuasiva para a expressão teatral.
Contudo, mesmo que tenha nascido em meio às turbulentas mobilizações
sociais que antecederam a renovação do tratado militar de 1960 – que mantinha
a submissão do Japão aos EUA – e, ao mesmo tempo, materializado uma
filosofia alternativa que preencheu em modo contundente a lacuna expressiva
deixada pelas formas de espetáculos até então vigentes, o Ankoku Butō não foi,
em modo estrito, um movimento politicamente orientado.
Porém, o fato de que não se enquadrasse ao interno de nenhuma
mobilização, instituição ou organização coletiva, atuando em prol de
reivindicações político-ideológicas ou partidárias, não quer dizer
necessariamente que não possuísse uma forte dimensão política em sua base.
Na verdade, à medida que os textos-manifesto escritos por Tatsumi Hijikata, a
partir do início dos anos 60, foram sendo traduzidos para as línguas ocidentais6,
uma densa matriz política começou a ser desvelada como a real motivação
poética de sua proposta artística. Uma matriz política e ideológica que não se
limitava a criticar os problemas de um contexto local, mas que propunha uma
análise mais aprofundada da situação, partindo destes para condenar alguns dos
paradigmas globais que se ofereciam como as suas verdadeiras raízes. Seus
textos-manifesto são transpassados por críticas e conceitos como “sistema

5 Antes da Segunda Guerra Mundial os dois principais tipos de dança que existiam no
Japão eram divididos em tradicionais (Kagura, Buyō e Bugaku) e ocidentais (ballet e dança
moderna), estas últimas importadas com a abertura cultural da Era Meiji (Viala e
Masson-Sekine, 1988, p. 16).
6 Muitos destes manifestos foram recolhidos e traduzidos pela pesquisadora Nanako
Kurihara em sua pesquisa de doutorado junto ao Department of Performance Studies, Tisch
School of the Arts/NYU, com uma tese intitulada “The most remote thing in the universe: A
critical analysis of Hijikata Tatsumi’s Butoh”. Grande parte destes textos, como Inner
Material/Material, To prision, Wind Daruma, dentre outros, foram publicados pela revista
“The Drama Review” (TDR), 44, 1, primavera de 2000 (T165).
24
econômico capitalista”, “sociedade orientada produtivamente”, “moral
civilizada” (Hijikata, Inner Material/Material, 1960, in TDR, 2000, p. 39-41),
delineando assim um universo bem preciso dentro ao qual se movia para
construir o seu projeto político-artístico de insurreição física.
A visão inusual proposta por Tatsumi Hijikata e Kazuo Ōno – o seu
principal colaborador e uma de suas essenciais matrizes poéticas –, serviu como
uma decisiva referência em meio ao fermento cultural dos anos 60,
influenciando fortemente a produção de algumas das maiores figuras da
vanguarda artística japonesa. No âmbito do teatro, é possível reconhecer as suas
influências nas obras de personagens como Shuji Terayama (poeta e diretor,
fundador do Tenjō Sajiki, um dos mais importantes grupos de teatro de
vanguarda dos anos 60), Jūrō Kara (do grupo Jōkyō Gekijō), Tadashi Suzuki
(diretor da Suzuki Company of Toga – SCOT, com maior familiaridade com o
teatro de vanguarda ocidental) dentre outros. Já no campo corêutico, esta
particular concepção cênica contaminou de forma profunda muitos artistas,
deixando um vasto legado que perdura até os dias atuais, com destaque para
nomes como Akira Kasai, Akaji Maro (fundador do grupo Dai rakuda kan),
Yamada Bishop (fundador do grupo Hoppō Butō-ha), Natsui Nakajima
(fundadora do grupo Muteki-sha), Min Tanaka (Ren’ai Butō-ha), dentre muitos
outros.
De qualquer forma, é importante ressaltar que o impacto
proporcionado pelas atuações e concepções de Hijikata transcendia os limites
das artes do espetáculo e movia-se também para além de suas fronteiras
expressivas, contaminando muitos artistas de formações diversas, dos quais
seria importante destacar o fotógrafo Eikō Hosoe, o pintor abstrato Natsuyuki
Nakanishi e o designer Tadanori Yokoo. Hosoe transformou-se em um dos
fotógrafos mais importantes do Japão, eternizando e divulgando por todo o
mundo a dança Butō7.
Nakanishi, dentre outras coisas, foi o autor do quadro abstrato que,
muitos anos depois, em 1976, desengatilharia em Kazuo Ōno a imagem da
dançarina “La Argentina” e o seu consequente retorno aos palcos. Já Yokoo,
estabeleceu uma relação de colaboração recíproca seja com a dança Butō que
com outras importantes manifestações teatrais dos anos 60, para as quais
desenhava os cenários, pôsteres de divulgação e outros elementos cênicos. A
dança Butō foi também significativamente influenciada pela sua estética do
“mau gosto”, na qual procurava enfatizar o feio e o irracional, valendo-se na

7 Um de seus trabalhos mais importantes realizados em colaboração com Tatsumi


Hijikata foi o projeto Kamaitachi, publicado em forma de livro em 1968, no qual retrata
Hijikata em sua região natal, o Tōhoku.
25
maioria das vezes de objetos cotidianos do final da Era Meiji, da Era Taisho e
início da Era Shōwa (entre 1910 e 1930), períodos estes que, não por
coincidência, inspiraram enormemente também o teatro de vanguarda dos anos
60 (Viala e Masson-Sekine, 1988, p. 14).
Yokoo, Hijikata, Terayama e Kara criaram assim um teatro da pobreza,
construindo palcos que mais pareciam um mercado das pulgas. As suas
cenografias assemelhavam-se aos restos de uma civilização morta, preenchida
por criaturas horríveis e elementos que se inspiravam em algo entre a vida real
japonesa e os seres de um universo mágico. Os artistas da vanguarda da dança e
do teatro expressavam deste modo uma grande aversão à arte, procurando com
suas estéticas e narrativas particulares quebrar todas as estruturas em
fragmentos frágeis e sem significados. De qualquer forma, mesmo que as
representações fossem ficando gradualmente mais complexas – pontuadas por
múltiplas demarcações e com uma dinâmica compositiva caracterizada por
diversas colagens – os seus idealizadores permaneciam firmes no fato de rejeitar
as temáticas e as estruturas ocidentais8.
Contudo, mesmo reiterando estas suas rejeições – através de artigos e
manifestos – à tradição japonesa excessivamente estilizada e às influências
ocidentais, o trabalho desenvolvido por esses importantes personagens da
vanguarda artística de então foram marcadamente caracterizados, seja em um
modo direto ou indireto, por um forte sabor japonês. O universo kitsch que
praticamente reconstruía os restos de uma civilização morta em suas
cenografias era protagonizado por objetos tradicionais da cultura japonesa, tais
como quimonos, cestas, fantasias xintoístas, instrumentos musicais, dentre
muitos outros. Tudo isso possibilitava a messa in scena de mitos e rituais
tradicionais de sua cultura, porém ressignificados e utilizados em contextos
novos e provocativos.
Segundo Viala e Masson-Sekine (1988, p. 14), com esta adoção de
elementos de uma “estética da feiura” e na utilização de “rituais de inversão”
como componentes estéticos de suas obras, estes personagens reiteravam sinais
legítimos de pertencimento ao universo da vanguarda japonesa do pós-guerra,
isto é, evidenciavam uma relativa lealdade aos valores da antiga tradição
japonesa ao reelaborarem esses elementos tão caros e legitimados pela tradição
folclórica e pela arte clássica nipônica.
Neste contexto de fronteiras sutis entre as diversas formas de
expressão artística, as proposições coletivas eram favorecidas pela

8 Não por acaso, é possível verificar também fenômenos similares acontecendo


contemporaneamente em muitos outros lugares do mundo, como por exemplo, os
experimentos de Merce Cunningham, nos Estados Unidos da América.
26
contaminação recíproca entre os artistas, fazendo com que os integrantes da
vanguarda dos anos 60 não assumissem apenas a postura passiva do expectador,
e sim se transformassem em coparticipantes na performance proposta pelos
outros. Tatsumi Hijikata foi sem dúvida um dos principais nomes deste
coletivo, propondo inúmeros happenings, performances coletivas e espetáculos que
envolviam uma vasta gama de especialidades artísticas, criando assim um fértil
espaço de experimentações. Esta série de eventos irregulares, improvisados
pelas ruas ou, posteriormente, organizados em seu estúdio – o Asbestos-kan –,
reunia diferentes movimentos artísticos contemporâneos que tinham como
preocupação principal a ruptura estética e a desconstrução dos conceitos
acostumados do sistema, dialogando assim principalmente com artistas
abstratos, surrealistas e neodadaístas.
Esse tipo de evento foi inicialmente denominado por Tatsumi Hijikata
como 650 Experience, referindo-se assim, segundo Barber (2006, p. 23), ao
número de assentos existentes no Dai-Ichi Seimai Hall, teatro no qual foi
encenado pela primeira vez Kinjiki. Para Hijikata, portanto, este número referia-
se à quantidade de testemunhas que teriam vivido uma profunda experiência
naquela noite de maio de 1959. Mais conhecida como Dance Experience, esta
série de happenings revelava na realidade uma densa concepção da arte e da
dança, entendendo-a enquanto uma “experiência corporal profunda” e não
acessível através somente da observação e da interpretação. A dança não era
concebida, portanto, como um objeto estético capaz de proporcionar uma
fruição passiva do expectador, e sim como uma experiência profunda que se
daria na relação intersubjetiva entre dançarino e expectador, entendido neste
caso como um coparticipante ativo.
Ambos, dançarino e expectador, eram assim imersos em uma
experiência coletiva na qual o dançarino oferecia seu corpo em sacrifício,
desdobrando a sua consciência física e desconstruindo a individualidade de seu
ego, em um processo contínuo de metamorfose. Enquanto isso, o expectador
era envolvido integralmente, sendo exigido em todos os seus sentidos, em
busca de uma percepção global do fenômeno em ato. Baseado nestes princípios
singulares, o primeiro período do Ankoku Butō de Tatsumi Hijikata deixou
profundas marcas no imaginário artístico da época, abrindo novas perspectivas
na pesquisa da expressão teatral, ao mesmo tempo em que foi classificado pela
mídia japonesa de então como uma intensa experiência ritualística (gishiki).
Mais do que performances propriamente ditas, em um nível organizativo,
estes eventos assemelhavam-se a happenings e improvisações nos quais os artistas
não tinham como preocupação principal a construção de um trabalho narrativo
estruturado, mas apenas sobreviver como artistas expressando a si mesmos
(Viala e Masson-Sekine,1988, p. 17). Deste modo, a dança era concebida por
27
esses artistas como um intenso modo de existência e não como um veículo para
uma mensagem ou a organização quase gramatical do espaço e dos gestos. Não
tentavam, portanto, falar através do corpo, e sim deixar que o corpo falasse por
ele mesmo, revelando deste modo a sua verdade; desvelando-se a si mesmo, em
toda a sua autenticidade e profundeza, ao rejeitar decisivamente a
superficialidade da vida cotidiana.
Tatsumi Hijikata, filho rebelde de seu tempo histórico, construiu assim
as bases filosóficas de uma exploração coletiva por uma nova estética,
permeada também pela ruptura e rebelião características de sua época. Projetou
os fundamentos de um antissistema gestual que buscava a transformação de si
mesmo para uma consequente desconstrução do corpo social, concentrando-se
principalmente na recusa e na negação, ao invés de apresentar técnicas e
procedimentos para serem assimilados e fixados. Desenhou assim o esboço de
uma dança marcada pela insígnia da decadência, da decomposição e da
desconstrução dos modelos de organismo, seja físico que social. Um projeto
herético que desejou colocar em cena um corpo total, um corpo autêntico que
poderia levantar-se para reescrever a sua própria anatomia e rebelar-se contra a
história (D’Orazi, 2008, p. 20).

1.2) PENUMBRAS E NOSTALGIAS

A tentativa de delinear os limites que separam os elementos de


continuidade e de ruptura entre a dança Butō e as artes do espetáculo que a
precedem em uma suposta linha histórica ao interno da cultura japonesa,
apresenta-se como um esforço inalcançável, mas, ao mesmo tempo,
indispensável para uma melhor compreensão de suas raízes. Ou ao menos
aquelas que se referem às influências “geneticamente” nipônicas, uma vez que
essa se apresenta como uma manifestação moderna e híbrida, construída em
um complexo entrecruzamento intercultural – característica peculiar, como
visto até aqui, do contexto histórico, social, político e artístico no qual nasceu.
Como uma manifestação artística nascida ao interno do conturbado e
experimental contexto artístico-político do pós-guerra japonês, a dança Butō
apresenta na profundidade de sua ossatura alguns dos tantos elementos que
compunham a atmosfera de contestação e proposição da época. Ainda que o
comportamento de ruptura se apresente como uma de suas características mais
fortes, é possível também identificar ao seu interno tantos elementos de
continuidade e de sintonia com a aura daqueles anos e, por isso, em certo
sentido, também com o distante passado de um Japão pré-moderno.

28
Na realidade, a ocidentalização e a modernização do Japão foram dois
fenômenos indissociáveis que se sobrepuseram reciprocamente durante todo o
seu período de realização, por mais de um século. Os novos paradigmas
impostos por este complexo processo, iniciado já com a abertura política e
cultural da Era Meiji (1868), encontraram seu ápice no período de ocupação
administrativa e geopolítica do segundo pós-guerra (1945-1952) por parte das
forças armadas dos Estados Unidos da América. O influxo da cultura europeia
do primeiro período de modernização (Era Meiji) transformou em modo
gradual, mas profundo, as concepções e os valores de toda a sociedade
japonesa, deparando-se evidentemente com fortes oposições nos diversos
estratos sociais. Os novos modos de vestir, bem como as outras modalidades de
convivência em comunidade e em família, davam vida à nova configuração
social proposta por uma nova paisagem urbana e rural, na qual os grandes
campos de cultivo deixavam espaço aos galpões e às indústrias.
Mesmo antes da Segunda Guerra Mundial, o Japão já vivia uma forte
cisão cultural na qual se apresentava dividido entre a obsessão por um
progresso desenfreado e, ao mesmo tempo, o refúgio nostálgico de uma utópica
autenticidade. Esse sentimento de perda das qualidades superiores presentes em
um passado ideal permeou toda a sociedade japonesa e deixou espaço ao desejo
por um modo de vida idílico hipoteticamente oferecido por um Japão pré-
moderno. Foi então que acesos debates tiveram espaço nos jornais, nas estradas
e nos círculos dos intelectuais, construindo uma atmosfera de crítica e nostalgia
por um antigo e “melhor” passado. Uma atmosfera que se transformou na
matriz principal para a construção de uma fantasia cultural nacional, alimentada
pelo boom de um novo folclore e da revalorização dos elementos indígenas
arcaicos e pré-modernos como possibilidade de afirmação da identidade do
povo. Esse sentimento contraditório de pertencimento e de renúncia a um
Japão moderno impregnou todo o pensamento nipônico da primeira metade do
século XX, encontrando-se em relevo nos diversos âmbitos intelectuais, tanto
políticos como acadêmicos e artísticos.
O período do segundo pós-guerra, com o país derrotado e humilhado
pela imposição dos novos modelos de desenvolvimento econômico e de
relações sociais, propôs uma nova perspectiva de ocidentalização ao Japão –
agora com uma marca mais norte-americana do que europeia –, despertando
assim uma antiga e contraditória ferida cultural japonesa. Deste modo, os anos
50 e 60 do século passado testemunharam a aparição de diversos movimentos
culturais – intelectuais e artísticos – que se alimentaram das posições críticas e
nostálgicas das gerações precedentes, atualizando-as e transcendendo-as ao
proporem novas ações de contestação. No cenário literário, por exemplo,
ocorreu a reaparição de alguns valores da literatura japonesa pré-guerra, a qual
29
oscilava, já desde 1880, entre a renúncia e a defesa dos escritos tradicionais, e
construía-se em oposição à tendência literária ocidental de apresentar novas
verdades ou juízos morais, políticos e filosóficos, ao interno das obras.
Os estudos japoneses no campo antropológico, iniciados já na primeira
metade do século XX, contribuíram fortemente para a configuração do
imaginário cultural da época, encontrando no período do pós-guerra um fértil
campo de ação e afirmação social. Em certo sentido, é possível verificar que
esses estudos tiveram uma importante influência, mesmo que nem sempre em
modo direto, sobre o pensamento da época e sobre quase toda a produção
artística que terá o seu ápice nos anos 60. Susan Blakeley Klein (1988, p. 31)
explica como, no período de plena crise e conflitos civis causados pela polêmica
renovação do Tratado de Mútua Defesa (Nichibei Anzen Hoshō Jōyaku) entre
Japão e Estados Unidos, assinado em 1960, os estudos de um importante grupo
de historiadores “nativistas” tinham como inspiração os estudos folclóricos
(Minzokugaku) de Kunio Yanagita. Esses trabalhos de etnografia nativista
conduzidos por Yanagita ficaram famosos justamente por identificar diversos
elementos das raízes rurais do Japão, buscando nestas tradições indígenas as
suas dimensões críticas ou revolucionárias.
As discussões antropológicas dos anos 60, portanto, tinham como
pano de fundo ideológico a necessidade profunda de preservação de uma
suposta “essência japonesa”, elevando intelectualmente a sua noção de
autenticidade, ao mesmo tempo em que acabou revertendo alguns dos
preconceitos históricos em relação às zonas menos desenvolvidas do país. Este
desejado “Japão autêntico” era marcado pelas festas tradicionais, histórias
regionais e por uma dimensão misteriosa que se oferecia como resistência na
periferia de uma vida urbana dramaticamente industrializada. A região de Akita,
por exemplo, historicamente isolada e ridicularizada pelo seu modo de falar e
no comportamento ingênuo de seus nativos, assistiu a inversão de seu status ao
passar a ser considerada uma fonte inesgotável de estímulos para a construção
do paradigma de um Japão que se desejava “incontaminado”.
A busca pelas bases de uma cultura “imaculada”, em parte
antropológica e em parte literária, considerava fundamental preservar uma
essência do Japão antes que essa fosse engolida pela artificialidade efêmera da
contemporaneidade e pela imposição do consumismo na sociedade moderna. O
contato, direto ou indireto, destes princípios com outros âmbitos orbitais da
sociedade fez com que fossem criadas diversas modalidades de ação e
intervenção social, tornando possível a aparição – permitida pela hipotética
existência de uma “cultura essencial” – da consequente concepção de um
“corpo autêntico”, o qual poderia ser a origem do “gesto verdadeiro” (Barber,
2006, p. 80).
30
Foi então nessa atmosfera difusa que uma nova cultura experimental
começou a desabrochar no Japão, apresentando diversos modos de expressão,
criados por jovens grupos de artistas. O ambiente híbrido e promíscuo das artes
captou estes radicais dilemas colocados em cena pelo campo antropológico e os
releu em uma perspectiva igualmente intercultural. Foi então que o paradoxal
movimento de renúncia e de absorção dos diversos elementos da cultura
ocidental, misturados à nostalgia de um passado idílico, serviu de pano de
fundo ao desenvolvimento da cultura artística do pós-guerra japonês. No
âmbito da música, por exemplo, ocorreu uma contaminação orgânica entre as
inovações europeias e a redescoberta das possibilidades da música tradicional
nipônica. A visita de John Cage no Japão, no início dos anos 60, tornou-se um
marco e um divisor de águas nas pesquisas musicais nacionais. A sua estética
metafísica rompeu com as estruturas conservadoras e apresentou aos japoneses
uma música livre dos tabus, influenciando assim também a estética de outras
manifestações artísticas contemporâneas.
No campo das artes do espetáculo, tanto a dança como o teatro de
vanguarda foram influenciados pelo despertar do interesse pelas origens
populares do teatro Nō e Kabuki, e pela reproposição das formas populares de
teatro do início do século XX: particularmente o Asakusa (um tipo de teatro
musical que incorporava o estilo tanto ocidental como tradicional), o Misemono
(uma forma de teatro que incluía atos similares a um espetáculo de circo) e o
teatro Yose (uma forma similar a um vaudeville revisto, centrado em monólogos
cômicos). Na prática, existiu um renascimento intelectual das modalidades de
espetáculo radicadas nas tradições performativas existentes já antes do advento
do Nō e do Kabuki (Klein, 1988: 15). O teatro Yose, em particular, representava
o verdadeiro teatro de massa ao final do século XIX, quando o Kabuki foi
retirado de sua originária marginalidade e assimilado pela nobreza, retornando
ao centro da comunidade urbana com um novo status.
A dança Butō, por sua vez, não estava desconectada desse contexto
mais amplo de transformação estética e cultural. Pelo contrário. Em certo
sentido, foi a própria protagonista desse processo, influenciando
profundamente as outras formas contemporâneas de espetáculo. O retorno
nostálgico às raízes primitivas da dança, evocando características pré-modernas
e pré-ocidentais, assim como a utilização de forças expressivas irracionais e
misteriosas, são dimensões que fazem igualmente parte dos princípios poéticos
da dança Butō, revelando assim o seu pertencimento àquele preciso momento
histórico e cultural, compartilhado com outras diversas modalidades artísticas.
Para Klein (1988, p. 20) um dos motivos que levaram a dança Butō a
inspirar-se nas artes performativas tradicionais foi a longevidade de suas
histórias e suas relações orgânicas com o desenvolvimento da cultura, o que
31
tornava possível, portanto, a existência de um suposto vocabulário de
movimento próprio à estrutura do corpo japonês. E mesmo que a ambição de
uma dança baseada sobre as especificidades do corpo japonês pareça não ser
realizável em um nível pragmático, certamente apresentou-se como um
argumento ideológico persuasivo naquele preciso momento histórico.
Outra razão indicada pela autora como motivação deste olhar cíclico
em direção ao passado é que as representações do teatro tradicional japonês
eram uma antítese ao modelo ocidental e, logo, podiam ser utilizadas para
confrontá-lo e transcendê-lo. Em outras palavras, o antigo teatro japonês
apresentava-se como uma antítese possível aos valores da modernidade
ocidental através da contraposição dos elementos dramáticos da sua clássica
construção cênica, ou seja, a ênfase sobre a narrativa realista baseada sobre a
racionalidade de causa e efeito e sua organização linear do tempo em princípio,
desenvolvimento e fim.
O teatro tradicional, por sua vez, correspondia às lógicas próprias de
um mundo mítico primitivo, no qual não existia a contradição entre caos e
repetição cíclica, entre mudança constante e equivalência absoluta. Segundo
Kunio Komparu (in Klein, 1988, p. 60), os festivais sagrados da agricultura são
a base das artes de entretenimento no Japão, e nestes é possível identificar
claramente a tendência aos ciclos e à assimilação com a natureza: elementos
essenciais da fundação da cultura japonesa criada por camponeses9. Neste
sentido, o olhar para o passado, lançado pela vanguarda artística do segundo
pós-guerra, serviu para reconhecer alguns elementos representativos da
materialidade mais essencial do corpo japonês, procurando alcançá-la a partir da
releitura dos fundamentos de seu teatro tradicional.
Entretanto, as artes tradicionais do espetáculo japonês são também,
obviamente, frutos de um complexo entrecruzamento de elementos. Nesta
direção, com uma perspectiva mais ampla, seria possível identificar algumas
influências e características que as atravessam e que, de algum modo,
contribuíram com a poética da dança Butō, além daquelas até aqui citadas. A
“estética da feiura” (shōaku no bi), por exemplo, pode ser uma dessas
importantes influências transversais, pois se apresenta como uma característica

9 A cosmologia da cultura japonesa, como a de quase todas as culturas, é


arquetipicamente permeada por mitos e lendas que possuem uma relação profunda com
os elementos da natureza, em particular com a sua progenitora, a deusa sol – Omikami
Amateratsu – e com a importância vital da agricultura para o desenvolvimento de seu
povo, sendo esta última uma das principais fontes econômicas do Japão praticamente
até o amadurecimento de seu processo de modernização iniciado com a abertura
cultural da Era Meiji e que vive atualmente o seu ápice.
32
legitimada tanto pela tradição do folclore, como pela arte clássica japonesa.
Quando observada no teatro Kabuki, essa “beleza negativa” revela a
dramatização de alguns dos aspectos do ser humano concebido em sua
totalidade, uma vez que procura colocar em cena também a parte obscura da
existência e não somente a sua dimensão idílica.
O uso provocatório do feio, do grotesco, a inversão dos valores sociais
e estéticos de uma superfície “não japonesa”, são profundamente radicados em
certas tradições ainda vivas em algumas regiões do Japão e, por isso, poderiam
ser considerados, em um nível subliminar, elementos integrantes de algumas
manifestações artísticas contemporâneas. Viala e Masson-Sekine (1988, p. 15)
identificam algumas dessas manifestações tradicionais e citam como exemplo o
Hyottoko, a dança grotesca das “caras tortas”; o Modoki, no qual se buscava
ridicularizar os rituais sagrados; o Namahage, o festival do norte no qual jovens
rapazes entravam nas casas com sapatos e máscaras horrendas, gritando e
ameaçando as crianças; e o Akutai Matsuri, no qual eram utilizadas linguagens e
gestualidades ofensivas contra as pessoas participantes.
Outro elemento proveniente do âmbito artístico e que contribui,
enquanto um estrato cultural mais profundo, na configuração das matrizes
poéticas da dança Butō, seria a forte influência que as famosas estampas Ukiyo-
e, com seus finos delineamentos e sua policromia particular, exerceram sobre
diferentes artistas de todo mundo. Essa arte secular japonesa afirmou-se na
segunda metade do século XVII e trouxe aos tempos modernos registros
importantes e poéticos de inúmeros fatos da vida cotidiana daquele tempo, bem
como de algumas características originais do teatro Kabuki, revelando como
este conjugava, em um modo singular, a mundanidade e a alta teatralidade com
a natureza e o bucólico.
Contudo, uma suposta influência dos Ukiyo-e no movimento artístico
de vanguarda japonês, e, portanto, também nas raízes da dança Butō, não se
revela necessariamente em um nível estético, mas nas suas subsequentes
reverberações nas artes do espetáculo. Tais desdobramentos são, na realidade,
fruto de um profícuo movimento de contaminação recíproca e contínua que
esta linguagem artística estabeleceu com o Ocidente, a partir de 1868, quando
foi descoberta pelo mundo com a abertura político-cultural da Era Meiji.
A precisão e os detalhes das estampas Ukiyo-e, no final do século XIX,
chegaram à Europa e tiveram um grande impacto sobre os autores
impressionistas franceses, influenciando fortemente a estética de personagens
como Edouard Manet, Edgar Degas, Henri de Toulouse-Lautrec e Paul
Gauguin (Fraleigh, 1999, p. 254), os quais, por sua vez, acabaram influenciando,
em um movimento de refluxo cultural muitas décadas depois, a estética de
importantes nomes da vanguarda artística japonesa do segundo pós-guerra.
33
Além disso, outro importante movimento de refluxo cultural entre Oriente e
Ocidente provocado pelo impacto estético dos Ukiyo-e aconteceu muito além
do campo das artes visuais e provocou fundamentais transformações também
no âmbito das artes do espetáculo.
Em certo sentido, a cultura japonesa influenciou fortemente alguns
importantes personagens da dança moderna mundial, seja através do impacto
direto com a força expressiva dos Ukiyo-e, seja como inspiração indireta, isto é,
como contaminação através de diferentes elementos e manifestações artísticas
que nesses, por sua vez, se inspiraram. É possível identificar tal influência nos
trabalhos de algumas das precursoras da Modern Dance americana – como Ruth
Saint-Denis e, mais tarde, Marta Graham –, como também na obra de alguns
dos grandes nomes do expressionismo pictórico alemão que, por sua vez,
inspiraram personagens como Mary Wigman10 e Pina Bausch – as quais
ajudaram a construir, respectivamente, a nova dança alemã (Neue Tanz) e a
posterior dança-teatro (Tanztheater).
É interessante ressaltar esses movimentos de refluxo e inspiração
recíproca entre as culturas nesses âmbitos artísticos, principalmente nas artes do
espetáculo, justamente porque, de um lado, possibilita a percepção da
complexidade de suas bases. De outro lado, coloca em evidência a dimensão
culturalmente “endógena” de muitos dos elementos (mesmo que reimportados
do Ocidente, como neste caso) que configuram o húmus artístico da vanguarda
experimental do segundo pós-guerra japonês e, por consequência, da própria
dança Butō, enquanto manifestação corêutica protagonista daqueles anos.
Tanto a Modern Dance americana como a Neue Tanz alemã atravessaram
em algum modo as origens da dança Butō e de grande parte do movimento
artístico experimental japonês daquela época. Segundo Havens (in Klein, 1988,
p. 8), a visita a Tóquio feita pela companhia de Marta Graham, em 1955, teve
um efeito particularmente forte nas escolhas técnicas e estéticas feitas pela
corrente principal da dança japonesa entre os anos 50 e 60. Ao mesmo tempo,
foi frequentemente em direção a esses trabalhos influenciados pela obra de
Graham que a dança Butō dirigiu o seu antagonismo.
Em outro sentido, é possível também identificar importantes
características que a dança Butō compartilha com a Modern Dance e algumas das
profundas relações que estabelece com a Neue Tanz e o expressionismo alemão,
seja em um plano histórico – através das influências diretas que os fundadores
da dança Butō tiveram em suas formações – seja em um plano poético ou

10 Fraleigh (1999, p. 40) afirma que tanto Graham como Wigman, mesmo tendo se
voltado para a mitologia grega, em um certo sentido, abraçaram uma tendência
estilística abstrata totalmente japonesa.
34
filosófico. Segundo Fraleigh (1999, p. 42), a dança Butō recria à sua maneira um
ecletismo ético colocado em cena já pela Modern Dance na sua utilização de
fontes globais, além de apresentar em suas raízes algumas manifestações
similares ao individualismo criativo, à auto-interrogação e ao expressionismo
abstrato expressos pela dança moderna. Além disso, é possível dizer que a
dança Butō compartilhou alguns elementos que estavam já na base dos
primeiros experimentos do expressionismo, tais como a melancolia, as emoções
obscuras e a catarse dramática em suas propostas narrativas não-estruturadas.
Outras influências culturais que, em certo sentido, configuram as artes
tradicionais do espetáculo japonês e, por isso, potencialmente emprestam-se
como elementos subterrâneos e difusos – mas não menos importantes – da
dança Butō, são alguns princípios filosóficos constituintes da própria cultura
nipônica. A flexão de gênero seria um interessante exemplo disso. É muito
importante para a dança Butō e para o trabalho de seus fundadores que os
limites e a caracterização do ‘feminino’ e do ‘masculino’ não sejam tão
evidentes, compartilhando assim uma característica em sintonia com os mitos11
e com o próprio teatro japonês. Isto porque a cultura teatral japonesa é, de
modo geral, transpassada por um “sentimento feminino estilizado” e vê, em um
modo particular, seus papéis femininos serem interpretados por atores
(Fraleigh, 1999, p. 58).
Visto a partir desta perspectiva, o fato de que o crescimento da dança
Butō se baseie fortemente sobre um paradigma feminino – principalmente a
obra do maestro Kazuo Ōno, com sua feminilidade cósmica e seus constantes
travestimentos – não se apresenta mais como uma particularidade exótica, e sim
como uma de suas características estruturantes que possui uma ligação orgânica
com o tecido cultural da qual provêm. Todavia, a feminilidade decrépita e
marginal que a dança Butō coloca em cena indica claramente dimensões de
ruptura e crítica desta mesma cultura.
Outro elemento importante que atravessa muitas das artes tradicionais
japonesas, mesmo que muitas vezes em modo sutil ou indireto, é a influência da
filosofia Zen budista. Mesmo que esta se encontre em modo difuso e
praticamente incorporado em um estrato profundo da cultura japonesa, é
interessante observar que também a vanguarda artística, do final dos anos 50,
relendo-a, utiliza alguns de seus princípios em suas intervenções e

11 A cosmologia japonesa baseia-se em um mito de fundação protagonizado pela


grande deusa sol, Omikami Amateratsu, a qual, em uma famosa passagem, traveste-se
com roupas masculinas para encontrar o seu irmão desobediente, Susano-o.
35
proposições12. A cultura japonesa é também permeada pela filosofia asiática da
unidade de corpo e alma e por uma tradição de artes essencialmente irracionais,
como, por exemplo, os kōan zens, isto é, os paradoxos poético-simbólicos
improvisados, descritos pelo historiador Tōru Haga como “descargas de uma
energia intensa que poderia perfurar imediatamente e iluminar repentinamente a
escuridão de nossas mentes confusas” (Klein, 1988, p. 67).
Neste sentido, também a dança Butō pode ter tocado e assumido a
releitura de alguns conceitos que fazem parte do universo Zen, desprovidos
obviamente de qualquer dimensão religiosa. Contudo, sobrepor a dança Butō à
filosofia Zen pode ser um movimento superficial e equivocado se não feito
com as devidas distâncias. Conceitos como a “desconstrução do ego”, a morte,
a energia e a ligação entre os seres, a concepção da materialidade do corpo e do
universo são alguns exemplos de elementos que fazem parte de ambos os
universos semânticos, apresentando, contudo, particularidades muito específicas
e praticamente distintas no que se referem a suas metodologias e práticas.
Contudo, para se compreender melhor as raízes culturais que
alimentam o surgimento da dança Butō, muito além dessas heranças orbitais até
aqui citadas, é de vital importância o entendimento da relevância que o
processo de revitalização das artes tradicionais do espetáculo teve no contexto
de renascimento e experimentações da cultura artística japonesa no período
pós-guerra. Quando os historiadores afirmam que a dança Butō procurou
romper com as manifestações tradicionais, como os seculares teatros Nō e
Kabuki, sublinham somente uma de suas insígnias de pertencimento a um
movimento mais amplo de vanguarda artística e cultural. Uma vanguarda que
refutava o teatro contemporâneo como um todo, incluindo a realidade histórica
do Nō e do Kabuki daquela época: formas de expressão julgadas então tão
ridicularizantes e opressivas quanto a dança e o teatro ocidentais, com suas
mesmas “formas ocas”13 e perspectivas elitistas. De outra parte, a recusa às
formas tradicionais opunha-se fortemente à estilização excessiva dos
movimentos utilizada no cata do Nō ou na suntuosidade cênica do Kabuki.
É certo, porém, que mesmo não existindo um nexo direto nos planos
técnicos e estéticos entre a dança Butō e as danças tradicionais, ambas são
formas de expressão tipicamente japonesas. Definir com precisão os elementos
de distanciamento e continuidade que se interpõem entre a dança Butō e as

12 Para maiores aprofundamentos, consultar Tōru Haga, “The Japanese Point of


View”, in Avant-Guarde Art in Japan, New York: Harry N. Abrams, Inc., 1962.
13 Sobre esse argumento, o crítico e diretor de teatro Tsuno Kaitarō declarou:
“Atualmente, Nō e Kabuki parecem formas ocas. Eles perderam contato com a
imaginação popular que os criaram e que os permitiram crescer” (in Klein, 1988, p. 13).
36
manifestações corêuticas que a precedem, neste sentido, é uma tarefa árdua e
fadada ao falimento, uma vez que o Butō apresenta-se como um fenômeno
artístico destacado completamente da tradição de transmissão das técnicas
performativas e, ao mesmo tempo, revela princípios que caracterizam
fortemente a arte teatral japonesa. Para Centonze (2003, p. 62), a dança Butō
“apresenta-se como uma espécie de receptáculo de elementos da dança
japonesa pré-budista, transformando e deformando em cena componentes
teatrais provenientes da tradição Nō e, sobretudo, do Kabuki”14.
Inserindo-se, portanto, ao interno deste retorno cíclico às artes
tradicionais proposto pela vanguarda artística daqueles anos, a dança Butō
inspirou-se, em modo indireto, não necessariamente nos elementos técnicos ou
estéticos propostos pelo Kabuki e pelo Nō, mas principalmente em algumas
concepções e nas energias subversivas e reprimidas que serviam como matrizes
poéticas para estas manifestações artísticas. Segundo Klein (1988, p. 15), é
possível dizer que tanto o Kabuki como o Nō tiveram uma origem – e por isso
uma significativa herança – comum em uma espécie de precursor do teatro Yose,
em uma forma de dança livremente estruturada, com uma dinâmica
eroticamente sugestiva (quando não indecente), entremeado por discursos
dramáticos e pequenos monólogos cômicos.
A historiadora Akira Amagasaki (in Centonze, 2003, p. 69) sustenta que
a dança Butō contemporânea tenha herdado uma concepção de corpo
reconhecível também ao interno da tradição do teatro Nō, mesmo existindo
uma ruptura evidente no plano formal entre as duas manifestações. No teatro
Nō, toda a dinâmica corporal baseia-se não sobre o desenvolvimento dos
músculos, mas sobre a intensidade e a dosagem da energia, como no suriashi –
caminhada típica – ou na kamae – a postura fundamental, a qual parece conferir
ao corpo uma aparência de imobilidade externa total mas que, ao mesmo
tempo, comporta um máximo de concentração interna de energia, permitindo
assim potencialmente que o ator projete suas ações em qualquer direção do
espaço.
Amagasaki considera tal condição de uso do corpo como um trabalho
que se baseia não sobre o “fazer”, mas sobre o “transformar-se”, identificando

14 A autora refere-se aqui especificamente ao Ankoku Butō, isto é, ao trabalho artístico


colocado em cena pelo maestro Tatsumi Hijikata e que se oferece historicamente como
o início daquilo que virá a ser conhecido no futuro mais amplamente como a dança
Butō. Mesmo que essa definição terminológica e histórica seja apresentada mais adiante
ao interno do presente trabalho, cabe aqui indicá-la para frisar que, no período histórico
sobre o qual trata o texto e no qual se insere a referida citação, essa diferenciação ainda
não existe.
37
essa característica como a região de sobreposição entre as concepções de corpo
do Nō e do Butō. Já Fraleigh (1999, p. 43) indica que essa intersecção possa
residir no fato de que ambas as manifestações cultivam a “simples presença”
como princípio cênico e filosófico, mesmo que apresentem fundamentalmente
origens e objetivos diferentes.
Outra característica que percorre as estruturas basilares da tradição
teatral japonesa e que, de algum modo, encontra-se também como um dos
elementos centrais da estrutura técnica e dramatúrgica da dança Butō, é a
concepção de metamorfose. Segundo Kazuo Nakajima (in Centonze, 2001, p.
156), no Japão “o desejo de transformação do povo, e de ver essa
transformação expressa em forma de espetáculo, está na origem de qualquer
performance”. Neste sentido, no teatro Nō prevaleceriam as metamorfoses sacras
nas quais o ser humano transforma-se em divindades, enquanto no Kabuki as
transformações privilegiariam o universo profano, como a assunção da forma
de animais por parte dos humanos.
É importante frisar, entretanto, que ao interno desta evidente
similaridade, ou insígnia de pertencimento à tradição teatral japonesa, estão
postas diferenças fundamentais que distanciam a dança Butō do universo
corêutico tradicional e a ajudam sutilmente a caracterizar-se como um
movimento de ruptura e rebelião. Isso porque na base da concepção teatral
tradicional japonesa existe uma ideia de metamorfose radicada no “contar” um
drama, a qual comporta dentro de si tanto a dimensão do “enganar” como
aquela do “narrar”, deixando espaço para uma concepção de metamorfose que
se permite servir à arte da ilusão e à construção de ações simbólicas.
A dança Butō, por sua vez, tem como princípio técnico renunciar a
qualquer possibilidade de simulação, imitação ou mascaramento, colocando em
cena a crueza das transformações profundas de seu nikutai – o corpo de carne –
, assumindo uma concepção de processo metamórfico que se afasta
decisivamente da ficção ou da ilusão. Assim sendo, na perspectiva da dança
Butō, o dançarino não deve representar mimando gestos cotidianos ou outros
estímulos sobre a cena, mas desdobrar sensivelmente a sua própria consciência
física diante do público, transformando-se realmente em qualquer elemento de
tipo orgânico ou inorgânico, seja ele concreto (pedra, terra, cadáver, pano, tinta
etc.) ou abstrato (fantasmas, fragrâncias, sensações etc.).
Um último elemento primordial e significativo que poderia aproximar a
dança Butō das artes teatrais tradicionais japonesas seria a relação com a
escuridão. Segundo Jun’Ichirō Tanizaki (1977), a tradição japonesa da “estética
da escuridão” foi completamente destruída pelas lâmpadas elétricas utilizadas
pelo Kabuki e pelo Nō do século XX. A beleza e a poesia do espetáculo, antes
disso, estavam muito mais nos matizes de sombras e luzes que cada elemento
38
projetava sobre o outro e muito menos na clareza de seus volumes e cores. A
escuridão do palco do teatro Nō possuía uma relação orgânica com a escuridão
do mundo da vida cotidiana do qual ele provinha. Neste sentido, o desejo da
dança Butō de trazer de volta essa estética da escuridão para o teatro está
também profundamente conectado com o desejo de retorno de algumas
dimensões de um mundo pré-moderno no qual o Japão podia deleitar-se com a
beleza de suas penumbras.
Para além da estética, também um significado social da escuridão
aproxima a dança Butō do teatro Kabuki. Em outras palavras, o Butō, assim
como grande parte da vanguarda artística dos anos pós-guerra no Japão,
inspirou-se na energia subversiva própria ao Kabuki na sua era pré-Meiji, isto é,
antes de sair das favelas de Asakusa e de voltar para o centro da cidade,
refinado e purificado para o gosto ocidental, servindo como manifestação
teatral modelo, limpa e representativa de um iluminado Japão.
O Kabuki, em suas origens, colocava em cena a escuridão social,
explorando as dimensões escuras e reprimidas da vida em sociedade – muitos
de seus dogmas e tabus – mostrando assim uma legítima habilidade de deslizar
entre as fendas da rígida estrutura social japonesa. Com isso, na sua fluidez e
nas suas conexões com a marginalidade, ressaltava uma potencial fonte criativa,
além de um possível veículo de crítica social. Assim sendo, o Kabuki tinha o
poder de representar tudo aquilo que era aparentemente irrepresentável na
sociedade japonesa, apropriando-se da técnica provocativa de converter o
socialmente negativo em esteticamente positivo (Klein, 1988, p. 37). O Butō
voltou-se para as energias matrizes do Kabuki pré-moderno buscando colher
suas dimensões subversivas, seja o seu humorismo indecente como também a
sua capacidade – indicada pela sua derivação etimológica do verbo kabuku15 –
de destruição do equilíbrio sensorial cotidiano das pessoas através de suas
posturas exageradas, cômicas ou grotescas.
Essas íntimas relações que o Kabuki estabelecia com os níveis obscuros
da sociedade emprestavam um status liminar aos seus atores, projetando-os em
uma zona de penumbra social na qual oscilavam paradoxalmente entre os polos
da rejeição e da idolatria por parte da população em geral. No último período
Edo, durante o governo de Tokugawa, a classe dos atores Kabuki, assim como a

15 Segundo Centonze (2003, p. 66), “o termo kabuki deriva do verbo kabuku, o qual
indicava a heresia que se opõe à ortodoxia e expressava-se através de diversos
comportamentos e gestos, modos de aparecer (vestimentas, penteados etc.) com a
marca da provocação e discordância em confronto ao sistema e às suas normas”. Em
uma definição mais sintética o verbo poderia ser traduzido como “fora de harmonia”,
“torto” ou “perverso”.
39
das geishas, encontrava-se fora das quatro clássicas castas (samurais, agricultores,
artesãos e comerciantes) criadas pelo governo central. Ao mesmo tempo,
porém, isso não parecia impor-lhes necessariamente uma situação de
degradação e humilhação, uma vez que ainda assim exerciam um forte fascínio
no imaginário social, influenciando decisivamente as preferências da sociedade
no que se referia à arte e à moda da época.
O Kabuki e seus atores também se ofereciam como mediadores, isto é,
como uma instituição que gerenciava os limites entre o dentro e o fora da
estrutura social japonesa, incluindo em suas esferas dramatúrgicas as categorias
das pessoas excluídas socialmente – como as geishas, os deformados, os doentes
e os trabalhadores “impuros” (burakumin)16 – as quais, em virtude de suas
exclusões, simbolicamente tinham o poder de manter a ordem cultural. Em
certo sentido, os indivíduos da população em geral asseguravam as suas
identidades ao excluirem certas categorias sociais que, potencialmente, eram
carregadas com uma riqueza metafórica. Contudo, e ironicamente, viam sobre o
palco cênico esses mesmos comportamentos humanos que normalmente eram
excluídos da vida cotidiana, mas que, talvez em um nível inconsciente, eles
deveriam ter que enfrentar.
Outro fator simbólico que auxiliava na manutenção dessa posição
liminar e paradoxal de mediador dos mundos aos atores Kabuki era que, no
imaginário coletivo da época, os seres rejeitados socialmente tinham um acesso
especial à magia e ao mundo da morte17. Quando a dança Butō convoca todos
esses princípios do Kabuki, obviamente em um modo muito mais difuso e
inconsciente do que racional e estruturado, na verdade identifica-se
particularmente com os atores Kabuki do final da Era Edo, ou seja, os
“mendigos da beira do rio” (kawara mono), os quais atuavam e viviam nos leitos
secos que dividiam o meio urbano do rural, o espaço mais temporário e
marginal daquela época18.

