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o soldado nu
origens da dança butô
Éden Peretta
2011
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Nota do autor
Com o objetivo de proporcionar uma maior fluidez para
o texto, a ordem dos nomes em japonês foi invertida,
adequando-a ao costume da maioria das línguas
ocidentais no qual o nome antecede o sobrenome. Pelo
mesmo motivo, as citações em língua estrangeira foram
por mim traduzidas livremente para o português.
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“Eu sou um soldado nu voluntário, forçando a
sua marcha para confrontar a movimentação das
pernas que foram domesticadas pelo chão”
(Hijikata, To Prison, 1961, TDR, 2000, p. 48)
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ÍNDICE
APRESENTAÇÃO [12]
CAPÍTULO 1
A CIDADE DAS CINZAS [16]
1.1) A AMBIVALÊNCIA OCIDENTAL [18]
1.2) PENUMBRAS E NOSTALGIAS [28]
1.3) RESQUÍCIOS DO OCIDENTE [44]
CAPÍTULO 2
O ANKOKU BUTŌ DE TATSUMI HIJIKATA [50]
CAPÍTULO 3
O BUTŌ DE KAZUO ŌNO [114]
CAPÍTULO 4
BUTŌTAI: O CORPO BUTŌ [148]
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APRESENTAÇÃO
Desde suas raízes, a dança Butō sempre esteve envolvida por uma
atmosfera feita de polêmicas, rupturas e continuidades. Filha indócil de sua
época, essa manifestação político-artística traz marcada em todo seu processo
de configuração histórica as contradições inerentes a um preciso espaço-tempo.
Construiu-se nos interstícios de uma cultura em ebulição; no solo fértil de uma
cultura experimental e promíscua que, paradoxal e contemporaneamente,
recusava e se alimentava de fragmentos tanto de suas origens nipônicas como
da cultura ocidental. Descontinuidades e releituras das mais diferentes matrizes
artísticas e culturais formam, portanto, o húmus do qual a dança Butō tirou
suas forças para afirmar-se enquanto uma nova epistemologia do corpo, capaz
de influenciar de modo contundente inúmeras linguagens artísticas no mundo
contemporâneo.
Polêmicas, e por vezes equivocadas, também são as leituras que muitos
pesquisadores ocidentais fazem da própria dança Butō, ao tentarem isolá-la
artificialmente ao interno de polos aparentemente contraditórios, rotulando-a
por vezes como um exclusivo exotismo cultural nipônico – e por isso de difícil
digestão para o gosto estético estrangeiro –, por outras, como uma
consequência direta da acidez do pensamento crítico ocidental. Exemplos desse
tipo de análise aparecem nas interpretações simplistas que buscam vincular a
estética e a filosofia que a dança Butō coloca em movimento ao trágico
episódio da bomba atômica. De outra parte, no outro polo de interpretação,
apresenta-se a insistente submissão do projeto político-artístico criado por
Tatsumi Hijikata aos princípios heréticos da obra de Antonin Artaud, como se a
“rebelião do corpo” colocada em cena pelo artista japonês fosse uma
materialização direta do projeto teórico-poético do subversivo ator francês.
Marginalizada e refutada enquanto manifestação artística no Japão por
muitas décadas, a dança Butō chegou ao Ocidente somente nos últimos anos da
década de 70 e, desde então, afirmou-se no campo artístico devido
principalmente à qualidade da presença cênica de seus dançarinos e ao impacto
gerado pelo universo simbólico e semântico que suas atuações descortinavam
diante do olhar ocidental. A década de 80 presenciou uma profícua difusão da
dança Butō nos mais diferentes âmbitos artísticos ocidentais. Tanto no Japão
como em muitos países da Europa e das Américas proliferaram diversos grupos
e performers que assumiram a dança Butō como matriz poética de suas práticas
artísticas, senão necessariamente no tecido dramatúrgico de suas obras, ao
menos nos fundamentos de suas técnicas de preparação corporal em busca de
uma eficácia da presença cênica. Assim, de forma mais instrumentalizada e
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despida de seus princípios subversivos, a dança Butō se apresenta atualmente
extremamente difundida nos meios artísticos ocidentais. Talvez por isso muitos
a considerem, equivocadamente, como mais uma “técnica” de dança, quando
não um exótico método de training.
Raros foram aqueles artistas que conseguiram, de fato, transcender a
superficialidade de uma instrumentalização estética (tão importante na
concepção artística ocidental, de matriz visual) e se aproximaram das raízes
desse verdadeiro projeto herético. Raízes essas que, apesar de serem passíveis de
uma relativa e linear reconstrução histórica, refutam qualquer idealismo
estagnante, afirmando a sua força justamente na reapropriação e na atualização
constantes às quais estão sujeitas, nos diferentes espaços e tempos onde são
vivificadas. A subversividade e a “revolta do corpo” reivindicadas pela dança
Butō são, portanto, dimensões vivas e instáveis, devendo ser reinventadas pela
cultura e pelas “trevas” nas quais estão submersos os mais diferentes corpos.
As pesquisas acadêmicas brasileiras sobre o Butō tiveram início já na
década de 80, juntamente com as primeiras experimentações em campo cênico.
Contudo, ainda hoje apresentam resultados muito modestos diante do enorme
potencial técnico, filosófico e poético presente nessa particular manifestação
corêutica. Os poucos livros e os diversos artigos publicados no Brasil até hoje
nos ajudam bravamente a reconstruir a sua densidade em fragmentos, uma vez
que buscam analisar o Butō por vezes através de relatos subjetivos de
experiências particulares, por outras se valendo de chaves de leitura atuais, tais
como aquelas oferecidas pelos estudos semióticos. Em grande parte dos
referidos estudos podemos também encontrar interessantes contribuições que
buscaram – mesmo que de modo pontual – reconstruir o seu processo de
configuração histórica.
A presente publicação tem como objetivo, portanto, contribuir com
esse esforço coletivo de análise e reinterpretação das inúmeras potencialidades
que a dança Butō oferece ao campo das artes cênicas contemporâneas. Para
tanto, busca desconstruir alguns equívocos predominantes em sua interpretação
ocidental, bem como apresentar novos elementos até então desconsiderados ou
desconhecidos por grande parte das pesquisas brasileiras sobre o assunto. A
reunião deste material em um único compêndio tem justamente a intenção de
oferecer ao público interessado nesta instigante manifestação corêutica uma
fonte histórica mais ampla e densa, que potencialize o desenvolvimento de
outros futuros estudos.
A pesquisa aqui compartilhada é resultado da tradução e da adaptação
de grande parte de minha tese de doutorado defendida junto à Universidade de
Bolonha e realizada com apoio do Programa Alban – Bolsas de Alto Nível da
União Europeia para a América Latina. O processo investigativo que deu
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origem ao trabalho baseou-se prioritariamente sobre uma abordagem
metodológica historiográfica, valendo-se da leitura de grande parte das
publicações em línguas ocidentais. A investigação foi potencializada pelo acesso
direto aos diversos materiais e fontes primárias existentes tanto no arquivo
Kazuo Ōno, hospedado pelo Departamento de Música e Espetáculo da
Universidade de Bolonha, na Itália, como no arquivo Tatsumi Hijikata
hospedado pela Universidade de Keio, em Tóquio, Japão. Buscando preencher
algumas lacunas e contradições identificadas durante essa investigação
bibliográfica, foram realizadas também entrevistas ao vivo com alguns
importantes pesquisadores, historiadores e críticos – japoneses e italianos – da
dança Butō, bem como com o dançarino Yoshito Ōno – filho e herdeiro
artístico do mestre Kazuo Ōno.
As linhas que se seguem não buscam, contudo, exaurir a discussão
sobre o argumento, congelando-o em uma reconstrução histórica
pretensamente monolítica. Tentam sim, pelo contrário, oferecer-se como uma
leitura de referência para os novos e os experientes pesquisadores da área de
Artes Cênicas. Uma leitura em movimento, cheia de fissuras, limites e potências,
passível de ser “escovada a contrapelo” – em uma imagem benjaminiana – e
também rediscutida em seus silêncios e ausências. Uma leitura singular desse
intrigante universo feito de amor, carne, trevas e poesia.
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1.1) A AMBIVALÊNCIA OCIDENTAL
2 Segundo Packard (in Centonze, 2009, p. 163), “as manifestações no Japão pós-guerra
– conhecidas em japonês como ‘demo’– transformaram-se parte em ritual, parte em
recreação, e parte em protesto, com suas proporções variando de acordo com a ocasião
e com seus participantes. Ao contrário do que indicado em algumas notícias, elas não
eram ‘motins’, ainda que tenham gerado motins; tão pouco eram espontâneas, sendo
cuidadosamente organizadas e rigidamente disciplinada. Existiram 223 demo envolvendo
estimativamente 961,000 pessoas em Tóquio entre abril de 1959 e julho de 1960”.
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É interessante perceber como este libertador sentimento de total
destruição e ruína formou uma componente integral das novas estratégias
criativas em Tóquio nas décadas pós-guerra. Praticamente toda a cidade tornou-
se ela mesma uma espécie de material maleável para ser recriada por atos de
performance, transformando-se em uma gigantesca arena de experimentações
urbanas por todo o período dos anos 60.
Alimentando-se deste contexto, a arte japonesa do pós-guerra
refundou-se e desenvolveu-se a partir de ações entorno à problemática do
corpo e do lugar. Floresceram assim muitas experiências baseadas em trabalhos
físicos e na exploração de lugares não específicos, pesquisando as relações entre
as possibilidades de expressão corporal e as potencialidades presentes nas
características dos lugares e dos ambientes. Fraleigh e Nakamura (2006, p. 74),
ressaltam tal evidência quando afirmam que: “como a arte moderna de Jackson
Pollock na América na qual ele jogava tinta sobre as telas para ter seu corpo
visceralmente envolvido, o movimento e a arte antissocial no Japão foram
orientadas para a ação, colocando importância no processo temporal da
experiência”.
Neste sentido, é possível perceber como a cultura urbana do pós-guerra
foi também a cultura do corpo humano, reelaborando-o, ressignificando-o,
reinventando-o, caracterizando-se assim como um refluxo que se contrapôs ao
conjunto de perspectivas que o restringiam brutalmente logo após a guerra, no
que diz respeito às suas formas e ao seu status. Deste modo, começam a ser
colocadas as bases para a edificação de um imaginário e de uma linguagem
gestual próprias a um corpo constantemente novo, buscando recuperar as
supostas idiossincrasias do “corpo japonês” para, de alguma forma, tentar
salvá-lo do dualismo imposto pelos ocidentais.
Este sentimento do “novo”, de alguma maneira, já tinha sido
desenhado também pelos poetas e artistas japoneses dos anos 20, os quais
puseram os fundamentos do movimento surrealista no Japão, fortemente
influenciados pelos seus contemporâneos surrealistas franceses, do quais
traduziram um grande número de obras. Historicamente, enquanto
movimentos artísticos europeus, o Dadaísmo antecedeu o Surrealismo,
introduzindo categorias que posteriormente foram apropriadas, negadas ou
reelaboradas pelos movimentos subsequentes, tais como a negação da cultura e
o antirracionalismo. Objetivamente, entre as décadas de 10 e 20, no Japão não
existiu um movimento paralelo ou equivalente, a não ser o posterior
movimento neodadaísta que no início dos anos 60 apresentava-se já constituído
e, juntamente com os resquícios do surrealismo japonês, influenciava
significativamente a poética da vanguarda daqueles anos.
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Em meio ao fermento da arte urbana dos anos 60, o corpo humano
começou a ser projetado por manifestações que exaltavam o tumulto sexual e a
dissidência social, as quais, quando somadas, moviam e potencializavam a
cultura artística experimental de oposição no pós-guerra. É ao interno deste
contexto que surge aquilo que a mídia da época intitulou de “vanguarda suja”,
isto é, um conjunto de artistas provindos das mais diferentes formas de
expressão que se uniam em eventos e happenings em diversos ambientes,
explorando os limites extremos do corpo, do poder social e dos atos sexuais.