16 Para Klein (1988, p. 35) “Burakumin (literalmente, ‘aldeões’) é o nome moderno para
o grupo rejeitado hereditariamente no Japão. Originalmente eles foram descriminados
porque trabalhavam em funções que, em termos budistas, eram impuras, como por
exemplo, trabalhos com couro, limpeza das ruas, ou adeptos em cemitérios e
crematórios”.
17 Isso talvez porque, segundo Klein (1988, p. 38), “aqueles que são menos
aprisionados pelas armadilhas da cultura moderna são vistos como seres com mais
contato com o mundo natural e com os instintos naturais”.
18 Na sociedade agrária de então, essa vida nômade dos protagonistas do
entretenimento era vista com muita suspeita e preconceito, fato este que, segundo os
antropólogos, encontraria sua justificativa nos resquícios de preconceito contra a
40
A dança Butō, e a vanguarda artística do pós-guerra japonês, fez uma
releitura principalmente do estilo kizewamono do Kabuki, atuante nesse último
período da Era Edo, justamente porque este colocava em cena espaços e figuras
marginais de seu tempo, tendo-os como foco dramatúrgico central: ladrões,
prostitutas, padres excomungados por assédio sexual, burakumin, recitando em
cenários que retratavam cemitérios, leitos de rios, favelas e tantos outros lugares
que abrigavam a decadência e a morte.
A "desviscerização" do Kabuki, com a consequente debilitação de sua
força subversiva, tem início por volta do ano 1872, poucos anos depois da
abertura política e cultural colocada em ato pela Era Meiji. E isso ocorreu
dentro de um contexto mais amplo de modernização do país, no qual o
governo, sentindo a necessidade de realizar reformulações profundas em todas
as esferas da cultura, procurou adaptar suas características para facilitar o
diálogo e os futuros intercâmbios com o Ocidente – tido como grande
referência e modelo de desenvolvimento.
Contudo, mesmo que essas transformações propostas pelo governo
tivessem a sensibilidade ocidental como elemento norteador, elas ocorreram
praticamente sobre um trilho de dupla direção. Em outras palavras, ao mesmo
tempo em que as práticas culturais japonesas foram perdendo suas forças
originais, incorporando puritanismos e moralismos ocidentais, existia como fio
condutor de todo processo também uma preocupação política em mostrar-se
autossuficiente, tradicional e autêntico. E nesse jogo bidirecional, o Kabuki
aparece como um exemplo muito significativo19 de adaptação ao gosto
ocidental, uma vez que foi filtrado das complexidades simbólicas e das
bivalências morais que percorrem as suas veias, ao mesmo tempo em que foi
reproposto em nível internacional como uma arte autenticamente nativa e,
portanto, capaz de representar legitimamente a qualidade das raízes nipônicas.
Esse movimento de, por assim dizer, revitalização cultural insere-se ao
interno de uma política nacionalista mais ampla, a qual procurava estabelecer
uma relação de intercâmbio mais equânime com o Ocidente, recusando uma
posição de submissão a uma suposta superioridade ocidental. O Kabuki,
mesmo purificado para a sensibilidade estrangeira, figurava assim como

tradição dos sacerdotes itinerantes que compartilhavam seus rituais e suas parábolas
através de pequenas performances (Klein, 1988, p. 34).
19 Na obra de Fraleigh e Nakamura (2006, p. 75) é possível verificar que “com o
objetivo de rejuvenescer a tradição do Kabuki, ‘civilização e iluminismo’ (Bunmei Kaika)
transformaram-se em princípios guias para o movimento de reforma teatral no início
do período Meiji”.
41
símbolo de uma arte autêntica que poderia contrapor-se, em pé de igualdade,
com as mais altas representações teatrais ocidentais.
Neste sentido, é possível perceber que quando a vanguarda artística
japonesa dos anos 50 e 60 buscou inspirar-se subversivamente no teatro
Kabuki, não se referia absolutamente ao enfraquecido e filtrado Kabuki
contemporâneo, e sim aos dramas de crua realidade colocados em cena por
uma manifestação teatral crítica e marginal, que se alimentava cotidianamente
da decadência, dos excluídos e da escuridão. E não poderia ser diverso, pois a
arte de vanguarda do pós-guerra poderia somente inspirar-se em um espetáculo
que não ‘representasse’, mas que ‘apresentasse’ ao mundo a ferocidade, as
contradições e a podridão da sociedade humana através de potentes métodos
cênicos padronizados por um Kabuki pré-moderno. E é justamente neste
repertório que habitavam os ideais de uma vanguarda experimental, a qual se
oferecia como antítese de um conceito homogêneo e idealizado de beleza.
Revitalizar uma energia subversiva própria ao Kabuki pré-moderno
significava então, de alguma forma, trazer novamente para a cena o lado escuro
do ser humano e da sociedade, as suas contradições, a sua crueldade
discriminante e excludente, a monstruosidade de seus dogmas e de suas
criaturas, incorporando os aspectos da vida humana que violavam a esfera da
moralidade e do tabu. Significava protagonizar o papel de mediador entre
mundos, (re)apresentando e jogando na face de uma sociedade civilizada os
seres que encarnavam os subprodutos de seu sistema, os marginalizados
‘transtemporais’, que não correspondem somente à uma determinada época ou
cultura específicas, mas que figuram, reincidentemente, à margem em quase
todos os tempos e sociedades: crianças, deficientes, velhos, prostitutas,
homossexuais, doentes, refugiados e nativos.
Assumindo esses personagens como matrizes poéticas de suas
experimentações artísticas, a dança Butō também compartilha da “intenção de
converter aquilo que não deveria ser admitido em algo a ser afirmado”,
acolhendo assim, em um plano estético, uma “beleza da crueldade” (zankokubi),
isto é, uma “beleza do negativo” ou uma “beleza invertida” (Centonze, 2003, p.
63). Voltar os olhares para as favelas de Asakusa, em pleno século XX,
significou para o Butō, e para os artistas experimentais daquela época, buscar os
estímulos equivalentes à atmosfera carnavalesca original do Kabuki, ou à
sexualidade, à desorganização e ao humor irreverente das manifestações
populares de entretenimento, como o Yose – identificado pela vanguarda
artística como o verdadeiro ancestral do Kabuki.
Foi justamente nesses estímulos, somados à pobreza e à marginalidade
dos atores do teatro popular pré-moderno, que Tatsumi Hijikata esperou
encontrar a energia e a liberdade criativa, ausentes no Kabuki do século XX, e
42
que iriam servir, em grande parte, como matéria prima para a estruturação dos
fundamentos de sua dança. Uma dança, um projeto político-artístico, que
ganhou contornos mais claros ao interno de um contexto mais amplo de
revoltas e experiências, em um Japão efervescente que tentava levantar-se
novamente em meio às suas promíscuas relações com o Ocidente, esse seu
eterno e paradoxal inimigo-amigo. Um Japão nostálgico que reinventava seu
passado na crença de que uma realidade melhor já tivesse existido e de que algo
de autêntico ainda persistisse em suas veias cansadas, buscando legitimar a
consonância de seus passos com o mundo externo que lhe era contemporâneo.
Tatsumi Hijikata criou assim uma dança de vanguarda, mas que,
paradoxalmente, apresentou-se como um fruto legítimo – mas rebelde – de seu
tempo. Uma dança que revela, em cada uma de suas cicatrizes, heranças de uma
época de nostalgias, rebeliões e experiências. Uma dança que sobrepõe solidões
e festividades de uma cultura camponesa às sexualidades e marginalidades de
uma cultura urbana, celebrando em ritos pagãos a fusão herética entre as
tradições de penumbra de um Japão de outrora e a fugacidade de uma cultura
pós-moderna20.
Contudo, para se compreender melhor a complexidade de tal projeto
político-corêutico é necessário observá-lo ao interno de sua densa rede de
relações, produzida por um percurso com diferentes níveis de recapitulação e
análise. Portanto, para se aproximar de uma compreensão mais complexa da
dança Butō, talvez seja necessário conhecer primeiro alguns elementos
essenciais dos outros contextos que a configuram, em direção aos quais as
poucas raízes históricas e culturais até aqui indicadas ajudariam somente a dar o
primeiro passo. Talvez aprofundando um pouco mais o conhecimento sobre a
biografia dos dois principais fundadores da dança Butō – Tatsumi Hijikata e

20 Na obra de Klein (1988, p. 21-2), é possível encontrar uma interessante – mas talvez
não totalmente compartilhável – crítica a um “estilo pastiche” assumido pela dança
Butō devido a sua multiplicidade de influências e estéticas. Dialogando com a obra de
Frederic Jameson (“Postmodernism, or the Cultural Logic of Late-Capitalism”, New
Left Review, n°146) a autora toma emprestado algumas de suas categorias-chave e
procura desenhar um paralelo entre a estética Butō e a arte pós-moderna, identificando
assim os seus supostos sinais de pós-modernidade, principalmente, a partir de algumas
“formas de nostalgia”. Em outras palavras, procurou revelar alguns sinais da condição
pós-moderna da dança Butō através da identificação de algumas de suas tentativas de
amalgamar características do tempo presente com um imediato passado, ou com uma
memória mais distante que escapa da memória existencial individual. Essas “nostalgias”
seriam, principalmente: a celebração de uma cultura popular carnavalesca, uma
familiaridade com a vulgaridade do kitsch e uma primordial nostalgia de uma “infância”,
de algo melhor que já existiu.
43
Kazuo Ōno – possam surgir outros elementos fundamentais que ajudarão a
redesenhar, em grandes linhas, esse revolucionário projeto.

1.3) RESQUÍCIOS DO OCIDENTE

Para se compreender a dança Butō enquanto uma manifestação


político-artística de contestação e ruptura com os valores ocidentais em um
Japão pós-guerra, entender quais eram esses valores é tão importante quanto
conhecer a história das manifestações que os propagavam ao interno da cultura
moderna japonesa. No caso específico do nascimento da dança Butō, a maior
parte desses novos paradigmas ocidentais, contra os quais combateu, emanava
principalmente do universo corêutico, isto é, os valores aos quais se
contrapunha tinham como epicentro gerador o âmbito da dança ou, mais
precisamente, da dança ocidental.
Desde o início do século XX, a dança ocidental esteve presente, em
diferentes modos, em solo japonês, tornando-se assim um sólido ponto de
referência no qual muitos artistas se inspiraram e contra o qual outros tantos se
posicionaram. Neste sentido, tanto a dança clássica como a dança moderna
jogaram um papel importante – certamente em medidas diferentes – na
configuração histórica que proporcionou o surgimento da dança Butō. Seja
como influência direta na formação artística de seus fundadores, seja como alvo
contra o qual estes se posicionaram, a dança ocidental possui uma ligação
visceral com as revoluções da dança moderna japonesa. Por isso, conhecer
alguma dessas relações e os seus protagonistas parece ser de fundamental
importância.
Historicamente a dança ocidental foi introduzida no Japão através o
trabalho pedagógico do mestre italiano Giovanni Vittorio Rossi, contratado
pelo Teatro Imperial de Tóquio, em 1912, para assumir os ensinamentos de balé
criativo e de teatro dramático europeu. Com Rossi, o balé começou a penetrar a
cultura japonesa comungando do mesmo status que possuía na cultura
europeia, sendo admirado e procurado principalmente por integrantes das
classes sociais mais altas.
Baku Ishii (1886 – 1962), um dos mais talentosos pupilos de Rossi e o
primeiro japonês a encenar uma dança de estilo ocidental em público21,
abandonou os ensinamentos de seu mestre em 1916, descontente com as
propostas anacrônicas da dança clássica que, segundo ele, desconsideravam a

21 Em junho de 1916, encenou algumas danças-poema inspiradas na obra de W. B.


Yeats (Klein, 1988, p. 7).
44
realidade de seu tempo. Juntamente com seu amigo Kōsaku Yamada –
compositor e diretor da orquestra filarmônica de Tóquio – começou a esboçar
seu método de dança caracterizado pelo hibridismo de sua eclética formação.
Dedicou-se assim àquilo que chamava de “dança-poesia”, parte integrante de
um projeto maior denominado “dança criativa”, construindo desse modo novas
formas, experimentações e conceitos entorno ao desejo da perfeita fusão entre
movimento, ritmo e som. Com essas bases, recusava a degradante dependência
do texto e a opressora exacerbação das regras e técnicas próprias às danças
clássica e tradicionais. Acreditava, portanto, em uma dança que colocasse em
primeiro lugar o sentimento e a expressão – ou “a verdade do conteúdo” –,
tendo a técnica e a forma como suas naturais consequências.
Em 1922, Ishii realizou uma tournée passando pelas principais cidades
da Europa e por alguns teatros norte-americanos. Encenava pequenas
performances que tiveram grandes repercussões na crítica local. Nessa sua fase
internacional, teve a oportunidade de vivenciar e conhecer de modo mais
aprofundado a dança livre iniciada por Isadora Duncan (D’Orazi, 2001, p. 83),
as pesquisas sobre a rítmica de Jaques-Dalcroze e as técnicas expressionistas de
Mary Wigman (Viala e Masson-Sekine, 1988, p. 16), permanecendo esta última
como a sua inspiração mais significativa.
Juntamente com Ishii22, outro importante personagem que auxiliou na
introdução da dança moderna ocidental, foi o dançarino Takaya Eguchi,
principalmente através dos métodos e da estética expressionista da Neue Tanz,
aprendidos em seu período de formação na Europa. Eguchi era filho adotivo de
Masao Takada e Seiko Takada, os quais também foram alunos de Giovanni
Rossi no Teatro Imperial de Tóquio (D’Orazi, 2001, p.83), mas que seguiram
diferentes caminhos artísticos e geográficos. Ao invés de aprofundar seus
estudos na Europa, como Ishii, Takada escolheu, contemporaneamente, os
Estados Unidos como sede para sua pesquisa artística, nutrindo-se assim com
as técnicas desenvolvidas por personalidades como Ruth Saint-Denis, Ted
Shawn e Doris Humphrey. Deste modo, é possível afirmar que Eguchi tenha
sofrido significativas influências em sua poética, ao menos indiretas, todos esses
personagens.
Contudo, Eguchi possui uma importância particular no
desenvolvimento da dança no Japão principalmente por ter compartilhado os
ensinamentos que recebeu diretamente de Mary Wigman em seu intenso

22 Cabe aqui ressaltar também a existência de um outro protagonista no processo de


introdução da dança ocidental no Japão, mesmo que um pouco mais marginal no que se
refere às origens da dança Butō: Michio Ito, o qual dançou nos Estados Unidos entre
1916 e 1941, ensinando inclusive na Denishaw School nos anos 20 (Fraleigh, 1999, p. 32).
45
período de estudos na Alemanha, de 1931 a 1933, e por ter propiciado, deste
modo, o nascimento de duas das principais linhas expressivas da dança
moderna japonesa. De um lado, os seus ensinamentos influenciaram
diretamente o crescimento de uma matriz mais lírica e dramática da dança
moderna através artistas como, por exemplo, Fumie Kanai. De outro lado, os
seus ensinamentos influenciaram de modo significativo o nascimento de uma
matriz moderna mais crua e gestual, representada pela dança Butō (Fraleigh e
Nakamura, 1999, p. 14). Isso porque, mesmo que não tivesse nenhuma
proximidade com a estética e os princípios filosóficos que alguns anos depois
puderam gerar as bases da dança Butō, Eguchi teve uma influência direta na
formação tanto de Kazuo Ōno como de Tatsumi Hijikata, reconhecidamente
os dois fundadores dessa dança.
Neste sentido, é possível dizer que a Neue Tanz exerceu uma influência
significativa nas raízes da dança moderna japonesa23, uma vez que os seus
protagonistas tiveram algum contato, direto ou indireto, com ela durante as suas
formações. A sua introdução no Japão, em um modo geral, ajudou a deslocar o
foco dramatúrgico para as fontes criativas pessoais, exaltando a fértil interação
entre forma e conteúdo, opondo-se assim à interpretação de formas pré-
existentes usadas nas danças tradicionais e à excessiva estilização de um
vocabulário gestual, vertente trabalhada principalmente pelo balé clássico até o
momento.
Segundo Fraleigh e Nakamura (2006, p. 21), com a sua expressividade
extrema e a inclusão de gestos grotescos, a Neue Tanz muitas vezes também foi
denominada pelos japoneses como “dança feitiço” (poison dance). Takaya Eguchi,
já nos anos 30, era uma grande referência no universo da dança, pois colocava
em cena essa estética muito particular, que não se enquadrava dentro de
nenhum cânone conhecido até então. Deste modo, atraiu a atenção de todos
aqueles que buscavam uma modalidade expressiva alternativa que pudesse
sobrepor-se às estruturas estilizadas e à superficialidade dos vocabulários
padronizados apresentadas pelas danças até aquele momento. Foi então que o
jovem Kazuo Ōno interessou-se pela dança de Eguchi e começou a frequentar
o seu estúdio, no ano de 1936.
Kazuo Ōno, porém, aproximou-se desta nova forma de expressão
levado por algumas experiências determinantes que o ajudaram a esboçar os
princípios de sua futura poética, bem como uma precisa concepção de dança.
Alguns anos antes, em 1929, ainda como estudante de Educação Física junto à

23 O termo oficial “dança moderna” foi introduzido no Japão somente com a chegada
da Neue Tanz, pois antes disso todas as danças não japonesas eram classificadas somente
como “danças ocidentais” (D’Orazi, 2001, p. 84).
46
Escola Nacional de Atlética de Tóquio, assistiu ao espetáculo da dançarina de
flamenco Antonia Mercé, também conhecida como “La Argentina”, em pleno
Teatro Imperial de Tóquio. Neste espetáculo – que o tocou profundamente e
permaneceu silenciosamente impresso em seu corpo por quase cinquenta anos
antes de transformar-se em sua matéria de poesia – Kazuo Ōno pôde modificar
completamente a sua visão do corpo e da dança diante da demonstração viva de
que o movimento possuía um significado mais profundo do que o virtuosismo
físico, a dança poderia ser também uma celebração da “união entre o céu e a
terra”.
Forçado a ensinar dança em suas aulas de ginástica em um colégio
feminino, em Yokohama, Kazuo foi obrigado a procurar uma formação mais
específica e assim aproximou-se do estúdio de Baku Ishii, em 1931. Trabalhou
com ele por mais de um ano, mas abandonou a formação desiludindo-se com o
seu método, o qual classificou como uma espécie de pantomima, “um método
de dança mais do que a busca pela verdade” (Kennedy, 1995, p. 20).
O espetáculo do expressionista alemão Harald Kreutzberg – aluno
direto de Wigman em visita a Tóquio – em 1934, marcou profundamente
Kazuo Ōno ao apresentar-lhe movimentos que eram também capazes de
revelar as dimensões da alma. Com estes estímulos e esta nova concepção de
dança, ingressou na escola de Takaya Eguchi e sua esposa Misako Miya, em
1936, onde trabalhou por cinco anos, interrompidos pela sua participação na
Guerra. Em 1945, com o armistício, Kazuo retornou ao trabalho com o grupo
de Eguchi e ingressou na companhia de uma de suas principais discípulas,
Mitsuko Andō, com a qual estreou finalmente sobre os palcos, em 1949, aos 43
anos de idade.
Mitsuko Andō é também um personagem importante seja para a dança
moderna japonesa como para a dança Butō, pois além de influenciar
diretamente a carreira de Kazuo Ōno, compartilhando como ele o palco e sua
pesquisa cênica ao interno da mesma companhia, inspirou
contemporaneamente Tatsumi Hijikata, acolhendo-o no seu coletivo de
trabalho em 1952, o mesmo ano em que ele chegou a Tóquio, provindo de seu
distante Tōhoku. Hijikata, por sua vez, chegou à capital depois de um período
de experiência com o trabalho da dançarina Katsuko Masumura, discípula de
Baku Ishii, decidindo definitivamente partir em busca de novos horizontes e de
outras abordagens da dança. Aproximou-se assim do coletivo coordenado pelo
já afirmado Takaya Eguchi, sediado em Tóquio.
Foi então justamente através da companhia de Mitsuko Andō que se
deu o promissor encontro entre Tatsumi Hijikata e Kazuo Ōno; encontro que,
alguns anos depois, propiciaria o nascimento da dança Butō. Hijikata
permaneceu no grupo de Andō – o Unique Ballet – até o final dos anos 50,
47
tendo feito a sua estreia oficial sobre os palcos, dividindo a cena com Kazuo
Ōno, somente no espetáculo “O corvo” (Karasu), em 1954. Em novembro de
1961, já há alguns anos desenvolvendo performances experimentais em modo
independente ou em colaboração com outros artistas, denominou esta sua
pesquisa em dança como Ankoku Butō-ha, e fundou assim um coletivo de
trabalho formado principalmente por Yoshito Ōno, Akira Kasai e Mitsutaka
Ishii (Klein, 1988, p. 8), tendo muitas vezes a preciosa participação de Kazuo
Ōno.
Contudo, mesmo que a introdução da dança moderna tenha deixado
profundas marcas na cultura japonesa, acabou não conseguindo estabelecer-se
como uma real “tradição”, contrariamente ao que aconteceu com o balé
clássico, relegando assim o seu ensinamento à responsabilidade individual de
alguns mestres específicos. Na verdade, nos primeiros anos da dança moderna
no Japão, o balé via eclipsar a sua popularidade, mesmo que as suas escolas e
estúdios tenham crescido exponencialmente até os anos 50, e a sua presença
tenha sido suportada e revitalizada periodicamente pelas constantes visitas das
maiores companhias de dança moderna daquele período. Como já visto
anteriormente, a visita da companhia de Marta Graham, em 1955, foi uma das
mais significativas para o desenvolvimento das diferentes perspectivas
modernas da dança japonesa, seja inspirando ulteriores desenvolvimentos de
sua poética como servindo de referência para um veemente antagonismo,
protagonizado também pela dança Butō.

48
49
50
51
2.1) DANÇA DO TERRORISMO

Em geral, grande parte das pesquisas históricas ocidentais em dança


apressam-se em resumir o nascimento da dança Butō como sendo,
principalmente, um reflexo direto do trauma provocado pela bomba atômica
sobre a nação japonesa durante a Segunda Guerra Mundial. Ou mesmo
procuram isolá-la como se fosse um fenômeno puramente nipônico, sem
nenhuma relação possível com as manifestações conhecidas no Ocidente,
desconsiderando assim um profícuo diálogo intercultural que estaria em sua
base.
É verdade que a dança Butō só poderia ter sido gerada pelo ventre de
uma nação conturbada e contraditória como era o Japão naqueles anos pós-
guerra. Um país inteiramente destruído e humilhado que, movendo-se ao
interno das contradições impostas pela sua nova fase de modernização, tentava
se reerguer apoiando-se nas potencialidades e utopias geradas pelas ausências de
seu presente. E assim, do encontro entre o vazio quase absoluto de suas cidades
arrasadas e os diálogos paradoxais com um novo modelo de ocidentalização,
surgiram muitas experiências artísticas e culturais que carregavam consigo
rebeliões e esperanças em um futuro melhor, espelhando-se fortemente em um
idílico passado.
O impacto da bomba atômica, sem dúvida alguma, provocou muitos
reflexos históricos e culturais em todas as esferas constituintes do imaginário
social e coletivo da época, e, naturalmente, a vanguarda artística que se
desenvolvia naqueles anos também não foi uma exceção. Contudo, vincular, em
um sentido restrito, o nascimento da dança Butō a este clamoroso fato
histórico, aproximando a sua estética e a sua poética aos momentos de
holocausto vividos pela sociedade japonesa, é uma atitude superficial, quando
não, equivocada. Na verdade, as matrizes que se oferecem como contexto
gerador da dança Butō são muito mais complexas, protagonizadas por
existências individuais e coletivas, potencializadas pela atmosfera de
contestação, promiscuidade e fermentação artística características de sua época.
No capítulo anterior foram apresentados alguns dos principais
elementos que compunham este contexto histórico e cultural de um Japão pós-
guerra, tendo sempre como referência norteadora as suas influências no
processo de desenvolvimento da dança Butō. Os próximos capítulos têm como
52
intenção aproximar-se da complexidade inerente ao surgimento desta particular
manifestação. E, para isso, serão apresentados alguns dos principais momentos
da vida e da obra de Tatsumi Hijikata e Kazuo Ōno – considerados
historicamente como os dois fundadores da dança Butō –, repercorrendo assim
os principais momentos de suas biografias que ajudaram a compor a suas
poéticas e suas metodologias de trabalho, as quais serão, a sua vez, igualmente
apresentadas e analisadas.
Dentro de uma perspectiva histórica, aquilo que em todo mundo é
conhecido atualmente como dança Butō apresenta-se como um ulterior
desenvolvimento do projeto político-artístico colocado em cena por Tatsumi
Hijikata, já no final dos anos 50. O Ankoku Butō desenvolvido por ele é fruto de
complexas interrelações e influências, desde as muitas colaborações artísticas e
contaminações com outras linguagens – tais como literatura, música, artes
plásticas e cinema – até o hibridismo próprio ao contexto histórico e cultural
vivido pela sociedade japonesa naqueles anos. Contudo, jogam também um
papel muito importante na configuração do Ankoku Butō, as experiências
vividas em uma infância camponesa por Tatsumi Hijikata, o pensamento
subversivo de um contra movimento provindo da própria cultura europeia, a
atmosfera compartilhada com uma marginalidade urbana e a fértil relação
construída com o dançarino Kazuo Ōno.
Neste contexto, em uma perspectiva mais rigorosa, seria possível
afirmar que Hijikata foi o verdadeiro fundador da dança Butō, ao apresentar os
seus fundamentos filosóficos, técnicos e metodológicos através de sua “dança
do terrorismo”, idealizada e forjada por toda a década de 50, em seu duro
cotidiano às margens de uma sociedade urbana (Hijikata, Inner Material, 1960, in
TDR, 2000, p. 39). Contudo, não é possível desconsiderar a essencial figura de
Kazuo Ōno na raiz do projeto político-artístico de insurreição física de Hijikata,
seja como sua inspiração poética original – o “dançarino da poção mortal”24 –

24 Em Inner Material (in TDR, 2000, p. 39), Hijikata refere-se a Kazuo Ōno como “um
dançarino da poção mortal e um pioneiro da dança experimental, um inspirador amigo
e professor, que ajudou a levar meus trabalhos de dança para o teatro. Ele é um
carpinteiro e um poeta que, com um olhar afetuoso, afasta os trabalhos de uma infeliz
inveja”. A amplitude do termo inglês “poison”, presente na tradução original publicada
pela revista “The Drama Review”, levou muitos pesquisadores a (re)traduzi-lo em suas
respectivas línguas também como “remédio” (Salerno, 1998, p. 30), “veneno” ou
53
ou como intenso colaborador e principal divulgador da dança Butō em todo o
mundo, muitos anos mais tarde.
Assim sendo, em uma perspectiva mais ampla, a fundação da dança
Butō enquanto um fenômeno artístico complexo é, justamente, atribuída a estes
dois importantes personagens da vanguarda experimental dos anos 60. Porém,
cabe aqui ressaltar que ambos os artistas, devido às similaridades e diferenças de
suas poéticas, acabaram construindo percursos e propostas muito distintas
entre si. A dança Butō, já com seus próprios fundadores, apresenta-se assim em
modo plural: se não duas danças distintas, ao menos duas distintas faces de uma
mesma manifestação, as quais em muitos pontos se tocaram, complementando-
se e negando-se reciprocamente. Repercorrer algumas destas mútuas
contaminações, a partir da concretude da vida e da poesia de cada um de seus
protagonistas, é um dos principais objetivos das páginas que se seguem.

2.2) O SOLDADO NU

“Minha dança é profundamente removida de convenções e


técnicas... Ela é o desvelamento de minha vida íntima”
(Hijikata, in Viala e Masson-Sekine, 1988, p. 185).

Sem dúvida alguma, Tatsumi Hijikata apresenta-se como um dos


personagens mais importantes da cultura experimental japonesa da segunda
metade do século XX, influenciando decisivamente os fundamentos estéticos e
filosóficos de toda uma geração, servindo assim como ponto de referência para
representantes das diferentes modalidades de expressão artística. Contudo, para
se compreender a complexidade e a importância de sua obra, é necessária uma
perspectiva de análise estratificada, ou seja, um olhar que procure analisá-la em
modo transversal, mas que, para isso, procure recompô-la em diferentes níveis

“feitiço”. De qualquer forma, como a referência a algo inebriante, mágico ou curativo


está sempre presente no termo “poção”, foi escolhida aqui manutenção de tal
polissemia.
54
ou camadas. Assim, com o intuito de reconstruir em fragmentos o projeto
revolucionário deste “soldado nu”, são repropostos aqui alguns dos principais
elementos que compõem a sua vida e suas concepções, em um plano histórico,
poético e filosófico-metodológico.
Tatsumi Hijikata – nome artístico assumido posteriormente – nasceu
em 09 de março de 1928, último de onze irmãos, com o verdadeiro nome de
Kunio Yoneyama, na prefeitura de Akita, região nordeste da ilha de Honshu,
mais conhecida como Tōhoku, uma região fria de cultura camponesa,
responsável por uma rica produção de grãos que alimentava todo o país. Os
ventos cortantes de seu inverno rigoroso, bem como muitas das práticas
culturais que giravam em torno ao cultivo dos campos de arroz, marcaram a
infância do pequeno Kunio e alimentaram em modo determinante a poética de
seus futuros trabalhos artísticos. A solidão, os corpos atados e os gritos
inauditos dos bebês camponeses deixados dentro de cestos às margens dos
campos de arroz, enquanto seus pais trabalhavam nas plantações, fazem parte
das memórias profundas de um corpo no qual começavam germinar poesias e
rebeliões.
Os ventos e a lama que anunciavam o fim do inverno na região de
Tōhoku, somados ao modo de vida de sua infância camponesa, serviram como
verdadeiros mestres para Tatsumi Hijikata, ajudando-o a compor alguns dos
principais fundamentos poéticos de seu percurso artístico. A influência destas
memórias, presentes em toda sua obra, mesmo que com diferentes matizes,
ganharam gradativamente mais força no decorrer do processo de maturação de
seu projeto corêutico, atingindo seu ápice nas proposições realizadas nos
últimos anos de sua vida, com a idealização, e a parcial messa in scena, do projeto
Tōhoku Kabuki.
Em 1941, no início do envolvimento do Japão na Segunda Guerra
Mundial, Hijikata tinha somente treze anos de idade e, por isso, não foi
convocado para combater no exército japonês, sendo designado para trabalhar
na fabricação das armas junto à fábrica de aço de Akita. Todos os seus irmãos
mais velhos, pelo contrário, tiveram que partir para a guerra e morreram em
combate, deixando assim marcas significativas no imaginário do jovem Kunio e,
por consequência, também em sua futura poética. A memória de suas
“partidas” e seus “retornos” foi registrada por Hijikata, com sutileza e potência,
muitos anos depois em seus escritos:
55
“Meu pai deu-lhes um pouco de saquê para beber
em um copo de saquê, e talvez tenha dito algo como
‘Faça o seu melhor’, mas eu realmente não lembro.
Então todos ficaram vermelhos por terem bebido
saquê. Eles seguiram este caminho pois todos os
irmãos eram mais velhos. E quando voltaram, eram
cinzas em urnas funerárias. Eles foram vermelhos e
voltaram cinzas. Ah, esta coisa na qual a forma
emerge quando desaparece; a forma fica vivida ao
desaparecer” (Hijikata, Wind Daruma, 1985, in TDR,
2000, p. 76).

Em 1945, ano em que a Guerra teve seu fim, Tatsumi Hijikata já havia
decidido dedicar-se às experimentações cênicas, influenciado também pelo seu
pouco conhecimento sobre as danças experimentais europeias e norte-
americanas, as quais conhecia praticamente somente através das revistas da
época. Começou a frequentar lições de dança na capital de Akita, atraído pelo
trabalho da dançarina Katsuko Masumura, discípula de Baku Ishii, e, portanto,
influenciada pela potência expressiva da Neue Tanz alemã. Em 1949, depois de
alguns anos de experimentações com Masumura, Hijikata partiu para Tóquio
atraído pela atmosfera experimental que atravessava a dança japonesa naquele
período, concentrada em grande parte na capital.
A vida na cidade grande mostrou-lhe principalmente a pobreza e o
desemprego, forçando-o a antecipar o seu retorno ao norte. Porém, foi
justamente neste curto período de permanência que teve a oportunidade de
assistir a uma performance que o tocou profundamente, durante um recital de
dança moderna – no Kanda Kyōritsu Kōdō – organizado pela companhia de
Mitsuko Andō e protagonizado pelo experiente dançarino Kazuo Ōno. Era a
primeira performance oficial de Ōno, já com 43 anos de idade, na qual
interpretava uma peça lírica baseada em um poema de Raine Marie Rilke, e que
levou Hijikata a classificá-lo como um “dançarino entorpecente”: um corpo que
intoxicava o espaço sensorial que criava com a sua dança, apresentando um
estranho registro de tempo que o conduzia a outras dimensões.

56
No seu retorno ao norte, Hijikata reiniciou a colaboração com a
companhia de Masumura e, já em 1950, fez sua primeira performance pública,
intitulada Tsuki no hamabe – “Lua sobre a praia”, encenada na sala de cinema da
cidade de Akita. Nos meses seguintes continuou o trabalho com o grupo
coordenado por Masumura, realizando uma tournée por toda a região, na qual
procuravam entreter as pessoas nas cidades e vilas circundantes.
O ano de 1952, além de marcar o final da ocupação política dos
Estados Unidos da América sobre o Japão, apresentou-se também como um
ano decisivo na vida de Tatsumi Hijikata. Neste ano decidiu transferir-se
definitivamente para Tóquio e, aproveitando a atmosfera de fermentação
cultural própria àqueles anos de reconstrução, iniciou seus estudos em
diferentes formas de dança, incluindo balé, jazz e flamenco. Deparou-se
novamente com as dificuldades geradas por sua pobreza e, para conseguir o
sustento cotidiano, iniciou uma sequência intermitente de pequenos trabalhos
em magazines, lavanderias e estoques, mas, não obtendo muitos resultados
financeiros, foi forçado a realizar pequenos furtos e roubos, sendo preso
algumas vezes.
As dificuldades cotidianas foram gradativamente empurrando Hijikata
às margens de um Japão urbano, introduzindo-o em uma dura realidade
compartilhada com ladrões, travestis, prostitutas e bêbados: personagens com
os quais convivia nos albergues econômicos por onde passou. Todo este
contexto, somado ao processo de refundação dos valores morais de um Japão
em plena efervescência cultural, revelou a Hijikata um universo de
promiscuidades: um terreno sexualmente aberto, que lhe permitiu vivenciar
inúmeras experiências hétero e homossexuais. Toda esta constelação de
elementos, seguramente, marcou as memórias profundas de seu corpo e
gradativamente foram tomando forma e compondo em modo orbital a poética
de sua prática artística25.

25 Durante este período Hijikata também encontrou um grupo de artistas que, anos
mais tarde, tornar-se-iam figuras proeminentes na arte moderna japonesa, tais como
Kawara Ōno (artista conceitual japonês, famoso pelas suas date paintings que começou a
produzir a partir dos anos 60), Ushio Shinohara (pintor neodadaísta) e Kaoru
Kanamori (designer experimental). Reuniam-se frequentemente entre eles para tomar
saquê e conversar sobre arte e teatro (Fraleigh e Nakamura, 2006, p. 22).
57
Em 1953, começou a frequentar o estúdio de dança moderna de
Mitsuko Andō, atraído pelas sensações que lhe ficaram impressas pelas
performances presenciadas, anos antes, em sua fugaz permanência na capital,
participando assim de alguns espetáculos musicais coreografados por ela para a
televisão japonesa, ainda em seus primeiros anos de existência. Começou
também a colaborar com outros coreógrafos, como Hironobu Oikawa,
ampliando gradativamente sua rede de contatos no universo das
experimentações cênicas de um Japão pós-guerra.
Em 1954, ano da morte de sua mãe, atuou junto com Kazuo Ōno
sobre o mesmo palco em uma peça intitulada Karasu – “O Corvo”26, utilizando
pela primeira vez o sobrenome de Hijikata, “Kunio Hijikata”. A partir deste dia,
continuou participando de diversos recitais organizados pelo grupo Horiuchi
Kan – Unique Ballet de Andō, até o ano de 1958, quando iniciou sua nova fase de
experimentos cênicos. Este período de explorações foi também potencializado
especialmente pelo encontro, em 1956, com a dançarina Akiko Motofuji – sua
futura parceira profissional e pessoal – e com o Asbestos Hall – seu futuro
estúdio e base essencial para a elaboração da subversiva concepção de seu
Ankoku Butō. Assim como Hijikata, Motofuji apresentava uma constituição
corporal muito distinta, praticamente desarmônica com as anatomias
convencionais propostas seja pela dança tradicional japonesa como pelo balé
clássico ocidental. Seu corpo curto e robusto impediu o seu desenvolvimento
ao interno destas práticas devido à rigorosidade estética imposta por alguns de
seus cânones tradicionais.
Em 1958, Kunio modificou definitivamente seu novo nome artístico
para “Tatsumi Hijikata”, coreografando e atuando em uma pequena peça
intitulada Haniwa no mai – “Dança da estátua sepulcral”. Em abril de 1959,
colaborou com Kazuo Ōno dirigindo seu trabalho experimental intitulado “O
velho e o mar”: uma peça baseada na novela de Ernest Hemingway e
apresentada ao interno do 5º recital de dança moderna, no Dai-ichi Seimei Hall,
em Tóquio, mas desacreditada pela crítica.
Contudo, o ano de 1959 permanece realmente marcado na história pela
messa in scena da revolucionária peça criada por Hijikata, a qual se apresentou

26 A peça teve ainda a participação de Mamako Yoneyama, com a coreografia de


Mitsuko Andō e o cenário de Tarō Okamoto.
58
como um decisivo ponto de ruptura estética no desenvolvimento da dança
moderna japonesa. Kinjiki – “Cores proibidas”27 colocou em cena os
fundamentos de seu Ankoku Butō, ou “Dança das Trevas”, propondo uma
consistente fusão entre a dança e a escuridão da existência humana, em muitas
de suas perspectivas. Para Nario Gōda, historiador e crítico da dança Butō, a
performance que deu início ao Ankoku Butō de Tatsumi Hijikata foi inovadora
porque descartou em modo pragmático alguns dos principais paradigmas da
estética ocidental, tais como a música enquanto guia da dança, a mediação das
referências interpretativas dos programas e a própria técnica gestual e
interpretativa (Klein, 1988, p. 80).
Kinjiki foi a primeira materialização estruturada da substância escura
que habitava as entranhas de Hijikata e o início de um longo percurso em
direção às suas profundezas. Valendo-se das sugestões presentes na obra
homônima de Mishima, na qual explorava o universo da homossexualidade,
criou uma performance tão intensa quanto breve. Em não mais que dez
minutos, apresentou dois atos em penumbra, intercalados por uma total
escuridão, nos quais apenas entreviam-se duas pessoas – um jovem e um velho
– e escutavam-se passos e respirações ofegantes. Em certo momento, o jovem,
que era insistentemente perseguido com uma conotação sexual pelo homem
mais velho, segura um frango entre as suas coxas e o estrangula com um
movimento seco. Os passos se afastam, perdendo-se na escuridão de um palco
nu.
A polêmica desengatilhada por Kinjiki, segundo alguns historiadores,
provocou a expulsão de Hijikata da Associação de Dança Japonesa28, e

27 A tradução utilizada aqui é uma adaptação da versão inglesa do título da obra


(“Forbidden Colours”), homônima da novela de Mishima (1951), pois é a mais difundida
em todas as línguas ocidentais. Porém, é interessante observar que Kinjiki vem sendo
traduzido por Centonze (2003, p. 62), diretamente do japonês, também como “Prazeres
proibidos”, propondo assim outros matizes que ajudam em uma compreensão mais
ampliada da expressão original.
28 Segundo Yoshito Ōno (Entrevista pessoal, julho 2009), a expulsão de Hijikata da
Associação de Dança Japonesa, bem como a sua e de seu pai (Kazuo Ōno), aconteceu
somente no ano de 1966, depois do espetáculo Tomato – “Tomate”, com o consequente
desmembramento do grupo Ankoku Butō. Devido à ausência de maiores
esclarecimentos de sua parte, bem como à grande reincidência em diferentes fontes da
59
desestabilizou as estruturas ossificadas das instituições artísticas japonesas. Os
novos fundamentos colocados pelo Ankoku Butō 29 de Tatsumi Hijikata, em
certo sentido, incorporou alguns dos princípios do movimento artístico que
ficou conhecido no Japão como a “vanguarda suja”30, isto é, a cultura da arte
experimental daqueles anos, em suas diferentes manifestações que, explorando
os extremos do corpo humano, do poder social e dos atos sexuais, revelou
aqueles materiais que normalmente são considerados como abjetos e
censuráveis: detritos anatômicos, doenças, transexualidade e imagens de
homossexualidade masculina. A “vanguarda suja” foi um movimento que se
pautou na renúncia às “limpas” artes performativas japonesas tradicionais –
como as versões modernas do Kagura, do Nō e do Kabuki, dedicando-se neste
modo à negação do “limpo” e iluminado Japão dos anos 60 (Barber, 2006, p.
62).
A notoriedade conquistada depois da primeira performance do Ankoku
Butō, juntamente com a sua constante presença nos clubes e cafés de Tóquio, na

indicação de Kinjiki como responsável pelo seu afastamento, foi escolhida aqui a
manutenção desta informação predominante, ressaltando, porém, esta divergência
colhida no depoimento de Ōno.
29 Segundo Viala e Masson-Sekine (1988, p. 64), no início dos anos 60, Hijikata
nomeava o seu trabalho mais especificamente como Ankoku Buyō, adotando somente
alguns anos mais tarde o termo Ankoku Butō, buscando diferenciá-lo da dança moderna
e da dança tradicional, às quais se referiam, historicamente, o termo Buyō. A palavra
Butō, por sua vez, durante o período Meiji (1868 – 1912), indicava as danças de salão e
as danças que não pertenciam à tradição japonesa, tornando-se obsoleta
posteriormente. Em uma perspectiva etimológica, não existe uma definição unívoca
para os ideogramas que formam a palavra Butō, mas usualmente bu significaria
“movimentos etéreos” e tō remeteria ao movimento de “golpear o piso” ou “pisar
profundamente”. De qualquer forma, é interessante observar que a contradição está
sempre presente nas diferentes tentativas de tradução do termo.
30 Contudo, Tatsumi Hijikata nunca se identificou explicitamente com qualquer
movimento coletivo de vanguarda. Em uma entrevista em 1974, segundo Barber (2006,
p. 66), declarou considerar o próprio termo “vanguarda” como uma imposição
linguística europeia, com nenhum equivalente na língua e na arte japonesa. Para explicar
porque nunca se viu como sendo alguém de vanguarda, afirmou que “se você corre em
volta de uma pista e está um circuito completo atrás de qualquer um, então você está
sozinho e parece ser o primeiro. Talvez isso seja o que aconteceu comigo…”.
60
companhia de artistas, poetas e coreógrafos, permitiu que Hijikata construísse
uma rede de contatos e colaborações entre as principais figuras da cultura
experimental da cidade. Em meio às revoltas e manifestações urbanas do início
dos anos 60, Hijikata organizou uma série de eventos e performances realizados de
forma improvisada pelas ruas da cidade e ao interno de seu estúdio, o Asbestos-
kan, contando com a colaboração de muitos destes artistas.
Estas manifestações, organizadas como uma espécie de happening,
contavam com a participação de músicos, artistas plásticos, coreógrafos e
filmmakers, e foi denominada inicialmente 650 Experience – número que
correspondia à quantidade de cadeiras existentes no Dai-ichi Semai Hall, o
teatro que hospedou a primeira performance de Kinjiki. Na verdade, estes
happenings ficaram famosos posteriormente sob o nome genérico de Dance
experience revelando assim o eixo central da concepção de dança proposta por
Tatsumi Hijikata, ou seja, a dança enquanto uma verdadeira e profunda
experiência do público e do dançarino, contrapondo-se a uma perspectiva da
dança como um objeto estético, um símbolo ou uma inferência, possível de ser
contemplada passivamente. Neste sentido, a provocação, o perigo e outras
formas de desequilíbrio sensorial eram sempre presentes nestes eventos.
Ao interno destas experimentações performativas, de 1960 a 1966,
constituiu-se o Ankoku Butō-ha, grupo formado por alguns jovens dançarinos
como Akira Kasai e Yoshito Ōno que atuavam juntamente com Tatsumi
Hijikata e Kazuo Ōno em happenings e na encenação de alguns importantes
espetáculos. Uma das performances mais significativas na vida de Kazuo Ōno,
e que representou um de seus principais pontos de reformulação criativa,
aconteceu em 1960 e foi intitulada Divinariane, uma cena baseada na obra Nossa
Senhora das Flores de Jean Genet, na qual Hijikata dirigiu Ōno no papel de Divine,
uma velha prostituta transexual que o tocou profundamente e contaminou em
modo decisivo a sua futura poética.
Klein (1988, p. 16), destaca também outros importantes trabalhos do
Ankoku Butō-ha naqueles anos, como Hanin-hanyosha no Hirusagari no Higi
(“Cerimônia secreta de uma hermafrodita no início da tarde”), de 1961; Anma –
Aiyoku o Sasaeru Gekijo no Hanashi (“O massagista cego – Uma história teatral
em apoio ao amor e à luxúria”) de 1963; a memorável performance Bara Iro
Dansu – A la Maison de M. Civeçawa (“Uma dança colorida de rosa – Na casa o
senhor Shibusawa”), de 1965; e o último trabalho oficial do Ankoku Butō-ha,
61
encenado no Kinokuniya Hall em 1966 e intitulado Tomato – Seiai Onchōgaku
Shinanzue (Tomate – Lições introdutórias aos beatos ensinamentos do amor
erótico).
Neste mesmo período, a partir do início dos anos 60, Hijikata começou
a publicar seus textos-manifesto que o acompanhariam por toda a vida, tais
como “Inner Material/Material” (julho de 1960), “To prision” (janeiro de 1961),
“From Being Jealous of a Dog’s Vein” (maio de 1969) e “Wind Daruma” (maio de
1985)31. Estes escritos compartilham alguns fragmentos de sua vida e, ao
apresentar experiências que o ajudaram a elaborar suas concepções, torna
possível o acesso a alguns dos principais elementos que configuram a sua
poética. No manifesto To prision, por exemplo, ressalta os motivos pelos quais
uma criminalidade obstinada permeia seu trabalho:

“Todo o poder da moral civilizada, de mãos dadas com


o sistema econômico capitalista e suas instituições políticas,
está profundamente oposto ao uso do corpo simplesmente
para o objetivo, meio ou ferramenta do prazer. Ainda mais,
para uma sociedade orientada à produção, o uso
despropositado do corpo, ao qual eu chamo dança, é um
inimigo mortal que precisa ser tabu. Eu sou capaz de dizer
que minha dança compartilha uma base comum com o
crime, a homossexualidade masculina, os festivais e rituais
porque são comportamentos que explicitamente ostentam
seu despropósito na face de uma sociedade orientada
produtivamente. Neste sentido, minha dança baseada na

31 Todos estes textos foram publicados na revista The Drama Review (TDR 165, 2000)
e traduzidos por Jacqueline S. Ruyak e Nanako Kurihara, possuindo como títulos
originais, respectivamente, “Naka no sozai/sozai” (divulgado como panfleto para Hijikata
DANCE EXPERIENCE no kai), “Keimusho e” (publicado em Mita Bungaku), “Inu no
jōmyakuni shitto suru koto kara” (publicado em Bijutsu Techō) e“Kaze Daruma” (fruto da
conferência intitulada “Suijakutai no saishū” – “Coleção do corpo enfraquecido”
proferida na noite anterior do 1º Festival de Butō, em Tóquio: Butō zangeroku shūsei:
shichinin no kisetsu to shiro – “Collected Record of Butoh Confessions: Seven Persons’
Seasons and Castles”, em fevereiro de 1985, e publicado como “Kaze Daruma: Butō
zangeroku shūsei em Gendaishi techō, em maio de 1985).
62
auto-ativação humana, incluindo a homossexualidade
masculina, o crime e uma batalha naife com a natureza, pode
naturalmente ser um protesto contra a ‘alienação do
trabalho’ na sociedade capitalista. Esta é também
provavelmente a razão porque expressamente aproximei-me
dos marginais” (Hijikata, To prision, 1961, in TDR, 2000, p.
44/5).

O espetáculo Anma (O massagista32 cego), de 1963, figura como mais


um ponto de reelaboração da carreira de Hijikata, pois marca o fim do primeiro
período de seu Ankoku Butō. Com este espetáculo, parece abandonar a primazia
das referências literárias – Mishima, Lautréamont, Genet, Sade – que até então
inspiravam seus trabalhos, emprestando-lhes uma alta carga de violência e
erotismo ao interno de um projeto de purificação através do mal. Deste modo,
passa a criar suas primeiras paisagens da memória e iniciar um novo período no
qual o foco central passou a transitar por temáticas mais especificamente
japonesas. Em Anma, Hijikata realiza uma renúncia ao corpo e à sua destruição
através de uma dança violenta e erótica, coroando assim todo um período de
desconstruções, que teve como consequência a proposição de um novo
nascimento.
Em novembro de 1965, toma forma Bara Iro Dansu (Uma dança
colorida de rosa), protagonizada por Tatsumi Hijikata, Kazuo Ōno, Yoshito
Ōno, Akira Kasai e outros. Espetáculo marcado pelo famoso dueto entre
Tatsumi Hijikata e Kazuo Ōno, intitulado “a dança dos anjos”, o qual, segundo
Yoshito Ōno (in Mizohata, 2005, p. 36), simbolizou uma verdadeira
homenagem de respeito e devoção a Kazuo por parte de Hijikata. Segundo
Yoshito, Hijikata dizia que as mãos de Kazuo eram a verdadeira incorporação
de uma rosa e esta dança foi uma forma de pedir-lhe para que mostrasse esta
sua qualidade.

32 Segundo D’Orazi (2008, p. 44), o termo Anma, além de significar “massagista”, pode
também ser utilizado para referir-se à “masturbação”, movendo-se assim ao interno de
um universo semântico que denotaria um “ato de amor imaginário que dura o tempo de
sintonia entre consciência e fantasia”.
63
Durante este espetáculo diversos doces de arroz em forma de boca,
mãos e pênis foram colocados dentro de caixas e vendidos aos expectadores
como um ato simbólico da oferta dos dançarinos: corpos expostos em uma
doação de si tão integral a ponto de poderem inclusive ser comidos. Akira
Kasai foi mais além na sua leitura e aproximou este ato a uma antiga prática
japonesa chamada musume sokubaikai, que significa literalmente “a venda da
filha”.
Outra cena marcante de Bara Iro Dansu foi protagonizada pelo
dançarino Tamano Kōichi, o qual apareceu iluminado em um canto do teatro
com suas costas todas pintadas, transformando-se em uma gigantesca vagina.
Em certo sentido, esta subversão anatômica e a consequente supervalorização
das costas enquanto superfície cênica o constringiu a tomar consciência de uma
parte não visível de seu corpo. A consequente reelaboração sinestésica realizada
pelo dançarino tornou possível que ele tivesse uma experiência de intercâmbio
com a materialidade de seu próprio organismo, ajudando-o assim a impedir que
a dança se perdesse em imagens abstratas. Deste modo, começavam a esboçar-
se as bases do grandioso projeto de insurreição física colocado em cena por
Tatsumi Hijikata, no qual as explorações das amplas possibilidades de sensações
corporais serviriam como fio condutor para “reescrever a anatomia e rebelar-se
contra a história” (D’Orazi, 2008, p. 46).
O espetáculo Tomato (Tomate), realizado no ano de 1966, ficou
marcado historicamente como sendo a última performance do grupo Ankoku
Butō, e o início da longa suspensão da colaboração artística entre Kazuo Ōno e
Tatsumi Hijikata. Esta significativa ausência de grandes colaborações entre
ambos – a qual perdurou por quase uma década – não possui uma justificativa
conhecida, deixando uma grande lacuna nas compilações históricas dos críticos
contemporâneos da dança Butō33. Porém, é certo que a crise criativa vivida por
Kazuo Ōno nos anos subsequentes jogou um papel decisivo na suspensão
desta relação, como será visto no próximo capítulo.

33 De acordo com a afirmação da professora Kazuko Kuniyoshi da Universidade de


Waseda (Entrevista pessoal, 2009). Contudo, ao ser questionado sobre o assunto,
Yoshito Ōno afirma que isto aconteceu depois da expulsão deles da Associação
Nacional de Dança Moderna Japonesa (ver nota nº 6).
64
O ano de 1968 assistiu o ápice do projeto político-artístico de Tatsumi
Hijikata, materializado em sua longa performance solo intitulada Hijikata
Tatsumi to Nihonjin – Nikutai no hanran (“Tatsumi Hijikata e os japoneses – A
rebelião do corpo de carne”), mais conhecida somente por “A Rebelião da
Carne” ou “A Rebelião do Corpo” 34. Este solo, de mais de duas horas de
duração, foi descrito posteriormente como uma celebração herética e
brutalmente primitiva, marcando a mudança do foco de seu trabalho, em um
primeiro momento influenciado significativamente pelo pensamento crítico
ocidental, para uma práxis que passou a examinar intensamente o seu próprio
corpo35.
Neste sentido, a “Rebelião da carne” coroou o Ankoku Butō de Hijikata,
simbolizando a superação de uma práxis que buscava a mera destruição da
dança acadêmica europeia (ballet e danse d’école) e da dança moderna (modern dance
e expressionista). A ênfase desta nova fase de trabalho buscava privilegiar a

34 Os limites apresentados por algumas línguas ocidentais na tradução do termo nikutai


proporciona algumas divergências na interpretação do título de umas das principais
obras de Tatsumi Hijikata, uma vez que não possuem esta distinção e multiplicidade
para definir o termo “corpo”. Devido à maior difusão das traduções em inglês, o termo
genérico “body” vem retraduzido em outras línguas sem um cuidado apropriado.
Contudo, vale aqui ressaltar a particularidade e a importância no projeto de Hijikata da
concepção de nikutai, ou do “corpo de carne”, uma vez que difere radicalmente do
conceito de shintai (o corpo construído culturalmente) ou karada (o corpo como
recipiente). Na verdade, a discussão sobre a concepção de corpo japonesa é muito
extensa e complexa devido às singularidades de suas raízes culturais, contudo este
argumento será reproposto mais adiante, mesmo que de forma superficial,
principalmente a partir da dialética nikutai-shintai presente na metodologia de
construção cênica da dança Butō.
35 O processo de auto-constrição realizado por Hijikata no período que precedeu a
messa in scena do espetáculo revelou os fundamentos de uma outra concepção da dança,
permeada por sacrifícios e restrições. Segundo Barber (2006, p. 67), “ele suspendeu seu
outro trabalho em andamento e preparou-se, por muitos meses, com extrema disciplina
e inanição, como se tivesse retirado qualquer elemento estranho ou supérfluo de seu
corpo; no momento da performance, seu esqueleto, especialmente os ossos de sua caixa
torácica, apresentava-se como uma carapaça proeminente e entalhada sob a superfície
da pele, e sua face barbuda foi ficando sem carne e debilitada, meio escondida entre
seus longos cabelos, com seus zigomáticos projetando-se afiadamente”.
65
construção da identidade do corpo japonês, emprestando uma dimensão
nativista ao seu projeto de mutação anatômica. As imagens das figuras humanas
que povoavam a sua região de Akita começaram a ganhar forma e novos
conteúdos no projeto corêutico de Hijikata, materializando-se, porém, somente
alguns anos mais tarde com a longa elaboração do projeto Tōhoku Kabuki.
A “Rebelião da carne” desenvolveu-se em um palco onde se
encontravam suspensos seis painéis rotatórios feitos de latão, os quais
proporcionavam, com seus movimentos contínuos, a projeção intermitente de
luzes, sombras e imagens projetadas. Tatsumi Hijikata entrou por trás do teatro
sobre uma espécie de carro de madeira, sendo carregado nos ombros por
quatro homens como em uma procissão, atravessando todo o público e
entrando no palco. Teve início assim uma longa sequência de cenas que
transitaram entre o ritual, o humorismo e a sexualidade, oferecendo releituras
irônicas de danças como a valsa, o flamenco e o jazz, em meio a movimentos
catárticos que dissolviam o gesto codificado em uma substância ainda sem
nome. Em uma das cenas mais famosas deste espetáculo, Hijikata despiu seu
quimono branco e exibiu seu corpo nu, definhado, com músculos lisos e ossos
salientes; e um gigantesco pênis dourado passou a ser seu único indumento e o
verdadeiro protagonista36.
Estranhamente Hijikata identificou este espetáculo como sendo o 11º
aniversário da formação do Ankoku Butō-ha, projetando assim o nascimento de
sua nova concepção de dança para uma data anterior ao famoso espetáculo
Kinjiki, de 1959. Em um rigor matemático, onze anos antes de Nikutai no hanran
(1968) retornar-se-ia ao ano de 1957, quando Hijikata ainda estudava junto ao
estúdio de Mitsuko Andō e figurava regularmente nas performances e recitais
organizados pelo grupo. No evento de 1957, Hijikata deveria ter apresentado a
performance intitulada Chino no Tete, mas foi proibido de realizá-la devido à

36 A presença do pênis dourado, bem como do carro cerimonial que conduz Hijikata
ao palco, fez com que muitos pesquisadores, como Barber (2006, p. 68), afirmassem a
influência direta de Artaud sobre o espetáculo e a poética de Hijikata, a partir da obra
Heliogabalus, a qual é protagonizada pelo jovem, onipotente e autoproclamado Deus-sol.
Contudo, apesar das similaridades de seus revolucionários projetos, a inspiração
“artaudniana” na poética de Hijikata é fortemente contestada pelos historiadores
japoneses – como Kuniyoshi, Morishita, Ishii e Gōda. Maiores aprofundamentos sobre
esta polêmica e sobre a poética de Hijikata serão apresentados mais adiante.
66
existência de algumas cenas perigosas. Contudo, mesmo que ele não tenha
efetivamente conseguido concretizá-la sobre o palco, apenas o fato de tê-la
criado, fez com que ele considerasse este ano como sendo o verdadeiro início
de seu Ankoku Butō (Morishita, 2009, p. 18).
Por toda a década de 60, Hijikata transitou também por outras
linguagens artísticas e colaborou com alguns diretores experimentais de cinema,
atuando em alguns filmes de vanguarda e comerciais. As produções
experimentais mais relevantes deste período foram as colaborações com Eikō
Hosoe – com a sua única produção cinematográfica “Umbigo e Bomba
atômica” (1960) –, com o norte-americano Donald Richie – “Sacrifício” (ainda
em 1959) e “Jogos de Guerra” (1962) – e a filmagem dos espetáculos Anma e
Bara Iro Dansu, realizadas pelo jovem filmmaker Takahiko Iimura (Barber, 2006,
p. 50).
Já entre as produções comerciais, em sua grande maioria filmes de
horror, destacam-se “A inquietante humanidade deformada” (1969), de Teruo
Ishii; “O espírito do mal japonês” (1970), de Kazuo Kuroki; “A maldição do
gato negro” (1970), também de Teruo Ishii; e “Cinzas do vento”, de 1975,
identificada como sendo a produção mais significativa de todas, segundo
Kuniyoshi (Entrevista pessoal, 2009), pois foi o “único filme no qual Hijikata
interpretou a si mesmo”. Esta passagem pelo universo do cinema, apesar de
não ter sido tão representativa na vida artística de Hijikata, serviu ao menos
como um espaço paralelo de experimentações no qual pôde colocar em cena
personagens fictícios, contrastando assim a realidade crua da materialidade de
seu corpo que buscava colocar em cena em seu Ankoku Butō.
Com o funcionamento do Asbestos-kan, desde os meados da década
de 60, como grande laboratório para os experimentos cênicos de Hijikata,
muitos jovens foram atraídos devido à acidez demonstrada pelos seus
espetáculos, recebidos com grande apreço pelo contexto de rupturas e revoltas
sociais característicos daquela época. Na segunda metade dos anos 60, teve
assim início o trabalho de Hijikata como mestre e coreógrafo, dedicando-se
também à formação, em modo anárquico e sistemático, de inúmeros

67
discípulos37 como Tomiko Takai, Yōko Ashikawa, Saga Kobayashi, Momoko
Nimura, Yukio Waguri, dentre tantos outros38.
No início da década de 70, Hijikata possui já um percurso artístico
consolidado e dedica-se a um aprofundamento das bases filosóficas e
metodológicas de sua dança a partir dos experimentos com os jovens aspirantes
que frequentam seu estúdio. Unindo alguns destes desconhecidos dançarinos,
com a colaboração de escritores e poetas experimentais, Hijikata criou o grupo
Hangi daitō kan – “Espelho da grande dança do sacrifício” e começou a colocar
em cena uma série de espetáculos nos anos seguintes.

37 Como o termo ‘discípulo’ pode denotar uma relação de subserviência e de


replicação do conhecimento, é importante ressaltar que Hijikata refutava a transmissão
passiva de uma técnica e absolutamente não se apresentava como um modelo a ser
copiado, frisando sempre a necessidade de o dançarino buscar o seu Ankoku Butō, a sua
própria escuridão (Yoshito Ōno, Entrevista pessoal, 2009). Neste sentido, seria possível
classificar como discípulos de Hijikata aqueles personagens que não compartilhavam o
seu mesmo “labirinto”, mas sim as “trevas” e “luzes” que o conduziam (imagem
utilizada por Franco Ruffini em Conferência no Departamento de Música e Espetáculo,
em 18 de fevereiro de 2007, referindo-se, porém, a uma hipotética relação de
continuidade entre Delsarte, Isadora Duncan e Gordon Craig).
38 Yōko Ashikawa foi uma das mais importantes discípulas de Tatsumi Hijikata, tendo
trabalhado por muitos anos sob sua direção. Com seu corpo dúctil e maleável, sua
disciplina e a organicidade de seus movimentos, ajudou-o a construir um verdadeiro
bestiário, um repertório infinito de imagens que deram forma ao prolixo universo de
estímulos, sons, figuras e sensações que Hijikata tentava compartilhar através das
palavras. Devido a esta colaboração estreita entre ambos, muitos pesquisadores
chegaram inclusive a supervalorizá-la, classificando-a como uma das fundadoras da
dança Butō. Outros exemplos de alguns importantes dançarinos que passaram por sua
orientação, ou foram influenciados diretamente por ele, são: Akaji Marō, fundador do
grupo Dai Rakuda kan; Bishop Yamada, fundador do grupo Hoppō Butō-ha, Ushio
Amagatsu, fundador do grupo Sankai Juku; Tetsurō Tamura, fundador do grupo Dance
Love Machine; Kō Murobushi, Carlotta Ikeda e Yukio Waguri, o qual ficou famoso
menos pela fundação de seu grupo Kozensha do que pela publicação, muitos anos
depois, de um CD-ROM didático (Butoh-Kaden, Tokushima: Just System, 1998) no qual
compartilha suas anotações sobre as aulas que seguiu com seu mestre Hijikata,
propondo a sua leitura do singular processo de construção cênica proposto por ele.
68
Segundo Kuniyoshi (Entrevista pessoal, 2009), a expressão Hangi daitō
kan, na verdade, muito mais do que o nome de um grupo, seria um conceito-
chave que conduziu todo o percurso artístico de Tatsumi Hijikata, sintetizando
a sua concepção de dança. Neste sentido, Hangi daitō kan sobrepor-se-ia ao
próprio Ankoku Butō como sendo um de seus níveis mais evoluídos e
elaborados, repropondo-o em forma mais potente e essencial. O “espelho da
grande dança do sacrifício” resumiria assim uma concepção da dança na qual o
corpo do dançarino queima-se em sacrifício para tornar visível aquilo que não
tem voz pessoal39.
Dentre os espetáculos colocados em cena por Hijikata para o grupo
Hangi daitō kan nos primeiros anos da década de 7040, o principal foi o famoso
Shiki no tame no nijushichiban – “Vinte sete noites para quatro estações”, o qual
vinha indicado como uma performance comemorativa da segunda unidade da
“escola da dança da profunda escuridão” (dainiji ankoku butō ha kessoku kinen
kōen). Tatsumi Hijikata participou como um dos protagonistas, apresentando
algumas performances criadas nos anos precedentes, tais como Hōsōtan (História
da Varíola), Susame dama (Uma cortesã transformada em espírito maligno),
Gaishi-kō (Estudo de um isolante), Nadare-ame (O doce avalanche) e Gibasan
(Coberta de argila)41. Cada performance foi apresentada cinco ou seis vezes e
durava uma tarde toda, procurando assim reproduzir uma diversa estação do
ano.

39 Para o crítico Gōda (Klein, 1988, p. 85), o trabalho de Hijikata nestes anos “assumiu
a grande dança da natureza como seu modelo, queimando, sacrificando o corpo pelos
outros. Em suma, o princípio de sua dança exprimia a ideia de que somente
desfazendo-se do corpo e transcendendo o sofrimento seria possível criar uma dança
verdadeira, e que o Butō começa com o abandono do self ”.
40 Destacam-se também Oshi no Tane – “Sementes de uma restrição” (1970), Bai rabu –
“Amor à venda” (1971), Shizukana ie Zenpen – “Casa tranquila, primeiro e segundo
tempo” (1973) (TDR, 2000, p. 30/1).
41 As traduções dos títulos são aproximativas e trazidas da obra de D’Orazi (2008, p.
62), uma vez que apresentam conceitos ambíguos ou regionais, tornando-os
praticamente intraduzíveis, como no caso de Susame dama, que poderia significar algo
como “uma bela mulher que torna-se bruta” ou “uma prostituta que cresceu selvagem”;
e de Gibasan, o nome regional de uma particular alga marinha que nasce na costa de
Akita (Kurihara, TDR, 2000, p. 26)
69
Deste modo, Tatsumi Hijikata colocou em cena uma de suas mais
famosas séries e viu o nascimento de uma linguagem física que, por mais que se
referisse unicamente ao seu universo e à memória escondida ao interno de seu
corpo, foi considerada posteriormente como a “forma” da dança Butō, isto é,
uma espécie de gestualidade codificada e estereotipada: a postura curvada, os
joelhos dobrados, o centro de gravidade baixo, as pernas arqueadas, as
expressões faciais deformadas e os olhos revirados. Eram, na verdade, somente
os corpos de velhas camponesas que habitavam a sua memória, desfiguradas
pelo trabalho pesado, com suas colunas tortas pela semeadura e pela colheita
dos campos de arroz que hospedam o frio de Tōhoku.
Explorando profundamente a escuridão destas memórias de sua
origem, Hijikata transformou o seu Tōhoku em uma dimensão imaginária, sem
espaço e nem tempo. Em uma entrevista42 ele chegou a afirmar que existe um
Tōhoku em qualquer lugar, pois a profunda escuridão existe em toda parte do
mundo: a escuridão da existência e suas contradições, mas também a potência
da vida (D’Orazi, 2008, p. 59). Com “Vinte sete noites para quatro estações”
começa a ser esboçado o longo projeto de Hijikata intitulado Tōhoku Kabuki,
que o acompanhará até o final de sua vida, sendo parcialmente realizado.
Em 1973, colocou em cena Natsu no Arashi – “Temporal Estivo” no
Seibu Kōdō Hall da Universidade de Kyoto, um dos poucos espetáculos
registrados integralmente pelos estudantes da universidade e uma das últimas
participações de Hijikata sobre os palcos, participando de dois atos intitulados
“A menina” e “Lepra”, inspirados na obra “Dolls” do artista alemão Hans
Bellmer, na qual ironizava o padrão de beleza feminino proclamado pela cultura
nazista. Neste mesmo ano abandona os palcos como dançarino, aos 45 anos de
idade e no auge de sua popularidade com os críticos e o público, para dedicar-se
exclusivamente a função de diretor e coreógrafo43.

42 Kyokutanna gōsha: Hijikata Tatsumi shi intabyū – “A extrema luxúria: entrevista do Sr.
Hijikata Tatsumi”, publicada em W-NOtation, julho, 1985, p. 2-27 e citada por Kurihara
(TDR, 2000, p. 21).
43 Alguns historiadores, mesmo sem muito rigor ou preocupação, identificam este
abandono dos palcos como um dos principais motivos para o desaparecimento do
prefixo ankoku do nome de sua dança. Mesmo sem muitas confirmações documentais,
afirmam que o fato de não colocar mais em cena, material e corporalmente, a sua
70
Em junho de 1974, criou uma série de trabalhos de Butō44 que deu
início ao grupo Hakutōbō, constituído exclusivamente por mulheres, tendo
como figura central a sua pupila Yōko Ashikawa. O forte acento feminino na
configuração de seu novo grupo, refletia um novo experimento de Hijikata, que
se sentia já há alguns anos “habitado” por sua irmã morta45, fazendo inclusive
com que seu aspecto físico se assemelhasse a ela. Segundo Hijikata, as
“mulheres nasceram com a habilidade de experimentar a parte ilógica da
realidade e são consequentemente capazes de encarnar o lado ilógico da dança.
Se você imagina um corpo masculino entorno a um centro, então um feminino
abre-se para fora em um ato de dispersão de sementes” (in Viala e Masson-
Sekine, 1988, p. 84). O grupo realizou seu último espetáculo em 1976, mesmo
ano do fechamento do Asbestos-kan devido às inúmeras reclamações dos
vizinhos.
Em novembro de 1977, auxiliou Kazuo Ōno em seu retorno aos
palcos, depois de quase uma década de silêncio criativo, dirigindo o seu célebre
espetáculo Ra Aruhenchīna-shō – “Homenagem para La Argentina”, o qual foi
apresentado, três anos mais tarde, em 1980, no Festival de Nancy, na França,
projetando Kazuo Ōno e a dança Butō em todo o Ocidente. Hijikata ainda
dirigiu Kazuo em outros dois grandes espetáculos: Watashi no okasan – “Minha
mãe”, em janeiro de 1981, no Dai-ichi Semei Hall, em Tóquio; e Shikai – “Mar
morto”, que estreou durante o 1º Festival de Butō, em fevereiro de 1985, no
Asahi Hall, também em Tóquio. Neste mesmo evento – símbolo de um tardio
reconhecimento pela cultura japonesa da importância desta sua nova

própria escuridão, o levou a evitar este termo em seus pronunciamentos posteriores a


esta data.
44 Hakutō zu – “Esboço de pêssego branco”; Bijin to Byōki – “A beleza e a doença”;
Nichigetsu bōru – “Sol lua bola”; encenado no Shijuku Art Village, entre junho e agosto
de 1974 (TDR, 2000, p. 31).
45 “Eu posso não conhecer a morte, mas ela me conhece. Frequentemente digo que
tenho uma irmã vivendo dentro de meu corpo. Quando estou absorvido pela criação de
um trabalho de butō, ela arranca a escuridão de meu corpo e come mais do que é
necessário. Quando ela se levanta dentro de meu corpo, eu, inconscientemente, me
sento. Cair para mim, é também cair para ela. Mas existe muito mais que isso em nossa
relação. (…) Ela é minha professora; uma pessoa morta é minha professora de butō”
(Hijikata, Wind Daruma, 1985, in TDR, 2000, p. 77).
71
manifestação corêutica, já difundida em todo o mundo –, Tatsumi Hijikata
proferiu uma conferência de abertura, compartilhando algumas de suas
principais matrizes poéticas.
Em 1983, a editora Hakusuisha organizou uma compilação dos artigos
escritos por Hijikata, desde 1977, para o periódico Shingeki (Novo Teatro) e
publicou o livro Yameru Maihime – “A bailarina doente”. Em abril do mesmo
ano, ele reapareceu no espetáculo Keshiki ni itton no kamigata – “Um panorama
de uma tonelada de perucas”, colocando em cena um retorno esperado que
parecia oferecer-se como uma conclusão definitiva de seu ciclo, ao restabelecer
em outro nível alguns pressupostos iniciais de sua pesquisa, como a sexualidade
de jovens e velhos (D’Orazi, 2008, p. 65).
O ano de 1985, último ano de sua vida, foi intenso e repleto de
realizações. Depois de abrir o 1º Festival de Butō no Japão e dirigir “Mar
Morto” de Ōno, Hijikata consegue reabrir o Asbestos-kan46 e, principalmente,
colocar em cena grande parte de seu projeto de vida intitulado Tōhoku kabuki
keikaku. Neste seu último ano de produções, conseguiu organizar este seu
grandioso projeto transformando-o em quatro espetáculos – com intervalos de
mais ou menos três meses entre cada um – nos quais, segundo Viala e Masson-
Sekine (1988, p. 94), apresentou uma forte tendência em abandonar algumas
técnicas espetaculares para concentrar-se na expressão da vida e do ser.
No final de sua vida, Tatsumi Hijikata parecia dedicar as suas pesquisas
em busca do suijakutai, o “corpo definhado” ou “enfraquecido”47, ambicionava
assim tentar apagar o corpo e ir mais além dele, além de qualquer coisa com
uma forma material. E foi justamente sobre esta possibilidade do “desaparecer”
que Hijikata estava pesquisando um pouco antes de falecer de câncer e cirrose

46 Coreografando o espetáculo Shitashimi e no oku no te – “O último cartão para a


familiaridade”, em maio de 1985.
47 “Provavelmente uma das atualizações deste corpo enfraquecido foi a figura
fantasmagórica representada por Yōko Ashikawa no Tōhoku kabuki keikaku 4 (“projeto
Tōhoku kabuki 4”), em 1985. Em um quimono masculino, Ashikawa movia-se como se
estivesse flutuando, seus olhos quase fechados, como se seu corpo estivesse
desaparecendo. Esta figura era surpreendentemente diferente da poderosa presença que
colocava em cena em trabalhos dos anos 70. Hijikata escreveu uma vez, ‘Desde que o
corpo perece, ele possui uma forma. Butō possui uma outra dimensão’” (Kurihara,
TDR, 2000, p. 25).
72
hepática, no dia 21 de janeiro de 1986, aos 57 anos de idade. Tudo indica que
ele tenha encontrado as respostas que procurava.