Deste modo, procuravam contrapor-se aos paradigmas impostos pela cultura
vigente que proclamava a construção de um “limpo e iluminado” Japão.
É interessante observar que neste período, no início dos anos 60, este
coletivo de artistas da “vanguarda suja” que impulsionava a cultura artística
japonesa, mesmo confrontando-se com os valores oprimentes provindos da
cultura ocidental, contemporaneamente, tinha também como fonte de
inspiração os contra-movimentos endógenos a esta própria cultura. Quase toda
a arte experimental dos anos 60 possuía uma intimidade e, portanto, sofria
influências das obras de grandes nomes seja da literatura crítica francesa como
da ácida filosofia alemã.
A literatura francesa, particularmente através de nomes como Conde
de Lautréamont, Jean Genet e Marquês de Sade, figurava como leitura de
cabeceira de muitos dos personagens mais importantes da revolução artística do
pós-guerra japonês. Isto porque através de seus escritos poéticos conseguiam
dar forma à centralidade de um corpo constantemente em oposição, à uma
sexualidade metamórfica e ilegal, as quais pareciam apresentar-se em uma
perfeita sintonia com a aura de dissidência social e revolução corporal gerada
pelas ruas de Tóquio naqueles anos.
A vanguarda artística dos anos 60, com sua postura de ruptura e
rebelião3, direcionava seu antagonismo não somente às manifestações e
instituições ocidentais, mas também às manifestações japonesas que se
construíram nas décadas precedentes sob influência dos valores e paradigmas
provindos do ocidente. Sob a ótica deste coletivo, estas também tinham se
tornado conservadoras e por isso estavam prontas para serem subvertidas pela
nova geração, a qual não se satisfazia mais com propostas que julgava
5 Antes da Segunda Guerra Mundial os dois principais tipos de dança que existiam no
Japão eram divididos em tradicionais (Kagura, Buyō e Bugaku) e ocidentais (ballet e dança
moderna), estas últimas importadas com a abertura cultural da Era Meiji (Viala e
Masson-Sekine, 1988, p. 16).
6 Muitos destes manifestos foram recolhidos e traduzidos pela pesquisadora Nanako
Kurihara em sua pesquisa de doutorado junto ao Department of Performance Studies, Tisch
School of the Arts/NYU, com uma tese intitulada “The most remote thing in the universe: A
critical analysis of Hijikata Tatsumi’s Butoh”. Grande parte destes textos, como Inner
Material/Material, To prision, Wind Daruma, dentre outros, foram publicados pela revista
“The Drama Review” (TDR), 44, 1, primavera de 2000 (T165).
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econômico capitalista”, “sociedade orientada produtivamente”, “moral
civilizada” (Hijikata, Inner Material/Material, 1960, in TDR, 2000, p. 39-41),
delineando assim um universo bem preciso dentro ao qual se movia para
construir o seu projeto político-artístico de insurreição física.
A visão inusual proposta por Tatsumi Hijikata e Kazuo Ōno – o seu
principal colaborador e uma de suas essenciais matrizes poéticas –, serviu como
uma decisiva referência em meio ao fermento cultural dos anos 60,
influenciando fortemente a produção de algumas das maiores figuras da
vanguarda artística japonesa. No âmbito do teatro, é possível reconhecer as suas
influências nas obras de personagens como Shuji Terayama (poeta e diretor,
fundador do Tenjō Sajiki, um dos mais importantes grupos de teatro de
vanguarda dos anos 60), Jūrō Kara (do grupo Jōkyō Gekijō), Tadashi Suzuki
(diretor da Suzuki Company of Toga – SCOT, com maior familiaridade com o
teatro de vanguarda ocidental) dentre outros. Já no campo corêutico, esta
particular concepção cênica contaminou de forma profunda muitos artistas,
deixando um vasto legado que perdura até os dias atuais, com destaque para
nomes como Akira Kasai, Akaji Maro (fundador do grupo Dai rakuda kan),
Yamada Bishop (fundador do grupo Hoppō Butō-ha), Natsui Nakajima
(fundadora do grupo Muteki-sha), Min Tanaka (Ren’ai Butō-ha), dentre muitos
outros.
De qualquer forma, é importante ressaltar que o impacto
proporcionado pelas atuações e concepções de Hijikata transcendia os limites
das artes do espetáculo e movia-se também para além de suas fronteiras
expressivas, contaminando muitos artistas de formações diversas, dos quais
seria importante destacar o fotógrafo Eikō Hosoe, o pintor abstrato Natsuyuki
Nakanishi e o designer Tadanori Yokoo. Hosoe transformou-se em um dos
fotógrafos mais importantes do Japão, eternizando e divulgando por todo o
mundo a dança Butō7.
Nakanishi, dentre outras coisas, foi o autor do quadro abstrato que,
muitos anos depois, em 1976, desengatilharia em Kazuo Ōno a imagem da
dançarina “La Argentina” e o seu consequente retorno aos palcos. Já Yokoo,
estabeleceu uma relação de colaboração recíproca seja com a dança Butō que
com outras importantes manifestações teatrais dos anos 60, para as quais
desenhava os cenários, pôsteres de divulgação e outros elementos cênicos. A
dança Butō foi também significativamente influenciada pela sua estética do
“mau gosto”, na qual procurava enfatizar o feio e o irracional, valendo-se na
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Na realidade, a ocidentalização e a modernização do Japão foram dois
fenômenos indissociáveis que se sobrepuseram reciprocamente durante todo o
seu período de realização, por mais de um século. Os novos paradigmas
impostos por este complexo processo, iniciado já com a abertura política e
cultural da Era Meiji (1868), encontraram seu ápice no período de ocupação
administrativa e geopolítica do segundo pós-guerra (1945-1952) por parte das
forças armadas dos Estados Unidos da América. O influxo da cultura europeia
do primeiro período de modernização (Era Meiji) transformou em modo
gradual, mas profundo, as concepções e os valores de toda a sociedade
japonesa, deparando-se evidentemente com fortes oposições nos diversos
estratos sociais. Os novos modos de vestir, bem como as outras modalidades de
convivência em comunidade e em família, davam vida à nova configuração
social proposta por uma nova paisagem urbana e rural, na qual os grandes
campos de cultivo deixavam espaço aos galpões e às indústrias.
Mesmo antes da Segunda Guerra Mundial, o Japão já vivia uma forte
cisão cultural na qual se apresentava dividido entre a obsessão por um
progresso desenfreado e, ao mesmo tempo, o refúgio nostálgico de uma utópica
autenticidade. Esse sentimento de perda das qualidades superiores presentes em
um passado ideal permeou toda a sociedade japonesa e deixou espaço ao desejo
por um modo de vida idílico hipoteticamente oferecido por um Japão pré-
moderno. Foi então que acesos debates tiveram espaço nos jornais, nas estradas
e nos círculos dos intelectuais, construindo uma atmosfera de crítica e nostalgia
por um antigo e “melhor” passado. Uma atmosfera que se transformou na
matriz principal para a construção de uma fantasia cultural nacional, alimentada
pelo boom de um novo folclore e da revalorização dos elementos indígenas
arcaicos e pré-modernos como possibilidade de afirmação da identidade do
povo. Esse sentimento contraditório de pertencimento e de renúncia a um
Japão moderno impregnou todo o pensamento nipônico da primeira metade do
século XX, encontrando-se em relevo nos diversos âmbitos intelectuais, tanto
políticos como acadêmicos e artísticos.
O período do segundo pós-guerra, com o país derrotado e humilhado
pela imposição dos novos modelos de desenvolvimento econômico e de
relações sociais, propôs uma nova perspectiva de ocidentalização ao Japão –
agora com uma marca mais norte-americana do que europeia –, despertando
assim uma antiga e contraditória ferida cultural japonesa. Deste modo, os anos
50 e 60 do século passado testemunharam a aparição de diversos movimentos
culturais – intelectuais e artísticos – que se alimentaram das posições críticas e
nostálgicas das gerações precedentes, atualizando-as e transcendendo-as ao
proporem novas ações de contestação. No cenário literário, por exemplo,
ocorreu a reaparição de alguns valores da literatura japonesa pré-guerra, a qual
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oscilava, já desde 1880, entre a renúncia e a defesa dos escritos tradicionais, e
construía-se em oposição à tendência literária ocidental de apresentar novas
verdades ou juízos morais, políticos e filosóficos, ao interno das obras.
Os estudos japoneses no campo antropológico, iniciados já na primeira
metade do século XX, contribuíram fortemente para a configuração do
imaginário cultural da época, encontrando no período do pós-guerra um fértil
campo de ação e afirmação social. Em certo sentido, é possível verificar que
esses estudos tiveram uma importante influência, mesmo que nem sempre em
modo direto, sobre o pensamento da época e sobre quase toda a produção
artística que terá o seu ápice nos anos 60. Susan Blakeley Klein (1988, p. 31)
explica como, no período de plena crise e conflitos civis causados pela polêmica
renovação do Tratado de Mútua Defesa (Nichibei Anzen Hoshō Jōyaku) entre
Japão e Estados Unidos, assinado em 1960, os estudos de um importante grupo
de historiadores “nativistas” tinham como inspiração os estudos folclóricos
(Minzokugaku) de Kunio Yanagita. Esses trabalhos de etnografia nativista
conduzidos por Yanagita ficaram famosos justamente por identificar diversos
elementos das raízes rurais do Japão, buscando nestas tradições indígenas as
suas dimensões críticas ou revolucionárias.
As discussões antropológicas dos anos 60, portanto, tinham como
pano de fundo ideológico a necessidade profunda de preservação de uma
suposta “essência japonesa”, elevando intelectualmente a sua noção de
autenticidade, ao mesmo tempo em que acabou revertendo alguns dos
preconceitos históricos em relação às zonas menos desenvolvidas do país. Este
desejado “Japão autêntico” era marcado pelas festas tradicionais, histórias
regionais e por uma dimensão misteriosa que se oferecia como resistência na
periferia de uma vida urbana dramaticamente industrializada. A região de Akita,
por exemplo, historicamente isolada e ridicularizada pelo seu modo de falar e
no comportamento ingênuo de seus nativos, assistiu a inversão de seu status ao
passar a ser considerada uma fonte inesgotável de estímulos para a construção
do paradigma de um Japão que se desejava “incontaminado”.
A busca pelas bases de uma cultura “imaculada”, em parte
antropológica e em parte literária, considerava fundamental preservar uma
essência do Japão antes que essa fosse engolida pela artificialidade efêmera da
contemporaneidade e pela imposição do consumismo na sociedade moderna. O
contato, direto ou indireto, destes princípios com outros âmbitos orbitais da
sociedade fez com que fossem criadas diversas modalidades de ação e
intervenção social, tornando possível a aparição – permitida pela hipotética
existência de uma “cultura essencial” – da consequente concepção de um
“corpo autêntico”, o qual poderia ser a origem do “gesto verdadeiro” (Barber,
2006, p. 80).
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Foi então nessa atmosfera difusa que uma nova cultura experimental
começou a desabrochar no Japão, apresentando diversos modos de expressão,
criados por jovens grupos de artistas. O ambiente híbrido e promíscuo das artes
captou estes radicais dilemas colocados em cena pelo campo antropológico e os
releu em uma perspectiva igualmente intercultural. Foi então que o paradoxal
movimento de renúncia e de absorção dos diversos elementos da cultura
ocidental, misturados à nostalgia de um passado idílico, serviu de pano de
fundo ao desenvolvimento da cultura artística do pós-guerra japonês. No
âmbito da música, por exemplo, ocorreu uma contaminação orgânica entre as
inovações europeias e a redescoberta das possibilidades da música tradicional
nipônica. A visita de John Cage no Japão, no início dos anos 60, tornou-se um
marco e um divisor de águas nas pesquisas musicais nacionais. A sua estética
metafísica rompeu com as estruturas conservadoras e apresentou aos japoneses
uma música livre dos tabus, influenciando assim também a estética de outras
manifestações artísticas contemporâneas.