2.3) A ARMA LETAL QUE SONHA

“A dança, que é um médium entre um espírito e o impulso


para um ritual secreto com o objetivo de penetrar na carne
e no sangue de jovens pessoas, acaba lapidando-as
como armas letais que sonham”
(Hijikata, To Prison, 1961, in TDR, 2000, p. 47)

Para se tentar compreender melhor o projeto político-artístico


colocado em cena por Tatsumi Hijikata, é necessário ir além de uma descrição
superficial de seu percurso histórico. Para aproximar-se da complexidade que
lhe é própria, é necessário, portanto, construir um olhar vertical capaz de
conectar os fatos e as experiências que construíram a sua vida, com os
princípios filosóficos e estéticos que o ajudaram a configurar posteriormente as
suas produções artísticas. Deste modo, é possível trazer à superfície um
universo subterrâneo de relações, o qual podemos identificar como sendo as
suas “matrizes poéticas”. Tentar tocar com as mãos, portanto, nos fundamentos
da complexa poética de Hijikata é o principal objetivo destas próximas linhas.
Como já visto até aqui, o Ankoku Butō de Tatsumi Hijikata nasce em
meio a um período conturbado de contestações sociais, imerso em um contexto
de renúncias, ausências e experiências no âmbito artístico, e influenciado por
questões culturais muito mais amplas. Nasce, porém, pelas mãos de um
homem. Nasce a partir das ações de um indivíduo – ou de uma específica
história de vida – que atravessa este contexto e o significa em modo único.
Portanto, para se identificar os principais elementos que compõem a poética de
Hijikata, é necessário um esforço de releitura dos fatos de sua vida em uma
chave relacional, isto é, a partir das relações de consonância e de contestação
73
que estes estabeleciam com a atmosfera que se respirava naqueles anos. Sem
desprezar, contudo, as particularidades que compõem o duro percurso de sua
vida.

2.3.1) Tōhoku

“O que foi chamado de Butō de Hijikata


era simplesmente seu corpo (…)”
(Gōda, in Klein, 1988, p. 85).

O fato de Hijikata ter nascido na região de Tōhoku, nordeste da ilha de


Honshu, não é absolutamente um fator a ser desprezado. As sensações, os
costumes e a geografia de sua terra natal está presente na memória profunda de
cada célula de seu corpo, apresentando-se como um elemento referencial
significativo – seja em modo subliminar ou explícito – na suas composições
coreográficas e na sua maneira particular de conceber o mundo e suas próprias
ações.
Por muitos séculos, toda esta região nordeste de Tōhoku foi
considerado o lado escuro do Japão, o oposto da serenidade e da ordem
reinantes na região sudoeste, da antiga capital Kyoto, fortemente influenciada
pela cultura budista. Tōhoku era uma região inóspita e fria na qual a mitologia
japonesa projetava o habitat de seus monstros e de seus seres bárbaros. Figuras
grotescas e assustadoras, próprias ao panteão da cultura popular, encontravam-se
assim reunidas em sua maioria sob os ventos frios do extremo nordeste do
Japão. Região na qual os traços de uma religiosidade animista sempre se
mantiveram vivos em um estrato subterrâneo da vida cotidiana de seus
cidadãos.
As primeiras representações iconográficas deste universo de monstros
e criaturas fantásticas criadas pelo imaginário popular foram registradas
somente muitos séculos mais tarde no período de esplendor da arte do Ukiyo-e
(século XVIII), quando serviam de pano de fundo para trágicas histórias de
amor, longas viagens e travessias, ou mesmo biografias de famosos bandidos. O
maior desenvolvimento deste universo fantástico de imagens aconteceu durante
o período de total isolamento do Japão em relação ao resto do mundo,
74
terminado somente com o início da Era Meiji (1868), quando, ao ser classificada
como “decadente” pelo governo e pela classe dominante da época, começou a
definhar (Salerno, 1998, p. 21).
A cultura camponesa e os modos de vida relacionados à cultivação dos
campos de arroz, típica da região de Tōhoku, também fazem parte da infância
de Tatsumi Hijikata e, por conseguinte, estão presentes nas raízes de sua
poética. Nesta vida rural, a primavera sempre foi o período mais produtivo e
desgastante para os camponeses, pois, com o derretimento da neve e a
fertilidade dos campos, todos deviam deixar suas casas e colaborar com o
trabalho duro das plantações, inclusive as crianças. Os bebês, por sua vez,
tinham seus corpos amarrados por panos e eram deixados o dia todo dentro a
cestos de palha, na beira das plantações, de onde choravam incansavelmente um
grito apagado pela fúria dos ventos. Choravam de fome, solidão e por sua
imobilidade. Choravam até desmaiarem, para recomeçarem momentos depois.
A imagem destas crianças afogadas em seus gritos inauditos,
alimentando-se de suas próprias lágrimas e remelas – como sínteses de suas
escuridões – sempre habitou as memórias de Hijikata. A relação de exploração
que elas estabeleciam com os movimentos de suas próprias mãos ou com as
outras poucas partes livres de seus corpos, serviu como forte inspiração para as
futuras bases do Ankoku Butō. Para Hijikata,

“seus corpos eram realmente seus, mas com suas mãos,


eles lidavam como se fossem coisas. Eis por que eles
provavelmente sentiam a si mesmos como ‘outro’. Eles
faziam todo o tipo de coisa, como girar suas orelhas para
tirá-las fora. Mesmo que esta história soe totalmente
ridícula, aqueles movimentos tiveram mais tarde um efeito
de longo alcance sobre meu butō. O que eu aprendi destas
crianças influenciou enormemente meu corpo. (…) O
sentimento de que, em algum lugar dentro de seu corpo, seu
braço não é realmente seu, oculta um importante segredo.
As raízes de meu butō estão escondidas aí” (Hijikata, Wind
Daruma, 1985, in TDR, 2000, p. 75).

75
A lama que se formava nas primeiras semanas da primavera também
deixou marcas indeléveis no corpo de Hijikata. Em Wind Daruma (TDR, 2000,
p. 73), conta com detalhes uma experiência infantil de quando caiu dentro de
uma poça de lama e vivenciou estranhas sensações em seu corpo. Em uma
descrição com fragmentos quase surrealistas, identifica a impotência de seus
movimentos e a impossibilidade de sua fala como um verdadeiro retorno ao
zero, ao ponto de partida de seu próprio corpo48.
A infância de Hijikata gravou também em seu corpo as relações que
possuía com seus outros dez irmãos. Sendo o filho mais novo, assistiu a partida
de todos os seus irmãos homens para a guerra e presenciou os seus retornos
como “areia em urnas funerárias”. A constante ausência de sua mãe devido aos
trabalhos e à responsabilidade com todos os outros filhos, fez com que Hijikata
saciasse a sua necessidade de amor materno na relação com sua irmã mais
velha, que substituíra a mãe em seus cuidados. A venda, e a posterior morte,
desta sua irmã-mãe49 afetou profundamente o jovem Hijikata, fazendo com que
ele sentisse a sua presença dentro de si por toda a sua vida, influenciando, em
modo decisivo, a poética da fase mais madura de seu percurso artístico.
No artigo “From Being Jealous of a Dog’s Vein”, escrito originalmente
para o Bijutsu techō (Art Notebook, 1969), Hijikata expõe com mais detalhes
como algumas de suas ideias são baseadas em suas memórias do Tōhoku, e
como a sua irmã mais velha veio habitar ao interno de seu corpo. Segundo
Kurihara (TDR, 2000, p. 20), por volta deste período Hijikata começou a vestir

48 “Meu butō começa ali, com aquilo que aprendi da lama do início da primavera, não
de algo que tenha a ver com artes performativas de santuários e templos. Estou
claramente consciente que nasci da lama e que meus movimentos hoje são todos
construídos sobre ela” (Hijikata, Wind Daruma, 1985, in TDR, 2000, p. 74).
49 No início do século XX, no Japão, ainda perdurava uma antiga prática cultural na
qual as famílias pobres vendiam suas filhas como geishas, para conseguir ampliar as suas
rendas. Contudo, mesmo que Hijikata sempre tenha se referido a este triste destino de
sua irmã, Akiko Motofuji – sua ex-mulher – afirma que a família de Hijikata não era
assim tão pobre a ponto de ter que vender a própria filha (D’Orazi, 2008, p. 109). De
qualquer forma, mesmo que em um sentido metafórico, esta imagem foi continuamente
afirmada por ele, acompanhando-o por toda a sua vida.
76
um quimono e deixar seus longos cabelos soltos ou presos em forma de coque,
utilizando prioritariamente a linguagem feminina50 em suas intervenções.
Para Gōda (in Klein, 1988, p. 85), a noção de que a sua irmã vivia
dentro de seu corpo foi para Hijikata um concreto ponto de início para
conceber a existência corpórea (bodily existence). E assim, através desta sua
habilidade de questionar profundamente o seu próprio corpo, conseguiu
compreender o seu nascimento e a sua formação, moldado pelas paisagens de
Akita. Começava aqui o esboço de um de seus grandes princípios
metodológicos, ou seja, a tentativa de restabelecer o corpo à sua dimensão
natural “perpassando-o com o principio de que para qualquer coisa
transformar-se em seu próprio lócus de expressão, precisa antes adequar-se ao
grande esquema da natureza”. Construiu-se assim cada vez mais a certeza de
que o Butō deveria ser criado a partir do próprio corpo.
O inverno da região de Tōhoku apresentou também à infância de
Hijikata noites de um escuro profundo que tornavam mais visíveis as estrelas
(Barber, 2006, p. 13), ajudando-o a construir outra percepção das trevas e da
escuridão, permeada por uma dialética essencial. “Escuridão é o melhor símbolo
para a luz. Não existe possibilidade para se entender a natureza da luz se nunca
observar profundamente a escuridão. Um entendimento exato de ambos requer
que ambas as suas inerentes naturezas sejam realmente entendidas” (Hijikata, in
Viala e Masson-Sekine, 1988, p. 188). É interessante observar também que esta
contradição é inerente até mesmo no nível etimológico do termo japonês
ankoku, pois nas inúmeras interpretações possíveis dos kanjis que formam o
conceito ankoku51, a conotação semântica de “luz subtraída” é evidentemente
sugerida.

50 “A língua japonesa é divida em gênero naquilo que se refere às palavras, estilo e


pronúncia” (Kurihara, TDR, 2000, p. 26).
51 “Nos caracteres japoneses que compõem ankoku, geralmente traduzidos como
‘profunda escuridão’, os dois kanji estão em uma relação tautológica. O caractere an está
relacionado com diversos significados como ‘ficar escuro; estar ofuscado; estar cego’
(kuramu), ou ‘desaparecer’ (kuramasu), ou ainda ‘escuro, sombrio, melancólico; opaco,
vago; ignorante’ (kurai). A sua forma substantiva yami carrega os significados de:
‘escuridão, mágoa, luto, tristeza; desordem, mercado negro’. O advérbio anni significa:
‘tacitamente, implicitamente, informalmente, indiretamente, obscuramente’. (…) O
segundo componente de ankoku é traduzido como ‘preto, escuro, moreno, bronzeado;
77
Neste sentido, a sua concepção de ankoku – trevas ou escuridão – é
muito distante da concepção hegemônica no Ocidente, a qual se baseia em um
dualismo simples permeado de valências morais e religiosas. Para Hijikata, o
lado escuro de algo pode ressaltar o reflexo de sua dimensão brilhante e, ao
mesmo tempo, aguçar os sentidos e a percepção das ínfimas coisas: “Eu acho
que as coisas comidas no escuro têm um bom sabor. Mesmo agora, eu como
doces na escuridão de minha cama. Eu não posso ver com o que eles se
parecem, mas sei que possuem um sabor muito melhor. Luz, em geral, às vezes
parece indecente para mim” (Hijikata, Plucking off the Darkness of the Flesh, 1968,
in TDR, 2000, p. 49).
Para Hijikata, porém, o escuro emanava também a cor do abismo do
corpo humano, um corpo que possui o potencial de implodir-se, em modo
único, através de suas ações e gestos, em um instante de irrepetível
incandescência, até o ponto de absorver completamente a luz (Barber, 2006, p.
13). Mesmo possuindo uma dialética essencial, as trevas de Hijikata carregavam
consigo a carga negativa de múltiplas recusas: ao estado atual do corpo
humano, ao Japão contemporâneo como um todo e às imposições estrangeiras
no âmbito da dança. Em seu ankoku, na escuridão de seu corpo, também
coabitavam a criminalidade, a decadência, as aberrações e as sexualidades
transviadas.
Exemplos destas sexualidades mutantes eram já presentes também em
suas origens camponesas, vivenciadas nos rituais e festividades populares de sua
região natal. As danças, festas e rituais de inversão celebrados pela cultura
popular, colocavam em cena uma dissolução de gêneros e a exacerbação de
símbolos sexuais que remetiam à fertilidade da natureza. Um humorismo
indecente e imoral dava forma a diversas manifestações coletivas de
entretenimento e comemoração dos diferentes períodos do ano. A tradicional
“estética da feiura” (shūaku no bi) era legitimada pelas práticas dos personagens
mascarados que invadiam as casas e molestavam seus moradores.
Segundo Centonze (2001, p. 153), o Ankoku Butō de Hijikata
compartilha, em algum modo, muitos elementos significativos próprios ao

sujo’ (kuroi); o verbo intransitivo kuromaru significa ‘escurecer, ficar negro’, e o


substantivo kuroraka significa ‘negritude, profundo negro’. Neste caso, a expressão de
um valor cromático prevalece” (Centonze, 2003/2004, p. 25).
78
universo das danças e dos rituais que reverenciam a morte e o seu
renascimento, possuindo uma certa relação com as danças dos yamabushi – os
ascetas da montanha praticantes do shugendō – cujas práticas permaneceram
enraizadas no tecido cultural do Tōhoku. Uma relação mais direta poderia
existir com os uramai, as danças esotéricas reservadas aos yamabushi, que são
executadas somente na escuridão da noite e servem como prática de distorção e
inversão grotesca dos indivíduos não pertencentes ao seu coletivo de referência,
isto é, os exotéricos, denominados omotemai.
Nascido e criado em meio a este universo de festividades e
religiosidades populares, Tatsumi Hijikata necessariamente tinha como ponto
de partida outros entendimentos de corpo, sexo, humor, dança, transgressão,
escuridão, vida e morte52. Conceitos-chave para a sua poética que foram sendo
reelaborados a partir das novas experiências realizadas em sua juventude no
meio urbano, traduzidos gradativamente para um plano estético durante todo o
seu percurso artístico.

2.3.2) Literatura francesa

Apesar de a carnalidade ser um elemento central de seu projeto, as


palavras sempre foram essenciais para Hijikata. Além de ter escrito e falado
muito sobre o seu Butō, em um plano formal, utilizava também as palavras
como um médium de traduções entre mundos. Colhendo a essência de quadros
surrealistas, figuras e imagens abstratas, transmutava-a em sensações que
tentava transmitir aos seus discípulos valendo-se do recurso da palavra. Palavras
muitas vezes estranhas, abertas ou incompreensíveis mesmo para aqueles mais
próximos de Hijikata. Possuía uma escrita cheia de neologismos, com sentenças
muitas vezes pontuadas por incorreções gramaticais. Hijikata tentava capturar
todos os tipos de emoções, paisagens e sensações, utilizando em seus

52 Segundo Gōda (in Klein, 1988, p. 83), devido à sua origem camponesa, o ato de
matar um frango poderia também possuir outras significações para Hijikata,
recordando-o a excitação da chegada de um hóspede especial ou da preparação de uma
festa. Com isso procura insinuar outras possíveis leituras para a famosa cena de Kinjiki
(1959).
79
treinamentos sons evocativos e onomatopeias que, para ele, possuíam realmente
uma fisicidade. Neste sentido, para ele o corpo era uma metáfora das palavras e
as palavras eram uma metáfora do corpo (Kurihara, TDR, 2000, p. 16).
Contudo, além de servirem como uma ferramenta ativa em seu
processo sutil de comunicação, as palavras para Hijikata também foram
elementos fundamentais para o estímulo de sua criatividade. Livros e poesias
sempre foram suas grandes fontes de inspiração. Leitor voraz de literatura,
absorveu os mais diferentes escritores nacionais e internacionais –
principalmente os grandes nomes da contracultura europeia que vinham sendo
traduzidos com afinco por militantes da vanguarda artística dos anos 60.
Publicações ocidentais que geraram grande entusiasmo na época justamente
porque representavam muitas temáticas que reforçavam a aura de dissidência
social e revolução corporal daqueles anos, como o corpo em permanente
oposição e as transformações sexuais. Escritores ocidentais como Jean Paul
Sartre, Friedrich Nietzsche, Marquês de Sade, Herbert Marcuse e George
Bataille acentuaram alguns desequilíbrios e deram nomes precisos a muitos
conceitos dentro aos quais Hijikata já se movia em modo instintivo.
Depois da encenação de Kinjiki, Hijikata conheceu Mishima, autor da
novela da qual emprestou o título de sua performance. Mishima demonstrou-se
profundamente interessado em seu trabalho e começou a frequentar seu
estúdio, estimulando e apresentando Hijikata à importantes figuras da vida
cultural japonesa. Dentre estes, destacou-se Tatsuhiko Shibusawa, um erudito
estudante de literatura francesa e responsável pela tradução de algumas grandes
obras53 francesas para a língua japonesa. Shibusawa tornou-se assim um amigo
muito próximo de Hijikata, fornindo-o com inúmeras produções de vanguarda
da literatura e do pensamento contemporâneo ocidental.
Neste sentido, é possível admitir que nos primeiros anos do Ankoku
Butō de Hijikata está presente uma escuridão que vai muito mais além das cores
e das noites profundas do Tōhoku. Com a ajuda de Shibusawa e de sua leitura
voraz, Hijikata começou a contaminar o seu ankoku com elementos provindos

53 A tradução de Shibusawa da obra de Marquês de Sade, “1792 Les Prospérité du Vice


Part II”, foi julgada pelas autoridades por obscenidade, levando ao famoso caso da corte
de 1960 que envolveu proeminentes escritores como testemunhas (Kurihara, TDR,
2000, p. 18).
80
também da literatura e da contracultura francesa54, incorporando diferentes
perspectivas da criminalidade, da sexualidade e da crueldade presentes nas obras
de escritores como Sade, Lautréamont, Rimbaud e Genet.
Este último, Jean Genet, figura na verdade como um dos personagens
legendários para toda a vanguarda artística japonesa daqueles anos,
influenciando fortemente a poética de suas produções. Tatsumi Hijikata o tinha
como seu escritor favorito55. Sentindo-se alienado do contexto urbano e
moderno, Hijikata deixou sua imaginação ser capturada pelo mundo bizarro
construído por Genet, o qual, rejeitado pela sociedade, afirmava a si mesmo
como era, rejeitando-a reciprocamente e construindo seu ethos paradoxal, no
qual a pobreza tornava-se uma virtude e os piolhos eram emblemas da
prosperidade. Para Kurihara (TDR, 2000, p. 18), estas conversões paradoxais
transformaram-se em um guia estético que contaminou a poética de Hijikata,
sugerindo que a feiura pudesse ser a beleza; a morte, a vida.
A obra de Genet auxiliou deste modo Hijikata a sobrepor em sua
poética a arte com o delito, uma vez que criava em suas obras uma
movimentação determinada que transcendia as esferas legais, sociais e sexuais
das normas da sociedade, dissolvendo-as estrategicamente em escombros
abjetos. Para Barber (2006, p. 27), mesmo que as influências de Genet tenham
diminuído no trabalho de Hijikata do final dos anos 60, dois principais
elementos permaneceram em sua poética até o final de sua produção artística:
“a nostalgia transfigurada por uma experiência infantil rural (evocada por Genet
em suas lembranças de ter sido despachado, como um bastardo abandonado,
para pais adotivos camponeses), e o novo interesse pela necessidade de uma
constante metamorfose sexual”.
A ilegalidade e a constante metamorfose sexual celebrada nas obras de
Genet, sobrepondo-se às memórias de Hijikata, o auxiliaram a identificar a
perversão sexual e a violência como chaves de acesso às profundezas do corpo

54 Fraleigh e Nakamura (2006, p. 23), vão mais além e arriscam afirmar que “ankoku foi
pego dos filmes populares franceses daquele tempo – os “film noir”, que são ankoku eiga
(filmes sombrios) em japonês. Hijikata nomeou a sua nova forma de dança Ankoku
Butō”.
55 Além de Hijikata ter já utilizado o sobrenome “Genet” como seu nome artístico no
início de sua carreira, em seus escritos também é possível encontrar a referência a ele
como “São Genet” (Fraleigh e Nakamura, 2006, p.8).
81
humano. Mas foram justamente os personagens criados por Genet que o
fizeram tocar em um modelo de percepção sensorial que pudesse ser trabalhado
para transformar a imaginação em imagens (D’Orazi, 2008, p. 38). Foi a partir
de seu texto To prison (1961) que Hijikata revelou em modo mais evidente a
presença de outros pensadores em seu imaginário – como Bataille, Nietzsche,
Sade e Marcuse – os quais, somando-se a Genet, o ajudaram a começar a focar
a sua poética no corpo e em suas próprias experiências.
A sólida base de partida oferecida por esses “autores malditos” a
Tatsumi Hijikata, levou o dançarino Akira Kasai a afirmar que Hijikata
representou mais a heresia do espírito europeu do que os distúrbios de uma
alma tipicamente japonesa (in D’Orazi, 2008, p. 117). Mesmo que esta
afirmação pareça reduzir a complexidade de suas matrizes poéticas, é
interessante observar como também pode conduzir a uma reflexão mais ampla
na qual permite identificar as influências ocidentais sofridas por Hijikata não
somente no âmbito literário, mas na pluralidade de manifestações inerentes a
diversos movimentos artísticos, como o surrealismo, o neodadaísmo, o
existencialismo e o expressionismo (Kuniyoshi, Entrevista pessoal, 2009).
Para Gōda (in Fraleigh, 1999, p. 174), o trabalho de Hijikata apresentar-
se-ia como uma espécie de “dadaísmo japonês”56. O poeta Shuzo Takiguchi57,
por sua vez, identifica o Ankoku Butō de Tatsumi Hijikata como um projeto
surrealista muito próximo, intencionalmente ou não, ao projeto guia dos

56 Mesmo que no Japão, entre os anos 10 e 20, não tenha existido um movimento
equivalente ao Dadaísmo europeu, no momento em que Hijikata estava colocando em
cena as primeiras performances de seu Ankoku Butō, pôde colaborar muitas vezes, e fazer
amizades, com integrantes do movimento Neodadaísta. Neste período, Tóquio ainda
estava hospedando as primeiras intervenções dos jovens artistas que, com seus cabelos
moicanos, executavam ações performativas ou criavam gigantescas pinturas ao ar livre
realizadas com gestos bruscos e furiosos (Barber, 2006, p. 35).
57 Editor da revista surrealista japonesa e muito admirado por Hijikata. Conseguiu
estabelecer contatos com o movimento surrealista francês com o objetivo de quebrar o
vulnerável isolamento dos surrealistas japoneses, viajando inclusive algumas vezes a
Paris para encontrar seu líder André Breton, traduzindo posteriormente a sua obra para
a língua japonesa (Barber, 2006, p. 34). Takiguchi frequentou por muito tempo o “bar
Gibbon”, uma espécie de drinking-club anexo ao Asbestos-kan, no qual Hijikata passava
muitas de suas noites bebendo e conversando sobre arte.
82
surrealistas franceses da década de 20 que reivindicavam a revolução anatômica
e a revolta sensorial. A pesquisadora do surrealismo japonês Miryam Sas (in
Barber, 2006, p. 34) reforça esta opinião sugerindo que o Ankoku Butō de
Hijikata incorpora um modo subversivo, anti-lógico e improvisador que pode
ter no movimento surrealista um importante precedente.
Um retrato fiel desta pluralidade de referências artísticas, sejam elas
ocidentais ou não, é possível ser encontrado ao interno de uma das maiores
heranças intelectuais e poéticas deixadas por Tatsumi Hijikata: o seu Butō-fu, ou
“partitura” Butō. O Butō-fu seria, na verdade, o conjunto de seus escritos
privados, reunidos em uma notável quantidade de cadernos de anotações e
álbuns58 que não tinham a intenção de serem publicados, mas somente o
objetivo de registrarem o seu processo criativo, bem como de compartilhá-lo
em modo mais concreto com seus dançarinos através de uma mesma
linguagem.
Segundo Kuniyoshi (in Biblioteca Teatrale, 79-80, 2006, p. 156), na
construção de seu processo criativo, Tatsumi Hijikata “usava muitos materiais
diversos, recortava fotografias, ilustrações, tudo aquilo que achava interessante
para o espetáculo, e colava em um de seus álbuns, onde escrevia diretamente as
suas anotações”. Ele utilizava como inspiração muitas pinturas das mais
variadas origens, em particular artistas como Gustav Klimt, Willem De
Kooning, Francis Bacon, William Turner, Alfred De Musset, Gustave Moreau,
Johannes Vermeer, Salvador Dalì, Pablo Picasso, Francisco Goya, Edvard
Munch, Paul Klee, Marc Chagall, Fernand Léger, Leonardo da Vinci, dentre
outros. Utilizou mais de cinquenta tipologias de obras, incluindo, por exemplo,
arte medieval japonesa, estátuas de Buda e afrescos de Altamira. Portanto, já
que a escolha das imagens não se apresentava condicionada por apenas uma
escola artística, não seria possível encaixá-lo exclusivamente dentro de uma
categoria, seja ela surrealista, dadaísta, ou outra qualquer.

58 Atualmente estes cadernos encontram-se sob a responsabilidade do arquivo Tatsumi


Hijikata, sediado junto ao Research Center for the Arts and Arts Administration, da
Keio University e coordenado pelo professor Takashi Morishita, a quem cabem aqui os
devidos agradecimentos pelo estímulo à presente pesquisa e pela oportunidade de tê-los
consultado pessoalmente.
83
O Butō-fu de Hijikata era a base para uma operação de releitura da
imagem, na qual o trabalho consistia na interpretação destas imagens enquanto
formas concretas, penetrando nas pinturas e seguindo o movimento interno de
cada figura representada, para depois defini-las em palavras – tentando assim
“congelar” aquela forma – e compartilhá-las com o grupo como um modo de
estimular a recriação de sensações. Assim sendo, realizava um processo
metodológico baseado na contradição, pois ao mesmo tempo em que encarnava
um procedimento para a criação de formas, buscava destruí-las com a implosão
dos gestos e a dissolução do corpo.
Descendente direto do hibridismo cultural característicos de seu tempo,
Hijikata demonstrou assim conservadorismos e resistências em suas inspirações
poéticas. Sem dúvida alguma, as memórias corporais de sua infância
camponesas viram-se multiplicadas e potencializadas pela acidez e subversão de
diferentes escolas da contracultura europeia, tendo alguns dos protagonistas da
literatura francesa do início do século como suas maiores referências. Mesmo
assim, este filho ilegítimo da heresia europeia não se permitiu aprisionar
debaixo de rótulos, escolas ou categorias, relativizando a sua importância ao
reivindicar a legitimidade de seu corpo bastardo. Indubitavelmente, o
pensamento de Hijikata, mesmo que apresente bases híbridas e interculturais,
não é filho de outro, senão da negação de si mesmo.

2.3.3) Marginalidade urbana

“Eu cresci sempre farejando criminosos”


(Hijikata, To Prison, 1961, in TDR, 2000, p. 43)

Talvez o universo escuro e marginal construído por Jean Genet tenha


encontrado grande reverberação no imaginário de Tatsumi Hijikata, justamente
porque foi recebido por uma pessoa que não o concebia apenas como uma
dimensão fictícia, distante de sua realidade concreta. Tatsumi Hijikata, em
muitos sentidos, viveu realmente a dureza cotidiana e o universo marginal que
via refletido nas contundentes palavras de Genet. A sexualidade transviada, o
rejeitados sociais e a ilegalidade, conviviam com ele entre as mesmas paredes,
nos albergues dos bairros pobres de uma Tóquio em exponencial reconstrução.
84
Conviviam em tal modo que o início de sua vida no crime e suas experiências
sexuais abertas foram, neste contexto, mais um ato de conservadorismo do que
de transgressão.
Desde sua chegada definitiva na capital, em 1952, Hijikata tentou se
sustentar de muitas maneiras, trabalhando intermitentemente em magazines,
lavanderias e estoques. Com uma renda insuficiente, viu-se obrigado a executar
pequenos furtos e assaltos, sendo algumas vezes pego e preso. Esta experiência
da prisão, mesmo que por pequenos períodos, construiu em seu corpo um
repertório de sensações compartilháveis seja com o imaginário literário de
autores como Genet, seja como um sentimento de compaixão – em sua raiz
etimológica59 – para com os outros criminais com quem coabitava.
Este novo Japão urbano, feito de concreto e indústrias, apresentou a
Hijikata as penumbras da sociedade contemporânea. A experiência de habitar às
margens do sistema marcou profundamente a sua futura poética, deixando
traços evidentes em sua concepção de mundo e, consequentemente, em seus
espetáculos. Em seus escritos, Hijikata afirmava a aliança de seu trabalho com
as dimensões consideradas sujas e abjetas, ressaltando deste modo a natureza
arbitrária daquilo que, de um momento ao outro, poderia ser considerado
“sujo” pela sociedade: “A sujeira é a beleza e a beleza é a sujeira, e eu circulo
entre elas para sempre” (Hijikata, in Barber, 2006, p. 63).
Inicia assim a elaborar aquilo que denominou como uma “dança
criminal”, na qual a frase “caminhar incansavelmente” (“walk tirelessly”)
resumiria a sua essência. Uma dança que vê na prisão a sua matéria poética; a
prisão enquanto um palco de tragédias, o palco de um drama no qual o corpo
nu e a morte são inseparavelmente desfrutados60. Os fundamentos da forma

59 “Compaixão: b. lat. COMPASSIÒNEM formado sobre class. COM-PÀSSUS p.p. de


COMPÀTI comiserar (v. Compatire). – Movimento do espírito que faz sentir desprazer
ou dor pelo mal dos outros, quase como se o sofrêssemos nós mesmos. Deriv.
Compassionàbile; Compassionévole” (Dizionario Etimologico Online: http://www.etimo.it
/?term=compassione&find =Cerca).
60 A inspiração para esta relação entre o corpo nu e a morte, provém das palavras de
Bataille em Erotismo: Morte e Sensualidade: “A nudez oferece um contraste à auto-
possessão, à existência descontínua, em outras palavras. (…) Ela é um estado de
comunicação revelando uma busca por uma possível continuação da existência, para
além dos limites de si. Corpos abertos para um estado de continuidade através de canais
85
original desta sua dança, Hijikata pôde encontrar na prisão, observando a
caminhada dos prisioneiros:

“O modo de caminhar de um criminoso na fila da


guilhotina é já o de uma pessoa morta, mesmo que ele se
apegue, em seu verdadeiro fim, à vida. O violento
antagonismo entre vida e morte é empurrado ao extremo e
é coerentemente expressado nesta existência solitária e
miserável que, em nome da lei, é forçada à uma condição
injusta. Uma pessoa não caminhando, mas forçada a
caminhar; uma pessoa não vivendo, mas forçada a viver;
uma pessoa não morta, mas forçada a morrer, deve,
paradoxalmente, a despeito de sua total passividade, expor a
vitalidade radical da natureza humana” (Hijikata, To Prison,
1961, in TDR, 2000, p. 46).

Tendo como suas matérias poéticas a sujeira da criminalidade, a prisão


e os paradoxos incorporados pelas pernas que nelas transitam, bem como a
intrínseca relação entre nudez e morte pensada a partir de Bataille, Hijikata
começou a esboçar os fundamentos de sua “dança criminal”. Uma dança que
buscava criticar às imposições de um sistema através do desvelamento de suas
ações sobre os corpos. Deste modo, vivenciando e vivificando o habitat da
criminalidade, construiu-se o objetivo de organizar esta matéria prima dando
forma a um grupo de dança, para assim poder transformá-los finalmente em
verdadeiros “soldados nus”, comprometidos com a batalha contra as opressões
do sistema.

secretos que nos dão um sentimento de obscenidade. A nudez é vista em civilizações


onde o ato de desnudar-se possui um significado pleno, se não como um simulacro do
ato de matar, ao menos como um equivalente despojado de gravidade”. Para Hijikata,
estas palavras de Bataille parecem aproximar a solidariedade humana a um corpo nu, “o
qual é o primeiro atingido, ainda que o corpo esteja solitário, pela continuidade da
existência, o que quer dizer, a morte. Eu vi na prisão algo como um ensaio da tragédia,
um ensaio de um drama no qual o corpo nu e a morte são inseparavelmente
combinados” (Hijikata, To Prison, 1961, in TDR, 2000, p. 45).
86
De um outro lado, a relação de amizade que possuía com as prostitutas
e travestis de Ueno Kurumazaka, o inspirou na arte da imitação (Hijikata, Inner
Material, 1960, in TDR, 2000, p. 39), ao mesmo tempo em que o ajudou a
reelaborar – ou ao menos a atualizar – as suas concepções e práticas sexuais.
Em um terreno sexualmente aberto, fruto de um Japão pós-guerra que ainda
procurava posicionar-se diante dos novos valores morais impostos pelos
americanos nos anos de ocupação política, Hijikata pode vivenciar as mais
diversas experiências hétero e homossexuais. Estas explorações sexuais o
colocaram face a face com um lado obscuro de si, apresentando-o aos abismos
do corpo humano, e desvelando as inúmeras potencialidades da energia sexual.
Quando as memórias de seu corpo encontraram as leituras de autores como
Sade, Genet e Marcuse, transmutaram-se em novos princípios filosóficos e
poéticos, que iriam acompanhar todo o seu percurso artístico.
Todo este universo da marginalidade urbana e dos excluídos sociais –
bêbados, velhos, prostitutas, deficientes e deformados – no qual Hijikata viveu
nos seus primeiros anos na cidade de Tóquio, influenciou também na sua
concepção estética e no seu conceito sobre a beleza. Quando esta vida
permeada pelo disforme somou-se às suas memórias camponesas da “estética
da feiura” e dos rituais de inversão, já reelaboradas pela estética paradoxal do
universo literário de Genet, começou a construir-se em sua poética um conceito
de beleza em grau de acolher a imperfeição e a anormalidade.
Passou então a ressignificar o corpo disforme e decrépito, colocando-o
ao centro de sua poética, uma vez que a ele é “garantida a objetividade e a
materialidade graças ao elemento negativo de sua deficiência” (Sakurai, in
Biblioteca Teatrale, 79-80, 2006, p. 211). A deformidade e a decomposição da
matéria começou a seduzi-lo justamente porque a reconectava no grande
sistema da natureza, no qual a materialidade podia viver a sua vida e “morrer a
sua própria morte”. É por isso que a admiração por animais molhados e pelos
corpos dos velhos o parecia conduzir para a realização de seu mórbido desejo,
relatado em From Being Jealous of a Dog’s Vein (1969, in TDR, 2000, p. 56):

“Eu estimo animais molhados e os corpos dos velhos,


secos como árvores mortas, precisamente porque eu
acredito que através deles eu possa ser capaz de aproximar-
me de meu desejo. Meu corpo anseia em ser cortado em
87
pedaços e escondido em algum lugar frio. Eu acho que este
é, depois de tudo, o lugar para onde eu devo retornar e
estou certo que, congelado e prestes a cair, o que meus
olhos terão visto ali será simplesmente uma intimidade com
as coisas que continuam a morrer as suas próprias mortes”.

2.3.4) A vanguarda suja

Mesmo que o Ankoku Butō de Tatsumi Hijikata não tenha se


organizado entorno a ideais coletivos ou político-partidários, é possível verificar
em sua matriz poética muitos sinais de pertencimento a um contexto cultural
mais amplo de revoltas e criticismo, compartilhado largamente com todo um
setor da sociedade na qual estava então imerso. Em sua “dança das trevas”
encontra-se viva uma substância similar àquela que deu forma seja às
manifestações estudantis como ao idílico pensamento antropológico nativista,
passando pelas revoltas sociais e a exploração artística características daqueles
anos.
O Ankoku Butō de Hijikata compartilha assim, quase geneticamente, da
atmosfera que movia os coletivos de contestação naquele preciso momento
histórico. Compartilha, mais especificamente, muitos elementos que estavam
em jogo na práxis de um coletivo maior denominado pela mídia da época de
“vanguarda suja”. Um coletivo que se manifestava através de múltiplas
linguagens artísticas, proporcionando encontros nos quais se fundiam música,
pintura, vídeo e performances. Tatsumi Hijikata figurava como um de seus
protagonistas, influenciando decisivamente toda uma geração de artistas. Esta
espécie de coletivo anarquista denominado “vanguarda suja”, em uma
perspectiva mais geral, refletia e repropunha, por sua vez, um conjunto de
elementos que se movia subterraneamente no âmbito mais amplo da cultura
japonesa do pós-guerra.
Um destes elementos basilares à cultura crítica dos anos 60 foi a
contestação dos valores e paradigmas impostos pelo Ocidente – naquele
momento com um acento muito mais americano do que europeu – em várias
esferas da sociedade. A renúncia às novas verdades e concepções americanas
impulsionou em modo transversal diferentes formas de manifestação e
88
organização coletiva, as quais foram nutridas principalmente pela hipertrofia do
pensamento antropológico nativista, iniciado nas primeiras décadas do século e
reproposto pelos intelectuais críticos do pós-guerra. A decadência e a poluição
que submergiram o Japão nos anos seguintes à Segunda Guerra Mundial, foram
um terreno fértil para a proliferação da utopia de um possível retorno a um
Japão “melhor”, a um Japão baseado em uma cultura camponesa, com
profundas relações com a natureza e a comunidade.
A vanguarda artística dos anos 60 relia esse contexto de crítica e
proposições ao interno de seu âmbito de competência, questionando assim
igualmente os desdobramentos desta nova imposição cultural no campo
artístico. Neste sentido, combatia os mecanismos instaurados pela nova
democracia capitalista que instituíam a onipresença de uma “sociedade de
produção”, a qual, por sua vez, transformava a própria arte em produto e
mercadoria (Fraleigh e Nakamura, 2006, p. 44). No âmbito da dança, esta
contraposição dava-se em um plano técnico e estético61, refutando
veementemente os modelos expressivos da modern dance americana, assim como
as “danças de salão”, tão populares em meio aos mariners americanos.
A “dança das trevas” nasce ao interno deste contexto, desenvolvida por
Tatsumi Hijikata como um manifesto da carnalidade que refutava não somente
a dança, mas também a concepção de corpo que representa o coração de uma
civilização e de todo um sistema de valores (D’Orazi, 2008, p. 21). Para Hijikata,
que concebia a arte como uma experiência profunda, a dança deveria ter a
seriedade de sangrar; nascer do imperativo de ser uma dança feita de carne e
sangue, qualidades essas, para ele, absolutamente incompatíveis com uma dança
ocidental.
Na sua concepção, a reapropriação da memória milenar do corpo e sua
relação primordial com a natureza – ambas matrizes técnicas e filosóficas
essenciais para o seu projeto de dança – são objetivos impossíveis para uma

61 Keisuke Sakurai, em sua intervenção no Congresso Internacional “Ritorno a Hijikata:


Il Butō e la danza moderna del XX secolo”, e publicada nos Anais do evento sob o título
Immobilità/movimento (in Biblioteca Teatrale 79-80, 2006, p. 99-106), desenvolve uma
interessante análise sobre a essencial contraposição poética entre a dança ocidental e o
Butō, identificando como elemento distintivo radical entre ambas o fato de que a dança
moderna ocidental tenha assumido historicamente o modelo estético das artes visuais –
pintura, escultura e arquitetura.
89
dança feita por gestos exteriores. Em sua oposição voraz aos gestos pré-
estabelecidos, celebrou as suas bases poéticas decrépitas que legitimavam a
natureza escura e efêmera do corpo, tais como a velhice, a doença, a violência e
a perversão, qualidades estas veementemente negadas pela sociedade da
imagem que começava a impor-se naqueles anos. Essa contraposição à dança e
aos valores ocidentais oferece-se, portanto, como uma outra importante matriz
poética de seu trabalho, permeando praticamente todas as suas produções
artísticas, mas aparecendo com mais força nos primeiros anos de seu Ankoku
Butō.
A busca por uma possível autenticidade japonesa foi uma outra matriz
importante no projeto de Hijikata, compartilhada com os preceitos implícitos
da “vanguarda suja”, justamente por ser um pressuposto cultural crítico
daqueles anos e, praticamente, uma fantasia nacional legitimada. Em outras
palavras, a utopia de retorno a um idílico passado propagada pelos
antropólogos nativistas foi assumida como um dever ideológico pelo setor
crítico da sociedade, infiltrando-se até mesmo em um nível subliminar em suas
práticas.
Deste modo, o Ankoku Butō de Hijikata entrecruzava-se com muitas
das ideias desenvolvidas por outros artistas japoneses, principalmente naquilo
que se referia a uma possível autenticidade do corpo humano, isto é, a busca
por aquelas dimensões do corpo que em algum modo tenham conseguido
escapar da irreparável deformação infligida pela saturação consumista e pelo
desenvolvimento poluente do país (Barber, 2006, p. 68). Nas origens do projeto
de Hijikata, em consonância com a atmosfera contemporânea, esta busca pela
autenticidade do corpo referia-se mais precisamente ao corpo japonês,
observado minuciosamente através das idiossincrasias de suas práticas culturais.
Abriu-se assim o caminho para um renascimento das artes tradicionais
do espetáculo, baseado na crença de que estas, devido às suas existências
seculares, preservassem um arcabouço gestual tipicamente japonês e, por isso,
pudessem revelar fragmentos de uma anatomia singularmente nipônica. Essa
reapropriação das artes performativas pré-modernas, relidas dentro do projeto
de Hijikata, transcendeu qualquer possibilidade de utilização de uma

90
gestualidade típica ou estilizada para procurar incorporar a subversão imanente
à arte popular62 e à cultura camponesa.

“Se, de fato, alguém retirar das danças folclóricas


camponesas o sofrimento e a crueldade que eles suportam,
sobraria muito pouco. As origens da dança japonesa são
encontradas nesta vida realmente cruel que os camponeses
suportam. Eu sempre dancei em um modo no qual procurei
tateando dentro de mim pelas raízes do sofrimento para
romper com a harmonia superficial” (Hijikata, in Viala e
Masson-Sekine, 1988, p. 185).

Hijikata foi mais além que um flácido ufanismo em seu projeto,


transcendendo uma possível “japonesidade” do corpo para investigar realmente
as bases de um corpo autêntico universal, de uma materialidade inserida e
compartilhada com o sistema maior da natureza. Sempre se preocupou em
desvincular qualquer possível submissão de seu Ankoku Butō às artes
performativas tradicionais japonesas e, ao mesmo tempo, nunca o considerou
uma manifestação especificamente japonesa, como exposto no pequeno texto
que escreveu para apresentar seus dançarinos para o público europeu, em suas
tournées realizadas em 1983:

“Ankoku Butō nasceu da realização de uma grave crise. Ele é


uma forma de regressão às sombras, uma recusa às luzes. E
mais importante que isso, Ankoku Butō sempre diz ‘não’: ele
prefere formas negativas, e seus dançarinos confrontam
seus corpos sem o medo de testemunhar a desintegração do
corpo” (Hijikata, in Barber, 2006, 93-4).

Assim sendo, movendo-se ao interno desta dialética entre o local e o


universal, Hijikata começou a afirmar as bases de seu projeto político-artístico,
produzindo e reproduzindo muitos dos princípios que moviam a “vanguarda

62 Para mais detalhes sobre o argumento, consultar o tópico 1.2) Penumbras e


nostalgias.
91
suja” japonesa daqueles anos. Todavia, as utopias que moviam a arte de
Hijikata, bem como seu caráter particular, não o permitiram submeter-se a um
projeto coletivo formal, mesmo que nunca tenha trabalhado em modo solitário.
Imagem esta tão bem traduzida pela famosa fotografia na qual, vestindo
quimono, sandálias e uma melancia pendurada no corpo, corre de bicicleta na
contramão indo de encontro a uma multidão que se manifesta.

2.3.5) Kazuo Ōno

Em 1949, em sua primeira tentativa de construir a vida na cidade de


Tóquio, Tatsumi Hijikata teve a oportunidade de presenciar uma performance que
o desestabilizaria em modo irreparável, modificando significativamente a sua
concepção de dança. Durante um recital de dança moderna, sediado pelo
Kanda Kyōritsu Kōdō e organizado pela companhia da dançarina Mitsuko
Andō, pôde testemunhar a primeira performance oficial de Kazuo Ōno, o
dançarino que se afirmaria, poucos anos depois, como um dos maiores
intérpretes da dança moderna no Japão. Neste espetáculo, Ōno colocava em
cena toda a experiência que o alto dos seus 43 anos de idade construíram em
seu corpo.
Recém tornado do campo de prisioneiros de Nova Guiné, Kazuo Ōno
havia superado a guerra e o exército para dedicar-se novamente à dança. Com
uma poética singular e uma temporalidade desequilibrada que intoxicava o
espaço sensorial criado por seus gestos, Ōno enfeitiçou o jovem expectador,
conduzindo-o a labirintos ainda desconhecidos. Foi nesta noite que o
“dançarino da poção mortal” invadiu o corpo de Hijikata, desestabilizando suas
certezas e abrindo novos horizontes para seu entendimento de dança. Segundo
Fraleigh e Nakamura (2006, p. 37), Hijikata identificou no corpo de Ōno o
shigen – o “recurso natural” – ao qual denominou ankoku, a substância escura
que via escorrer atrás de cada um de seus gestos.
Kazuo Ōno havia estudado dança moderna sob forte influência da
Ausdruckstanz de Mary Wigman, mas sempre em modo indireto através de seus
professores Baku Ishii (1931-32) e Takaya Eguchi, com sua esposa Misako
Miya, (1936-39/1945-47). A forte carga expressionista presente na gestualidade
e na poética de Ōno também impressionou o jovem Hijikata, o qual, por sua
92
vez, já frequentava há alguns anos lições deste tipo de dança na capital de sua
cidade. Neste sentido, a dança expressionista alemã não era absolutamente
desconhecida para Hijikata, apresentando-se com uma das concepções de dança
ocidental mais palatáveis para o seu particular gosto estético.
Foi assim, em modo passivo, que se deu o primeiro encontro entre os
dois principais personagens da dança moderna japonesa. Anos depois, a partir
de 1954, com o já citado espetáculo Karasu – “Corvo”, Hijikata e Ōno deram
início a um longo período de colaborações, entremeado por crises, silêncios e
espetáculos que marcaram decisivamente a história da dança no Japão. Neste
sentido, Kazuo Ōno não foi somente um parceiro para Hijikata, mas afirmou-
se como uma de suas matrizes poéticas mais importantes, mostrando ao seu
corpo ainda inexperiente as ilimitadas possibilidades sensoriais desengatilhadas
pela experiência da dança.
A fundamental existência de Kazuo Ōno na poética de Hijikata, bem
como o longo período de colaborações conjuntas e experimentações artísticas
que orientaram a vanguarda da dança japonesa dos anos 60, fez com que a
fundação da dança Butō – em uma concepção mais ampla – fosse
historicamente compartilhada entre estes dois protagonistas. Ōno, por sua vez,
foi também o maior divulgador do Butō no mundo ocidental63, a partir dos
anos 80, sendo assim mais conhecido pelo grande público. Devido à
complexidade de suas matrizes, à decisiva influência sobre Hijikata e à sua
consequente coautoria no surgimento da dança Butō, optou-se aqui pela
redação de um capítulo integralmente dedicado à vida de Kazuo Ōno,
afrontando com mais profundidade alguns dos principais elementos que
configuram a sua poética e os seus princípios filosófico-metodológicos.

63 Com o espetáculo Ra Aruhenchīna-shō (“Homenagem para La Argentina”)


apresentado no Festival de Nancy, em 1980, na França, sob a direção de Tatsumi
Hijikata.
93
2.4) A OFICINA DE CARNE E SANGUE

“Eu sou uma oficina; minha profissão é a


atividade da reabilitação humana, o que atualmente
vem sendo chamado de dançarino”
(Hijikata, To Prison, 1961, in TDR, 2000, p. 44)

“Aprender dança não é um problema de onde posicionar


um braço ou uma perna. Desde que eu não acredito em
nenhum método de ensinamento de dança, nem em
movimentos controlados, eu não ensino desta maneira.
Eu nunca acreditei nestes sistemas; sempre fui
desconfiado deles desde o dia em que nasci”
(Hijikata, in Viala e Masson-Sekine, 1988, p. 186)

Na práxis de Tatsumi Hijikata a dança era concebida muito além de


uma suposta organização sintática e racional dos gestos, caracterizando-se
realmente enquanto uma experiência profunda da existência, impossível de ser
circunscrita por um método preciso de ensinamento didático. A sua
metodologia de trabalho sempre se apresentou em modo aberto e experimental;
propondo-se efêmera em suas formas, mas densa em seu conteúdo. O Butō,
para Hijikata, sempre foi um eterno processo que não poderia nunca alcançar o
seu fim (Kurihara, TDR, 2000, p. 25). A tentativa de cristalizá-lo em uma análise
unívoca seria, portanto, somente o desenho de sua caricatura, confirmando o
alarme já anunciado pelo próprio Hijikata quanto ao temido processo de
formalização e a consequente diluição das forças corrosivas de suas origens,
afinal “nenhum estilo pode encarnar a história do corpo” (Salerno, 1998,
p.184).
Contudo, a consistência dos princípios filosóficos e da poética messi in
scena por Tatsumi Hijikata, bem como a riqueza de seus ensinamentos enquanto
coreógrafo, quando observadas com uma distância histórica, permite o esboço
de alguns elementos essenciais à sua metodologia de construção do corpo
cênico – se não em um modo incisivamente formal, ao menos como uma
arquitetura aproximativa. Apresentar alguns dos princípios filosóficos que
94
atravessam os seus métodos e a sua concepção de corpo, formatados em sua
oficina de carne e sangue como os fundamentos de seu Ankoku Butō, será,
portanto, o objetivo destas linhas que se seguem.
Como apresentado até aqui, Tatsumi Hijikata formulou um projeto
político-artístico de ruptura com os valores contemporâneos, instituindo uma
nova concepção de dança que tinha como fundamento poético a parte
decrépita e anômala da sociedade. O seu projeto corêutico absorvia a
marginalidade obscura repudiada pelas estruturas de poder para contrapor-se
aos paradigmas de um coletivo social conservador japonês, que se manifestava
em diferentes esferas. Um projeto constituído sobre uma vasta abertura para o
corpo humano – com a capacidade de transformá-lo radicalmente – e imerso,
ao mesmo tempo, em uma íntima relação com a morte e, principalmente, com
as coisas que continuam a “morrer as suas próprias mortes”.
Hijikata identificava na propriedade fundadora da relação entre dança
e morte a explicação para o seu entendimento da forma originária e perfeita da
dança, inspirando-se sobretudo na frase de Sartre, na qual consegue resumir a
condição essencial que ele gostaria de ver recriada em cena: “Um criminoso
com as mãos atadas, agora de pé sobre o cadafalso, ainda não está morto. Um
momento está faltando para a morte, aquele momento da vida em que deseja
intensamente a morte” (Hijikata, To Prison, 1961, in TDR, 2000, p. 46).
O projeto de seu Ankoku Butō, construído durante toda a sua vida,
fundou as bases de um “antissistema gestual”, o qual parecia privilegiar a
renúncia, a negação e a transformação constante de si mesmo, mais do que a
apresentação de um conjunto de técnicas e procedimentos previamente
codificados para serem assimilados e fixados. Hijikata via o seu próprio trabalho
como algo sempre aberto, que demandava um processo constante de
eliminação e renascimento: “Novamente e novamente, nós renascemos. Não é
suficiente simplesmente ter nascido do ventre da mãe. Muitos partos são
necessários. Renascer sempre e em toda parte. Novamente e novamente”
(Hijikata, in Barber, 2006, p. 99).
A abertura estrutural e semântica de seu projeto artístico refletia-se
também na concepção de corpo que estava em sua base, um corpo repleto de
fissuras, intervalos e abismos entre os fragmentos que o constituíam. Tornar
viva e manifesta a impossibilidade de um corpo inteiro, completo e fechado
como sede da existência humana foi um dos principais objetivos delineados por
95
Hijikata. O seu Ankoku Butō sugeria assim um árduo processo de fragmentação
do corpo, através da formulação de contextos geradores de uma gestualidade
capaz de impulsionar uma ulterior transformação anatômica. A sua proposta de
desconstrução gradativa das energias expressivas, até o extremo limite, atingia
um grau denominado de “corpo morto”, proporcionando assim um zeramento
do corpo que tornava possível a sua reconstrução a partir de um novo ponto de
referência. A exploração da memória presente na materialidade de seu
organismo, possibilitou que Tatsumi Hijikata fundasse as bases de uma “dança
do avesso”64.
Quando observada a partir de uma perspectiva histórica mais ampla, é
possível perceber como a metodologia de construção cênica colocada em ato
por Hijikata compartilhou diversos atributos com as principais pedagogias
atoriais desenvolvidas pelo teatro novecentista ocidental. Pedagogias que se
baseiam também sobre a “mesma dialética decomposição/recomposição”,
objetivando a “desarticulação dos automatismo” que bloqueiam e condicionam
o comportamento dos indivíduos (De Marinis, 1999, p. 15). Esta sua práxis de
“reelaboração” dos corpos, a utilização que propunha do espaço cênico como
lugar ritual, de regeneração física através da pesquisa pela expressão total, bem
como a coerência com estes princípios apresentada em seus espetáculos, fez
com que muitos pesquisadores ocidentais, tanto do teatro como da dança,
assumissem em modo quase unívoco uma sobreposição mecânica da obra de
Antonin Artaud sobre a sua poética.
Contudo, a afirmação de uma influência direta do pensamento de
Artaud sobre a obra de Hijikata – e, portanto, sobre o desenvolvimento de toda
a dança Butō –, como defendida quase unanimemente por autores ocidentais65,
na realidade reflete o predomínio de uma dimensão eurocêntrica no
pensamento ocidental, o qual procura oferecer sempre como modelo
paradigmático alguma referência concreta de sua cultura de origem para

64 “Eu desisti de mim mesmo conversando com camisas nos vestiários, maravilhando-
me com os muitos odores de suor que podem ser cheirados em suas fibras removidas.
Do lado contrário das camisas, eu retirei uma dança do avesso” (Hijikata, Inner Material,
1960, in TDR, 2000, p. 39).
65 Referências a esta influência podem ser observadas, de forma detalhada ou apenas
insinuada, na obra de autores como Barber (2006), Klein (1988), Fraleigh (1999), De
Marinis (1999), D’Orazi (2008), dentre muitos outros.
96
explicar aquilo que é proposto por uma cultura menos conhecida. Quando
questionados sobre o assunto, praticamente todos os principais pesquisadores
japoneses66 refutam em modo pragmático – talvez também com matizes
etnocêntricas – esta filiação direta de Hijikata ao pensamento de Artaud.
Evidentemente não negam o seu conhecimento sobre os escritos de Artaud,
mas procuram afastá-lo de uma concepção que o circunscreva como sendo
somente uma releitura prática de um projeto herético artaudniano.
Segundo Kuniyoshi (Entrevista pessoal, 2009), o primeiro livro de
Artaud a ser traduzido para a língua japonesa foi O teatro e seu duplo, somente em
1965, isto é, quase três anos antes da encenação do espetáculo “Rebelião da
carne” (1968) – um dos ápices do projeto de insurreição física de Hijikata e,
repetidamente, vinculado à obra de Artaud pelos pesquisadores ocidentais.
Contudo, a pesquisadora observa também que, em 1965, Hijikata já possui
quase uma década de experimentos cênicos, tendo lançado as bases de seu
projeto político-artístico, muitos anos antes, através de seus Dance Experience e
de importantes publicações, tais como Naka no sozai/sozai – “Inner Material/
Material” (1960) e Keimusho e – “To prison” (1961), nas quais expõe em modo
evidente muitos dos elementos que compõem a sua poética e embasam a sua
práxis.
Neste sentido, seria tão impossível negar a presença de Antonin Artaud
entre os autores malditos que alimentaram o ankoku de Hijikata, como afirmar
seguramente a sua predominância diante dos outros vários estímulos literários
que compõem a sua poética, como Bataille, Sartre, Genet, Marcuse, dentre
outros. Sem dúvida alguma, a discussão sobre estas complexas relações e as
diferenças entre o Ankoku Butō de Hijikata e o thêatre de la cruauté de Artaud é
muito vasta e permanecerá em aberto ainda por muito tempo67.

66 Kazuko Kuniyoshi, em entrevista pessoal (2009); Takashi Morishita e Tatsu Ishii, na


conferência Internacional Avant-garde in Japan, em Veneza (2009) e Nario Gōda, em
diversas publicações.
67 Esta influência direta da obra de Artaud sobre o seu pensamento e a sua prática
nunca foi relatada explicitamente por Tatsumi Hijikata, ao contrário de outros autores
como “São” Genet, Bataille, Sartre, Marcuse, que figuram reincidentemente ao interno
de muitos de seus manifestos. Sobre Artaud, em suas publicações, encontra-se somente
um curto e denso ensaio escrito em 1972, intitulado “As pantufas de Artaud”.
97
Contudo, para enfrentá-la é de fundamental relevância compreender o
fato de que os contextos culturais, sociais e históricos nos quais ambas as
“revoluções” tiveram lugar são radicalmente divergentes, além de diferirem
naquilo que se refere aos pontos de partida das contraposições colocadas em
ato por cada um dos projetos. Mesmo apresentando similaridades em suas
indicações filosóficas, Artaud partiu da reação contra uma concepção logo-
centrista do teatro – já anunciada em seu O teatro e seu duplo, de 1964 – enquanto
Hijikata levantou-se na tentativa de revelar a natural autarquia do nikutai –
“corpo de carne” – dentre outros tipos de corpos (Centonze, 2003/2004, p.
26).
Para Kuniyoshi (Entrevista, 2009), “Tatsumi Hijikata e Antonin Artaud
foram duas grandes pessoas que, eventualmente objetivaram conceitos muito
parecidos, caminharam entorno ao mesmo problema, procurando por alguma
resposta, mas lutando contra sistemas sociais completamente diferentes”.
Assim sendo, no seu entendimento, Artaud e Hijikata representariam dois
fenômenos quase paralelos que compartilharam muitas questões de fundo,
chegando a elaborar, cada um a seu modo, propostas radicais de refundação do
corpo e do espaço cênico.
A construção herética do “corpo total” de Hijikata tinha, portanto,
como princípio técnico e filosófico a instauração de um corpo em crise, a qual
poderia gerar, segundo Gōda (in D’Orazi, 2008, p. 149), o nascimento de uma
nova consciência68. Este corpo em crise, colocado dentro da escuridão de seu
próprio abismo – em seu ankoku –, seria para Yoshito Ōno (Entrevista Pessoal,
2009), a instância essencial da dança Butō. No entanto, para realizá-lo, Tatsumi
Hijikata desenvolveu diversas metodologias e técnicas impossíveis de serem
congeladas como um sistema didático ou propedêutico para o ensinamento da
dança69.

68 “Através da dança devemos representar a postura humana em crise” (Hijikata, in


Viala-Masson Sekine, 1988, p. 82).
69 A tentativa mais próxima disso foi a publicação do CD-ROM Butoh-Kaden
(Tokushima: Just System, 1998), por Yukio Waguri, aluno de Hijikata de 1972 à 1978 –
quando criou seu próprio grupo (Kozensha), mas continuou colaborando com alguns
espetáculos de Hijikata – oferecendo assim a sua leitura particular sobre os
procedimentos técnicos utilizados por seu mestre e, consequentemente, congelando-os
na forma de um método.
98
Contudo, observando-as com distância e transversalidade é possível
colher alguns núcleos gerais entorno aos quais desenvolveu a sua prática de
treinamento e de construção coreográfica. Em modo muito sintético, é possível
afirmar que Hijikata desenvolveu um processo de investigação arqueológica da
materialidade do nikutai, enquanto um reservatório da memória, valendo-se de
processos metamórficos que possibilitavam a sua reificação e uma consequente
subversão do corpo cultural.

2.4.1) Metamorfose

A utopia de alcançar novamente um corpo primordial, escondido e


oprimido pelos valores culturais da sociedade, é um elemento reincidente nas
diversas pesquisas que geraram a revolução ética e estética das artes
performativas ocidentais no início do Século XX. Mais precisamente no âmbito
da dança, é possível encontrar indícios desta utopia já no “corpo livre” de
Isadora Duncan, no “corpo misterioso” de Ruth Saint-Denis, nas pesquisas
sobre o “demoníaco e emocional” de Mary Wigman, no “corpo da lei física” de
Doris Humphrey ou mesmo no corpo que “nunca mente” de Marta Graham
(Fraleigh, 1999, p.52).
Em um certo sentido, seria então possível dizer que a dança Butō
também compartilha desta utopia, ou seja, relê e repropõe esta busca a partir de
outros princípios e referências. Isto porque ao interno da poética geradora da
dança Butō encontra-se uma busca pelo movimento orgânico instintivo, que
desafia a violência cultural sobre o corpo, reconhecendo a sua dimensão
roubada70. Este processo de subversão do corpo cultural procura partir,
tecnicamente, da exploração das dificuldades e simplicidades orgânicas,
recultivando o corpo em termos novos e minimalistas. A transformação
metamórfica joga assim um papel decisivo no conjunto dos procedimentos

70 A expressão “corpo roubado” foi utilizada pelo crítico Miyabi Ichikawa em seu
artigo Butō’ Josetsu – “A preface to Butō”, originalmente publicado em Butō: Nikutai no
Suriarisuto-tachi – “Butō: Surrealists of the flesh”, ed. Hanaga Mitsutoshi (Tokyo: Gendai
Shokan, 1983), e reproposto como apêndice da obra de Klein (1988, p. 71).
99
técnicos desenvolvidos por Hijikata71 para a desconstrução do corpo cultural e
da individualidade de seus dançarinos.
A metamorfose aparece como um dos principais caminhos para a
sublimação do “corpo perdido” na banalidade da existência ordinária, tornando
possível o desaparecimento do sujeito individual enquanto uma estratégia
explícita de desafio ao mito moderno do individualismo. A força corrosiva com
a qual o Ankoku Butō de Hijikata afrontou esta questão baseou-se no
entendimento de que na sociedade moderna qualquer tentativa de manutenção
do sentimento de individualidade – o sentimento de si mesmo enquanto um
sujeito unificado – é um esforço fadado ao falimento. Klein (1988, p.33) afirma
que dentro da lógica trabalhada pelo Butō,

“desde que nosso sentimento de individualidade é


somente uma frágil ilusão que poderia ser explodida a
qualquer momento, é vital que comecemos imediatamente a
explorar a possibilidade de nossa própria fragmentação
interna. Se nós pudermos romper os vínculos que foram
embutidos em nossas mentes e condicionados
profundamente em nossos corpos pela sociedade moderna,
nos podemos eventualmente ter acesso ao nosso verdadeiro
eu”.

Desta forma, o sentimento de si mesmo enquanto um sujeito unificado


é formatado e suportado pela aceitação inconsciente das instituições sociais, as
quais, por sua vez domesticam os instintos caóticos do indivíduo que poderiam
destruir a crença quase mítica na existência deste self racional unificado. A
prática do Ankoku Butō de Hijikata, incorporando tal leitura da realidade,
configurou um conjunto de estratégias que buscavam desconstruir a concepção

71 Os exercícios de improvisação baseados na ideia de metamorfose foram


desenvolvidos por Hijikata por volta de 1968 e, desde então, tornou-se parte
indispensável do treinamento Butō (Klein, 1988, p. 39).
100
do sujeito individual, valendo-se de práticas similares à autotortura72 para
realizar a fragmentação de seu corpo, liberando-o dos arquétipos sociais que
condicionam profundamente cada uma de suas fibras.
A primeira fase do Ankoku Butō apostou na sexualidade e na violência
como chaves de acesso às dimensões socialmente reprimidas do inconsciente
individual, imergindo o dançarino em sua escuridão, explicitando o inerente
conflito entre seus desejos profundos e a sua crença artificial em sua própria
racionalidade. Deste modo, este processo de exploração profunda do corpo
começou a transformar-se em uma verdadeira concepção de dança, refutando
apresentar-se como uma simples composição linear ou um mero arranjo
sintático dos movimentos, para afirmar-se enquanto uma verdadeira
experiência.
No Butō de Hijikata a dança passou assim a ser o espaço principal para
a eliminação do self físico, e o corpo começou a apresentar-se não mais como
um meio, mas como um fim em si mesmo, uma possibilidade viva para os
constantes atos de recriação, questionamento e re-pensamento daquilo que é
considerado racionalmente como sendo a realidade. Nas reivindicações e
conquistas que estão nos fundamentos de seu Ankoku Butō é possível identificar
a dissipação da forma material e do espelhamento estético, bem como a
abolição do desejo por um movimento referencial, características estas típicas à
cultura corêutica ocidental. Deste modo, a dança de Tatsumi Hijikata
transcendeu qualquer suposta finalidade plástica ou estética, desqualificando-se
enquanto um possível gênero codificado, para apresentar-se como uma
investigação profunda da existência, um real modo de vida definido pela
presença total no tempo presente.
Uma das atitudes centrais da dança Butō seria, portanto, a reação do
corpo e a sua resposta ao mundo externo (Fraleigh, 1999, p.175), valendo-se da
técnica da metamorfose que concebe o corpo como um recipiente de fluidos
no qual o fluxo constante deixa as pressões interna e externa em um equilíbrio

72 Recorda-se aqui como exemplo de tal prática o processo de auto-definhamento


assumido por Hijikata na preparação de seu espetáculo “Rebelião da Carne” (1968),
descrito por Barber (2006). Ver nota no. 13.
101
precário. A metamorfose contínua73 seria assim um dos núcleos centrais dos
procedimentos técnicos criados por Hijikata, servindo como uma estratégia de
fragmentação do corpo que objetivaria uma reunificação do indivíduo à uma
total sintonia com a grande lógica da natureza.
Para Akira Kasai (in D’Orazi, 2008, p.122), este processo de
metamorfose proposto no treino da dança Butō instaura a coexistência de dois
corpos em um mesmo indivíduo, uma vez que o corpo do dançarino apresenta-
se, contemporaneamente, como “algo que se transforma passando através de
sucessivas reencarnações e algo sempre idêntico a si mesmo enquanto resultado
de uma série de reencarnações. Dois corpos no mesmo corpo”.
Ichikawa (in Klein, 1988, p. 38), por sua vez, propõe uma outra leitura
das consequências geradas pelas transformações metamórficas quando estas se
apresentam enquanto núcleo essencial de um espetáculo Butō, uma vez que
proporcionam a possibilidade do desaparecimento concomitante de muitas
individualidades. Segundo a autora, diante das transições metamórficas e da
consequente fluidificação da identidade individual do butōka – dançarino butō –
os expectadores se veem, em modo reflexivo, diante da consciência da
fragilidade de seus próprios sentimentos de unidade do self. Enquanto o
dançarino, por outro lado, experiência, em sua fluidez identitária, o seu “corpo
roubado” no processo de socialização da sociedade moderna.
A metamorfose, enquanto princípio técnico e poético criado por
Hijikata, torna possível também a transcendência de um sentimento alienado de
individualidade e a conquista de um sentimento mais amplo de comunhão com
a natureza, mas o faz em um sentido muito mais quântico (ou subatômico) do
que ecológico74. Com a proposição da remoção gradual das energias expressivas

73 Segundo Harpham (in Klein, 1988, p. 40), a metamorfose perpétua seria também
uma das premissas centrais do mundo mítico do pensamento primitivo, que operaria
sobre o princípio do continuum cósmico. “De acordo com este princípio, nenhum reino
da existência, visível ou invisível, passado ou presente, é totalmente descontínuo com
qualquer outro, mas todos são igualmente acessíveis e mutuamente interdependentes”.
74 Para Akira Kasai, um dos integrantes do Ankoku Butō-ha criado por Hijikata no
início dos anos 60, a dança Butō não é um movimento ecológico ou político, mas sim
um movimento em direção à cura daquilo que chama de “corpo comunitário”. Para ele,
a dança pode nos conectar com os outros e com o passado, e esta comunidade é mais
importante que o individualismo (Fraleigh e Nakamura, 2006, p.39). É importante
102
e o consequente zeramento do corpo, em um nível quase molecular, Hijikata foi
capaz de conduzir um processo de desconstrução dos automatismos gestuais e
de ressignificação da materialidade do organismo humano. Deparou-se assim
com uma substância primordial compartilhada por todas as existências que
compõem a dinâmica da natureza, acolhendo tanto a vida como a morte, sem
distinções nem hierarquias.
A técnica das contínuas transformações metamórficas proporcionou
uma estrada de mão dupla aos dançarinos que trabalharam com Hijikata pois,
de um lado, tornava possível a dissolução de seus selfs enquanto unidades
fundadoras de uma individualidade alienada; e, do outro, apresentou-lhes níveis
sutis e primordiais da materialidade de suas anatomias, compartilhados com
dimensões mais amplas da natureza. Desta forma, foi possível restituir o corpo
ao seu estado natural, permitindo-o de conjugar o princípio da natureza no qual
para qualquer coisa transformar-se em seu próprio lócus de expressão – ou
adquirir a sua própria voz subjetiva –, deveria primeiramente adaptar-se ao
grande esquema da natureza (Klein, 1988, p. 86). Neste caso, a única voz
subjetiva ou expressão que poderia provir do dançarino não seria o resultado de
uma sua assertiva pessoal, mas uma “secreção natural” causada pelo
conhecimento de seu lugar ao interno do continuum cósmico.
Esta suposta restituição do corpo ao seu estado natural, além de
proporcionar uma relativa diluição do indivíduo em uma substância primordial,
potencializaria também a construção de uma maior afinidade com alguns outros
seres extra-humanos, como plantas e animais específicos. Provendo este corpo,
desta maneira, com uma forma de autoconhecimento sobre a sua natureza
fundamental, no momento em que o aproxima de seus instintos mais básicos
(Klein, 1988, p. 39).
A prática metamórfica proposta pelo Butō tinha, portanto, como
objetivo também cênico a incorporação do próprio objeto ou do ser imaginado,

observar aqui que Kasai, apesar de ser um dos precursores da dança Butō, possui um
percurso muito particular, tendo vivido por seis anos em Stuttgart, na Alemanha, a
partir de 1979, para aprofundar seus estudos na Eurritmia e na filosofia de Rudolf
Steiner, as quais, sem dúvida alguma, é presente na poética de seus trabalhos e
diferencia substancialmente as suas concepções daquelas expressas seja por Tatsumi
Hijikata como por Kazuo Ōno.
103
partindo da substância comum que os principia para posteriormente dar forma
à sua voz individual. Neste processo, a materialidade do organismo sempre
jogou um papel fundamental, pois é nela, e não em um plano abstrato, que
todas as transmutações se realizam, assumindo, uma por vez, diferentes
qualidades e consistências. A materialidade do corpo transforma-se assim no
próprio Butō.

“Aquilo que é capaz de confrontar as condições atuais,


que envolvem as distorções de uma solidariedade cortada
em pedaços, é nada mais do que o estabelecimento de uma
nova imagem do indivíduo humano e a aquisição desta
solidariedade. Eu coloco esta solidariedade dentro dos
objetivos de meu trabalho. Eu tento pressionar os limites de
mim mesmo e de meu material. Pela natureza do meu
trabalho, os seres vivos são o meu material” (Hijikata, To
Prison, 1961, in TDR, 2000, p. 47).

Tatsumi Hijikata propõe, deste modo, a materialidade do nikutai como


sede e matéria-prima de sua poesia, fazendo com que a dança passe a ter as suas
origens na densidade da própria carne. A sua proposta de investigação
arqueológica do corpo passa a ser uma metodologia de acesso aos estratos
profundos de um organismo sempre em transformação; de um corpo que, uma
vez devolvido a sua substância primordial, pode ser reconstruído como uma
coisa material ou mesmo um conceito. Os dançarinos submetidos
constantemente a seus treinamentos árduos começaram a aprender a manipular
seus corpos fisiológica e psicologicamente, transformando-se nas mais variadas
formas, sensações e seres.
Baseado nesta espécie de “ethos do devir” (Fraleigh e Nakamura, 2006,
p.72), o Ankoku Butō de Hijikata apresenta como matriz metodológica a
necessidade de destruir e deformar o equilíbrio do corpo, torturando-o e
forçando-o, para submetê-lo a transformações desfigurantes. Deste modo,
materializava o seu desejo de demolição do organismo social – ou da sociedade
– através da fratura das estruturas de seu microcosmo simbólico, seu organismo
individual, isto é, o corpo humano. Para realizá-lo, Hijikata tentava capturar e
repropor todo tipo de emoções, paisagens e sensações, valendo-se de palavras e
104
conceitos, os quais possuíam para ele uma fisicidade concreta e, por isso,
poderiam proporcionar um específico estado físico.
Acreditava, portanto, em uma rota mais direta para as imagens, não
necessariamente arquetípica como no entendimento ocidental, mas
imediatamente disponível na conexão entre corpo e espírito. Desta maneira,
tendo as imagens como elemento desconstrutivo do corpo, sua técnica atuava
buscando suspender a consciência racional para transformá-lo em uma
instância permeável aos fluxos interno e externo, criando as condições
necessárias para uma aproximação à essência da própria matéria.
Este caráter fundamental que possui a materialidade do corpo ao
interno da obra de Hijikata é assim explicado por Sakurai (in BT, 2006, p. 208):

“A devoção e a fidelidade de Hijikata à materialidade, ao


‘objeto’, provêm do reconhecimento da reconciliação com a
natureza em um nível simbólico (‘correspondência’ no
simbolismo), que é simplesmente uma pretensão de
reconciliação através da interiorização. Até mesmo no
animismo, ele não põe o acento sobre o fato de que a alma
exista em cada coisa vivente, a existência da alma não é
importante. Ele pensava que poderia unir-se ao objeto
transformando-se no objeto. Por isso a sua dança è
materialismo. Para ele transformar-se no objeto è tudo”.

Neste sentido, revela-se em sua matriz técnica e poética um conflito


essencial pela supremacia, ou pela separação, entre a “identidade no corpo” e a
“objetividade no corpo” (Sakurai, in BT, 2006, p. 207). Para ele, o dançarino
deveria transformar-se em um objeto, construindo uma relação amorosa com a
sua materialidade75, para que este objeto no qual havia se transformado, por sua
vez, pudesse chamar um espírito, o espírito do próprio dançarino,
possibilitando que uma existência humana fosse transformada em algo não
humano (Hijikata, Plucking off the darkness of the flesh, 1968, in TDR, 2000, p. 53).

75 “O material tem que ser um amante” (Hijikata, Inner Material, 1960, in TDR, 2000, p.
40).
105
O corpo deveria assim renunciar à sua expressividade, transformando-
se em um “corpo morto”, esvaziando-se de seus automatismos e
intencionalidades para criar um espaço fértil de reconstrução de uma próxima
existência. O corpo como um receptáculo, ou karada (pacote vazio), não
deveria, portanto, anular-se, mas sim reconstruir-se, dilatando seus intervalos de
silêncio, e transformando a si mesmo no próprio “ma”: um vazio cheio de
possibilidades.
Utilizando este repertório técnico, Tatsumi Hijikata buscava despertar a
sensibilidade corpórea valendo-se principalmente de tudo aquilo que era
considerado negativo pela sociedade, visando provocar sensações profundas
encobertas pelas regras sociais e, deste modo, dar vida a um corpo que
conseguisse transcendê-las: um corpo não-cotidiano. Com este processo de
escavação arqueológica celular, descobriu comportamentos e ações sepultadas
nos estratos profundos da existência física, desvelando a realidade do corpo
enquanto um reservatório de sensações, um acúmulo de experiências sensoriais
de tempo e espaço limitados. E ao dar vez e voz a estas dimensões de espaço-
tempo que habitam a materialidade do organismo humano, passou a
concentrar-se sobre a dança que vive ao interno do corpo.

2.4.2) Nikutai: memórias e políticas do corpo de carne

Ao centro do Ankoku Butō de Tatsumi Hijikata encontra-se a carnalidade


do corpo. A fisicidade do organismo humano, em seus diversos níveis de
composição, serve como epicentro bidirecional do qual tudo parte e para o qual
tudo retorna, para implodir-se. O nikutai – o corpo de carne – aparece
transversalmente nos diferentes elementos que compõem a complexidade de
seu projeto, o qual apresenta a investigação arqueológica de sua materialidade
como um princípio, a transformação psico e fisiológica desta matéria como
recurso técnico, e a sua diluição ou transcendência como um de seus principais
objetivos. Foi forçando os limites de seu nikutai que Hijikata esboçou as bases
de sua dança, uma dança do e desde o corpo.
Considerado tanto um conjunto de fluxos de sensações como um
reservatório da memória, o corpo de carne proposto por Hijikata refutou-se a
submeter-se a hierarquias e subjugar-se perante a suposta superioridade da
106
razão. A predominância de um comportamento anárquico nesta fisicidade
deslegitimou uma possível configuração técnica para a sua ação performativa
que proviesse do exterior, reivindicando-a e construindo-a, portanto, a partir de
suas estruturas mais internas: o osso e a carne.
A dança do nikutai não admitia assim a existência de uma gestualidade
codificada e nem de um universo técnico pré-existente, pois na crueza de sua
anarquia, via celebrada a efemeridade de suas estruturas ao sujeitar-se à
decomposição e às metamorfoses da matéria, as quais a impossibilitam de ser
fixada em categorias ou formas definitivas. Este caráter de caducidade e de
corruptibilidade do corpo de carne76 ressalta a ligação do ser humano com a
sua esfera biológica, seus instintos, sua dimensão animal e caótica, e sobretudo,
com seu ankoku. Com isso, privilegiando as dimensões concretas da carne, é
possível subverter a primazia das abstrações racionais – tão caras às concepções
de origens platônicas provindas do mundo ocidental – e, assim, imunizar-se de
possíveis valores semânticos para seus atos.
O gesto executado por um corpo de carne apresenta-se, portanto, não
como uma inferência racional ou tradução de um signo exterior, mas como uma
experiência profunda da fricção entre a velocidade e a direção, entre o espaço e
o tempo internos. A sua expressividade, por sua vez, não provém de uma
vontade pessoal e subjetiva, mas de uma secreção, que resulta da fricção ou do
colapso destas categorias ao interno do corpo. Dentro deste contexto, para
Hijikata, os movimentos mais verdadeiros e importantes são aqueles que “vêm
das juntas sendo deslocadas, e então do ato de caminhar desarticuladamente
por alguns passos, com uma perna esforçando-se para alcançar a outra”
(Hijikata, Plucking off the Darkness of the Flesh, 1968, in TDR, 2000, p. 52).
A decomposição anatômica – e atômica – do corpo humano
(Centonze, 2003/2004, p. 22) possui um papel fundamental no trabalho
proposto por Hijikata, pois era através de sua indução que ele proporcionava
aos seus dançarinos a experimentação de diferentes possíveis estados do corpo
de carne. Desta forma, deparando-se com a crua fisicidade de seu corpo, o
butōka podia experimentar os interstícios de seu próprio ankoku: os estratos
profundos de memória que compõem o peso e a escuridão de sua matéria.