No campo das artes do espetáculo, tanto a dança como o teatro de
vanguarda foram influenciados pelo despertar do interesse pelas origens
populares do teatro Nō e Kabuki, e pela reproposição das formas populares de
teatro do início do século XX: particularmente o Asakusa (um tipo de teatro
musical que incorporava o estilo tanto ocidental como tradicional), o Misemono
(uma forma de teatro que incluía atos similares a um espetáculo de circo) e o
teatro Yose (uma forma similar a um vaudeville revisto, centrado em monólogos
cômicos). Na prática, existiu um renascimento intelectual das modalidades de
espetáculo radicadas nas tradições performativas existentes já antes do advento
do Nō e do Kabuki (Klein, 1988: 15). O teatro Yose, em particular, representava
o verdadeiro teatro de massa ao final do século XIX, quando o Kabuki foi
retirado de sua originária marginalidade e assimilado pela nobreza, retornando
ao centro da comunidade urbana com um novo status.
A dança Butō, por sua vez, não estava desconectada desse contexto
mais amplo de transformação estética e cultural. Pelo contrário. Em certo
sentido, foi a própria protagonista desse processo, influenciando
profundamente as outras formas contemporâneas de espetáculo. O retorno
nostálgico às raízes primitivas da dança, evocando características pré-modernas
e pré-ocidentais, assim como a utilização de forças expressivas irracionais e
misteriosas, são dimensões que fazem igualmente parte dos princípios poéticos
da dança Butō, revelando assim o seu pertencimento àquele preciso momento
histórico e cultural, compartilhado com outras diversas modalidades artísticas.
Para Klein (1988, p. 20) um dos motivos que levaram a dança Butō a
inspirar-se nas artes performativas tradicionais foi a longevidade de suas
histórias e suas relações orgânicas com o desenvolvimento da cultura, o que
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tornava possível, portanto, a existência de um suposto vocabulário de
movimento próprio à estrutura do corpo japonês. E mesmo que a ambição de
uma dança baseada sobre as especificidades do corpo japonês pareça não ser
realizável em um nível pragmático, certamente apresentou-se como um
argumento ideológico persuasivo naquele preciso momento histórico.
Outra razão indicada pela autora como motivação deste olhar cíclico
em direção ao passado é que as representações do teatro tradicional japonês
eram uma antítese ao modelo ocidental e, logo, podiam ser utilizadas para
confrontá-lo e transcendê-lo. Em outras palavras, o antigo teatro japonês
apresentava-se como uma antítese possível aos valores da modernidade
ocidental através da contraposição dos elementos dramáticos da sua clássica
construção cênica, ou seja, a ênfase sobre a narrativa realista baseada sobre a
racionalidade de causa e efeito e sua organização linear do tempo em princípio,
desenvolvimento e fim.
O teatro tradicional, por sua vez, correspondia às lógicas próprias de
um mundo mítico primitivo, no qual não existia a contradição entre caos e
repetição cíclica, entre mudança constante e equivalência absoluta. Segundo
Kunio Komparu (in Klein, 1988, p. 60), os festivais sagrados da agricultura são
a base das artes de entretenimento no Japão, e nestes é possível identificar
claramente a tendência aos ciclos e à assimilação com a natureza: elementos
essenciais da fundação da cultura japonesa criada por camponeses9. Neste
sentido, o olhar para o passado, lançado pela vanguarda artística do segundo
pós-guerra, serviu para reconhecer alguns elementos representativos da
materialidade mais essencial do corpo japonês, procurando alcançá-la a partir da
releitura dos fundamentos de seu teatro tradicional.
Entretanto, as artes tradicionais do espetáculo japonês são também,
obviamente, frutos de um complexo entrecruzamento de elementos. Nesta
direção, com uma perspectiva mais ampla, seria possível identificar algumas
influências e características que as atravessam e que, de algum modo,
contribuíram com a poética da dança Butō, além daquelas até aqui citadas. A
“estética da feiura” (shōaku no bi), por exemplo, pode ser uma dessas
importantes influências transversais, pois se apresenta como uma característica
10 Fraleigh (1999, p. 40) afirma que tanto Graham como Wigman, mesmo tendo se
voltado para a mitologia grega, em um certo sentido, abraçaram uma tendência
estilística abstrata totalmente japonesa.
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filosófico. Segundo Fraleigh (1999, p. 42), a dança Butō recria à sua maneira um
ecletismo ético colocado em cena já pela Modern Dance na sua utilização de
fontes globais, além de apresentar em suas raízes algumas manifestações
similares ao individualismo criativo, à auto-interrogação e ao expressionismo
abstrato expressos pela dança moderna. Além disso, é possível dizer que a
dança Butō compartilhou alguns elementos que estavam já na base dos
primeiros experimentos do expressionismo, tais como a melancolia, as emoções
obscuras e a catarse dramática em suas propostas narrativas não-estruturadas.
Outras influências culturais que, em certo sentido, configuram as artes
tradicionais do espetáculo japonês e, por isso, potencialmente emprestam-se
como elementos subterrâneos e difusos – mas não menos importantes – da
dança Butō, são alguns princípios filosóficos constituintes da própria cultura
nipônica. A flexão de gênero seria um interessante exemplo disso. É muito
importante para a dança Butō e para o trabalho de seus fundadores que os
limites e a caracterização do ‘feminino’ e do ‘masculino’ não sejam tão
evidentes, compartilhando assim uma característica em sintonia com os mitos11
e com o próprio teatro japonês. Isto porque a cultura teatral japonesa é, de
modo geral, transpassada por um “sentimento feminino estilizado” e vê, em um
modo particular, seus papéis femininos serem interpretados por atores
(Fraleigh, 1999, p. 58).
Visto a partir desta perspectiva, o fato de que o crescimento da dança
Butō se baseie fortemente sobre um paradigma feminino – principalmente a
obra do maestro Kazuo Ōno, com sua feminilidade cósmica e seus constantes
travestimentos – não se apresenta mais como uma particularidade exótica, e sim
como uma de suas características estruturantes que possui uma ligação orgânica
com o tecido cultural da qual provêm. Todavia, a feminilidade decrépita e
marginal que a dança Butō coloca em cena indica claramente dimensões de
ruptura e crítica desta mesma cultura.
Outro elemento importante que atravessa muitas das artes tradicionais
japonesas, mesmo que muitas vezes em modo sutil ou indireto, é a influência da
filosofia Zen budista. Mesmo que esta se encontre em modo difuso e
praticamente incorporado em um estrato profundo da cultura japonesa, é
interessante observar que também a vanguarda artística, do final dos anos 50,
relendo-a, utiliza alguns de seus princípios em suas intervenções e
15 Segundo Centonze (2003, p. 66), “o termo kabuki deriva do verbo kabuku, o qual
indicava a heresia que se opõe à ortodoxia e expressava-se através de diversos
comportamentos e gestos, modos de aparecer (vestimentas, penteados etc.) com a
marca da provocação e discordância em confronto ao sistema e às suas normas”. Em
uma definição mais sintética o verbo poderia ser traduzido como “fora de harmonia”,
“torto” ou “perverso”.
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das geishas, encontrava-se fora das quatro clássicas castas (samurais, agricultores,
artesãos e comerciantes) criadas pelo governo central. Ao mesmo tempo,
porém, isso não parecia impor-lhes necessariamente uma situação de
degradação e humilhação, uma vez que ainda assim exerciam um forte fascínio
no imaginário social, influenciando decisivamente as preferências da sociedade
no que se referia à arte e à moda da época.
O Kabuki e seus atores também se ofereciam como mediadores, isto é,
como uma instituição que gerenciava os limites entre o dentro e o fora da
estrutura social japonesa, incluindo em suas esferas dramatúrgicas as categorias
das pessoas excluídas socialmente – como as geishas, os deformados, os doentes
e os trabalhadores “impuros” (burakumin)16 – as quais, em virtude de suas
exclusões, simbolicamente tinham o poder de manter a ordem cultural. Em
certo sentido, os indivíduos da população em geral asseguravam as suas
identidades ao excluirem certas categorias sociais que, potencialmente, eram
carregadas com uma riqueza metafórica. Contudo, e ironicamente, viam sobre o
palco cênico esses mesmos comportamentos humanos que normalmente eram
excluídos da vida cotidiana, mas que, talvez em um nível inconsciente, eles
deveriam ter que enfrentar.
Outro fator simbólico que auxiliava na manutenção dessa posição
liminar e paradoxal de mediador dos mundos aos atores Kabuki era que, no
imaginário coletivo da época, os seres rejeitados socialmente tinham um acesso
especial à magia e ao mundo da morte17. Quando a dança Butō convoca todos
esses princípios do Kabuki, obviamente em um modo muito mais difuso e
inconsciente do que racional e estruturado, na verdade identifica-se
particularmente com os atores Kabuki do final da Era Edo, ou seja, os
“mendigos da beira do rio” (kawara mono), os quais atuavam e viviam nos leitos
secos que dividiam o meio urbano do rural, o espaço mais temporário e
marginal daquela época18.
16 Para Klein (1988, p. 35) “Burakumin (literalmente, ‘aldeões’) é o nome moderno para
o grupo rejeitado hereditariamente no Japão. Originalmente eles foram descriminados
porque trabalhavam em funções que, em termos budistas, eram impuras, como por
exemplo, trabalhos com couro, limpeza das ruas, ou adeptos em cemitérios e
crematórios”.
17 Isso talvez porque, segundo Klein (1988, p. 38), “aqueles que são menos
aprisionados pelas armadilhas da cultura moderna são vistos como seres com mais
contato com o mundo natural e com os instintos naturais”.
18 Na sociedade agrária de então, essa vida nômade dos protagonistas do
entretenimento era vista com muita suspeita e preconceito, fato este que, segundo os
antropólogos, encontraria sua justificativa nos resquícios de preconceito contra a
40
A dança Butō, e a vanguarda artística do pós-guerra japonês, fez uma
releitura principalmente do estilo kizewamono do Kabuki, atuante nesse último
período da Era Edo, justamente porque este colocava em cena espaços e figuras
marginais de seu tempo, tendo-os como foco dramatúrgico central: ladrões,
prostitutas, padres excomungados por assédio sexual, burakumin, recitando em
cenários que retratavam cemitérios, leitos de rios, favelas e tantos outros lugares
que abrigavam a decadência e a morte.
A "desviscerização" do Kabuki, com a consequente debilitação de sua
força subversiva, tem início por volta do ano 1872, poucos anos depois da
abertura política e cultural colocada em ato pela Era Meiji. E isso ocorreu
dentro de um contexto mais amplo de modernização do país, no qual o
governo, sentindo a necessidade de realizar reformulações profundas em todas
as esferas da cultura, procurou adaptar suas características para facilitar o
diálogo e os futuros intercâmbios com o Ocidente – tido como grande
referência e modelo de desenvolvimento.
Contudo, mesmo que essas transformações propostas pelo governo
tivessem a sensibilidade ocidental como elemento norteador, elas ocorreram
praticamente sobre um trilho de dupla direção. Em outras palavras, ao mesmo
tempo em que as práticas culturais japonesas foram perdendo suas forças
originais, incorporando puritanismos e moralismos ocidentais, existia como fio
condutor de todo processo também uma preocupação política em mostrar-se
autossuficiente, tradicional e autêntico. E nesse jogo bidirecional, o Kabuki
aparece como um exemplo muito significativo19 de adaptação ao gosto
ocidental, uma vez que foi filtrado das complexidades simbólicas e das
bivalências morais que percorrem as suas veias, ao mesmo tempo em que foi
reproposto em nível internacional como uma arte autenticamente nativa e,
portanto, capaz de representar legitimamente a qualidade das raízes nipônicas.
Esse movimento de, por assim dizer, revitalização cultural insere-se ao
interno de uma política nacionalista mais ampla, a qual procurava estabelecer
uma relação de intercâmbio mais equânime com o Ocidente, recusando uma
posição de submissão a uma suposta superioridade ocidental. O Kabuki,
mesmo purificado para a sensibilidade estrangeira, figurava assim como
tradição dos sacerdotes itinerantes que compartilhavam seus rituais e suas parábolas
através de pequenas performances (Klein, 1988, p. 34).
19 Na obra de Fraleigh e Nakamura (2006, p. 75) é possível verificar que “com o
objetivo de rejuvenescer a tradição do Kabuki, ‘civilização e iluminismo’ (Bunmei Kaika)
transformaram-se em princípios guias para o movimento de reforma teatral no início
do período Meiji”.
41
símbolo de uma arte autêntica que poderia contrapor-se, em pé de igualdade,
com as mais altas representações teatrais ocidentais.
Neste sentido, é possível perceber que quando a vanguarda artística
japonesa dos anos 50 e 60 buscou inspirar-se subversivamente no teatro
Kabuki, não se referia absolutamente ao enfraquecido e filtrado Kabuki
contemporâneo, e sim aos dramas de crua realidade colocados em cena por
uma manifestação teatral crítica e marginal, que se alimentava cotidianamente
da decadência, dos excluídos e da escuridão. E não poderia ser diverso, pois a
arte de vanguarda do pós-guerra poderia somente inspirar-se em um espetáculo
que não ‘representasse’, mas que ‘apresentasse’ ao mundo a ferocidade, as
contradições e a podridão da sociedade humana através de potentes métodos
cênicos padronizados por um Kabuki pré-moderno. E é justamente neste
repertório que habitavam os ideais de uma vanguarda experimental, a qual se
oferecia como antítese de um conceito homogêneo e idealizado de beleza.
Revitalizar uma energia subversiva própria ao Kabuki pré-moderno
significava então, de alguma forma, trazer novamente para a cena o lado escuro
do ser humano e da sociedade, as suas contradições, a sua crueldade
discriminante e excludente, a monstruosidade de seus dogmas e de suas
criaturas, incorporando os aspectos da vida humana que violavam a esfera da
moralidade e do tabu. Significava protagonizar o papel de mediador entre
mundos, (re)apresentando e jogando na face de uma sociedade civilizada os
seres que encarnavam os subprodutos de seu sistema, os marginalizados
‘transtemporais’, que não correspondem somente à uma determinada época ou
cultura específicas, mas que figuram, reincidentemente, à margem em quase
todos os tempos e sociedades: crianças, deficientes, velhos, prostitutas,
homossexuais, doentes, refugiados e nativos.
Assumindo esses personagens como matrizes poéticas de suas
experimentações artísticas, a dança Butō também compartilha da “intenção de
converter aquilo que não deveria ser admitido em algo a ser afirmado”,
acolhendo assim, em um plano estético, uma “beleza da crueldade” (zankokubi),
isto é, uma “beleza do negativo” ou uma “beleza invertida” (Centonze, 2003, p.
63). Voltar os olhares para as favelas de Asakusa, em pleno século XX,
significou para o Butō, e para os artistas experimentais daquela época, buscar os
estímulos equivalentes à atmosfera carnavalesca original do Kabuki, ou à
sexualidade, à desorganização e ao humor irreverente das manifestações
populares de entretenimento, como o Yose – identificado pela vanguarda
artística como o verdadeiro ancestral do Kabuki.
Foi justamente nesses estímulos, somados à pobreza e à marginalidade
dos atores do teatro popular pré-moderno, que Tatsumi Hijikata esperou
encontrar a energia e a liberdade criativa, ausentes no Kabuki do século XX, e
42
que iriam servir, em grande parte, como matéria prima para a estruturação dos
fundamentos de sua dança. Uma dança, um projeto político-artístico, que
ganhou contornos mais claros ao interno de um contexto mais amplo de
revoltas e experiências, em um Japão efervescente que tentava levantar-se
novamente em meio às suas promíscuas relações com o Ocidente, esse seu
eterno e paradoxal inimigo-amigo. Um Japão nostálgico que reinventava seu
passado na crença de que uma realidade melhor já tivesse existido e de que algo
de autêntico ainda persistisse em suas veias cansadas, buscando legitimar a
consonância de seus passos com o mundo externo que lhe era contemporâneo.
Tatsumi Hijikata criou assim uma dança de vanguarda, mas que,
paradoxalmente, apresentou-se como um fruto legítimo – mas rebelde – de seu
tempo. Uma dança que revela, em cada uma de suas cicatrizes, heranças de uma
época de nostalgias, rebeliões e experiências. Uma dança que sobrepõe solidões
e festividades de uma cultura camponesa às sexualidades e marginalidades de
uma cultura urbana, celebrando em ritos pagãos a fusão herética entre as
tradições de penumbra de um Japão de outrora e a fugacidade de uma cultura
pós-moderna20.
Contudo, para se compreender melhor a complexidade de tal projeto
político-corêutico é necessário observá-lo ao interno de sua densa rede de
relações, produzida por um percurso com diferentes níveis de recapitulação e
análise. Portanto, para se aproximar de uma compreensão mais complexa da
dança Butō, talvez seja necessário conhecer primeiro alguns elementos
essenciais dos outros contextos que a configuram, em direção aos quais as
poucas raízes históricas e culturais até aqui indicadas ajudariam somente a dar o
primeiro passo. Talvez aprofundando um pouco mais o conhecimento sobre a
biografia dos dois principais fundadores da dança Butō – Tatsumi Hijikata e
20 Na obra de Klein (1988, p. 21-2), é possível encontrar uma interessante – mas talvez
não totalmente compartilhável – crítica a um “estilo pastiche” assumido pela dança
Butō devido a sua multiplicidade de influências e estéticas. Dialogando com a obra de
Frederic Jameson (“Postmodernism, or the Cultural Logic of Late-Capitalism”, New
Left Review, n°146) a autora toma emprestado algumas de suas categorias-chave e
procura desenhar um paralelo entre a estética Butō e a arte pós-moderna, identificando
assim os seus supostos sinais de pós-modernidade, principalmente, a partir de algumas
“formas de nostalgia”. Em outras palavras, procurou revelar alguns sinais da condição
pós-moderna da dança Butō através da identificação de algumas de suas tentativas de
amalgamar características do tempo presente com um imediato passado, ou com uma
memória mais distante que escapa da memória existencial individual. Essas “nostalgias”
seriam, principalmente: a celebração de uma cultura popular carnavalesca, uma
familiaridade com a vulgaridade do kitsch e uma primordial nostalgia de uma “infância”,
de algo melhor que já existiu.
43
Kazuo Ōno – possam surgir outros elementos fundamentais que ajudarão a
redesenhar, em grandes linhas, esse revolucionário projeto.
23 O termo oficial “dança moderna” foi introduzido no Japão somente com a chegada
da Neue Tanz, pois antes disso todas as danças não japonesas eram classificadas somente
como “danças ocidentais” (D’Orazi, 2001, p. 84).
46
Escola Nacional de Atlética de Tóquio, assistiu ao espetáculo da dançarina de
flamenco Antonia Mercé, também conhecida como “La Argentina”, em pleno
Teatro Imperial de Tóquio. Neste espetáculo – que o tocou profundamente e
permaneceu silenciosamente impresso em seu corpo por quase cinquenta anos
antes de transformar-se em sua matéria de poesia – Kazuo Ōno pôde modificar
completamente a sua visão do corpo e da dança diante da demonstração viva de
que o movimento possuía um significado mais profundo do que o virtuosismo
físico, a dança poderia ser também uma celebração da “união entre o céu e a
terra”.
Forçado a ensinar dança em suas aulas de ginástica em um colégio
feminino, em Yokohama, Kazuo foi obrigado a procurar uma formação mais
específica e assim aproximou-se do estúdio de Baku Ishii, em 1931. Trabalhou
com ele por mais de um ano, mas abandonou a formação desiludindo-se com o
seu método, o qual classificou como uma espécie de pantomima, “um método
de dança mais do que a busca pela verdade” (Kennedy, 1995, p. 20).
O espetáculo do expressionista alemão Harald Kreutzberg – aluno
direto de Wigman em visita a Tóquio – em 1934, marcou profundamente
Kazuo Ōno ao apresentar-lhe movimentos que eram também capazes de
revelar as dimensões da alma. Com estes estímulos e esta nova concepção de
dança, ingressou na escola de Takaya Eguchi e sua esposa Misako Miya, em
1936, onde trabalhou por cinco anos, interrompidos pela sua participação na
Guerra. Em 1945, com o armistício, Kazuo retornou ao trabalho com o grupo
de Eguchi e ingressou na companhia de uma de suas principais discípulas,
Mitsuko Andō, com a qual estreou finalmente sobre os palcos, em 1949, aos 43
anos de idade.
Mitsuko Andō é também um personagem importante seja para a dança
moderna japonesa como para a dança Butō, pois além de influenciar
diretamente a carreira de Kazuo Ōno, compartilhando como ele o palco e sua
pesquisa cênica ao interno da mesma companhia, inspirou
contemporaneamente Tatsumi Hijikata, acolhendo-o no seu coletivo de
trabalho em 1952, o mesmo ano em que ele chegou a Tóquio, provindo de seu
distante Tōhoku. Hijikata, por sua vez, chegou à capital depois de um período
de experiência com o trabalho da dançarina Katsuko Masumura, discípula de
Baku Ishii, decidindo definitivamente partir em busca de novos horizontes e de
outras abordagens da dança. Aproximou-se assim do coletivo coordenado pelo
já afirmado Takaya Eguchi, sediado em Tóquio.
Foi então justamente através da companhia de Mitsuko Andō que se
deu o promissor encontro entre Tatsumi Hijikata e Kazuo Ōno; encontro que,
alguns anos depois, propiciaria o nascimento da dança Butō. Hijikata
permaneceu no grupo de Andō – o Unique Ballet – até o final dos anos 50,
47
tendo feito a sua estreia oficial sobre os palcos, dividindo a cena com Kazuo
Ōno, somente no espetáculo “O corvo” (Karasu), em 1954. Em novembro de
1961, já há alguns anos desenvolvendo performances experimentais em modo
independente ou em colaboração com outros artistas, denominou esta sua
pesquisa em dança como Ankoku Butō-ha, e fundou assim um coletivo de
trabalho formado principalmente por Yoshito Ōno, Akira Kasai e Mitsutaka
Ishii (Klein, 1988, p. 8), tendo muitas vezes a preciosa participação de Kazuo
Ōno.
Contudo, mesmo que a introdução da dança moderna tenha deixado
profundas marcas na cultura japonesa, acabou não conseguindo estabelecer-se
como uma real “tradição”, contrariamente ao que aconteceu com o balé
clássico, relegando assim o seu ensinamento à responsabilidade individual de
alguns mestres específicos. Na verdade, nos primeiros anos da dança moderna
no Japão, o balé via eclipsar a sua popularidade, mesmo que as suas escolas e
estúdios tenham crescido exponencialmente até os anos 50, e a sua presença
tenha sido suportada e revitalizada periodicamente pelas constantes visitas das
maiores companhias de dança moderna daquele período. Como já visto
anteriormente, a visita da companhia de Marta Graham, em 1955, foi uma das
mais significativas para o desenvolvimento das diferentes perspectivas
modernas da dança japonesa, seja inspirando ulteriores desenvolvimentos de
sua poética como servindo de referência para um veemente antagonismo,
protagonizado também pela dança Butō.