76 Segundo Shibusawa Tatsuhiko (in Centonze, 2009, p. 170), o nikutai possui


intrinsecamente as qualidades do kiki (crise) e do fuan (angústia).
107
Vasculhar e desdobrar este ankoku passava então a ser o epicentro de sua
pesquisa, permitindo-o ampliar seu corpo em busca de novas experiências.
O dançarino se via imerso em um contexto no qual deveria procurar
esvaziar o seu shintai – o corpo social77 – transformando-o em um receptáculo
vazio pronto para incorporar outras diferentes qualidades da matéria. Esta
diluição do shintai apresenta-se como uma das principais metodologias de
trabalho construídas por Hijikata, para tentar acessar os estratos profundos do
nikutai. Contudo, é possível perceber que tal metodologia estabelece ao seu
interno, ao menos em um plano discursivo, uma relação dialética entre estes
dois caracteres do organismo humano, isto é, o shintai e o nikutai, conduzindo à
uma sobreposição conceitual e paradoxal na qual o nikutai figuraria como o
próprio shintai da dança Butō78.
É justamente neste corpo em constante transformação – “naru shintai”
– que se encontra a substância fluida e primordial da obra de Tatsumi Hijikata.
Provocando a exploração de identidades polimórficas de seus dançarinos,
colocou-os diante da concretude de seus kanōtai, ou seus “corpos possíveis”79.
Fazendo-os compreender que para se aproximarem destes seus “corpos em
potência”, os dançarinos deveriam atingir seus estados de objeto, de realidade
concreta e não simbólica, deveriam experimentar a instabilidade de suas
instâncias de carne, perseguindo assim a “verdade” (hontō no koto). Neste modo,
antes de oferecer-se como um instrumento, o nikutai seria um horizonte a ser
alcançado através de um árduo processo de experimentação, no qual o

77 Centonze (2003/2004, p. 28), também esclarece que o conceito de shintai refere-se


propriamente ao corpo reconhecido pela sociedade, o corpo sistêmico que existe
somente em um contexto social: a pessoa.
78 Segundo Matsumoto (in Centonze, 2009, p. 171), “o pensamento comum sobre a
dialética shintai-nikutai é que o primeiro é dotado de um caráter histórico e o segundo
coincide com o estado das coisas (jōkyō), mas o problema reside na impossibilidade de
se estabelecer uma teoria do nikutai, bem como uma teoria do estado das coisas. A
implicação conseguinte é que investigar criticamente (em um nível discursivo) o nikutai
significa criar o shintai da dança (buyō no shintai)”.
79 Para Centonze (2001, p. 156), kanōtai indicaria as condições e os modos de ser do
shintai que circunscrevem as potencialidades do corpo de produzir uma infinita gama de
movimentos.
108
dançarino deveria descobrir a qualidade íntima, o estado de ser dos objetos,
tendo principalmente, para isso, que concebê-los ontologicamente.
O treinamento proposto por Tatsumi Hijikata tinha, portanto, como
objetivo construir uma plena consciência física capaz de possibilitar aos seus
dançarinos uma espécie de domesticação do gesto e a consequente obtenção de
uma máxima disponibilidade de seus próprios corpos. Guiados por estímulos
verbais e por seus impulsos instintivos, podiam acessar imagens que lhes
ajudavam a desconstruir seus shintai ordinários e os devolviam à materialidade
de seus nikutai, desvelando os infindáveis estratos de seus corpos-memória.
Hijikata considerava o corpo como um reservatório da memória do
inconsciente coletivo80 e sua dança partia da exploração deste universo de
reminiscências encravadas na própria carne. Ao interno de sua obra é possível
perceber que esta concepção atingiu a sua plena expressão em seu projeto Shiki
no tame no nijushichiban – “Vinte e sete noites para quatro estações”, de 1972, no
qual utilizou uma releitura da memória dos corpos e dos movimentos dos
agricultores de Tōhoku, criando um universo cinético que posteriormente foi
interpretado como o estereótipo gestual da dança Butō.
Esta espécie de repositório da memória é, na verdade, permeada
simultaneamente por diferentes estratos e tipologias de memória – pessoal,
coletiva e universal – e compõe o ankoku de cada dançarino: a sua matéria
escura. Neste sentido, o butōka tem diante de si o seu ankoku como matriz
expressiva e, ao mesmo tempo, lócus de realização de sua dança. O
desmembramento desta memória, assim como a fragmentação de seu corpo,
institui um percurso extremamente físico para a sua composição cênica,
empurrando-o para a experimentação de seu abismo e a realização de sua
essência, em termos fenomenológicos, ajudando-o assim a evitar que
permaneça na superficialidade de um simples redesenhar da realidade.

80 Apesar da utilização deste conceito da psicologia junguiana para indicar que a


concepção de memória trabalhada por Hijikata vai além de uma esfera individual e
subjetiva, é importante ressaltar que ele não compartilhava necessariamente deste
universo conceitual, apresentando inclusive um entendimento mais direto na conexão
entre imagem e corpo, não valendo-se assim dos “arquétipos” como figura de
linguagem.
109
O treinamento no Ankoku Butō teria assim como foco principal a
identificação do estímulo do movimento, da raiz dinâmica da própria ação, a
partir de um processo de imersão nos diferentes estratos da memória física de
um corpo em constante desconstrução, tornando possível a latência de
diferentes identidades metamórficas. Neste sentido, é válido afirmar que o
Ankoku Butō trabalhou com a colocação em cena de uma espécie de reificação da
memória, um processo no qual um gradual desvelamento dos diferentes estratos
que a compõem ao interno do nikutai do dançarino torna possível as suas
combinações e sobreposições que serão projetadas sobre o palco (Centonze,
2003/2004, p. 22). A performance poderia portanto ser vista como o suceder
de fragmentos sobrepostos de uma memória reificada, isto é, transformada em
objeto, em coisa.
Tatsumi Hijikata proporcionava assim a possibilidade do dançarino
desafiar o seu próprio corpo, confrontando-se com o seu ankoku objetificado,
através da reificação de suas memórias pessoais e universais, entremeadas na
materialidade de seu nikutai. A este corpo que dança, apresentava as origens do
“si” enquanto um cemitério, enquanto um terreno escuro onde habitam os
corpos acumulados de seus mortos81. Desvelava assim o fato de que um corpo-
memória jamais se esgota em uma existência individual e subjetiva, mas traz
consigo uma pluralidade de presenças difusas que o compõem também em um
nível material.
Hijikata criou desta forma as bases para a construção de um corpo
crítico, um corpo de carne que pode acolher na densidade de sua matéria a
multiplicidade de existências que o compõem, levantando-se nos confins de si
contra uma concepção alienada de indivíduo e contra os determinismos
culturais que se impõem sobre a sua carne. Construiu assim as matrizes para a
construção de uma corporeidade crítica, isto é, um modo de “ser corpo” fluido e
polimórfico que assume na configuração de sua materialidade uma resistência
radical às imposições culturais das estruturas de poder dominantes. Um corpo

81 Para Kuniyoshi (Entrevista pessoal, 2009), as raízes de todo trabalho de Hijikata


alimentam-se desta concepção de corpo que admite a existência de um outro corpo que
vive dentro de si além de sua própria presença, a qual poderia ser circunscrita dentro ao
conceito de suijakutai, ou o “corpo enfraquecido” (emaciated body). Tatsumi Hijikata
trabalhava sobre esta concepção de corpo, quando faleceu.
110
que, em contraste com a efemeridade de suas identidades metamórficas,
apresenta uma consistência, e uma existência, realmente política. Nas palavras
de Centonze (2009, p. 183), as “políticas do corpo carnal” no Butō, isto é, as
expressões de contestação encarnadas na natureza básica e orgânica das
existências físicas do butōka, são assim apresentadas:

“As políticas do corpo carnal no Butō, são visíveis em


um nível coreográfico. Como dança, o Butō revela um
criticismo corporal dissidente e rompedor, que implica uma
resistência radical ao corpo no modo como é manipulado
pela sociedade do espetáculo. O corpo é empurrado além
de seus limites, e sua essência deve ser preservada de
esteticismos, sensacionalismos, ou exibicionismos. Desta
forma, a radicalidade do nikutai torna-se um ato político.
Alcançar uma alta intensidade desse emprego do corpo
implica uma posição política. O movimento torna-se então
uma práxis política, anticapitalista na sua economia”.

Mesmo que a análise da autora, neste caso, apresente-se circunscrita ao


universo coreográfico da performance propriamente dita e tenha como foco a
resistência contra os valores da sociedade do espetáculo, seria possível
desdobrar seu raciocínio incorporando-o também na interpretação do processo
de treinamento proposto por Hijikata, ampliando, portanto, a leitura das
políticas colocadas em ato pelo corpo de carne, bem como suas consequências.
Muito além do âmbito intersubjetivo, isto é, das relações entre expectador e
dançarino, proporcionado pelo espetáculo, os procedimentos metodológicos de
Hijikata na preparação de seus dançarinos criaram um campo subjetivo82 que

82 É importante ressaltar que o conceito de subjetividade no contexto do trabalho de


Hijikata, como apresentado até aqui, com seus métodos de corrosão do self, distancia-se
completamente do conceito ocidental contemporâneo o qual se refere a uma espécie de
“império do si”, a algo supostamente autêntico e individual. Aproxima-se, pelo
contrário, da plasticidade denotada pelo conceito japonês shutaisei, discutido por
Koschmann (in Klein, 1988, p. 31), o qual indicaria uma forma de subjetividade que se
apresenta fortemente comprometida com uma ação política e uma atitude de
111
também poderia servir como referência para a instituição de análogas políticas
do corpo.
A gradativa desconstrução do self, as diferentes formas de fragmentação
do corpo, a incorporação de identidades fluidas e metamórficas, os mortos e as
outras existências que habitam ao interno do “corpo enfraquecido”, são muito
mais do que exemplos de procedimentos técnicos de construção cênica. Esses
são, na verdade, efêmeros momentos de resistência cultural experimentados por
uma subjetividade que se percebe complexa e plural. Neste sentido, poderiam
apresentar-se também como sólidos pilares para a edificação de uma espécie de
criticismo corporal que, mesmo experimentado inicialmente em um plano
individual, desdobra-se inevitavelmente em um âmbito coletivo, devido à
conscientização do dançarino seja sobre a interdependência que sustenta a sua
existência, como sobre as determinações culturais que configuram
ordinariamente o seu shintai.
A partir desta perspectiva, é possível afirmar que os mecanismos de
construção do corpo cênico propostos por Hijikata são também,
potencialmente, instrumentos de subversão antropológica e política, uma vez
que buscaram desestabilizar os modelos culturais de organismo social e
individual. Ao fragmentar o corpo de um sujeito e induzir a sua vacilação
identitária, Hijikata desestabilizou a matriz mais íntima e concreta de todo um
sistema político-econômico, desconstruindo seus valores, certezas e padrões.
Sob esta ótica, torna-se viável conceber – além do espetáculo – o treino físico
proposto pelo Ankoku Butō também como um espaço de afirmação de
“políticas do corpo carnal”. Neste sentido, pode-se chegar à conclusão de que o
critério que define a existência, ou não, destas políticas não seria
necessariamente o seu lócus de manifestação (treinamento ou espetáculo) e sim
o seu lócus de origem: a própria carne, ou ao menos o tratamento crítico e
subversivo das qualidades de sua matéria83.

independência e autonomia em relação às forças potencialmente deterministas da


história e da estrutura social.
83 “Através da imersão total de si mesmo na dança, pode-se encontrar o espírito butō.
É aqui, mais do que na performance de palco, que se encontra o verdadeiro significado
do butō” (Hijikata, in Viala e Masson-Sekine, 1988, p. 187).
112
113
114
115
3.1) O CORPO COMO INTEIREZA

“Eu nunca ensino aos meus alunos uma técnica. Porque o


movimento é a vida. Mover-se quer dizer buscar a vida.
Cada pequeno instante de meus espetáculos pode ser
mutável porque é a própria vida a determiná-lo”
(Kazuo Ōno, in D’Orazi, 2001, p. 161).

Kazuo Ōno foi, sem nenhuma dúvida, um dos principais dançarinos de


dança moderna do Japão, exercendo uma influência decisiva no universo das
artes cênicas japonesas durante todo o século XX. Contudo, Ōno foi mais
precisamente um dançarino experimental, rompendo e extrapolando as balizas
técnicas que limitavam sua gestualidade e sua poética no início de seu percurso
artístico, ainda nos anos 30, sob orientação de artistas como Baku Ishii, Misako
Miya e Eguchi Takaya. Herdeiros diretos dos ensinamentos de Mary Wigman,
estes seus mestres deixaram uma forte marca expressionista nas raízes de sua
dança, alimentando-a de forma transversal durante toda a sua futura produção
artística, mesmo que em modo difuso e reelaborado.
Seria um reducionismo, porém, tentar limitar a poética de todo o seu
percurso somente às especificidades do universo expressionista da
Ausdruckstanz, mesmo que estas o tenham marcado em modo tão significativo.
Depois de ter se convertido à fé cristã e de ter experimentado a guerra, Ōno foi
gradativamente reconstruindo a sua poética através da reelaboração de alguns
de seus conceitos fundamentais e da incorporação de matizes de outros
sentimentos que compõem a sua vida. Partindo de um expressionismo com
tendências mais subjetivas, relativas a um subconsciente individual, Kazuo
saltou as fronteiras de um self individualista rumando em direção a uma
concepção mais cósmica e integral, sobre a qual estabeleceu as bases de sua
própria expressividade.
O encontro com Tatsumi Hijikata, em meados dos anos 50, bem como
as suas colaborações contínuas por mais de uma década, foi decisivo na
transformação de sua poética, uma vez que propiciaram a releitura de muitas de
suas experiências. Além disso, essas colaborações proporcionaram uma decisiva
e recíproca influência nas obras de ambos os artistas, servindo como húmus para
o surgimento daquilo que atualmente é conhecido em todo o mundo como
dança Butō. Devido à influência fundamental dessa contaminação recíproca,
116
Kazuo Ōno seria, ao lado de Hijikata, o outro protagonista responsável pela
fundação do Butō, figurando porém como a conexão mais direta entre alguma
possível influência da dança expressionista alemã e o seu ulterior
desenvolvimento.
Assim senso, as páginas que se seguem têm como objetivo penetrar um
pouco na vida de Ōno, apresentando a complexidade e a multiplicidade de
experiências que alimentam as suas matrizes poéticas. Procuram, portanto,
identificar alguns dos nódulos essenciais que possibilitaram a configuração da
poesia desta outra face da dança Butō, permeada por gratidão, fé, fantasmas,
feminilidade e morte.

3.2) O ARTESÃO

“Há muito tempo atrás o termo ‘artista’ nem sequer


existia. Eu realmente nunca me importei de ser chamado
de artista; por alguma razão ou outra eu nunca gostei
de ser chamado assim. Eu não posso dizer exatamente
o porquê, mas de alguma forma é desagradável. Fico
encantado, no entanto, se alguém se refere a mim
como um artesão, porque um artesão dá de si
mesmo plenamente. De igual forma, um dançarino
treina o seu corpo, modera seus personagens,
cria – ele cria a própria vida”
(Ohno e Ohno, 2004, p. 280).

Kazuo Ōno nasceu em 27 de outubro de 1906, em Hakodate, uma


grande cidade portuária na costa sul de Hokkaido, o segundo dos dez filhos de
Midori e Tōzō Ōno. Hakodate, devido à sua localização e às suas características,
desenvolveu-se prioritariamente entorno ao comércio marítimo, tendo sido uns
dos primeiros portos a serem abertos ao intercâmbio comercial com países
estrangeiros, a partir do tratado de Kanagawa, em 1854 (Ohno e Ohno, 2004, p.
181). Por consequência, serviu também como sede de inúmeros consulados e
companhias comerciais estrangeiras, as quais foram gradativamente exigindo a
construção de todo um contexto orbital composto por restaurantes, serviços e
estruturas de entretenimento. Esses equipamentos visavam suprir as exigências

117
de um crescente público internacional, fazendo com que a cultura europeia não
fosse completamente desconhecida à atmosfera cosmopolita da época.
Tōzō Ōno (1880 – 1970), pai de Kazuo, desde jovem aprendeu a língua
russa e chegou a trabalhar, mais tarde, no consulado russo de Hakodate.
Contudo, passou realmente a maior parte de sua vida trabalhando como
pescador de salmão, navegando frequentemente por mares estrangeiros,
principalmente na frota marítima responsável pela região de Okhotsk. Kazuo
não pôde, portanto, aproveitar muito da escassa presença de seu pai em sua
formação, pois grande parte do pouco tempo que passava em sua cidade,
depois de navegar por muitos meses, Tōzō gastava nas casas das geishas, onde
Kazuo – como filho homem mais velho – por muitas vezes teve que ir buscá-lo
em meio às cantorias e às suas bebedeiras, que alcançavam até as primeiras
horas do dia.
Com a constante ausência do pai, Kazuo Ōno e seus irmãos
desenvolveram uma forte ligação com a mãe, Midori Ōno, a qual também
buscava preencher a solidão de suas noites conversando e contando histórias
para seus filhos antes de dormir. Kazuo recorda em seu livro (Ohno e Ohno,
2004, p. 243-4) o costume de sua mãe de contar histórias para dormir e de sua
afinidade com novelas de autores estrangeiros, principalmente as histórias de
fantasma escritas por Lafcadio Hearne. Mesmo tendo cerca de quatro anos de
idade, Kazuo ficou eternamente impressionado pela capacidade de sua mãe de
incorporar os personagens das histórias que contava, transformando-se física e
emocionalmente naqueles espectros. Esta competência performática de sua mãe
permaneceu em modo subterrâneo no corpo de Kazuo, ajudando-o a compor
em modo subliminar uma das tantas matrizes poéticas de seu percurso artístico.
Midori Ōno (1884 – 1962) possuía também uma formação muito
eclética, com um forte acento europeu em suas preferências musicais, trazendo
para dentro de sua casa a obra de personagens como Bach, Mozart e
Beethoven. De formação budista, Midori contaminou também a sua atmosfera
familiar com alguns valores característicos desta filosofia, os quais propõem
modelos menos hierarquizados de acesso à uma dimensão espiritual, bem como
a dissolução de uma doutrina antropocêntrica e o sentimento difuso de uma
profunda comunhão entre os seres. Alguns destes valores, relidos
posteriormente em uma chave com matizes cristãos, poderão também ser
identificados na poética futura de Kazuo Ōno.
O fato de ter crescido neste ambiente hibridizado com uma atmosfera
europeia, para alguns pesquisadores, como D’Orazi, (2001, p. 24), influenciou
de forma decisiva na construção de sua sensibilidade estética, aproximando-o
118
mais dos paradigmas ocidentais e fazendo-o conferir às suas obras um sabor
mais palatável aos estrangeiros. Neste sentido, estes pesquisadores defendem
que as obras de Kazuo Ōno, quando comparadas aos trabalhos colocados em
cena por Tatsumi Hijikata – permeados principalmente por elementos e
inspirações autóctones –, possuem mais elementos que serviriam como porta
de acesso para uma sensibilidade ocidental84.
Ainda em sua infância, o garoto Kazuo viveu a dura experiência das
perdas de uma irmã – atropelada por um bonde, em 1914 – e de um irmão
recém-nascido – que viria a falecer em seus braços, no ano de 1916 85. Foi
assim, deparando-se fisicamente com a morte de seus irmãos, que Ōno
começou a delinear o esboço de uma de suas importantes matrizes poéticas, ou
seja, a percepção profunda da interdependência entre todos os seres e da
onipresença da morte.
A sua formação escolar foi realizada quase toda na cidade de Ōdate,
prefeitura de Akita, onde obteve seu diploma, em 1925, e acabou
permanecendo por mais um ano para lecionar junto à Escola Elementar
Izumizawa. Durante esta sua formação, aproximou-se do time de basebol e
desde cedo demonstrou a sua propensão às práticas corporais, a qual o levou,
posteriormente, à escolha da formação em Educação Física junto ao Nihon
Taiku Daigaku (Colégio Japonês de Atlética), com sede em Tóquio, onde pôde
estudar, dentre outras coisas, os métodos ginásticos dinamarqueses e os
exercícios de expressão corporal de Rudolf Bode.
Ainda cursando o último ano do Colégio de Atlética, Kazuo Ōno foi
levado ao Teatro Imperial de Tóquio por seu amigo Yoshio Monden, para
assistir ao espetáculo Baile Español da dançarina de flamenco Antonia Mercé
(1888 – 1936), mais conhecida pelo seu nome artístico La Argentina. Kazuo
ficou fortemente impressionado com a performance que havia testemunhado,
modificando decisivamente a sua concepção de corpo e de dança, uma vez que
esta agora tinha tornado possível a revelação de profundos significados, ao
invés de limitar-se à execução de meros virtuosismos físicos. Ōno pôde

84 Mesmo que esta polarização sugerida entre as concepções estéticas de Ōno e


Hijikata não seja completamente compartilhável, são inegáveis tanto as influências filo-
europeias presentes na formação de Kazuo Ōno como o grande sucesso obtido por
suas performances junto ao público ocidental, a partir do ano de 1980.
85 Kazuo Ōno registrou essas experiências no programa do espetáculo “Minha Mãe”,
encenado pela primeira vez em Tóquio, em janeiro de 1981, no Dai-ichi Seimei Hall
(Ohno e Ohno, 2004, p. 178).
119
presenciar assim, em suas palavras86, a união entre o céu e a terra, a gênese do
mundo diante de seus olhos, tocando com as mãos, deste modo, naquilo que
passou posteriormente a desejar transmitir com seu próprio trabalho: a dança
como uma experiência de geração da vida.
No mesmo ano de 1929, terminou seus estudos e iniciou a sua vida
profissional como professor de Educação Física junto à escola privada cristã
Kantō Gakuin, em Yokohama. Influenciado pela admiração que possuía pelo
coordenador da escola, Tasuke Sakata, e encorajado por ele, Kazuo Ōno
converteu-se ao cristianismo segundo a religião batista, em 1930, sendo
batizado na praia de Kamakura, ao sul de Tóquio. Sem dúvida alguma, esta sua
conversão religiosa, e a consequente assunção de toda uma cosmologia cristã na
forma de interpretar o mundo, sobrepostas ao universo budista compartilhado
no seio de sua família, bem como a alguns princípios xintoístas presentes em
um estrato profundo e quase subliminar da cultura japonesa, foram
fundamentais na configuração dos princípios poéticos e filosóficos de sua
futura dança.
Contudo, a sua fé cristã não deve ser interpretada a partir dos
paradigmas de um cristianismo puramente ocidental, e sim entendida ao interno
dos contextos híbridos que configuravam tanto o Japão daqueles anos, como os
valores de sua formação familiar. Na realidade, o cristianismo de Kazuo Ōno
foi permeado significativamente pelo pensamento do filósofo cristão Kanzo
Uchimura87, uma vez que sua conversão foi realizada sob a influência direta de
seu amigo e coordenador Tasuke Sakata, um fiel devoto e seguidor do
pensamento de Uchimura.
Neste sentido, mesmo que não adotasse explicitamente esta filosofia, é
possível verificar que a “cristandade” de Ōno era atravessada por princípios

86 “Li sobre a Criação do mundo na Bíblia. Sempre interpretei esta passagem como
uma lenda, mas na dança da Argentina eu vi isso sendo realizado bem na frente de
meus olhos. Se isso era o que a Criação foi, pensei, então eu queria fazer parte disso.”
(Ohno e Ohno, 2004, p. 185).
87 “Kanzo Uchimura (1861-1930): Um influente filósofo cristão no Japão pré-guerra.
Convertido ao Cristianismo em 1877, posteriormente estudou em um seminário
teológico nos Estados Unidos. Um pacifista sincero, acreditava que a Igreja, como uma
instituição, era desnecessária e às vezes até mesmo um obstáculo para a fé cristã. Ele
cunhou o termo mukyoukai (‘cristianismo sem-igreja’) que ainda é usado para distinguir
sua tradição. Suas ideias refletem sua luta para servir a Jesus e ao Japão ao mesmo
tempo, e para desenvolver uma forma japonesa, mas intransigente, de cristianismo”
(Ohno e Ohno, 2004, p. 180).
120
pacifistas e por este desejo difuso, quase anarquista, de restituição aos seres
humanos da capacidade de conexão direta com suas dimensões espirituais, sem
instituições nem hierarquias, concebendo assim as relações entre os seres em
modo mais horizontal e equânime. De um outro lado, é possível perceber
também a impureza de seu cristianismo quando este se apresenta permeado por
valores e expressões mais comuns à cosmologia xintoísta ou budista, filosofias
estas presentes de alguma forma na sua formação familiar.
Em 1933, além de casar-se com Chie Nakagawa, sua companheira até o
final de sua vida, começou a frequentar o estúdio de Baku Ishii, ex-aluno de
Giovanni Vittorio Rossi e um dos pioneiros da dança moderna japonesa. Ishii
tinha acabado de retornar de sua tournée pela Europa e pelos Estados Unidos, na
qual pôde ter contato com os trabalhos iniciados por Isadora Duncan, Jaques-
Dalcroze e Mary Wigman, e propôs a criação no Japão daquilo que denominou
de “dança criativa”. Ōno frequentou seu estúdio apenas por um ano e decidiu
abandonar seu método de trabalho, pois não o via realmente como “uma busca
pela verdade”88.
Foi contratado pela escola batista feminina Soshin, também em
Yokohama, em 1934, como professor de Ginástica e responsável pelas aulas de
dança. Neste mesmo ano teve a oportunidade de testemunhar o espetáculo de
Harold Kreutzberg, aluno de Mary Wigman e grande expoente do
expressionismo alemão, que realizava uma tournée pelo Japão naquele período. A
sua técnica sublime e a concretização das possibilidades de expressão da alma
que emanavam de seus movimentos impressionaram Kazuo Ōno, que viria a
considerá-lo, posteriormente, como um de seus mestres indiretos. Contudo, o
impacto de Kreutzberg sobre a poética de Ōno foi muito diferente daquele
deixado pela arte de Antonia Mercé, pois enquanto este demonstrou a sutileza e
as potencialidades da técnica, La Argentina apresentou-lhe um universo no qual
a técnica parecia sucumbir diante da força geradora da vida, transformada em
corpo e gestos.
Estes estímulos misturaram-se no imaginário de Kazuo Ōno, ajudando-
o a construir uma outra concepção de dança que pudesse transcender a
primazia dos procedimentos técnicos e que permitisse escavar os níveis
profundos de verdade de seu próprio corpo. Revivia ainda os resquícios do
espetáculo de Kreutzberg, em 1936, quando decidiu aprofundar seus estudos
em dança e aproximou-se do estúdio de Eguchi Takaya e de sua mulher Misako

88 Para maiores detalhes sobre a citação e sobre o desenvolvimento da dança moderna


no Japão, consultar o item 1.3) Resíduos do Ocidente.
121
Miya, também estes alunos diretos da Ausdruckstanz de Mary Wigman, junto ao
seu Instituto em Dresden, na Alemanha, no período entre 1931 e 1933.
Ōno frequentou, como aluno, somente seis meses as lições organizadas
por Misako Miya e, devido a sua extrema competência performática,
transformou-se logo em um de seus assistentes, colaborando por mais outros
dois anos com os trabalhos do estúdio. Em 1938, logo após o nascimento de
Yoshito – seu segundo filho e futuro colaborador artístico – Kazuo Ōno foi
obrigado a suspender a sua formação artística para responder ao chamado das
forças armadas japonesas, as quais, naquele ano, tinham entrado oficialmente no
grande conflito bélico que começava a envolver quase todo o planeta.
Enviado à guerra, dedicou os próximos nove anos de sua vida entre os
frontes da China ocidental e de Nova Guiné, sempre imerso neste contexto de
conflitos, precariedade e mortes. Por sorte, não viveu sempre a crueza e a
crueldade da linha de frente dos combates, devido à sua promoção como
capitão e sua alocação como responsável pelas provisões. De qualquer forma, a
guerra deixou profundas marcas em seu imaginário impondo em seu cotidiano
amargas contradições que explicitavam a falsidade da guerra, ou a “falsidade de
tudo aquilo que não é a verdadeira vida” (Ōno, in Sparagna, 1983, p. 57).
Com a guerra chegando ao seu fim e a iminente derrota do exército
japonês, em 1945, Kazuo virou prisioneiro das forças australianas no campo de
detenção de Menakawari, em Nova Guiné. Em meio à vida dura dos trabalhos
forçados, os prisioneiros ao interno do campo procuravam uma sobrevida que
pudesse afastá-los do cotidiano de discórdias e brigas internas, e assim, dentre
outras manifestações, conseguiram organizar alguns concursos teatrais. Em um
destes concursos, Kazuo apresentou duas pequenas performances89 vencendo o
primeiro prêmio: poucas bananas ou outros produtos alimentícios quaisquer.
Os eventos vividos neste período de guerra e de reclusão
permaneceram cravados em sua memória, influenciando posteriormente
também a sua poética. Dentre essas muitas lembranças, na memória de Kazuo
Ōno destacaram-se os inesquecíveis ganidos dos cachorros selvagens que
surgiam da escuridão para devorar os cadáveres abandonados nas redondezas

89 A primeira peça apresentada por Kazuo Ōno foi a imitação de um peixe, colocando
em cena a sua memória sobre o trabalho de seu pai, na ilha de Hokkaido; já na segunda,
construiu uma pequena homenagem a sua mãe. Desde estes primeiros esboços de sua
poética era já possível observar um dos mais importantes princípios de sua futura
dança, ou seja, a inspiração nos pequenos detalhes da vida cotidiana, subvertendo-os até
o ponto de fazer com que assumissem um significado cósmico (D’Orazi, 2001, p. 49).
122
de seu acampamento. Com o mesmo sentimento, recorda igualmente a dura
viagem de repatriação, na qual milhares de soldados foram transportados
espremidos como sardinhas no fundo do navio, em condições desumanas que
levaram muitos à morte. O triplo apito do navio que anunciava o lançamento
dos corpos sem vida em alto mar, permaneceu eternamente em Kazuo90.
Dos cerca oitocentos mil prisioneiros que se encontravam reclusos no
campo de Nova Guiné, mais de seiscentos mil perderam suas vidas perecendo
de fome ou perdidos nas profundezas da floresta. Kazuo Ōno foi um dos
poucos sobreviventes que conseguiram escapar desta dura situação. Esta
experiência fez com que ele se sentisse profundamente endividado com seus
colegas que perderam suas vidas durante a guerra, pois, de algum modo,
tornaram possível a manutenção de sua própria vida. Toda a morte e
sofrimento que o cercaram nestes anos de guerra o forçaram a questionar os
limites de sua própria existência.
Com o fim da guerra e seu retorno ao Japão no ano de 1946, retomou
seu trabalho junto à escola Soshin, e recomeçou a frequentar o estúdio de
Takaya e Miya, onde permaneceu por mais outros dois anos. Em 1949,
começou a participar da companhia de Mitsuko Andō, também discípula de
Eguchi, e subiu pela primeira vez sobre o palco, aos 43 anos de idade, para
interpretar um espetáculo coletivo e três solos ao interno do “1° Recital de
Dança Moderna”91, no Kanda Kyoritsu Kodo Hall, em Tóquio. Em meio ao
público de quase três mil expectadores, estava o jovem Tatsumi Hijikata, recém
chegado a Tóquio, na sua primeira tentativa de transferir-se para a capital. A
expressividade inebriante de Kazuo Ōno marcou profundamente Hijikata, que
retornou a Akita contagiado por um outro modo de conceber a dança.
Iniciou-se assim praticamente uma década de colaborações entre
Kazuo Ōno e a companhia de Andō, com a realização de vários recitais de
dança moderna92 e apresentação de inúmeros espetáculos solos e coletivos. A

90 Talvez não por coincidência, uma das primeiras coreografias compostas por Kazuo
Ōno ao seu retorno para a vida civil foi uma peça intitulada A dança da água-viva (1949),
apresentando assim uma possível relação com os enterros marítimos que testemunhou
durante seu último ano no exército (Ohno e Ohno, 2004, p. 112).
91 O espetáculo com o grupo foi intitulado Ennui for the City e os três solos foram The
Devil’s Cry, Tango e First Flower of Linden Tree, apresentadas em novembro de 1949 (Ohno
e Ohno, 2004, p. 310, 315).
92 Yoshito Ōno (Ohno e Ohno, 2004, p. 101) conta como Kazuo e a sua família
tiveram que endividar-se para financiar a organização destes recitais, nos duros anos do
pós-guerra japonês: “Os custos da produção de um recital chegavam quase há um ano
123
aproximação e o início de um percurso colaborativo entre Kazuo Ōno e
Tatsumi Hijikata aconteceu justamente através da companhia de Andō, da qual
Hijikata começou também a participar a partir de sua chegada definitiva em
Tóquio, no ano de 1952, atraído pelas sensações e pelas memórias do
espetáculo que havia testemunhado poucos anos antes. Ōno e Hijikata
compartilharam o palco pela primeira vez no espetáculo coletivo da companhia
de Andō intitulado Karasu – “O corvo”, em 1954. Um rico período de
discussões e colaborações artísticas entre ambos floresceu assim nos anos
seguintes.
Em 1959, Kazuo Ōno encontra-se em uma busca pessoal por uma
nova modalidade de expressão, procurando por novos estímulos e experiências
artísticas que tentassem desconstruir seus modelos técnicos pré-configurados.
Até aquele momento, Ōno era já conhecido como um dançarino com uma forte
marca lírica e, sobretudo como um dos melhores intérpretes da dança
expressionista alemã (Salerno, 1998, p. 30). Foi então que, no final dos ensaios
para o espetáculo O velho e o mar – baseado na novela homônima de Ernest
Hemingway e colocado em cena em abril de 1959, durante o 5° Recital de
Dança Moderna no Dai-ichi Seimei Hall – Ōno perdeu os sentidos e desmaiou,
percebendo logo após que tinha tocado em dimensões profundas de seu corpo,
indo além de seus próprios limites. Em suas palavras, ele havia tocado em uma
dança que se encontrava já ao interno de seu corpo: “encontrei-me face a face
com a minha alma” (Ōno, in Viala e Masson-Sekine, 1988, p. 24).
Durante os ensaios para este espetáculo, Tatsumi Hijikata também
começou a frequentar de modo mais regular o estúdio de Ōno, transformando
as suas visitas em verdadeiros encontros de colaboração e conselhos cênicos; os
primeiros de uma grande série de trabalhos conjuntos. Mesmo prometendo
grandes revelações em sua fase preparatória, o espetáculo acabou não obtendo
muito sucesso de público e crítica, sendo julgado demasiado simbolista. Foi
também o último espetáculo encenado pela companhia Unique Ballet de Mitsuko
Andō.

inteiro de salário. Ele gastaria em um único recital o que ganhava em um ano inteiro
como professor. Atuar para um público pagante transformou-se em um luxo que
poderia ser concedido somente àqueles que possuíam formas independentes de ganhar
dinheiro. Na verdade, eu diria que durante aqueles primeiros anos, meu pai nunca
pegou seu salário integral no dia do pagamento, pois ele sempre tinha pedido
antecipadamente parte dele emprestado”.
124
Ainda em 1959, em maio, na Associação de Dança Japonesa, Tatsumi
Hijikata colocou em cena o espetáculo Kinjiki, com a colaboração de Yoshito
Ōno, o filho ainda adolescente de Kazuo, lançando as bases de seu Ankoku
Butō. Depois de alguns poucos meses, propôs uma versão revisada de Kinjiki ao
interno de seu Dance Experience, na qual existia uma participação especial de
Kazuo Ōno executando um solo intitulado Divinariane, baseada no personagem
Divine, um velho e decadente travesti, provindo da obra Nossa Senhora das Flores
de Jean Genet. Kazuo Ōno foi sendo fortemente atraído pela perspectiva
experimental de Hijikata e começou a colaborar intensamente com ele e com o
coletivo Ankoku Butō-ha, formado também pelo seu filho, Yoshito e por Akira
Kasai, dentre outros colaboradores de diversas áreas artísticas.
Na realidade, Divine simbolizou um grande ponto de mudança da
poética de Kazuo Ōno, fazendo desabar aquilo que restava de seu simbolismo
ao imergi-lo inteiramente no universo de decadência moral e sexual do ser
humano93. Para Ōno, a coisa mais importante que recebeu de Tatsumi Hijikata
foi justamente este poder e esta força que estão presentes no erotismo. Uma
maior reflexão sobre o real significado da morte e da decadência proporcionou
uma mudança radical na sua perspectiva de dança, uma vez que estes conceitos
transformaram-se também em um ponto de partida criativo (Ohno e Ohno,
2006, p. 35). A partir de Divine, a vida e a morte passaram então a serem dois
dos temas mais proeminentes em suas obras94.
Mesmo que Divine tenha desengatilhado profundas transformações em
sua poética, uma vez que resumia em apenas um personagem diversos e
contrastantes atributos, Kazuo sempre sentiu uma forte atração por trágicas
heroínas, alimentando seu ímpeto performativo com histórias que retratavam
sofrimento e loucura. Neste sentido, a obra de Ōno começou a estruturar-se ao
redor da revelação de um espectro mais amplo de experiências humanas,
protagonizado por figuras não perfeitas que incorporam a “decadência” como
uma outra possível forma de beleza, contrapondo-se assim aos paradigmas

93 “Foi meu primeiro encontro com Genet, meu encontro com Hijikata, meu encontro
comigo mesmo. Meu encontro na dança é com a humanidade, um encontro com a
vida” (Ōno, in Fraleigh e Nakamura, 2006, p. 32).
94 Depois de ter vivido a experiência de dançar Divine, na qual deveria de algum modo
existir entre a vida e a morte, Ōno passou a acreditar que “uma dança que não tenha
nenhuma relação com a morte e a vida não vale a pena de ser vista nem de ser dançada”
(Ōno, in D’Orazi, 2001, p. 55).
125
ocidentais da dança que celebram em modo quase unânime a juventude e a
beleza.
Para Kuniyoshi (Entrevista pessoal, 2009), a experiência de interpretar
Divine foi realmente um dos pontos decisivos na carreira de Kazuo Ōno,
servindo como um estímulo essencial para a sua saída do universo da dança
moderna europeia – até então fonte de sua insatisfação e alvo de sua crítica.
Vestir as roupas íntimas de Divine colocou-o cara a cara com uma feminilidade
decadente e com a morte, além de introduzi-lo na arte do travestimento,
elementos que, mesmo sempre ressignificados pelas suas outras diversas
experiências de vida, deram forma à sua poética. A partir desta experiência,
Kazuo passou a jogar sempre com uma vacilação identitária e com a recriação
de individualidades sexuais, assumindo em cena tanto papéis “neutros”, como
masculinos, femininos ou infantis.
Neste sentido, os experimentos performativos iniciados nos primeiros
anos da década de 60 organizados por Hijikata, simbolizaram uma fundamental
reviravolta no percurso poético de Kazuo Ōno. Abandonando os domínios
técnicos que possuía da dança moderna, partiu em direção a uma exploração
profunda por novas expressões do corpo, encontrando um campo fértil de
investigação ao aproximar-se de uma mentalidade consonante com o fermento
cultural que eclodia naqueles anos no Japão.
Durante este intenso período de colaborações artísticas, de 1960 a
1966, Kazuo Ōno e Tatsumi Hijikata realizaram conjuntamente algumas
pequenas performances e colocaram em cena memoráveis espetáculos95 que
marcaram época. A encenação de Tomato (1966) marca o final deste rico ciclo de
colaborações e representa um divisor de águas no percurso artístico de ambos
os artistas. Nos anos que seguem à dissolução do coletivo Ankoku Butō-ha,
Tatsumi Hijikata continuou sua pesquisa cênica em modo intenso,
coreografando e participando de diversas performances96, até atingir o ápice de seu

95 “Cerimônia secreta de Hermafrodita” [Hanin – hanyosha no hirusagari non hiji] e “Torta


de açúcar” [Satō no keki], em 1961; “As três fases de Leda” [Reda san – tai: Chi o matsu
Reda – Seijukai – Kuomu no tamago], em 1962; “Sacrifício” [Gigi] e “O massagista cego –
Uma história teatral em apoio ao amor e à luxúria” [Anma – aiyoku o sasaeru gekijō no
hanashi], em 1963; “Dança colorida de rosa: à casa do Sr. Shibusawa” [Bara iro dansu – A
la Maison de M. Civeçawa], em 1965; e “Tomate – Lições introdutórias aos beatos
ensinamentos do amor erótico” [Tomato – Seiai onchō-gaku shinan zue], em 1966.
96 Como “Emoção em Metafísica” [Keijijō-gaku] e “Butō Genet” [Butō June] de 1967; e
Noiva (Gata) [Hanayome (Neko)] de 1968, além da direção dos trabalhos de alguns de
seus discípulos (Kurihara, TDR, 2000, p. 30).
126
projeto revolucionário de insurreição física com “A rebelião do corpo de
carne”, colocado em cena em outubro de 1968.
Neste mesmo período, Kazuo Ōno entrou no hiato de uma grande
crise criativa no qual não conseguia mais construir uma performance e afrontar
o público, exceto por pequenas participações em alguns eventos97 organizados
por outros artistas e o trabalho contínuo com os estudantes de seu estúdio.
Teve início assim, para ele, um longo período de hibernação naquilo que se
referia à sua atuação sobre os palcos cênicos. Distantes dos olhos da crítica e do
público encontrou o filmmaker experimental Chiaki Nagano – o qual já havia
frequentado por mais de um ano seu estúdio – e dá início a uma importante
exploração poética que resultou na produção de três filmes, mais conhecidos
como a “trilogia do Senhor O”98.
As influências surrealistas e o processo catártico de elaboração estética
que constituíam a narrativa destes filmes permitiram que Ōno imergisse
profundamente em suas próprias emoções e redescobrisse as substâncias que
compõem as suas paisagens interiores99. Esta fase de investigação pessoal serviu
justamente como seu laboratório experimental, no qual pôde desconstruir
aquilo que se encontrava cristalizado em sua poética e, ao mesmo tempo,
experimentar possibilidades ainda inexploradas de expressão. Neste sentido, o

97 Aparição como convidado nos dois recitais dirigidos por Hijikata no ano de 1967, e
organizados, respectivamente, por Tomiko Takai (“Emoção em Metafísica”) e
Mitsutaka Ishii (“Butō Genet”), além de atuar no evento Casa de Artaud junto com seu
filho Yoshito Ōno, no mesmo ano. Em 1968, participa novamente como convidado de
um espetáculo de Ishii “Comentário a Genet” [O-June shō] e do segundo recital de Takai
“A casa de Mandala” [Mandara Yashiki] (Ohno e Ohno, 2004, p. 311).
98 “Retrato do Senhor O” [O-shi no shōzō] em 1969, “Mandala do Senhor O” [O-shi no
mandara] em 1971 e “O livro dos mortos do Senhor O” [O-shi no sisha no sho] em 1973
(Ohno e Ohno, 2004, p. 144).
99 A sinopse que introduz o filme Mandala do Senhor O reflete bem o significado desta
viagem de autodescobrimento empreendida por Kazuo Ōno: “Este é um filme sobre a
experiência, ou, pode-se dizer, um filme sobre uma viagem para dentro de nossa
consciência interior. Este filme é a verdadeira expressão do amor humano pelo
universo. Nossa história desenrola-se na vila de uma antiga fazenda. Na verdade, é um
mundo dentro de um espelho. Lá, no mundo ao nosso redor, existem tensões saudáveis,
cheias de prazeres desconfortáveis e depravados, onde tudo pode acontecer a qualquer
momento. Poetas, valorizando suas memórias doces e cruéis, continuam viajando
profundamente dentro do espelho. Esta é uma história sobre aqueles que vagam em
busca desse sonho e utopia, tirados de nós pela nossa civilização mecanizada (Ohno e
Ohno, 2004, p. 183).
127
encontro cinematográfico com suas profundezas serviu para o Senhor O como
o húmus a partir do qual foi possível o seu renascimento cênico.
A participação de Kazuo nesta trilogia ajudou também a introduzir em
sua poética a sujeira e a imundice (Ohno e Ohno, 2004, p.144). Utilizando uma
fazenda de porcos como set de filmagens, um dos filmes retratava uma cena na
qual Ōno escava as profundezas da moral limpa e civilizada da sociedade, ao
deitar-se dentro do chiqueiro e sugar com afinco e profunda veracidade as tetas
de uma porca. Esta figura semi-humana, feita de barro e esterco, serviu como
porta de acesso à exploração das memórias mais recônditas de sua infância em
Hokkaido e Akita, ao mesmo tempo em que desengatilhou um movimento
profundo na matéria já decantada de sua história, trazendo à tona elementos
poéticos até então submersos.
Mas foi através de um estímulo visual que ganhou realmente forma o
renascimento de Kazuo Ōno. Em 1976, visitando a exposição de seu amigo
pintor Nakanishi Natsuyuki, ficou impressionado particularmente com uma
pintura a óleo sobre lastra de zinco, com motivos abstratos. Enfeitiçado pelo
seu movimento interno, exclamou quase inconscientemente: “A Argentina, esta
é a Argentina!”. Despertou-se assim a recordação da bailarina que deslocava o
ar diante de seus olhos e havia-lhe feito entender que sua dança poderia
equivaler-se a um ato de criação. Depois de alguns poucos meses nasceria assim
Ra Aruhenchīna-shō – “Homenagem para La Argentina”, espetáculo que daria
início a uma longa e ininterrupta série de sucessos para Ōno.
Em 1977, depois de diversos ensaios e a direção de Tatsumi Hijikata,
aos 71 anos de idade, Kazuo Ōno renasceu para o espetáculo neste solo
fascinante, subindo no palco do Dai-ichi Seimei Hall, em Tóquio. Um
espetáculo que seria colocado em cena novamente três anos depois, em 1980,
no Festival de Nancy, na França, e outras 119 vezes em diferentes palcos do
mundo, até o final de sua carreira artística, apresentando assim o raquítico
corpo de Ōno, e a dança Butō, à cultura ocidental.
“Homenagem para La Argentina” era um espetáculo dividido em duas
partes e composto por cenas muito singulares, as quais, em um certo sentido,
reconstruíam o percurso artístico pessoal de Ōno, ressaltando metaforicamente
seu processo de reconfiguração interna. O primeiro ato, intitulado Divinaries,
tinha início em meio ao público, do qual Kazuo levantava-se vestido de Divine –
em uma clara citação ao personagem de Genet que tanto o marcou – e muito
lentamente rumava para cima do palco cênico, onde morreria logo em seguida,
dando assim espaço para o surgimento de uma jovem garota.

128
A cena seguinte, intitulada “Pão cotidiano”, segundo Yoshito Ōno
(Entrevista pessoal, 2009), nasceu de uma eterna discussão entre seu pai e
Tatsumi Hijikata, na qual este último, no alto de seu ateísmo, afrontava a fé
cristã de Kazuo questionando-lhe sempre sobre o paradeiro deste deus no qual
ele acreditava. Kazuo colocou em cena, portanto, a sua resposta, dizendo que a
sua dimensão divina era celebrada em suas ações cotidianas. Assim sendo,
propôs a nudez e a simplicidade do cotidiano através de um palco vazio e
escuro, vestindo somente um pequeno calção preto, caminhando e executando
gestos embebidos por uma contradição essencial: ser contemporaneamente
pesado e etéreo.
A cena conclui-se com o início de outro fragmento no qual Kazuo
oferece um complemento de sua concepção divina da existência e, portanto,
também de sua dança. Além de continuar respondendo à Hijikata, introduz o
segundo ato apresentando explicitamente a sua homenagem à La Argentina,
oferecendo-se como ligação direta entre o céu e a terra, em uma cena simples e
intensa na qual ergue gradativamente os braços para o céu enquanto parece
enraizar-se junto ao piano que o acompanha sobre o palco. Procurou assim
sintetizar a dimensão profunda que tinha visto ser colocada em cena por
Antonia Mercé, cinquenta anos antes.
Depois de alguns momentos de escuridão, tem início o segundo ato no
qual Kazuo coloca em cena mais explicitamente a sua leitura reelaborada de
Antonia Mercé e, vestindo indumentos característicos, realiza alguns solos
baseados em uma gestualidade flamenca, relida sobre o acompanhamento de
uma orquestra de tango. Sem uma gestualidade estilizada e definida, Ōno
desfaz-se em movimentos improvisados e guiados pelo seu sentimento mais
profundo de gratidão e admiração pela mulher que lhe desvendou novas
fronteiras para seu universo de arte e poesia.
Em 1980, no Festival de Nancy, na França, Kazuo apresentou mais
uma vez “Homenagem para La Argentina” e causou estupor no público e na
crítica, pois com seu corpo nu e franzino, colocou em cena a velhice e a
decomposição da matéria, enquadrados ao interno de uma narrativa que
extrapolava os limites de uma auto-referencialidade e desfazia-se em
sentimentos de amor e gratidão. No mesmo Festival, Kazuo também encenou
O-zen mata wa Taiji no yume – “Ozen. O sonho de um feto”, o qual se ofereceu
como matriz para o seu próximo espetáculo colocado em cena em 1981, no
Dai-ichi Seimei Hall, também sob direção Tatsumi Hijikata, chamado Watashi no
oka-san – “Minha Mãe”, no qual colocou em foco um dos principais elementos
de sua poética: a mãe e o seu potencial gerador.
129
Observando assim as raízes de sua poética, é possível verificar que a
dança para Kazuo Ōno apresenta-se como algo intimamente ligado à vida e à
morte desde suas origens. A corrida do espermatozoide em direção ao óvulo, a
morte das inúmeras existências que não chegaram a fertilizá-lo, abdicando de si
mesmos para permitir que vida seja possível a um só indivíduo, está presente
cotidianamente dentro de nós, em cada uma de nossas ações. Para Kazuo,
portanto, a morte dessas potenciais existências que tornaram possível a sua vida
soma-se às concretas perdas de seus irmãos de sangue, bem como à dura
experiência das mortes de seus colegas nos campos de batalha, para construir
em sua poética a certeza de uma interligação profunda entre os seres e a eterna
dívida que a vida tem com os mortos, os quais a alimentam com sabedoria e
imaginação. Para ele, uma biografia pessoal só pode existir ao interno de uma
história universal, e ao interno de uma memória pessoal existe também uma
infinidade de memórias de vidas humanas passadas.
Neste sentido, a própria imagem de uma mãe pode simbolizar esta
ambivalência e esta sobreposição entre vida e morte, uma vez que caminha para
o seu fim enquanto gera em seu ventre uma nova vida. E foi essa interrelação
entre vida e morte inerente ao útero materno que passou a embasar a poética de
Kazuo Ōno em sua nova fase, resumida nestes dois momentos fundamentais: a
morte – a separação da conexão biológica com sua mãe – e o nascimento, o
início de uma existência autônoma (Ohno e Ohno, 2004, p. 76). O contraste
entre estas duas dimensões criou a tensão necessária para a definição de sua
concepção da dança Butō100.
A mãe simbolizaria também, para Kazuo, esta eterna busca do ser
humano pela fonte primária do universo, imagem sobre a qual edificou um dos
principais pilares de sua poética. Assim sendo, a conexão entre mãe e filho
apresenta-se como uma perspectiva fundamental para a sua vida e a sua dança,
embebida por sentimentos de profunda gratidão ao sangue e à carne que o
nutriram dentro do útero. A sua dança apresenta-se fundamentalmente como
um modo de agradecer e contar à sua mãe a sua tentativa de colocar em ato
todo o sofrimento pelo qual ela passou para poder gerá-lo. Neste universo de
sensações e ao interno das possibilidades cinéticas que teriam sido oferecidas ao
feto, Kazuo projetou o sentido da vida, bem como a energia motriz de todo o
universo. A exploração deste mundo pré-natal transformou-se então em uma

100 “Basicamente, ‘butō’ significa vaguear, ou mover-se, por assim dizer, em voltas e
curvas entre os reinos dos vivos e dos mortos” (Ohno e Ohno, 2004, p. 205).
130
das principais bases de seu Butō101, uma vez que possibilitou a tomada de
consciência dos sentimentos de sofrimento e perda.
Kazuo Ōno costumava dizer que, quando dançava, considerava o chão
como o útero de sua mãe. Para ele, a deusa mãe era o recipiente de toda a
natureza, em sua dimensão ambígua enquanto fonte nutriente e terrificante, na
qual não existiria a morte como um fim, mas somente como renascimento,
regeneração. Ressaltava, deste modo, o vínculo evidente e condescendente com e
ao interno da mãe, o qual inspiraria a dança íntima de cada ser, as suas
compreensões intuitivas, bem como o amor incondicional e o perdão. Este
amor com dimensões transcendentais, somado ao difuso sentimento de gratidão
incorporado pela sua dança, é o que tornaria possível, segundo suas próprias
palavras, a união constante e a interdependência entre os vivos e os mortos.
Esta multiplicidade de corpos que habitam a sua dança serviria assim como uma
de suas mais importantes matrizes poéticas, pois seriam justamente estes
mortos102 que, na realidade, lhe preencheriam de sabedoria e imaginação, de
força criativa e fantasia.
A concepção desta interdependência quase fisiológica entre os seres,
bem como a certeza de que toda a natureza sustenta a sua existência, faz com
que Kazuo utilize também o útero materno como metáfora para explicar a
relação entre seu corpo e a própria história, afirmando que toda a “história dos
homens e das pessoas que me circundam está concentrada dentro de mim, vive
em mim, como no útero de uma mãe” (in BT, 79-80, p. 233). A essencialidade
da figura materna em sua poética transcende o seu natural potencial gerador
para oferecer-se também como uma conexão direta e original com a dimensão
erótica da humanidade e com o seu potencial de crescimento em direção à
liberdade. Para ele, as nossas relações com nossas mães carregam em si a união
erótica entre o pai e a mãe, fazendo com que os seres humanos sejam eróticos
em suas verdadeiras naturezas e vidas.

101 “As raízes de minha dança podem ser encontradas no tempo em que passei no
ventre de minha mãe. A dança brota deste ventre universal onde a morte e a vida se
entrelaçam. A vida é cheia de contradições: os outros sacrificaram suas vidas para que
pudéssemos entrar neste mundo. Ao traçar todo o caminho de volta ao nosso início,
nós eventualmente chegamos à criação do céu e da terra” (Ohno e Ohno, 2004, p. 199).

102 Na cultura japonesa existe uma crença de que o bem-estar dos vivos é vinculado ao
conforto e tranquilidade dos mortos, uma vez que essencialmente um lar japonês
apresenta um círculo familiar composto por membros vivos e mortos (Ohno e Ohno,
2004, p. 176).
131
Neste sentido, Ōno circunscreve em sua poética a figura materna, tanto
como uma dimensão matriz universal quanto como a natureza erótica da
humanidade, fontes, estas, inesgotáveis para a sua dança. Utiliza, portanto, o
útero como elemento criativo e gerador, como princípio poético que exprime
proteção e liberdade, ao mesmo tempo em que se oferece como metáfora do
universo que envolve o corpo que dança. “A alma que está dentro de mim”,
disse Ōno, “endossa o cosmo e eu tenho a sensação de ser coberto por este
cosmo”. Endossar o universo, neste sentido, seria o melhor modo de dançar
Butō, pois o universo pode transformar-se no recipiente do corpo e o corpo,
por sua vez, transformar-se no recipiente da alma. A alma está no centro do
cosmo, endossando-o como um manto.
As relações entre cosmo, alma e corpo, apesar de apresentarem-se em
uma disposição concêntrica, na qual a alma serviria como verdadeiro epicentro,
revelam uma pessoal concepção unitária da existência construída por Ōno. A
indissociabilidade entre estas três dimensões do ser humano é que permite a
existência do significado para a sua gestualidade e a sua dança. Para Kazuo,
portanto, a sua pele e a sua carne são o resultado de suas experiências no
universo, são o próprio universo, uma vez que estão vestidas por ele. Neste
sentido, seria possível explicar também parcialmente a reincidência dos
indumentos longos e femininos103 no vestuário cênico de seus espetáculos, uma
vez que ressaltam seja a presença de sua mãe em sua dança como a sua
correspondência com o cosmo, o qual endossava e dentro ao qual se movia
(Schechner, 1986, p. 164).
Apresentando em sua poética leituras muito singulares de conceitos
como corpo, alma, cosmo, vida e morte, Ōno deixa transparecer o hibridismo
que caracteriza a sua fé religiosa, uma vez que evidentemente não reproduz as
concepções dicotômicas e hierárquicas propagadas por um cristianismo
puramente ocidental. O seu cristianismo híbrido é, como já dito, contaminado
por estratos subterrâneos de origens budista e xintoísta, bem como fortemente
referenciado na base pacifista e igualitária propagada pelo filósofo cristão

103 “Minha intenção vestindo-me como uma mulher no palco nunca foi tornar-me um
imitador do sexo feminino, ou transformar-me realmente em uma mulher. Pelo
contrário, eu quero traçar minha vida de volta às suas origens mais distantes. Mais do
que qualquer outra coisa, anseio voltar de onde eu vim” (Ohno e Ohno, 2004, p. 76).
Assim sendo, vestindo roupas femininas, Kazuo objetivava desprender-se dos papéis
masculinos que assumiu em sua atribulada existência cotidiana, descartando as
convenções sociais que o inibiam. Segundo Yoshito Ōno, Kazuo não poderia encontrar
verdadeiramente seus fantasmas vestindo-se somente de homem.
132
Kanzo Uchimura. Esta sua fé religiosa, em um certo sentido, influenciou
significativamente a sua dança, uma vez que esta se baseou na confiança no
amor e na generosidade, apresentando-se enquanto uma contínua criação do
mundo, como a revelação do ser e o seu encontro com a vida. Para Ōno, dentro
desta lógica, dançar não correspondia à execução de um esforço visível, e sim
caracterizava-se essencialmente pela percepção da força de nossa relação com
Deus (Ohno e Ohno, 2004, p. 222).
Esta sua particular fé cristã104 apresenta-se de forma difusa e transversal
em sua obra, servindo como uma importante inspiração poética e,
contemporaneamente, como fundamento de seus procedimentos técnicos.
Segundo Yoshito Ōno, as performances de Kazuo serviram como uma forma dele
expressar o seu eterno agradecimento; a sua gratidão para com as pessoas com
as quais se sentia profundamente endividado: sua mãe, La Argentina e a própria
vida. Sentir esta energia divina do universo e compartilhar este sentimento de
gratidão também pelas coisas mais ínfimas, acabou oferecendo-se como um
mecanismo técnico de inibição de seus desejos pessoais (Luisi e Bogéa, 2002, p.
98) e uma consequente dissolução de um self egoico. Ōno acreditava que
agradecendo o espírito universal presente dentro de si, em seu próprio corpo,
teria realizado a missão de sua vida.
Contudo, o amor e a emoção colocados em cena por Kazuo, segundo
seu filho Yoshito, não seriam aqueles que se dão no nível da carne e do sangue,
e talvez por isso teriam a capacidade de perfurarem de modo tão profundo o
coração do público. O amor de Kazuo Ōno possui características
transcendentais e, ao mesmo tempo, compartilha traços cristãos ao ser definido
por ele como “uma disposição para sofrer pelos outros” (Ohno e Ohno, 2004,
p. 258). Para Fraleigh e Nakamura (2006, p. 69), estendendo si mesmo para um
outro universal em suas danças, Ōno toca algo na audiência que os permite
perceber uma forma ideal de amor, o qual no ethos cristão de Kazuo seria
chamado de ágape. A sua forma de amor desenvolver-se-ia sobre o ato da

104 É importante aqui ressaltar novamente que o cristianismo de Ōno não pode ser
interpretado somente a partir de uma chave puramente ocidental, devendo ser
considerado ao interno de um contexto de hibridismo religioso. Muito além dos
conceitos e de determinados valores compartilhados com a cosmogonia cristã, a poética
de Ōno não se mostra fechada ao interno das estruturas simbólicas do cristianismo
tradicional, e sim permite que se entreveja a sua crença em uma transcendência
imanente em cada coisa do mundo, em uma força salvadora universal que não possui
fronteiras e por isso é transformadora.
133
doação, enquanto eros seria motivado pelo desejo, o preenchimento de cada um
através do outro, e filia seria o amor fraternal.
Alguns anos depois do sucesso do espetáculo “Minha mãe”, no qual
Kazuo Ōno condensa uma série de seus principais princípios poéticos, ele
colocou em cena, em 1985, um outro espetáculo intitulado Shikai: Uinnā warutsu
to yurei – “Mar Morto: Valsa Vienense e Espectros”, o qual, segundo Yoshito
Ōno, possuía fortes conotações e referências ao pai de Kazuo, desde a
indicação do mar no próprio título à escolha do terno preto – elemento de
força masculina – como indumento principal (Ohno e Ohno, 2004, p. 127).
“Mar morto” foi encenado durante o 1º Festival de Dança Butō do Japão, em
Tóquio, e marca a última colaboração oficial entre Kazuo Ōno, Yoshito Ōno e
Tatsumi Hijikata, uma vez que este realizou novamente a direção do espetáculo.
Em 1987, cerca de um ano após a morte de Hijikata, Kazuo Ōno
realiza outro espetáculo em parceria com seu filho Yoshito e intitulado Suiren –
“Ninfeias”, no qual presta uma homenagem explícita à obra de Monet,
fechando assim metaforicamente um ciclo de inspirações estéticas que tem
paradoxalmente suas origens na própria história japonesa (Fraleigh e Nakamura,
2006, p. 94). Em modo consciente ou não, Ōno relê a obra de um dos maiores
representantes da escola artística impressionista, a qual, por sua vez, sofreu
forte influência da estética japonesa por meio das estampas multicoloridas dos
Ukiyo-e, ainda no final do século XIX.
É interessante também observar como outras tantas inspirações
provindas do universo artístico tradicional figuram dentro do universo criativo
composto por Kazuo Ōno. Contudo, segundo o seu filho Yoshito, o seu Butō-fu,
ao contrário daquele construído por Tatsumi Hijikata, não possui fotografias ou
pinturas de outros artistas, sendo povoado somente por seus próprios
pensamentos sobre o processo de construção cênica, como seus rabiscos sobre
as movimentações de sua mão e de seu deslocamento sobre o palco. Durante a
criação de um novo trabalho, Kazuo observava incansavelmente pinturas e
retratos, lia poemas e haicais, registrando todos os seus movimentos internos
com canetas coloridas, repetidamente apagando e reescrevendo em grandes
folhas de papel. Ele sonhava muito durante este período, instaurando um rico
processo no qual as palavras entravam de alguma forma em seu inconsciente.
Este processo contínuo e intenso de anotar, apagar e revisar as suas
anotações o permitia realizar uma escavação em diferentes estratos de seu
corpo, tocando em seus níveis físicos, emocionais e espirituais. Era inconcebível
para Kazuo Ōno iniciar um trabalho de criação cênica sem a instauração deste
processo profundo de exploração do corpo. Da mesma forma que a sua poética
134
o ajudava a dar forma ao seu universo e à sua realidade, a poesia impregnava seu
movimento e as imagens o ajudavam a recriar a própria gestualidade.
Kazuo Ōno, mesmo não possuindo uma filiação estética direta com as
artes performativas tradicionais japonesas, sempre utilizou livremente citações
provindas destas manifestações em suas declarações e orientações durante seus
laboratórios, tendo-as como uma significativa fonte inspiradora. Referências a
inspirações poéticas e técnicas provindas do teatro Nō ou mesmo proferidas
diretamente por Zeami105, permeiam muitos dos discursos proferidos por Ōno,
como quando convoca em seus alunos a visão espiritual do mundo refletida na
atuação do ator Nō, o qual coloca em cena a concepção de que “cada simples
fenômeno no universo manifesta a si mesmo como uma alma” (Ohno e Ohno,
2004, p. 225).
Outra imagem reincidente na obra e na poética de Kazuo Ōno, trazida
por Zeami e de forte simbolismo na cultura performativa japonesa, é a própria
flor. Na dança tradicional japonesa, o corpo é considerado como uma “flor
efêmera”, um obstáculo que deve ser superado “afim que a eterna flor artística
da beleza possa desabrochar” (D’Orazi, 2001, p. 89). A flor, no discurso estético
de Kazuo Ōno, é constantemente citada como o modo de existência ideal, ao
qual todo dançarino deveria aspirar. No plano técnico metodológico de
expressividade cênica de Ōno, a flor aparece inicialmente como uma natural
extensão de sua mão, tornando-se assim posteriormente um ponto de contato
com o mundo exterior, uma parte integrante de seu sistema nervoso corporal,
assim como uma antena serviria a um inseto.
O ato de desabrochar da flor também serve como inspiração poética e
técnica para o trabalho de Kazuo, uma vez que lhe garante uma integridade e
uma particular qualidade de movimento para ação cênica, pois a sua ação de
abrir-se no ar possui uma íntima ligação com o movimento contraditório do

105 “Ōno cita muito livremente Zeami (também conhecido como Motokiyo Kanze), o
dramaturgo Nō, cujo gênio conduziu o teatro Nō ao nível de grande arte do século
XIV. O ponto de vista de Zeami, segundo o qual a realidade última é inteiramente
composta por uma substância, assemelha-se à concepção dos seguidores do monismo.
Ele escreveu vários estudos críticos ilustres, particularmente o Kadensho, que até hoje
ainda é considerado a autoridade máxima sobre o assunto. Ele escreve sobre a
necessidade de juntar coisas distintas em uma só. A habilidade de um ator Nō,
portanto, deve unir música e movimento, apesar de serem dois fenômenos distintos.
Zeami fala sobre transformar dois corações em um. Os princípios estéticos centrais em
seus escritos críticos são hana (flor), uma qualidade que distingue o bom ator, e yūgen,
que distingue um bom espetáculo (Ohno e Ohno, 2004, p. 304).
135
enraizar-se na e desde a terra. O “transformar-se em uma flor” convocado por
Kazuo Ōno buscava enfatizar a necessidade de desprendimento total de todos
os hábitos, técnicas e vaidades. A dança para ele, portanto, não deveria nunca
ser reduzida à replicação rotineira dos movimentos e posturas cotidianas, e sim
considerada como a possibilidade que cada um possui para experimentar
intimamente o desabrochar de uma flor.
A poética de Kazuo Ōno é também povoada por personagens e artistas
provindos de diferentes culturas, escolas e épocas artísticas. Nomes como os do
pintor e poeta William Blake (1758 – 1827) e de Odilon Rendon (1840 – 1916),
considerado um dos precursores do surrealismo, ajudaram com que Ōno
incluísse em sua arte formas gráficas que buscavam representar suas emoções e
sonhos, bem como adotasse a concepção de que “sem os contrários não existe
progressão”106 (Ohno e Ohno, 2004, p. 305). Uma outra significativa
contribuição em sua poética foi recebida não de um artista, mas do físico e
teólogo Emanuel Swedenborg, o qual procurava confirmar que a vida após a
morte seria mais “real” do que a existência cotidiana dos seres humanos. Tal
afirmação encontrou um fértil terreno para reproduzir-se no imaginário de
Kazuo, uma vez que esse já era impregnado por uma cristandade promíscua,
além de ser povoado por uma infinidade de mortos, antepassados, e pela certeza
de transitar constantemente por entre estes mundos107.
Toda a década de 90 representou um período fértil no percurso
artístico de Kazuo Ōno, pois pôde consolidar a sua fama internacional como
um dos maiores e mais significativos representantes da dança japonesa,
apresentando espetáculos108 e laboratórios em todo o mundo. Esta última
década de sua carreira artística foi também atravessada pela gravação de alguns

106 Tema central da obra The Marriage of Heaven and Hell, escrita por Blake por volta de
1793.
107 “Em cena me vejo cercado de mortos tanto quanto de expectadores (...) Se a vida
existe, é porque a morte é viva; se a morte é presente, é porque a vida está lá” (Luisi e
Bogéa, 2002, p. 41)
108 Além de performances de menor porte, durante toda a década de 90, Kazuo Ōno
replicou diversas vezes seus espetáculos já célebres, em diferentes países do mundo,
além de estrear algumas outras obras, entre as quais devemos destacar Ka cho fu getsu –
“Flor, pássaro, vento e lua”, de 1990; Hakuren – “A flor branca de lótus” e Oguri
Hangan, Terute-Hime – “Oguri Hangan e a princesa Terute”, de 1992 e Tendō Chidō – “A
estrada no céu, a estrada sobre a terra”, em 1995 (D’Orazi, 2001, p. 172).
136
filmes109 e pela constatação de uma certa independência estética assumida pelos
novos grupos de dança Butō, gerando uma certa proliferação de diferentes
“escolas” e um relativo enfraquecimento de suas originais forças subversivas.
Em 2001, aos 95 anos de idade, Kazuo Ōno retirou-se dos palcos
devido a evidentes limitações físicas, continuando, porém, a ensinar por mais
alguns meses em seu estúdio em Kamihoshikawa, Yokohama. Em seguida,
afastou-se de suas responsabilidades didáticas, deixando-as ao seu filho e
herdeiro artístico Yoshito Ōno. Kazuo Ōno viveu até meados de 2009, ainda
que sob intensos cuidados médicos, repousando sobre a mesma tênue linha da
qual sempre se alimentou para compor a poesia de sua dança: a fictícia fronteira
que divide os universos da vida e da morte.

“Minha alma guiará o caminho. Com cada passo que


dou, a minha carne está lentamente definhando. Em breve
irei deixar este mundo para trás. Como se dança sem corpo?
Não tenha medo, no além poderemos continuar a dançar
como um espírito, como um fantasma. Uma dança
fantasma é tão verdadeiramente linda, tão linda, de fato, que
ignoramos completamente que falta uma forma material.
Mesmo despedindo-me de minha carne e ossos, eu quero
continuar dançando como um fantasma” (Ohno e Ohno,
2004, p. 295).

3.2) AS VERDADES DO CORPO

“A coisa mais importante não é entender a verdade, mas


vivê-la. A verdade é a existência real, que é experimentada
através de todo o corpo” (Ōno, in Kennedy, 1995, p. 21).

109 Com destaque para Tamashii no fūkei: Ōno Kazuo no sekai – “Paisagem da alma: o
mundo de Kazuo Ōno”, de Hirano Katsumi, de 1991; e “Kazuo Ōno”, de 1995, sob a
direção de Daniel Schmidt.
137
“Como performers, é nosso dever nos perguntarmos como
podemos ajudar a vencer o ódio desenfreado que aflige a
raça humana” (Ohno e Ohno, 2004, p. 289).

Como visto até aqui, a concepção de dança de Kazuo Ōno não


antepõe nenhuma fronteira com as dimensões mais comuns da vida. O corpus
teórico e poético que sustenta a sua dança respira o mesmo ar que também
atravessa cotidianamente as suas veias. Assim sendo, o seu processo de
construção cênica é baseado, tanto em um nível técnico como poético, nos
rudimentos de sua gestualidade cotidiana, a qual se oferece também como porta
de acesso a uma infindável constelação de conceitos filosóficos que sustentam a
sua concepção de mundo.
Neste sentido, a particularidade dos elementos que compõem a sua
poética revela a continuidade orgânica entre essas diferentes esferas de sua
existência. O seu cristianismo autóctone, repleto de pacifismo e sem
hierarquias, emprestou dimensões transcendentais ao seu amor pela
humanidade e à sua gratidão por todos aqueles que, de algum modo, se
ofereceram em sacrifício para que ele pudesse seguir a sua existência. As
presenças femininas que habitam seu corpo – sua mãe, La Argentina e o travesti
Divine – acabaram apresentando-lhe também alguns dos imperativos
característicos de seu universo, como a versatilidade, a graça e a superioridade
expressiva. A feminilidade ajudou Ōno a desconstruir seus papéis sociais
masculinos, liberando-o para explorar infinitas possibilidades de expressão
cênica, permeadas pela fertilidade, a morte e a regeneração; simbolizadas pelo
útero, pelo erotismo e pelo cosmo.
A dura experiência da guerra, os experimentos cinematográficos de
matriz surrealista, bem como as revelações trazidas pelo trabalho do dançarino
Harold Kreutzberg, são os elementos mais significativos de sua poética que
poderiam apresentar-se mais próximos de um polo masculino. O corpo de
Kazuo Ōno congregaria assim essas diferentes experiências, transmutadas por
sua vez em verdadeiras matrizes poéticas, às quais gradativamente procurou dar
forma seja em âmbito artístico, como em sua vida pessoal. Neste sentido, os
profundos conceitos filosóficos que sustentam a sua vida e, por isso, também a
sua dança, são essencialmente conectados aos princípios técnicos de
composição cênica que formulou.
Para ele, dançar significa revelar e consagrar o corpo com intensidade,
através de um processo de imersão total em seus próprios sentidos (Sakurai, in
138
BT 79-80, 2006, p. 213). Desta forma, a dança de Ōno não seria baseada
necessariamente em pressupostos físicos e técnicos, e sim realizada como uma
celebração da vida e do agradecimento pela existência. Dimensões estas que
incluiriam em si seja a própria morte, como a banalidade, a feiura, o sofrimento
e a alegria. Em sua concepção criativa, mais do que aspirar por um ideal
estético, o dançarino teria como objetivo o desnudamento de sua alma, a
revelação das contradições fundamentais de sua existência humana.
O Butō de Kazuo Ōno pressupõe assim a presença total do dançarino
na exploração dos níveis mais profundos da verdade presente em seu corpo,
entendido enquanto um espaço monístico de intersecção entre as suas zonas
interna e externa. A dança, sob esta perspectiva, apresentar-se-ia como a
exploração do ato de “ser” no cosmo, na qual o si pode assumir-se como
recipiente das forças universais. Deste modo, a práxis de Ōno acaba
convocando a presença de um corpo demasiadamente humano, uma vez que
admite a integridade de sua natureza, seja na sua beleza como na crueldade de
sua decomposição.
A sua dança tem, portanto, como princípio poético – e como objetivo
estético – a revelação da “forma da alma”, a qual reflete abstratamente, por sua
vez, a forma do cosmo ao qual é essencialmente conectada. Assim sendo, na
filosofia de Ōno, o dançarino deve aprender a separar “ele mesmo” de sua
identidade física e social, a partir do abandono da superfície de sua vida
cotidiana para se imergir profundamente nos movimentos de sua alma. Como
vida e arte são indissociáveis em sua concepção, em termos técnicos e poéticos,
Ōno acredita que a dança deva começar exatamente dos gestos cotidianos, os
quais serviriam como porta de acesso a uma realidade mais profunda. Uma
gestualidade cotidiana, contudo, também entendida dentro de um espectro
ampliado, que acolhe igualmente a vida pré-natal: as infinitas potencialidades
cinéticas e sensoriais experimentadas pelo ser humano ao interno do útero
materno.
Desta forma, remetendo-se a inspirações e estímulos técnicos que
podem transcender a experiência física individual de seu aluno, Kazuo Ōno
começa a introduzi-lo na complexidade de seus princípios filosóficos, uma vez
que possibilita o seu acesso a dimensões que extrapolam a esfera humana da
existência. Em um nível sutil, convoca uma memória construída pelo corpo
durante o período anterior ao surgimento do ego e do self, compartilhada quase
de forma molecular com a matéria que o acomuna com o resto do universo.
Este processo de escavação das verdades do corpo, proposto pelo Butō de
Kazuo Ōno, reflete a emergência de uma substância primordial e o despertar de
139
uma dimensão espiritual em sua composição técnica e poética, a partir da
aceitação do peso e da confusão de sua própria carne.
Para Kazuo, portanto, começar a dançar é um processo que requer ao
menos cinco anos, período durante o qual procura ensinar seus alunos a
analisarem e organizarem as suas relações com seus próprios gestos, enquanto
um modo de aprofundar a consciência de suas vidas, tendo o corpo como um
dos dilemas centrais. O desvelamento das feridas escondidas na crueza da carne
permitiria, nesse processo, o contato com dores e prazeres construídos pela
história até então impossíveis de serem expressos por palavras, deixando assim
aberto um reino de poesia acessível somente à expressividade do próprio corpo.
O acesso a estas cicatrizes da vida inscritas nos próprios corpos, como também
nos dos outros, é o que permitiria a aproximação de um maior entendimento
sobre as contradições da natureza, bem como de uma maior consciência sobre
o próprio cotidiano, temas estes essencialmente presentes nas propostas de
trabalho de Kazuo Ōno.
Ōno procura estabelecer os limites em relação aos outros seres através
do movimento, mas é a partir da gestualidade cotidiana que constrói realmente
a sua relação com os mesmos. Tanto em sua técnica como em sua poética, parte
sempre das coisas mais ínfimas para depois relacioná-las com as mais diferentes
experiências do universo, materializando assim o encontro entre o micro e o
macrocosmo: matéria essencial de sua dança. Utilizando gestos simples e
humanos, intimamente conectados com os movimentos de sua alma, consegue
despertar sentimentos intensos e subterrâneos naqueles que o veem dançar.
Deste modo, Kazuo Ōno consegue dividir e multiplicar os corpos: o seu, de
seus alunos e do público que os vê, uma vez que são forçados a se
confrontarem com suas próprias divisões.
Em seu treinamento, propõe um processo de investigação e
improvisação com características oníricas, fazendo com que o movimento não
se baseie nos limites das possibilidades físicas, e sim que parta de dimensões
inconscientes ou irracionais110. Encoraja em seus alunos a perda de suas