48
49
50
51
2.1) DANÇA DO TERRORISMO
24 Em Inner Material (in TDR, 2000, p. 39), Hijikata refere-se a Kazuo Ōno como “um
dançarino da poção mortal e um pioneiro da dança experimental, um inspirador amigo
e professor, que ajudou a levar meus trabalhos de dança para o teatro. Ele é um
carpinteiro e um poeta que, com um olhar afetuoso, afasta os trabalhos de uma infeliz
inveja”. A amplitude do termo inglês “poison”, presente na tradução original publicada
pela revista “The Drama Review”, levou muitos pesquisadores a (re)traduzi-lo em suas
respectivas línguas também como “remédio” (Salerno, 1998, p. 30), “veneno” ou
53
ou como intenso colaborador e principal divulgador da dança Butō em todo o
mundo, muitos anos mais tarde.
Assim sendo, em uma perspectiva mais ampla, a fundação da dança
Butō enquanto um fenômeno artístico complexo é, justamente, atribuída a estes
dois importantes personagens da vanguarda experimental dos anos 60. Porém,
cabe aqui ressaltar que ambos os artistas, devido às similaridades e diferenças de
suas poéticas, acabaram construindo percursos e propostas muito distintas
entre si. A dança Butō, já com seus próprios fundadores, apresenta-se assim em
modo plural: se não duas danças distintas, ao menos duas distintas faces de uma
mesma manifestação, as quais em muitos pontos se tocaram, complementando-
se e negando-se reciprocamente. Repercorrer algumas destas mútuas
contaminações, a partir da concretude da vida e da poesia de cada um de seus
protagonistas, é um dos principais objetivos das páginas que se seguem.
2.2) O SOLDADO NU
Em 1945, ano em que a Guerra teve seu fim, Tatsumi Hijikata já havia
decidido dedicar-se às experimentações cênicas, influenciado também pelo seu
pouco conhecimento sobre as danças experimentais europeias e norte-
americanas, as quais conhecia praticamente somente através das revistas da
época. Começou a frequentar lições de dança na capital de Akita, atraído pelo
trabalho da dançarina Katsuko Masumura, discípula de Baku Ishii, e, portanto,
influenciada pela potência expressiva da Neue Tanz alemã. Em 1949, depois de
alguns anos de experimentações com Masumura, Hijikata partiu para Tóquio
atraído pela atmosfera experimental que atravessava a dança japonesa naquele
período, concentrada em grande parte na capital.
A vida na cidade grande mostrou-lhe principalmente a pobreza e o
desemprego, forçando-o a antecipar o seu retorno ao norte. Porém, foi
justamente neste curto período de permanência que teve a oportunidade de
assistir a uma performance que o tocou profundamente, durante um recital de
dança moderna – no Kanda Kyōritsu Kōdō – organizado pela companhia de
Mitsuko Andō e protagonizado pelo experiente dançarino Kazuo Ōno. Era a
primeira performance oficial de Ōno, já com 43 anos de idade, na qual
interpretava uma peça lírica baseada em um poema de Raine Marie Rilke, e que
levou Hijikata a classificá-lo como um “dançarino entorpecente”: um corpo que
intoxicava o espaço sensorial que criava com a sua dança, apresentando um
estranho registro de tempo que o conduzia a outras dimensões.
56
No seu retorno ao norte, Hijikata reiniciou a colaboração com a
companhia de Masumura e, já em 1950, fez sua primeira performance pública,
intitulada Tsuki no hamabe – “Lua sobre a praia”, encenada na sala de cinema da
cidade de Akita. Nos meses seguintes continuou o trabalho com o grupo
coordenado por Masumura, realizando uma tournée por toda a região, na qual
procuravam entreter as pessoas nas cidades e vilas circundantes.
O ano de 1952, além de marcar o final da ocupação política dos
Estados Unidos da América sobre o Japão, apresentou-se também como um
ano decisivo na vida de Tatsumi Hijikata. Neste ano decidiu transferir-se
definitivamente para Tóquio e, aproveitando a atmosfera de fermentação
cultural própria àqueles anos de reconstrução, iniciou seus estudos em
diferentes formas de dança, incluindo balé, jazz e flamenco. Deparou-se
novamente com as dificuldades geradas por sua pobreza e, para conseguir o
sustento cotidiano, iniciou uma sequência intermitente de pequenos trabalhos
em magazines, lavanderias e estoques, mas, não obtendo muitos resultados
financeiros, foi forçado a realizar pequenos furtos e roubos, sendo preso
algumas vezes.
As dificuldades cotidianas foram gradativamente empurrando Hijikata
às margens de um Japão urbano, introduzindo-o em uma dura realidade
compartilhada com ladrões, travestis, prostitutas e bêbados: personagens com
os quais convivia nos albergues econômicos por onde passou. Todo este
contexto, somado ao processo de refundação dos valores morais de um Japão
em plena efervescência cultural, revelou a Hijikata um universo de
promiscuidades: um terreno sexualmente aberto, que lhe permitiu vivenciar
inúmeras experiências hétero e homossexuais. Toda esta constelação de
elementos, seguramente, marcou as memórias profundas de seu corpo e
gradativamente foram tomando forma e compondo em modo orbital a poética
de sua prática artística25.
25 Durante este período Hijikata também encontrou um grupo de artistas que, anos
mais tarde, tornar-se-iam figuras proeminentes na arte moderna japonesa, tais como
Kawara Ōno (artista conceitual japonês, famoso pelas suas date paintings que começou a
produzir a partir dos anos 60), Ushio Shinohara (pintor neodadaísta) e Kaoru
Kanamori (designer experimental). Reuniam-se frequentemente entre eles para tomar
saquê e conversar sobre arte e teatro (Fraleigh e Nakamura, 2006, p. 22).
57
Em 1953, começou a frequentar o estúdio de dança moderna de
Mitsuko Andō, atraído pelas sensações que lhe ficaram impressas pelas
performances presenciadas, anos antes, em sua fugaz permanência na capital,
participando assim de alguns espetáculos musicais coreografados por ela para a
televisão japonesa, ainda em seus primeiros anos de existência. Começou
também a colaborar com outros coreógrafos, como Hironobu Oikawa,
ampliando gradativamente sua rede de contatos no universo das
experimentações cênicas de um Japão pós-guerra.
Em 1954, ano da morte de sua mãe, atuou junto com Kazuo Ōno
sobre o mesmo palco em uma peça intitulada Karasu – “O Corvo”26, utilizando
pela primeira vez o sobrenome de Hijikata, “Kunio Hijikata”. A partir deste dia,
continuou participando de diversos recitais organizados pelo grupo Horiuchi
Kan – Unique Ballet de Andō, até o ano de 1958, quando iniciou sua nova fase de
experimentos cênicos. Este período de explorações foi também potencializado
especialmente pelo encontro, em 1956, com a dançarina Akiko Motofuji – sua
futura parceira profissional e pessoal – e com o Asbestos Hall – seu futuro
estúdio e base essencial para a elaboração da subversiva concepção de seu
Ankoku Butō. Assim como Hijikata, Motofuji apresentava uma constituição
corporal muito distinta, praticamente desarmônica com as anatomias
convencionais propostas seja pela dança tradicional japonesa como pelo balé
clássico ocidental. Seu corpo curto e robusto impediu o seu desenvolvimento
ao interno destas práticas devido à rigorosidade estética imposta por alguns de
seus cânones tradicionais.
Em 1958, Kunio modificou definitivamente seu novo nome artístico
para “Tatsumi Hijikata”, coreografando e atuando em uma pequena peça
intitulada Haniwa no mai – “Dança da estátua sepulcral”. Em abril de 1959,
colaborou com Kazuo Ōno dirigindo seu trabalho experimental intitulado “O
velho e o mar”: uma peça baseada na novela de Ernest Hemingway e
apresentada ao interno do 5º recital de dança moderna, no Dai-ichi Seimei Hall,
em Tóquio, mas desacreditada pela crítica.
Contudo, o ano de 1959 permanece realmente marcado na história pela
messa in scena da revolucionária peça criada por Hijikata, a qual se apresentou
indicação de Kinjiki como responsável pelo seu afastamento, foi escolhida aqui a
manutenção desta informação predominante, ressaltando, porém, esta divergência
colhida no depoimento de Ōno.
29 Segundo Viala e Masson-Sekine (1988, p. 64), no início dos anos 60, Hijikata
nomeava o seu trabalho mais especificamente como Ankoku Buyō, adotando somente
alguns anos mais tarde o termo Ankoku Butō, buscando diferenciá-lo da dança moderna
e da dança tradicional, às quais se referiam, historicamente, o termo Buyō. A palavra
Butō, por sua vez, durante o período Meiji (1868 – 1912), indicava as danças de salão e
as danças que não pertenciam à tradição japonesa, tornando-se obsoleta
posteriormente. Em uma perspectiva etimológica, não existe uma definição unívoca
para os ideogramas que formam a palavra Butō, mas usualmente bu significaria
“movimentos etéreos” e tō remeteria ao movimento de “golpear o piso” ou “pisar
profundamente”. De qualquer forma, é interessante observar que a contradição está
sempre presente nas diferentes tentativas de tradução do termo.
30 Contudo, Tatsumi Hijikata nunca se identificou explicitamente com qualquer
movimento coletivo de vanguarda. Em uma entrevista em 1974, segundo Barber (2006,
p. 66), declarou considerar o próprio termo “vanguarda” como uma imposição
linguística europeia, com nenhum equivalente na língua e na arte japonesa. Para explicar
porque nunca se viu como sendo alguém de vanguarda, afirmou que “se você corre em
volta de uma pista e está um circuito completo atrás de qualquer um, então você está
sozinho e parece ser o primeiro. Talvez isso seja o que aconteceu comigo…”.
60
companhia de artistas, poetas e coreógrafos, permitiu que Hijikata construísse
uma rede de contatos e colaborações entre as principais figuras da cultura
experimental da cidade. Em meio às revoltas e manifestações urbanas do início
dos anos 60, Hijikata organizou uma série de eventos e performances realizados de
forma improvisada pelas ruas da cidade e ao interno de seu estúdio, o Asbestos-
kan, contando com a colaboração de muitos destes artistas.
Estas manifestações, organizadas como uma espécie de happening,
contavam com a participação de músicos, artistas plásticos, coreógrafos e
filmmakers, e foi denominada inicialmente 650 Experience – número que
correspondia à quantidade de cadeiras existentes no Dai-ichi Semai Hall, o
teatro que hospedou a primeira performance de Kinjiki. Na verdade, estes
happenings ficaram famosos posteriormente sob o nome genérico de Dance
experience revelando assim o eixo central da concepção de dança proposta por
Tatsumi Hijikata, ou seja, a dança enquanto uma verdadeira e profunda
experiência do público e do dançarino, contrapondo-se a uma perspectiva da
dança como um objeto estético, um símbolo ou uma inferência, possível de ser
contemplada passivamente. Neste sentido, a provocação, o perigo e outras
formas de desequilíbrio sensorial eram sempre presentes nestes eventos.
Ao interno destas experimentações performativas, de 1960 a 1966,
constituiu-se o Ankoku Butō-ha, grupo formado por alguns jovens dançarinos
como Akira Kasai e Yoshito Ōno que atuavam juntamente com Tatsumi
Hijikata e Kazuo Ōno em happenings e na encenação de alguns importantes
espetáculos. Uma das performances mais significativas na vida de Kazuo Ōno,
e que representou um de seus principais pontos de reformulação criativa,
aconteceu em 1960 e foi intitulada Divinariane, uma cena baseada na obra Nossa
Senhora das Flores de Jean Genet, na qual Hijikata dirigiu Ōno no papel de Divine,
uma velha prostituta transexual que o tocou profundamente e contaminou em
modo decisivo a sua futura poética.