110 “Aí, este ‘eu não consigo entender!’ é um ponto de partida tão bom como outro
qualquer. Não permita que a falta de compreensão detenha você; não tem a menor
importância se você não consegue entender o que você está fazendo. Como estaríamos
enganados pensando que nós podemos explicar tudo racionalmente. Se há alguma
coisa, não é esta verdadeira razão que dançamos – porque há muitas coisas que não
entendemos. Está tudo bem; a única coisa realmente importante é que você tente
sinceramente desabafar as suas preocupações "(Ohno e Ohno, 2004, p. 202).
140
identidades pessoais para tornar possível a busca por identidades novas e
polimorfas, não necessariamente humanas, em um processo contínuo de
superação de limites em direção ao ainda desconhecido. Ressalta assim a
importância da expansão da consciência física para além dos limites da
sensibilidade humana, desenvolvendo-a em resposta aos estímulos recebidos do
ambiente. Neste sentido, é possível identificar a tendência na assimilação de
outras formas de vida – e as suas possibilidades de relação com estas – como
um elemento fundamental de sua dança.
Como exemplo de seus procedimentos técnicos, Ōno estimula o
estudo das respostas dadas pelos insetos aos estímulos recebidos de seus
respectivos ambientes. Ressalta, porém, a importância da concentração sobre o
processo de aquisição do senso tátil destes insetos antes mesmo de sua
movimentação propriamente dita, pois acredita que entender a vida de um
inseto possa oferecer ao dançarino uma outra perspectiva de como o ser
humano poderia, também ele, responder aos seus estímulos sensoriais.
Contudo, é importante destacar que este seu processo de dissolução e
investigação identitária não possui necessariamente um acento somente sobre a
forma e a percepção física dos diferentes tipos de existências, mas também convoca
a alma destas diversas possibilidades de vida.
Kazuo Ōno, assumindo que todas as coisas e “seres criados por Deus”
vivem dentro do corpo (Ohno e Ohno, 2004, p. 227), acredita que para trazer
realmente a dança para a vida seja necessário transformar-se em um espírito, em
algo ainda sem forma que convoque em algum modo a qualidade da matéria na
qual o dançarino objetiva transmutar-se. Nas suas palavras: “Existe a verdade
mesmo em uma pedra. E até mesmo a pedra sabe disto. Não pense em ser uma
pedra, apenas encontre a pedra dentro de você” (Ōno, in Fraleigh e Nakamura,
2006, p. 116).
Procurando compartilhar esta sua particular concepção de corpo na
qual acolhia a possibilidade de dissolução e posterior reconfiguração
infinitesimal da qualidade e das formas da matéria, Kazuo construiu uma
espécie de metodologia de desequilíbrio e desconstrução dos automatismos
corporais. Julgava, portanto, de fundamental importância alcançar o ponto
interno de crise, no qual o “muco”, preso ao interno do dançarino, pudesse
forçar a si mesmo para fora de seu sistema habitual, para dissolver as formas
que refletem uma identidade pessoal e transmutá-las em categorias extra-
humanas (Ohno e Ohno, 2004, p. 236).
Esta sua ampla concepção de corpo abriga também, em níveis quase
metafísicos, seja a memória de todas as suas vidas passadas, como também uma
141
espécie de “memória-potência” de suas possíveis vidas futuras, as quais se
oferecem concomitantemente como base fundamental para a sua dança111. Uma
dança que, por sua vez, coloca em ato um entendimento do corpo que possui
uma materialidade imbricada quase fisiologicamente com suas dimensões sutis e
abstratas, tanto em um nível identitário-cultural como em uma dimensão
energético-cósmica. Deste modo, transcende os limites de uma individualidade
física ao admitir a copresença de uma coletividade invisível na constituição de
sua expressividade. Para Kazuo Ōno, portanto, a dança adquire densidade e
qualidade somente quando permite que os “fantasmas do universo” emerjam
das profundezas da consciência para se expressarem (Ohno e Ohno, 2004, p.
291).
Esta sua concepção transcendental da dança também deixa
transparecer a sua crença fiel no poder da vida, no potencial do amor e da
generosidade, bem como na força do próprio universo. Ōno, humildemente,
sempre ressaltou a sua condição de receptáculo e mediador de processos muito
mais amplos do que a sua consciência individual, colocando-se como “um
simples servo” que transfere estímulos para os outros (in Fraleigh e Nakamura,
2006, p. 29), sendo assim, na verdade, “forçado a dançar” por forças superiores
(in Salerno, 1998, p. 48). Este plano superior que alimenta e gera a sua dança, é
descrito por ele como uma outra dimensão com diferentes qualidades de tempo
e de espaço, na qual habitam os seus fantasmas: os verdadeiros responsáveis
por sua força criativa e imaginação. Assim sendo, as matrizes que compõem as
suas danças – e, portanto, o universo exploratório no qual acredita que deva
imergir um dançarino – correspondem não a uma capacidade racional
individual, e sim a um espaço-tempo amplo, composto por existências coletivas
e multidimensionais.
Neste sentido, imaginar e elaborar a realidade transforma-se muito
menos em uma tarefa conceitual e individual, do que em um projeto coletivo
conduzido “pela benevolência dos mortos”, uma vez que esta é vista como a
“verdadeira imaginação” e não aquela construída como o “fruto de uma
reflexão forçada” (D’Orazi, 2001, p. 155). Sua concepção de dança é, portanto,
essencialmente anti-egoica, uma vez que se desenvolve a partir de um encontro

111 “Seu corpo hospeda tanto suas vidas passadas como futuras. Esta não é apenas
algum tipo de imagem abstrata que eu tenho em mente, mas muito mais uma descrição
realista de sua postura. Isso é o que a postura de um dançarino fisicamente nos
transmite: a coexistência entre o passado e o futuro. Talvez isso seja aquilo para o qual
você está rogando” (Ohno e Ohno, 2004, p. 240).
142
com a humanidade e com a vida, ainda que dentro da plena consciência de que
ambas descansam sobre a morte.
A morte representaria assim um fundamental elemento da poética de
Kazuo Ōno, seja enquanto uma matriz criativa – como fonte inesgotável e
coletiva de imaginação – seja como um princípio técnico-metodológico de
referência. A remoção gradual das energias expressivas, e a consequente
transmutação do dançarino em um “corpo morto”, apresenta-se como uma das
principais técnicas de construção do corpo cênico colocadas em ato por Ōno.
Com este método busca um modo eficaz de fragmentar os automatismos da
movimentação corporal de seus alunos, bem como de suas concepções de
mundo. O “corpo morto” apareceria assim como um espaço potencial dentro
ao qual o dançarino pode colocar uma emoção que, em um certo sentido,
poderá expressar a si mesma. A presença da morte na obra de Kazuo Ōno não
se limita, portanto, apenas ao seu entendimento enquanto uma condição
biológica, mas acolhe também o seu significado enquanto um possível estado
de consciência do ser humano.
Ōno sustenta que para construir este “corpo morto”, o dançarino deve
buscar sua ausência – e não sua força – de vontade, esvaziando a sua mente
juntamente com seu corpo, escutando e dando espaço a todo o universo, ao
invés de sua vontade pessoal (Borelli, in BT 79-80, 2006, p. 269). Esta
concepção encontra reverberação também em costumes culturais que
transcendem as próprias artes performativas, como, por exemplo, quando os
japoneses utilizam a expressão “viver a própria vida como já morto” para
simbolizar o modo de viver a própria vida “sobre o plano do conhecimento ou
da sabedoria” (Benedict, 1991, p. 274). E foi justamente sobre esta possibilidade
paradoxal de incorporar à vida algo já morto, que Ōno baseou o seu princípio
técnico e criativo.
Removendo as energias expressivas de um ego individual que deseja
impor-se, é possível deixar espaço para que comecem a emergir os diferentes
estratos de verdade do corpo, ou seja, as diferentes camadas de memória
inscritas nas profundezas do organismo, dando assim oportunidade ao
desvelamento de suas experiências encarnadas e das cicatrizes de sua percepção.
O corpo, neste sentido, é concebido como um fragmento da memória do
universo, acumulada durante milhões de anos. O ato de dançar seria, portanto,
a celebração intensa deste corpo que endossa a história do universo,

143
apresentando-se como a sua camada mais superficial: a dimensão mais avançada
do acúmulo de experiências e conhecimentos de tudo o que já existiu112.
Para Centonze (2003-2004, p. 31), a “técnica” de Kazuo Ōno
confrontar-se-ia com a memória do esqueleto – com a continuidade e a
descontinuidade dos ossos sendo deslizados pelo espaço em modo sutil ou
abrupto –, na qual seria possível distorcer a imagem estável do corpo. Contudo,
este corpo carnal que se move seria também penetrado por uma espécie de
código genético da humanidade, compartilhando assim sua memória, suas
conquistas e sofrimentos. Em suas lições, Kazuo Ōno sempre ressaltou esta
sobreposição “fisiológica” entre a subjetividade e a universalidade do corpo
humano que dança, isto é, a inseparabilidade destas múltiplas dimensões que
configuram o nikutai: a instância primeira que diferencia os seres humanos entre
si, ao mesmo tempo em que se oferece como anel de conexão destes com a
natureza.
Entretanto, o próprio conceito de “técnica” quando utilizado ao
interno do projeto artístico de Kazuo Ōno, recusa a sua limitação enquanto um
suposto conjunto de regras fixas e exteriores, pois se apresenta em sua prática
como um processo de pesquisa livre da e pela dança. Um processo investigativo
do gesto que pressupõe uma relativa “liberdade expressiva”, a qual surge
somente quando embebida por determinadas valências políticas, uma vez que
se insere ao interno de um projeto mais amplo de dissolução do individualismo.
Neste sentido, o “dançar livremente” proposto por Ōno em suas aulas, indica
prioritariamente o abandono da noção habitual do ego.
Assim sendo, a “liberdade” do dançarino – em um entendimento
também compartilhado com outras práticas orientais – não representaria
necessariamente a liberdade de um desejo pessoal, mas nasceria da
desconstrução dos limites deste próprio desejo. Ser realmente “livre”, na
proposta de Ōno, significaria, sobretudo, liberar-se eticamente do pensamento e
do desejo individual, permitindo assim que a “alma sopre a vida dentro da
carne” e corresponda ao princípio, sutil e coletivo, que dá origem à sua
concepção de expressividade.

112 “Eu sou, você é, todos nós somos, nada mais que a próxima camada sobre todas
aquelas coisas que já aconteceram em uma cadeia interminável de eventos. Visto dessa
perspectiva, a nossa força imaginativa é constantemente consolidada pela acumulação
gradual de conhecimento que herdamos” (Ohno e Ohno, 2004, p. 219).

144
O processo metodológico de investigação corporal proposto por ele
começaria assim pelo desvelamento do self e pela sua posterior possibilidade de
desconstrução. Para tanto, Kazuo Ōno utiliza frequentemente imagens e figuras
de linguagem ilógicas ou nonsense113 como instrumentos de libertação dos
ditames da mente racional. Para ele, portanto, os movimentos do corpo não
devem provir de uma fonte racionalizadora individual, e sim serem indicados,
em uma leve antecedência, pelos movimentos da alma, isto é, pelas dimensões
sutis que conectam organicamente o ser humano com o cosmo e com todos os
outros seres.
Neste modo, a única forma para se ultrapassar as limitações impostas
pelo organismo individual e pelo ego, seria justamente buscar um tipo de dança
em que não sejam pressupostos movimentos precisos e sequências pré-
determinadas. Um tipo de dança que não se apresente necessariamente como
uma linguagem, e sim como a radiação da expressão da coletividade que
sustenta silenciosamente nossa existência. Para Kazuo, o tamashii (espírito, alma,
fantasma) precede e guia o nikutai (corpo de carne), determinando a densidade
e a qualidade de sua movimentação, em um processo simbolizado
numericamente pela relação 10 x 7:

“Suponham que estamos dando dez pontos para a


alma, o espírito que vive no mais profundo do coração,
então o corpo receberia sete. A alma é a força motriz; ela
conduz o caminho. Eu continuo insistindo na importância
de suas influências sobre o outro. Se a alma conduz, o
corpo seguirá. Então, vamos dar dez pontos para a alma, e
sete pontos para o corpo. Tome um cuidado meticuloso em
tudo o que você faz. Seus movimentos devem ser sempre
imbuídos de uma presença espiritual” (Ohno e Ohno, 2004,
p. 202).

113 “Nonsensical: Ohno utiliza frequentemente o termo detarame quando pede aos
participantes para se liberarem do controle racional. Literalmente, significa nonsense, ou
uma ação irresponsável. Às vezes, carrega uma conotação pejorativa de lixo ou
rabiscos” (Ohno e Ohno, 2004, p. 303).
145
Todavia, esta relação numérica entre corpo e alma proposta por
Ōno114, mesmo que pareça pressupor uma separação hierárquica entre estas
dimensões, deve ser entendida em modo estritamente ilustrativo, buscando
apenas desconstruir o histórico acento que recai sobre o virtuosismo corporal
no âmbito das artes performativas. Objetiva assim, ao mesmo tempo, deslocá-lo
para uma real importância do sentimento e da expressividade enquanto forças
motrizes do gesto. Corpo e alma são, na concretude de seu projeto filosófico-
artístico, duas dimensões inseparáveis. E é justamente esta indissociabilidade
que se oferece como base para sua arte.

114 Na realidade, esta mesma proporção já é indicada por Zeami (1363-1445) no seu
Tratado sobre o Teatro Nō, oferecendo-se assim como um potencial elemento constitutivo
de muitas manifestações artísticas nipônicas: “Façam mover a mente por dez décimos,
façam mover o corpo por sete décimos” (Zeami, 1987, p. 156).
146
147
148
149
4.1) CORPOREIDADE CRÍTICA

“A sensibilidade superlativa de Hijikata desenvolveu a


individualidade de cada dançarino e, através de suas
performances de dança, revelou a existência, ou seja, o
verdadeiro estado do corpo, que reside na dança. Desse
modo, a dança foi transformada e aprofundada até
chegar ao nível de uma filosofia pessoal de vida ou
de uma epistemologia” (Gōda in Klein, 1988, p. 79).

“Desafiar o próprio corpo, e desafiar com/através do


corpo significa que dúvida e desequilíbrio são impulsos
motivadores para o movimento; eles direcionam o
performer em direção a um corpo crítico, um
corpo que fica em pé sobre o seu limite”
(Centonze, 2003/2004, p. 30).

O impacto que a dança e o pensamento de Tatsumi Hijikata provocou


no universo corêutico japonês deixou profundas cicatrizes em seu
desenvolvimento futuro. Muito além da excelência de seu estilo ou de sua
gestualidade, Hijikata jogou na face de toda uma geração a experiência do
abismo da existência, das contradições e da escuridão que atravessavam seu
corpo, fundando assim as bases de uma nova teoria do corpo, capaz de contaminar
em modo significativo diferentes âmbitos da prática artística japonesa. Muito
mais do que a codificação de uma série de técnicas do movimento, ele acabou
concebendo um momento de insurreição ao interno das estruturas de poder da
sociedade de seu tempo.
Esta nova epistemologia colocada em ato pela sua dança, a qual se
refere Gōda, constrói-se a partir de uma coerência orgânica entre seu percurso
criativo e uma particular concepção de corpo, uma vez que nasce embebida por
uma atmosfera de contestação e subversão político-cultural. Esta nova práxis do
corpo desenvolvida por Hijikata tornou visível alguns mecanismos sutis de
resistência física e simbólica que até então habitavam a intimidade de seu corpo,
imerso em um constante processo de busca pela sobrevivência às margens de
uma sociedade destruída e violentada pelas novas imposições culturais do
Ocidente.

150
A morte, o erotismo e a marginalidade social experienciada
cotidianamente, seja em sua vida real como em seu imaginário – povoado pela
“maldita” literatura francesa –, o ajudaram em algum modo a reelaborar suas
concepções de arte e de corpo, em meio ao turbulento contexto de revoltas
políticas e artísticas de um Japão pós-guerra. Assim sendo, a arte performativa
passou apresentar-se para ele não mais como uma fábrica de sonhos e sim
como possibilidade concreta de intervenção cultural, ao mesmo tempo em que
seu entendimento de corpo passou a admitir o peso, os desejos e a decadência
de sua carne enquanto matrizes de sua própria existência.
Muito além da messa in scena de polêmicos espetáculos, Hijikata
estruturou toda uma singular metodologia de trabalho para a construção da
presença cênica que revela, em cada ato, profundos sinais de pertencimento a
um desejo mais amplo de subversão. Uma metodologia que se posicionou
claramente, também em um plano ideológico, através de suas denúncias e de
seus anúncios. Um percurso de subversão física e cultural do corpo que teve
como ponto de partida a renúncia a uma precisa concepção de corpo e de
sociedade, bem como um nítido esforço em direção a um determinado
horizonte ideológico. Mesmo que a “heterogeneidade”115 de seus ideais não
permita que Hijikata seja rotulado e limitado ao interno de um movimento
organizado política ou socialmente, uma análise cuidadosa da complexidade de
sua obra e de seus pensamentos nos autoriza ao menos a identificar com
relativa precisão os horizontes em direção aos quais desejava caminhar.
Em To prison (1961, in TDR, 2000, p. 44/5), denuncia – e anuncia –
claramente os ideais contra os quais se posicionava, bem como a quais
princípios ideológicos corresponderiam seus esforços enquanto artista. A sua
afinidade com a criminalidade e a evocação da dança enquanto uma forma de
“uso despropositado do corpo”, ou como “instrumento de prazer”, ressalta
nitidamente a sua oposição ativa contra a “moralidade civilizada” e a “alienação
do trabalho”, edificadas por uma “sociedade orientada à produtividade” em
modo coerente com o “sistema econômico capitalista e suas instituições
políticas”.

115“Recentemente, é possível distinguir entre os combatentes e os que buscam prazer


na vida. De um lado, aqueles que lançam bombas, e, de outro lado, aqueles que são
completamente indiferentes. Superficialmente, eles parecem estar em extremos, mas
eles compartilham uma coisa em comum: sua homogeneidade. Eles estão enganados ao
pensar que arremessando bombas ou se afastando tornam-se diametralmente opostos.
Deve-se fazer as duas coisas!” (Hijikata in Viala e Masson-Sekine, 1988, p. 186-187).
151
Os métodos de treinamento cênico propostos por Hijikata
procuravam, portanto, materializar um potente projeto estético-artístico, ao
mesmo tempo em que revelavam um consistente posicionamento político e
ideológico em suas raízes. Neste sentido, consciente do princípio dialético que
compõem a relação entre corpo e mundo, indivíduo e sociedade, sujeito e
cultura, bem como da prevalência do poder exercido pelos valores
socioculturais na configuração de cada uma das fibras de seu corpo, Hijikata
procurou estruturar as bases subversivas de suas ações político-artísticas. Para
tanto, colocou em ação um processo de subversão deste shintai (“corpo
cultural”) através de uma exploração profunda das diferentes qualidades da
matéria que configuram o nikutai (“corpo de carne”), a materialidade crua do
organismo humano.
Influenciado pelas experiências de vida que compuseram suas matrizes
poéticas, desenvolveu procedimentos técnicos objetivando a degradação do ser
humano através de mecanismos de dissolução daquelas estruturas de sua
identidade social que refletiriam – e reforçariam – os valores da sociedade aos
quais Hijikata se contrapunha. Assim sendo, estimulava a vacilação identitária
de seus discípulos valendo-se principalmente de tudo aquilo que era
considerado negativo pelas regras sociais, tais como erotismo, violência e
criminalidade. Instaurava um processo de investigação de identidades
polimórficas, no qual os indivíduos envolvidos buscavam esvaziar-se de seus
automatismos cotidianos e, a partir de um novo ponto, podiam reconstruir-se
através de contínuas metamorfoses. Para Hijikata, esta transmutação da
qualidade da matéria do “corpo de carne” tinha como estímulo desengatilhador
tanto modelos naturais – pedras, galhos, folhas etc. – como elementos abstratos
e/ou cotidianos – sentimentos, odores, tintas, objetos, texturas, pinturas, dentre
outros.
A variedade de procedimentos com os quais procurou desconstruir o
self físico de seus dançarinos revelou alguns de seus mecanismos de subversão
física e cultural. A gestualidade por eles alcançada, buscando dissolver a
dimensão social de seus corpos, colocava também em tensão os modelos que os
padronizavam moral e funcionalmente ao interno da sociedade. O gesto podia
assim adquirir, além de uma profunda organicidade, uma relativa valência
política, uma vez que se mostrava destituído de uma coordenação racional116 –

116 “Pernas retas são geradas por um mundo dominado pela razão. Pernas arqueadas
nascem de um mundo que não pode ser expresso em palavras” (Hijikata, in Viala e
Masson-Sekine, 1988, p. 189).
152
criticada enquanto matriz simbólica da organização moral e cultural de uma
sociedade conservadora – ao ser pressionado pelas dimensões instintivas do
nikutai. Desta forma, Hijikata elaborou a sua particular práxis artística,
materializando em cena e em seus treinamentos uma epistemologia do corpo
que buscava despir o gesto de sua racionalidade funcional e, deste modo, tentar
desconstruir a concepção de indivíduo normatizado pelos ditames de uma
moralidade civilizada.
Quando sobrepomos também, a esta subversiva práxis do corpo, a
metodologia de trabalho – bem como a filosofia e a poética que a embasam –
proposta pelo mestre Kazuo Ōno, reconhecido historicamente como
cofundador da dança Butō, passa então a ser possível delinear em grandes
linhas os fundamentos do butōtai, ou do “corpo butō”. Em outras palavras,
quando analisamos, em uma chave relacional, os princípios metodológicos,
filosóficos e poéticos que compõem a obra de cada um destes artistas torna-se
possível identificar uma série de elementos que se interseccionam,
potencializando-se reciprocamente. As similaridades e diferenças que
constituem cada um dos percursos artísticos possibilitam o esboço dos limites
que circunscrevem uma espécie de “anatomia” global do corpo cênico presente
nas origens da dança Butō.
Neste sentido, sobrepondo a obra de Kazuo Ōno aos fundamentos
subversivos postos pelo Ankoku Butō de Tatsumi Hijikata, seria possível
observar suas relações de complementariedade e, ao mesmo tempo, de
diferenciação. Neste encontro, portanto, se materializariam os confins mais
precisos do corpo cênico que protagonizou o projeto político-artístico
colocado em cena pelos dois principais fundadores do Butō. Um corpo cênico
plural que – justamente pelas dimensões políticas e indóceis que lhe são
características – se apresenta como principal elemento de legitimação da
singularidade e da especificidade da dança Butō no campo das Artes Cênicas.
Devido também às influências recíprocas exercidas em suas obras, bem
como ao longo período de colaboração artística entre ambos os artistas, é
possível verificar uma grande similaridade epistemológica nos fundamentos de
suas práxis, mesmo que suas poéticas e seus princípios filosóficos tenham raízes
muito distintas, como já visto anteriormente. Muito além das diferenças no
plano estético de seus espetáculos, bem como no plano filosófico-metodológico
de suas propostas de formação artística, é possível identificar alguns elementos
que acomunam ambos os projetos, caracterizando-os como margens limítrofes
dentro às quais se moveria o fenômeno chamado Butō. Apesar de nitidamente
diversos, os “butōs” de Kazuo Ōno e Tatsumi Hijikata compartilham alguns
153
núcleos essenciais que poderiam servir como uma espécie de coluna vertebral
das origens da dança Butō. Muito mais do que um estilo preciso e codificado, a
dança Butō se apresentaria, nas obras de seus fundadores, como um
comportamento, uma postura diante do mundo, ou mesmo uma qualidade da
existência117.
Compartilhando a mesma atmosfera de contestação política, social e
artística dos anos 50 e 60, tanto Ōno como Hijikata estabeleceram ricos
diálogos entre si e com o fermento cultural característico daquela época,
contaminando reciprocamente as suas poéticas. Contudo, as suas experiências
pessoais de vida acabaram ajudando a construir caminhos muito distintos na
configuração de suas práticas artísticas. Por isso, quando observados em suas
profundidades, alguns conceitos ou princípios técnicos aparentemente
equivalentes podem apresentar uma significativa distinção semântica118.
Ainda assim, mesmo com essas inúmeras variações práticas e
conceituais, existe um consistente corpus poético, político e metodológico
entorno ao qual os fundadores da dança Butō desenvolveram as suas práticas.
Em outras palavras, seria possível afirmar que a dança Butō estrutura-se
principalmente a partir de uma matriz subversiva, isto é, de mecanismos de
contestação cultural, política e artística, a qual se materializou em precisos –
mas distintos – métodos de construção cênica.
A dissolução do individualismo figuraria como um dos princípios
fundamentais que acomunam os percursos de ambos os seus fundadores e, por
isso, legitima-se como um de seus atributos definidores. O tensionamento de
uma precisa concepção de indivíduo se apresentaria, portanto, inicialmente

117 “Afinal, desde os tempos antigos cerimônias solenes têm corrido bem somente
com a ajuda da dança. Pinturas, também, são criadas por seres humanos e revelam uma
fundamental 'qualidade butō' [butō-sei]. De fato, isto pode ser visto por qualquer um.
Mas as pessoas se prendem aos seus próprios pequenos mundos, seus gêneros
particulares e perdem isto de vista. Muitas pessoas agora estão exigindo o fim de
gêneros, mas se eles apenas aplicassem a ideia de 'qualidade butō' para tudo, o problema
estaria totalmente resolvido” (Hijikata, Plucking off the darkness of the flesh, 1968, in TDR,
2000, p. 49).
118 Por exemplo, o conceito de morte ou cadáver é presumivelmente distinto para alguém
que experienciou uma guerra em primeira pessoa, como no caso de Kazuo Ōno; ao
mesmo tempo em que a experiência do erotismo, convocada por Hijikata – fruto de seu
cotidiano entre prostitutas e ladrões em uma marginalidade urbana, bem como de sua
admiração pela literatura maldita francesa –, é significativamente diversa da dimensão
erótica identificada por Ōno na original conexão com a imagem materna.
154
como uma matriz filosófica – enquanto contestação cultural do individualismo
como unidade referencial de um determinado sistema sócio-político-econômico
– para então desdobrar-se em uma matriz técnico-metodológica, na qual a
desconstrução do self físico e simbólico passaria a ser também um dos
principais recursos no processo de criação e de preparação cênica.
Todavia, mesmo compartilhando deste princípio comum, isto é, da
necessidade da desconstrução de uma individualidade alienada e a possibilidade
de uma maior comunhão com dimensões extra-humanas através da
materialidade que as acomuna, Ōno e Hijikata construíram abordagens
metodológicas muito distintas. Enquanto Hijikata buscava alcançar tal objetivo,
eliminando o self físico e fragmentando o corpo, através de uma degradação do
sujeito, Ōno propunha em seus treinamentos formas de anulamento da
individualidade através do amor e da gratidão, ressaltando a interdependência
dos reinos da existência.
Adotando tal perspectiva metodológica, Ōno deixa transparecer já no
princípio fundamental de sua dança, uma considerável influência de sua opção
religiosa, a qual atravessa, em modo difuso, toda a sua poética e também, em
um certo sentido, a sua técnica. Converter-se ao hibridizado cristianismo batista
japonês, já em uma idade relativamente avançada, fez com que Kazuo Ōno
assumisse uma cosmologia específica que acabou modificando a sua forma de
conceber alguns conceitos essenciais de sua poética, infiltrando-se
organicamente na metodologia de trabalho que desenvolveu posteriormente.
A convicção de sua crença em Deus contrastava fortemente com o
ceticismo e o ateísmo propagado por Hijikata, causando grandes debates entre
ambos, dos quais derivaram também outras significativas distinções conceituais
de suas práticas. A questão da improvisação, bem como a relação entre a forma
e o “espírito” na dança, delineia uma cisão basilar na obra de ambos os artistas.
Ōno considerava a dança como uma arte da improvisação, coerentemente com
a concepção de que a sua “forma” se concretizaria por si mesma, desde que
existisse um conteúdo espiritual que a convocasse.
Hijikata, por sua vez, possuía uma concepção mais metódica e precisa
da dança – muito devido às exigências de seu olhar de coreógrafo. Assim sendo,
refutava explicitamente a improvisação como procedimento técnico em cena,
mesmo que a assumisse como recurso, por vezes catártico, em seus processos
de construção cênica. Para ele, baseado em seu radical materialismo, a vida é
que perseguiria a “forma”, isto é, a precisão do gesto de um dançarino, uma vez

155
transmutado – quase em um nível quântico – em objeto, “convocaria” o seu
espírito119: a energia que animaria a sua expressividade passiva.
Por outro lado, a explícita matriz arquetípica feminina presente na obra
de Ōno, indicaria também uma significativa diferença em relação ao trabalho de
Hijikata, uma vez que este último utilizava o feminino, principalmente através
do travestimento e do erotismo, como instrumento técnico e poético na
indução da vacilação identitária. Ōno, ao invés, tinha a matriz feminina como
chave de leitura para inúmeras manifestações do universo, sintetizando-a na
figura emblemática da mãe. Até mesmo seus famosos travestimentos com
roupas femininas, possuíam para ele um significado muito mais cósmico do que
literal, pois seus longos vestidos corresponderiam também à sua concepção do
universo como um manto que deve ser vestido pela alma que dança.
Deste modo, a figura materna, pura energia feminina, representaria um
dos principais conceitos-potência na obra de Ōno, uma vez que sintetizava
muitas de suas matrizes poéticas. A mãe enquanto útero, enquanto superfície
nutritiva e regeneradora, que abrigaria não somente a dimensão criativa da vida
como também as próprias possibilidades cinéticas vividas pelos sujeitos em seu
período pré-natal. A mãe como conexão com a dimensão erótica da
humanidade, já presente em sua relação sexual com o pai. A mãe como síntese
da dimensão dialética entre vida e morte, já que enquanto caminha para o fim
de sua existência, gera uma nova vida dentro de si.
O butōtai construído por Kazuo Ōno possuiria, portanto, uma essencial
matriz feminina, a qual se encontraria potencializada pela inspiração de sua
específica religiosidade. Em seu entendimento, o corpo seria visto enquanto
lócus de conexão entre o micro e o macrocosmo, como espaço-tempo no qual
alma e universo se fagocitam reciprocamente para dar lugar ao que ele chama
de dança. Uma dança que se baseia em uma espécie de concepção pancinética
do universo e, por isso, faz com que ele se recuse a pensar o seu ensinamento
através da transmissão de técnicas codificadas, uma vez que o movimento é a
própria vida e mover-se significa busca-la.

119 É importante ressaltar novamente que o conceito de espírito para Hijikata possui
fortes distinções daquele indicado por Ōno, devido também à sua origem camponesa,
povoada por lendas e espíritos da natureza, e ao seu radical ateísmo que o afasta de
qualquer concepção dicotômica do indivíduo cindido em um corpo concreto e uma
alma etérea, tão presente e propagada pelo neoplatonismo de inúmeras correntes
religiosas modernas. Para Hijikata, “a existência da alma não é importante. A sua dança
é materialismo” (Sakurai in BT, 79-80, 2006, p. 208).
156
No treinamento que propõe, ao invés de oferecer um modelo gestual a
ser reproduzido por seus alunos, Ōno parte da dissolução dos automatismos
corporais e das ações cotidianas para aprofundar a exploração das infinitas
possibilidades cinéticas inerentes ao fenômeno vital. Neste sentido, o gesto e a
expressividade que afloram desta investigação se apresentariam não como
resultado dos desejos de uma racionalidade individual, mas como uma espécie
de secreção resultante da fricção entre a alma e o universo. A dança se apresenta
assim não mais como linguagem, mas como a radiação de sua expressão (Ohno
e Ohno, 2004, p. 285).
Segundo Ōno, para revelar a forma de sua alma o dançarino deve
aprender a separar ele mesmo de sua identidade física e social. Para tanto,
incentivava a dissolução de suas identidades através do acesso a níveis
profundos de verdade do corpo, nos quais seria então possível a tomada de
consciência sobre o co-pertencimento, em níveis sutis, da própria materialidade
do ser humano com outros seres e existências. Esta assimilação de outras
formas de vida como elementos constituintes da própria corporeidade,
potencializava o entendimento proposto por Ōno, no qual o corpo figuraria
como instância fluida onde se encontra inscrita a memória do universo. O
corpo como espaço-tempo dinâmico que, em sua cosmologia hibridizada,
abrigaria igualmente a memória tanto de suas vidas passadas como a
potencialidade de suas vidas futuras. Um corpo que, diante da radicalidade de
sua matéria, assumiria o peso do tempo e a sua consequente caducidade,
admitindo os diferentes matizes da existência humana, em sua banalidade e
imperfeição, bem como o sofrimento e a alegria da vida.
A importância da expansão da consciência física para além da sensibilidade
humana, mesmo que trabalhada através de diferentes metodologias, encontra-se
igualmente na obra de Tatsumi Hijikata, configurando-se, portanto, como um
outro elemento comum ao butōtai de ambos os artistas. Esta sensibilidade
expandida, responsável pela assimilação de outras formas de vida na
constituição da corporeidade, potencializaria o desenvolvimento de uma
consciência também ampliada que, ao invés de aumentar a capacidade de ação
do dançarino, aumentaria a compreensão de seus próprios limites. Neste
sentido, o conhecimento das possibilidades e dos limites de seu corpo seria um
dos mecanismos indispensáveis ao dançarino para o processo de construção
cênica, enquanto que o domínio técnico de um gesto codificado, em si mesmo,
poderia apresentar-se mais como um obstáculo do que como um valor.
A concepção do corpo como memória do universo inscreve-se também na
intersecção geradora do butōtai, uma vez que vem proposta já nas bases do
157
Ankoku Butō de Hijikata. Contudo, em seu projeto artístico, o corpo enquanto
um reservatório da memória apresenta alguns matizes mais explícitos ao
ressaltar, além de sua dimensão universal, também seus níveis pessoal e coletivo.
No butō de Kazuo Ōno o corpo vem entendido como inteireza, como uma
espécie de individualização dos movimentos complexos que constituem o
cosmo, fazendo com que uma possível estratificação da memória seja mais
inconsistente, ou difusa, do que na obra de Hijikata.
No processo de investigação arqueológica do corpo, colocado em cena
pela práxis artística de Tatsumi Hijikata, se instaura o fenômeno de reificação
dos múltiplos níveis da memória inscritos na materialidade do corpo. Esta
objetificação das memórias pessoais, coletivas e universais, tem como intuito
modificar as qualidades da matéria que compõe o “corpo de carne”, tornando-
as visíveis também em um plano físico. Neste sentido, o próprio corpo é
reconstruído enquanto um objeto, uma vez que sua carne, ao despir-se das
configurações cotidianas propostas por seu shintai, pode assumir outras
qualidades físicas e cinéticas provindas de diferentes objetos ou seres nos quais
se transmuta. Este processo desvela ao dançarino o seu naru shintai, ou seja, o
shintai em devir, no qual se sente desafiado em descobrir o verdadeiro estado de
ser do objeto. Esta compaixão quase ontológica com o objeto, isto é, este
radical compartilhamento dos pesos inerentes ao seu estado de ser, desdobra
diante do dançarino os seus kanōtai: seus “corpos possíveis” (Centonze, 2001, p.
156), ou seus “corpos em potência”. Essas diferentes condições e modos de ser
de seu shintai circunscrevem as potencialidades que o corpo tem de produzir
uma infinita gama cinética, bem como as diversas qualidades de sua presença.
Com princípios muito similares e métodos distintos, Ōno também ativa
a reificação da memória através, porém, de uma espécie de “lastro” cósmico,
isto é, de uma concepção de memória que tem a dimensão do cosmo como
unidade referencial, da qual dependem e se desdobram os outros níveis, mas
sempre tendo a carne como palco de suas objetificações. A memória uma vez
reificada, revelando o shintai em devir ao dançarino, torna também possível a
tomada de consciência da dimensão objetiva de seu próprio nikutai: o peso e a
materialidade de sua carne. A técnica do “corpo morto” trabalhada tanto por
Hijikata como por Ōno, corresponderia assim a uma possibilidade
metodológica para se alcançar tal nível de consciência.
A remoção gradual das energias expressivas, até seu zeramento,
proporcionado pela técnica do “corpo morto”, transforma assim o corpo em
uma substância latente na qual é possível colocar uma expressão ou sentimento
que passa a expressar a si mesmo, ocupando o espaço deixado pela dissolução
158
da racionalidade individual e desejosa do dançarino, ocorrida precedentemente.
Tal técnica se baseia na desconstrução dos gestos cotidianos, gerando uma
fragmentação dos automatismos corporais seja em sua movimentação como em
suas concepções. Este corpo (an)atomicamente (Centonze, 2003/2004, p. 22)
destituído dos imperativos de seu shintai pode oferecer-se como recipiente para
abrigar a consciência de um novo estado de ser, de uma nova existência
assumida por uma sensibilidade mais ampliada. O zeramento do corpo, bem
como a assunção consciente do status de devir de seus kanōtai, torna assim
possível a sua reconstrução através de processos metamórficos que incorporam
as qualidades da matéria das diferentes existências.
Em outras palavras, a dissolução do individualismo inerente aos
paradigmas que configuram o shintai do dançarino – através da técnica do
“corpo morto” e do processo de reificação dos níveis de memória que neles se
inscrevem – evidencia a latência e a potência da transmutabilidade da matéria e,
com isso, a possibilidade concreta de processos metamórficos que alterariam a
qualidade de sua presença. Neste contexto, a dissolução de uma individualidade
alienada através da assunção de outras formas de existência na constituição da
corporeidade, bem como a exigência da construção de uma sensibilidade e de
uma consciência intersubjetivas, que potencializem o protagonismo técnico e
poético dos “corpos possíveis” – presentes nos procedimentos metamórficos
que sustentam os mecanismos de construção cênica da dança Butō – são
somente alguns exemplos que possibilitam a assunção do butōtai como matriz
de uma concepção crítica do corpo.
Quando a estes princípios técnicos e filosóficos somam-se as
dimensões históricas e sociológicas que tornaram possível o surgimento da
dança Butō, começa a delinear-se a possibilidade de interpretá-la enquanto uma
“manifestação incorporada de resistência” (Scott, 2006, p. 23), uma vez que se
fundamenta em um criticismo corporal que se levanta contra inúmeras
modalidades de opressão e dominação cultural. Os procedimentos de
construção do butōtai – edificados sobre as intersecções e diferenças
metodológicas propostas por Tatsumi Hijikata e Kazuo Ōno – legitimam-se
enquanto práticas de instauração de políticas do corpo, as quais visam inscrever a
subversividade e a contestação na própria carne, buscando demolir os modelos
conservadores de organismo físico e social que a subjugam. Assim sendo,
enquanto uma forma de contestação encarnada na natureza básica e orgânica da
existência física, o butōtai pode servir como instância referencial de resistência
aos mecanismos de opressão cultural colocados em ação pelos paradigmas
ocidentais modernos, assumidos e vividos cotidianamente pelos sujeitos.
159
O nikutai, ou a investigação do corpo de carne, que sustenta o corpo
colocado em cena pela dança Butō, pode assim ser interpretado também em
uma chave política. A carne, refeita na radicalidade de sua matéria, encontra em
sua potência intersubjetiva a matéria-prima para o seu devir, bem como um
fundamento ético para sua dimensão política. O butōtai, enquanto lócus de
resistência e instauração de políticas do corpo, se oferece, portanto, como
possível instância de realização da shutaisei, isto é, de uma subjetividade porosa e
comprometida radicalmente com “ações políticas e com atitudes de
independência e autonomia em relação às forças potencialmente
condicionadoras da história e da estrutura social” (Koschmann in Klein, 1988,
p. 31).
Deste modo, esta espécie de política de resistência da carne instaurada
pelo butōtai pode sustentar uma interessante possibilidade de desconstrução da
hegemonia dos paradigmas de desafio e produtividade, tão cultivados pela
sociedade ocidental moderna e assumidos na experiência individual cotidiana.
O corpo “demasiadamente humano” proposto pela dança Butō oferece-se
assim como inspiração para a construção de suas antíteses, pois incorpora em
suas matrizes poéticas e em seus procedimentos técnicos, algumas das muitas
dimensões renegadas pela moralidade civilizada e pela racionalidade
instrumental de nossa sociedade orientada à produtividade: como por exemplo
a morte, a deformidade, o grotesco, o erotismo, a criminalidade, a velhice e a
comunhão (meta)física com a materialidade da natureza.
Butōtai, o corpo proposto pela dança Butō, em sua constante crise e
transformação, pode assim servir como matriz para a construção de uma
corporeidade crítica. Uma corporeidade que acolha a encarnação física e
simbólica da subversividade e da contestação. Uma corporeidade que se refuta a
conceber-se enquanto individualidade alienada e configura-se nos interstícios de
sua matéria e na sua essencial intersubjetividade. Uma corporeidade que assume
ativamente a politicidade inerente à sua presença120 e ao seu mover-se no mundo.

120 O concepção de “presença” aqui indicada compartilha do entendimento construído

pelo educador Paulo Freire, através do qual ele parece reivindicar radicalmente uma
responsabilidade ética, histórica, política e cultural na constituição ontológica do
próprio ser humano. Isto porque, em sua leitura, perceber-se enquanto uma presença no
mundo, ou seja, como um sujeito histórico, intersubjetivo e mediatizado pelo mundo,
pressupõe admitir-se enquanto uma existência consciente que intervêm e modifica a sua
realidade, e, ao fazê-lo, modifica a si mesmo. “Uma presença no mundo, com o mundo e
com os outros. Presença que, reconhecendo a outra presença como um ‘não-eu’ se
reconhece como ‘si própria’. Presença que se pensa a si mesma, que se sabe presença,
160
Uma corporeidade que coloca em tensão a hegemonia dos paradigmas
sustentadores de um corpo eficaz e funcional, bem como o próprio sistema
produtivista ao qual serve dialeticamente como unidade funcional. Uma
corporeidade crítica que acrescenta uma dimensão política a seus gestos e exige
uma dimensão ética para sua existência, uma vez que não refuta a
responsabilidade inerente às potencialidades de sua presença. Uma
corporeidade que renuncia aos imperativos culturais da sociedade para celebrar
a instabilidade e a subversão identitária de seus corpos possíveis.

que intervém, que transforma, que fala do que faz mas também do que sonha, que
constata, que compara, avalia, valora, que decide, que rompe. E é no domínio da
decisão, da avaliação, da liberdade, da ruptura, da opção, que se instaura a necessidade
da ética e se impõe a responsabilidade” (Freire, 1997, p. 20).

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