Klein (1988, p. 16), destaca também outros importantes trabalhos do
Ankoku Butō-ha naqueles anos, como Hanin-hanyosha no Hirusagari no Higi
(“Cerimônia secreta de uma hermafrodita no início da tarde”), de 1961; Anma –
Aiyoku o Sasaeru Gekijo no Hanashi (“O massagista cego – Uma história teatral
em apoio ao amor e à luxúria”) de 1963; a memorável performance Bara Iro
Dansu – A la Maison de M. Civeçawa (“Uma dança colorida de rosa – Na casa o
senhor Shibusawa”), de 1965; e o último trabalho oficial do Ankoku Butō-ha,
61
encenado no Kinokuniya Hall em 1966 e intitulado Tomato – Seiai Onchōgaku
Shinanzue (Tomate – Lições introdutórias aos beatos ensinamentos do amor
erótico).
Neste mesmo período, a partir do início dos anos 60, Hijikata começou
a publicar seus textos-manifesto que o acompanhariam por toda a vida, tais
como “Inner Material/Material” (julho de 1960), “To prision” (janeiro de 1961),
“From Being Jealous of a Dog’s Vein” (maio de 1969) e “Wind Daruma” (maio de
1985)31. Estes escritos compartilham alguns fragmentos de sua vida e, ao
apresentar experiências que o ajudaram a elaborar suas concepções, torna
possível o acesso a alguns dos principais elementos que configuram a sua
poética. No manifesto To prision, por exemplo, ressalta os motivos pelos quais
uma criminalidade obstinada permeia seu trabalho:
31 Todos estes textos foram publicados na revista The Drama Review (TDR 165, 2000)
e traduzidos por Jacqueline S. Ruyak e Nanako Kurihara, possuindo como títulos
originais, respectivamente, “Naka no sozai/sozai” (divulgado como panfleto para Hijikata
DANCE EXPERIENCE no kai), “Keimusho e” (publicado em Mita Bungaku), “Inu no
jōmyakuni shitto suru koto kara” (publicado em Bijutsu Techō) e“Kaze Daruma” (fruto da
conferência intitulada “Suijakutai no saishū” – “Coleção do corpo enfraquecido”
proferida na noite anterior do 1º Festival de Butō, em Tóquio: Butō zangeroku shūsei:
shichinin no kisetsu to shiro – “Collected Record of Butoh Confessions: Seven Persons’
Seasons and Castles”, em fevereiro de 1985, e publicado como “Kaze Daruma: Butō
zangeroku shūsei em Gendaishi techō, em maio de 1985).
62
auto-ativação humana, incluindo a homossexualidade
masculina, o crime e uma batalha naife com a natureza, pode
naturalmente ser um protesto contra a ‘alienação do
trabalho’ na sociedade capitalista. Esta é também
provavelmente a razão porque expressamente aproximei-me
dos marginais” (Hijikata, To prision, 1961, in TDR, 2000, p.
44/5).
32 Segundo D’Orazi (2008, p. 44), o termo Anma, além de significar “massagista”, pode
também ser utilizado para referir-se à “masturbação”, movendo-se assim ao interno de
um universo semântico que denotaria um “ato de amor imaginário que dura o tempo de
sintonia entre consciência e fantasia”.
63
Durante este espetáculo diversos doces de arroz em forma de boca,
mãos e pênis foram colocados dentro de caixas e vendidos aos expectadores
como um ato simbólico da oferta dos dançarinos: corpos expostos em uma
doação de si tão integral a ponto de poderem inclusive ser comidos. Akira
Kasai foi mais além na sua leitura e aproximou este ato a uma antiga prática
japonesa chamada musume sokubaikai, que significa literalmente “a venda da
filha”.
Outra cena marcante de Bara Iro Dansu foi protagonizada pelo
dançarino Tamano Kōichi, o qual apareceu iluminado em um canto do teatro
com suas costas todas pintadas, transformando-se em uma gigantesca vagina.
Em certo sentido, esta subversão anatômica e a consequente supervalorização
das costas enquanto superfície cênica o constringiu a tomar consciência de uma
parte não visível de seu corpo. A consequente reelaboração sinestésica realizada
pelo dançarino tornou possível que ele tivesse uma experiência de intercâmbio
com a materialidade de seu próprio organismo, ajudando-o assim a impedir que
a dança se perdesse em imagens abstratas. Deste modo, começavam a esboçar-
se as bases do grandioso projeto de insurreição física colocado em cena por
Tatsumi Hijikata, no qual as explorações das amplas possibilidades de sensações
corporais serviriam como fio condutor para “reescrever a anatomia e rebelar-se
contra a história” (D’Orazi, 2008, p. 46).
O espetáculo Tomato (Tomate), realizado no ano de 1966, ficou
marcado historicamente como sendo a última performance do grupo Ankoku
Butō, e o início da longa suspensão da colaboração artística entre Kazuo Ōno e
Tatsumi Hijikata. Esta significativa ausência de grandes colaborações entre
ambos – a qual perdurou por quase uma década – não possui uma justificativa
conhecida, deixando uma grande lacuna nas compilações históricas dos críticos
contemporâneos da dança Butō33. Porém, é certo que a crise criativa vivida por
Kazuo Ōno nos anos subsequentes jogou um papel decisivo na suspensão
desta relação, como será visto no próximo capítulo.
36 A presença do pênis dourado, bem como do carro cerimonial que conduz Hijikata
ao palco, fez com que muitos pesquisadores, como Barber (2006, p. 68), afirmassem a
influência direta de Artaud sobre o espetáculo e a poética de Hijikata, a partir da obra
Heliogabalus, a qual é protagonizada pelo jovem, onipotente e autoproclamado Deus-sol.
Contudo, apesar das similaridades de seus revolucionários projetos, a inspiração
“artaudniana” na poética de Hijikata é fortemente contestada pelos historiadores
japoneses – como Kuniyoshi, Morishita, Ishii e Gōda. Maiores aprofundamentos sobre
esta polêmica e sobre a poética de Hijikata serão apresentados mais adiante.
66
existência de algumas cenas perigosas. Contudo, mesmo que ele não tenha
efetivamente conseguido concretizá-la sobre o palco, apenas o fato de tê-la
criado, fez com que ele considerasse este ano como sendo o verdadeiro início
de seu Ankoku Butō (Morishita, 2009, p. 18).
Por toda a década de 60, Hijikata transitou também por outras
linguagens artísticas e colaborou com alguns diretores experimentais de cinema,
atuando em alguns filmes de vanguarda e comerciais. As produções
experimentais mais relevantes deste período foram as colaborações com Eikō
Hosoe – com a sua única produção cinematográfica “Umbigo e Bomba
atômica” (1960) –, com o norte-americano Donald Richie – “Sacrifício” (ainda
em 1959) e “Jogos de Guerra” (1962) – e a filmagem dos espetáculos Anma e
Bara Iro Dansu, realizadas pelo jovem filmmaker Takahiko Iimura (Barber, 2006,
p. 50).
Já entre as produções comerciais, em sua grande maioria filmes de
horror, destacam-se “A inquietante humanidade deformada” (1969), de Teruo
Ishii; “O espírito do mal japonês” (1970), de Kazuo Kuroki; “A maldição do
gato negro” (1970), também de Teruo Ishii; e “Cinzas do vento”, de 1975,
identificada como sendo a produção mais significativa de todas, segundo
Kuniyoshi (Entrevista pessoal, 2009), pois foi o “único filme no qual Hijikata
interpretou a si mesmo”. Esta passagem pelo universo do cinema, apesar de
não ter sido tão representativa na vida artística de Hijikata, serviu ao menos
como um espaço paralelo de experimentações no qual pôde colocar em cena
personagens fictícios, contrastando assim a realidade crua da materialidade de
seu corpo que buscava colocar em cena em seu Ankoku Butō.
Com o funcionamento do Asbestos-kan, desde os meados da década
de 60, como grande laboratório para os experimentos cênicos de Hijikata,
muitos jovens foram atraídos devido à acidez demonstrada pelos seus
espetáculos, recebidos com grande apreço pelo contexto de rupturas e revoltas
sociais característicos daquela época. Na segunda metade dos anos 60, teve
assim início o trabalho de Hijikata como mestre e coreógrafo, dedicando-se
também à formação, em modo anárquico e sistemático, de inúmeros
67
discípulos37 como Tomiko Takai, Yōko Ashikawa, Saga Kobayashi, Momoko
Nimura, Yukio Waguri, dentre tantos outros38.
No início da década de 70, Hijikata possui já um percurso artístico
consolidado e dedica-se a um aprofundamento das bases filosóficas e
metodológicas de sua dança a partir dos experimentos com os jovens aspirantes
que frequentam seu estúdio. Unindo alguns destes desconhecidos dançarinos,
com a colaboração de escritores e poetas experimentais, Hijikata criou o grupo
Hangi daitō kan – “Espelho da grande dança do sacrifício” e começou a colocar
em cena uma série de espetáculos nos anos seguintes.
39 Para o crítico Gōda (Klein, 1988, p. 85), o trabalho de Hijikata nestes anos “assumiu
a grande dança da natureza como seu modelo, queimando, sacrificando o corpo pelos
outros. Em suma, o princípio de sua dança exprimia a ideia de que somente
desfazendo-se do corpo e transcendendo o sofrimento seria possível criar uma dança
verdadeira, e que o Butō começa com o abandono do self ”.
40 Destacam-se também Oshi no Tane – “Sementes de uma restrição” (1970), Bai rabu –
“Amor à venda” (1971), Shizukana ie Zenpen – “Casa tranquila, primeiro e segundo
tempo” (1973) (TDR, 2000, p. 30/1).
41 As traduções dos títulos são aproximativas e trazidas da obra de D’Orazi (2008, p.
62), uma vez que apresentam conceitos ambíguos ou regionais, tornando-os
praticamente intraduzíveis, como no caso de Susame dama, que poderia significar algo
como “uma bela mulher que torna-se bruta” ou “uma prostituta que cresceu selvagem”;
e de Gibasan, o nome regional de uma particular alga marinha que nasce na costa de
Akita (Kurihara, TDR, 2000, p. 26)
69
Deste modo, Tatsumi Hijikata colocou em cena uma de suas mais
famosas séries e viu o nascimento de uma linguagem física que, por mais que se
referisse unicamente ao seu universo e à memória escondida ao interno de seu
corpo, foi considerada posteriormente como a “forma” da dança Butō, isto é,
uma espécie de gestualidade codificada e estereotipada: a postura curvada, os
joelhos dobrados, o centro de gravidade baixo, as pernas arqueadas, as
expressões faciais deformadas e os olhos revirados. Eram, na verdade, somente
os corpos de velhas camponesas que habitavam a sua memória, desfiguradas
pelo trabalho pesado, com suas colunas tortas pela semeadura e pela colheita
dos campos de arroz que hospedam o frio de Tōhoku.
Explorando profundamente a escuridão destas memórias de sua
origem, Hijikata transformou o seu Tōhoku em uma dimensão imaginária, sem
espaço e nem tempo. Em uma entrevista42 ele chegou a afirmar que existe um
Tōhoku em qualquer lugar, pois a profunda escuridão existe em toda parte do
mundo: a escuridão da existência e suas contradições, mas também a potência
da vida (D’Orazi, 2008, p. 59). Com “Vinte sete noites para quatro estações”
começa a ser esboçado o longo projeto de Hijikata intitulado Tōhoku Kabuki,
que o acompanhará até o final de sua vida, sendo parcialmente realizado.
Em 1973, colocou em cena Natsu no Arashi – “Temporal Estivo” no
Seibu Kōdō Hall da Universidade de Kyoto, um dos poucos espetáculos
registrados integralmente pelos estudantes da universidade e uma das últimas
participações de Hijikata sobre os palcos, participando de dois atos intitulados
“A menina” e “Lepra”, inspirados na obra “Dolls” do artista alemão Hans
Bellmer, na qual ironizava o padrão de beleza feminino proclamado pela cultura
nazista. Neste mesmo ano abandona os palcos como dançarino, aos 45 anos de
idade e no auge de sua popularidade com os críticos e o público, para dedicar-se
exclusivamente a função de diretor e coreógrafo43.
42 Kyokutanna gōsha: Hijikata Tatsumi shi intabyū – “A extrema luxúria: entrevista do Sr.
Hijikata Tatsumi”, publicada em W-NOtation, julho, 1985, p. 2-27 e citada por Kurihara
(TDR, 2000, p. 21).
43 Alguns historiadores, mesmo sem muito rigor ou preocupação, identificam este
abandono dos palcos como um dos principais motivos para o desaparecimento do
prefixo ankoku do nome de sua dança. Mesmo sem muitas confirmações documentais,
afirmam que o fato de não colocar mais em cena, material e corporalmente, a sua
70
Em junho de 1974, criou uma série de trabalhos de Butō44 que deu
início ao grupo Hakutōbō, constituído exclusivamente por mulheres, tendo
como figura central a sua pupila Yōko Ashikawa. O forte acento feminino na
configuração de seu novo grupo, refletia um novo experimento de Hijikata, que
se sentia já há alguns anos “habitado” por sua irmã morta45, fazendo inclusive
com que seu aspecto físico se assemelhasse a ela. Segundo Hijikata, as
“mulheres nasceram com a habilidade de experimentar a parte ilógica da
realidade e são consequentemente capazes de encarnar o lado ilógico da dança.
Se você imagina um corpo masculino entorno a um centro, então um feminino
abre-se para fora em um ato de dispersão de sementes” (in Viala e Masson-
Sekine, 1988, p. 84). O grupo realizou seu último espetáculo em 1976, mesmo
ano do fechamento do Asbestos-kan devido às inúmeras reclamações dos
vizinhos.
Em novembro de 1977, auxiliou Kazuo Ōno em seu retorno aos
palcos, depois de quase uma década de silêncio criativo, dirigindo o seu célebre
espetáculo Ra Aruhenchīna-shō – “Homenagem para La Argentina”, o qual foi
apresentado, três anos mais tarde, em 1980, no Festival de Nancy, na França,
projetando Kazuo Ōno e a dança Butō em todo o Ocidente. Hijikata ainda
dirigiu Kazuo em outros dois grandes espetáculos: Watashi no okasan – “Minha
mãe”, em janeiro de 1981, no Dai-ichi Semei Hall, em Tóquio; e Shikai – “Mar
morto”, que estreou durante o 1º Festival de Butō, em fevereiro de 1985, no
Asahi Hall, também em Tóquio. Neste mesmo evento – símbolo de um tardio
reconhecimento pela cultura japonesa da importância desta sua nova
2.3.1) Tōhoku
75
A lama que se formava nas primeiras semanas da primavera também
deixou marcas indeléveis no corpo de Hijikata. Em Wind Daruma (TDR, 2000,
p. 73), conta com detalhes uma experiência infantil de quando caiu dentro de
uma poça de lama e vivenciou estranhas sensações em seu corpo. Em uma
descrição com fragmentos quase surrealistas, identifica a impotência de seus
movimentos e a impossibilidade de sua fala como um verdadeiro retorno ao
zero, ao ponto de partida de seu próprio corpo48.
A infância de Hijikata gravou também em seu corpo as relações que
possuía com seus outros dez irmãos. Sendo o filho mais novo, assistiu a partida
de todos os seus irmãos homens para a guerra e presenciou os seus retornos
como “areia em urnas funerárias”. A constante ausência de sua mãe devido aos
trabalhos e à responsabilidade com todos os outros filhos, fez com que Hijikata
saciasse a sua necessidade de amor materno na relação com sua irmã mais
velha, que substituíra a mãe em seus cuidados. A venda, e a posterior morte,
desta sua irmã-mãe49 afetou profundamente o jovem Hijikata, fazendo com que
ele sentisse a sua presença dentro de si por toda a sua vida, influenciando, em
modo decisivo, a poética da fase mais madura de seu percurso artístico.
No artigo “From Being Jealous of a Dog’s Vein”, escrito originalmente
para o Bijutsu techō (Art Notebook, 1969), Hijikata expõe com mais detalhes
como algumas de suas ideias são baseadas em suas memórias do Tōhoku, e
como a sua irmã mais velha veio habitar ao interno de seu corpo. Segundo
Kurihara (TDR, 2000, p. 20), por volta deste período Hijikata começou a vestir
48 “Meu butō começa ali, com aquilo que aprendi da lama do início da primavera, não
de algo que tenha a ver com artes performativas de santuários e templos. Estou
claramente consciente que nasci da lama e que meus movimentos hoje são todos
construídos sobre ela” (Hijikata, Wind Daruma, 1985, in TDR, 2000, p. 74).
49 No início do século XX, no Japão, ainda perdurava uma antiga prática cultural na
qual as famílias pobres vendiam suas filhas como geishas, para conseguir ampliar as suas
rendas. Contudo, mesmo que Hijikata sempre tenha se referido a este triste destino de
sua irmã, Akiko Motofuji – sua ex-mulher – afirma que a família de Hijikata não era
assim tão pobre a ponto de ter que vender a própria filha (D’Orazi, 2008, p. 109). De
qualquer forma, mesmo que em um sentido metafórico, esta imagem foi continuamente
afirmada por ele, acompanhando-o por toda a sua vida.
76
um quimono e deixar seus longos cabelos soltos ou presos em forma de coque,
utilizando prioritariamente a linguagem feminina50 em suas intervenções.
Para Gōda (in Klein, 1988, p. 85), a noção de que a sua irmã vivia
dentro de seu corpo foi para Hijikata um concreto ponto de início para
conceber a existência corpórea (bodily existence). E assim, através desta sua
habilidade de questionar profundamente o seu próprio corpo, conseguiu
compreender o seu nascimento e a sua formação, moldado pelas paisagens de
Akita. Começava aqui o esboço de um de seus grandes princípios
metodológicos, ou seja, a tentativa de restabelecer o corpo à sua dimensão
natural “perpassando-o com o principio de que para qualquer coisa
transformar-se em seu próprio lócus de expressão, precisa antes adequar-se ao
grande esquema da natureza”. Construiu-se assim cada vez mais a certeza de
que o Butō deveria ser criado a partir do próprio corpo.
O inverno da região de Tōhoku apresentou também à infância de
Hijikata noites de um escuro profundo que tornavam mais visíveis as estrelas
(Barber, 2006, p. 13), ajudando-o a construir outra percepção das trevas e da
escuridão, permeada por uma dialética essencial. “Escuridão é o melhor símbolo
para a luz. Não existe possibilidade para se entender a natureza da luz se nunca
observar profundamente a escuridão. Um entendimento exato de ambos requer
que ambas as suas inerentes naturezas sejam realmente entendidas” (Hijikata, in
Viala e Masson-Sekine, 1988, p. 188). É interessante observar também que esta
contradição é inerente até mesmo no nível etimológico do termo japonês
ankoku, pois nas inúmeras interpretações possíveis dos kanjis que formam o
conceito ankoku51, a conotação semântica de “luz subtraída” é evidentemente
sugerida.
52 Segundo Gōda (in Klein, 1988, p. 83), devido à sua origem camponesa, o ato de
matar um frango poderia também possuir outras significações para Hijikata,
recordando-o a excitação da chegada de um hóspede especial ou da preparação de uma
festa. Com isso procura insinuar outras possíveis leituras para a famosa cena de Kinjiki
(1959).
79
treinamentos sons evocativos e onomatopeias que, para ele, possuíam realmente
uma fisicidade. Neste sentido, para ele o corpo era uma metáfora das palavras e
as palavras eram uma metáfora do corpo (Kurihara, TDR, 2000, p. 16).
Contudo, além de servirem como uma ferramenta ativa em seu
processo sutil de comunicação, as palavras para Hijikata também foram
elementos fundamentais para o estímulo de sua criatividade. Livros e poesias
sempre foram suas grandes fontes de inspiração. Leitor voraz de literatura,
absorveu os mais diferentes escritores nacionais e internacionais –
principalmente os grandes nomes da contracultura europeia que vinham sendo
traduzidos com afinco por militantes da vanguarda artística dos anos 60.
Publicações ocidentais que geraram grande entusiasmo na época justamente
porque representavam muitas temáticas que reforçavam a aura de dissidência
social e revolução corporal daqueles anos, como o corpo em permanente
oposição e as transformações sexuais. Escritores ocidentais como Jean Paul
Sartre, Friedrich Nietzsche, Marquês de Sade, Herbert Marcuse e George
Bataille acentuaram alguns desequilíbrios e deram nomes precisos a muitos
conceitos dentro aos quais Hijikata já se movia em modo instintivo.
Depois da encenação de Kinjiki, Hijikata conheceu Mishima, autor da
novela da qual emprestou o título de sua performance. Mishima demonstrou-se
profundamente interessado em seu trabalho e começou a frequentar seu
estúdio, estimulando e apresentando Hijikata à importantes figuras da vida
cultural japonesa. Dentre estes, destacou-se Tatsuhiko Shibusawa, um erudito
estudante de literatura francesa e responsável pela tradução de algumas grandes
obras53 francesas para a língua japonesa. Shibusawa tornou-se assim um amigo
muito próximo de Hijikata, fornindo-o com inúmeras produções de vanguarda
da literatura e do pensamento contemporâneo ocidental.
Neste sentido, é possível admitir que nos primeiros anos do Ankoku
Butō de Hijikata está presente uma escuridão que vai muito mais além das cores
e das noites profundas do Tōhoku. Com a ajuda de Shibusawa e de sua leitura
voraz, Hijikata começou a contaminar o seu ankoku com elementos provindos
54 Fraleigh e Nakamura (2006, p. 23), vão mais além e arriscam afirmar que “ankoku foi
pego dos filmes populares franceses daquele tempo – os “film noir”, que são ankoku eiga
(filmes sombrios) em japonês. Hijikata nomeou a sua nova forma de dança Ankoku
Butō”.
55 Além de Hijikata ter já utilizado o sobrenome “Genet” como seu nome artístico no
início de sua carreira, em seus escritos também é possível encontrar a referência a ele
como “São Genet” (Fraleigh e Nakamura, 2006, p.8).
81
humano. Mas foram justamente os personagens criados por Genet que o
fizeram tocar em um modelo de percepção sensorial que pudesse ser trabalhado
para transformar a imaginação em imagens (D’Orazi, 2008, p. 38). Foi a partir
de seu texto To prison (1961) que Hijikata revelou em modo mais evidente a
presença de outros pensadores em seu imaginário – como Bataille, Nietzsche,
Sade e Marcuse – os quais, somando-se a Genet, o ajudaram a começar a focar
a sua poética no corpo e em suas próprias experiências.
A sólida base de partida oferecida por esses “autores malditos” a
Tatsumi Hijikata, levou o dançarino Akira Kasai a afirmar que Hijikata
representou mais a heresia do espírito europeu do que os distúrbios de uma
alma tipicamente japonesa (in D’Orazi, 2008, p. 117). Mesmo que esta
afirmação pareça reduzir a complexidade de suas matrizes poéticas, é
interessante observar como também pode conduzir a uma reflexão mais ampla
na qual permite identificar as influências ocidentais sofridas por Hijikata não
somente no âmbito literário, mas na pluralidade de manifestações inerentes a
diversos movimentos artísticos, como o surrealismo, o neodadaísmo, o
existencialismo e o expressionismo (Kuniyoshi, Entrevista pessoal, 2009).
Para Gōda (in Fraleigh, 1999, p. 174), o trabalho de Hijikata apresentar-
se-ia como uma espécie de “dadaísmo japonês”56. O poeta Shuzo Takiguchi57,
por sua vez, identifica o Ankoku Butō de Tatsumi Hijikata como um projeto
surrealista muito próximo, intencionalmente ou não, ao projeto guia dos
56 Mesmo que no Japão, entre os anos 10 e 20, não tenha existido um movimento
equivalente ao Dadaísmo europeu, no momento em que Hijikata estava colocando em
cena as primeiras performances de seu Ankoku Butō, pôde colaborar muitas vezes, e fazer
amizades, com integrantes do movimento Neodadaísta. Neste período, Tóquio ainda
estava hospedando as primeiras intervenções dos jovens artistas que, com seus cabelos
moicanos, executavam ações performativas ou criavam gigantescas pinturas ao ar livre
realizadas com gestos bruscos e furiosos (Barber, 2006, p. 35).
57 Editor da revista surrealista japonesa e muito admirado por Hijikata. Conseguiu
estabelecer contatos com o movimento surrealista francês com o objetivo de quebrar o
vulnerável isolamento dos surrealistas japoneses, viajando inclusive algumas vezes a
Paris para encontrar seu líder André Breton, traduzindo posteriormente a sua obra para
a língua japonesa (Barber, 2006, p. 34). Takiguchi frequentou por muito tempo o “bar
Gibbon”, uma espécie de drinking-club anexo ao Asbestos-kan, no qual Hijikata passava
muitas de suas noites bebendo e conversando sobre arte.
82
surrealistas franceses da década de 20 que reivindicavam a revolução anatômica
e a revolta sensorial. A pesquisadora do surrealismo japonês Miryam Sas (in
Barber, 2006, p. 34) reforça esta opinião sugerindo que o Ankoku Butō de
Hijikata incorpora um modo subversivo, anti-lógico e improvisador que pode
ter no movimento surrealista um importante precedente.
Um retrato fiel desta pluralidade de referências artísticas, sejam elas
ocidentais ou não, é possível ser encontrado ao interno de uma das maiores
heranças intelectuais e poéticas deixadas por Tatsumi Hijikata: o seu Butō-fu, ou
“partitura” Butō. O Butō-fu seria, na verdade, o conjunto de seus escritos
privados, reunidos em uma notável quantidade de cadernos de anotações e
álbuns58 que não tinham a intenção de serem publicados, mas somente o
objetivo de registrarem o seu processo criativo, bem como de compartilhá-lo
em modo mais concreto com seus dançarinos através de uma mesma
linguagem.
Segundo Kuniyoshi (in Biblioteca Teatrale, 79-80, 2006, p. 156), na
construção de seu processo criativo, Tatsumi Hijikata “usava muitos materiais
diversos, recortava fotografias, ilustrações, tudo aquilo que achava interessante
para o espetáculo, e colava em um de seus álbuns, onde escrevia diretamente as
suas anotações”. Ele utilizava como inspiração muitas pinturas das mais
variadas origens, em particular artistas como Gustav Klimt, Willem De
Kooning, Francis Bacon, William Turner, Alfred De Musset, Gustave Moreau,
Johannes Vermeer, Salvador Dalì, Pablo Picasso, Francisco Goya, Edvard
Munch, Paul Klee, Marc Chagall, Fernand Léger, Leonardo da Vinci, dentre
outros. Utilizou mais de cinquenta tipologias de obras, incluindo, por exemplo,
arte medieval japonesa, estátuas de Buda e afrescos de Altamira. Portanto, já
que a escolha das imagens não se apresentava condicionada por apenas uma
escola artística, não seria possível encaixá-lo exclusivamente dentro de uma
categoria, seja ela surrealista, dadaísta, ou outra qualquer.
90
gestualidade típica ou estilizada para procurar incorporar a subversão imanente
à arte popular62 e à cultura camponesa.
64 “Eu desisti de mim mesmo conversando com camisas nos vestiários, maravilhando-
me com os muitos odores de suor que podem ser cheirados em suas fibras removidas.
Do lado contrário das camisas, eu retirei uma dança do avesso” (Hijikata, Inner Material,
1960, in TDR, 2000, p. 39).
65 Referências a esta influência podem ser observadas, de forma detalhada ou apenas
insinuada, na obra de autores como Barber (2006), Klein (1988), Fraleigh (1999), De
Marinis (1999), D’Orazi (2008), dentre muitos outros.
96
explicar aquilo que é proposto por uma cultura menos conhecida. Quando
questionados sobre o assunto, praticamente todos os principais pesquisadores
japoneses66 refutam em modo pragmático – talvez também com matizes
etnocêntricas – esta filiação direta de Hijikata ao pensamento de Artaud.
Evidentemente não negam o seu conhecimento sobre os escritos de Artaud,
mas procuram afastá-lo de uma concepção que o circunscreva como sendo
somente uma releitura prática de um projeto herético artaudniano.
Segundo Kuniyoshi (Entrevista pessoal, 2009), o primeiro livro de
Artaud a ser traduzido para a língua japonesa foi O teatro e seu duplo, somente em
1965, isto é, quase três anos antes da encenação do espetáculo “Rebelião da
carne” (1968) – um dos ápices do projeto de insurreição física de Hijikata e,
repetidamente, vinculado à obra de Artaud pelos pesquisadores ocidentais.
Contudo, a pesquisadora observa também que, em 1965, Hijikata já possui
quase uma década de experimentos cênicos, tendo lançado as bases de seu
projeto político-artístico, muitos anos antes, através de seus Dance Experience e
de importantes publicações, tais como Naka no sozai/sozai – “Inner Material/
Material” (1960) e Keimusho e – “To prison” (1961), nas quais expõe em modo
evidente muitos dos elementos que compõem a sua poética e embasam a sua
práxis.
Neste sentido, seria tão impossível negar a presença de Antonin Artaud
entre os autores malditos que alimentaram o ankoku de Hijikata, como afirmar
seguramente a sua predominância diante dos outros vários estímulos literários
que compõem a sua poética, como Bataille, Sartre, Genet, Marcuse, dentre
outros. Sem dúvida alguma, a discussão sobre estas complexas relações e as
diferenças entre o Ankoku Butō de Hijikata e o thêatre de la cruauté de Artaud é
muito vasta e permanecerá em aberto ainda por muito tempo67.
2.4.1) Metamorfose
70 A expressão “corpo roubado” foi utilizada pelo crítico Miyabi Ichikawa em seu
artigo Butō’ Josetsu – “A preface to Butō”, originalmente publicado em Butō: Nikutai no
Suriarisuto-tachi – “Butō: Surrealists of the flesh”, ed. Hanaga Mitsutoshi (Tokyo: Gendai
Shokan, 1983), e reproposto como apêndice da obra de Klein (1988, p. 71).
99
técnicos desenvolvidos por Hijikata71 para a desconstrução do corpo cultural e
da individualidade de seus dançarinos.
A metamorfose aparece como um dos principais caminhos para a
sublimação do “corpo perdido” na banalidade da existência ordinária, tornando
possível o desaparecimento do sujeito individual enquanto uma estratégia
explícita de desafio ao mito moderno do individualismo. A força corrosiva com
a qual o Ankoku Butō de Hijikata afrontou esta questão baseou-se no
entendimento de que na sociedade moderna qualquer tentativa de manutenção
do sentimento de individualidade – o sentimento de si mesmo enquanto um
sujeito unificado – é um esforço fadado ao falimento. Klein (1988, p.33) afirma
que dentro da lógica trabalhada pelo Butō,
73 Segundo Harpham (in Klein, 1988, p. 40), a metamorfose perpétua seria também
uma das premissas centrais do mundo mítico do pensamento primitivo, que operaria
sobre o princípio do continuum cósmico. “De acordo com este princípio, nenhum reino
da existência, visível ou invisível, passado ou presente, é totalmente descontínuo com
qualquer outro, mas todos são igualmente acessíveis e mutuamente interdependentes”.
74 Para Akira Kasai, um dos integrantes do Ankoku Butō-ha criado por Hijikata no
início dos anos 60, a dança Butō não é um movimento ecológico ou político, mas sim
um movimento em direção à cura daquilo que chama de “corpo comunitário”. Para ele,
a dança pode nos conectar com os outros e com o passado, e esta comunidade é mais
importante que o individualismo (Fraleigh e Nakamura, 2006, p.39). É importante
102
e o consequente zeramento do corpo, em um nível quase molecular, Hijikata foi
capaz de conduzir um processo de desconstrução dos automatismos gestuais e
de ressignificação da materialidade do organismo humano. Deparou-se assim
com uma substância primordial compartilhada por todas as existências que
compõem a dinâmica da natureza, acolhendo tanto a vida como a morte, sem
distinções nem hierarquias.
A técnica das contínuas transformações metamórficas proporcionou
uma estrada de mão dupla aos dançarinos que trabalharam com Hijikata pois,
de um lado, tornava possível a dissolução de seus selfs enquanto unidades
fundadoras de uma individualidade alienada; e, do outro, apresentou-lhes níveis
sutis e primordiais da materialidade de suas anatomias, compartilhados com
dimensões mais amplas da natureza. Desta forma, foi possível restituir o corpo
ao seu estado natural, permitindo-o de conjugar o princípio da natureza no qual
para qualquer coisa transformar-se em seu próprio lócus de expressão – ou
adquirir a sua própria voz subjetiva –, deveria primeiramente adaptar-se ao
grande esquema da natureza (Klein, 1988, p. 86). Neste caso, a única voz
subjetiva ou expressão que poderia provir do dançarino não seria o resultado de
uma sua assertiva pessoal, mas uma “secreção natural” causada pelo
conhecimento de seu lugar ao interno do continuum cósmico.
Esta suposta restituição do corpo ao seu estado natural, além de
proporcionar uma relativa diluição do indivíduo em uma substância primordial,
potencializaria também a construção de uma maior afinidade com alguns outros
seres extra-humanos, como plantas e animais específicos. Provendo este corpo,
desta maneira, com uma forma de autoconhecimento sobre a sua natureza
fundamental, no momento em que o aproxima de seus instintos mais básicos
(Klein, 1988, p. 39).
A prática metamórfica proposta pelo Butō tinha, portanto, como
objetivo também cênico a incorporação do próprio objeto ou do ser imaginado,
observar aqui que Kasai, apesar de ser um dos precursores da dança Butō, possui um
percurso muito particular, tendo vivido por seis anos em Stuttgart, na Alemanha, a
partir de 1979, para aprofundar seus estudos na Eurritmia e na filosofia de Rudolf
Steiner, as quais, sem dúvida alguma, é presente na poética de seus trabalhos e
diferencia substancialmente as suas concepções daquelas expressas seja por Tatsumi
Hijikata como por Kazuo Ōno.
103
partindo da substância comum que os principia para posteriormente dar forma
à sua voz individual. Neste processo, a materialidade do organismo sempre
jogou um papel fundamental, pois é nela, e não em um plano abstrato, que
todas as transmutações se realizam, assumindo, uma por vez, diferentes
qualidades e consistências. A materialidade do corpo transforma-se assim no
próprio Butō.
75 “O material tem que ser um amante” (Hijikata, Inner Material, 1960, in TDR, 2000, p.
40).
105
O corpo deveria assim renunciar à sua expressividade, transformando-
se em um “corpo morto”, esvaziando-se de seus automatismos e
intencionalidades para criar um espaço fértil de reconstrução de uma próxima
existência. O corpo como um receptáculo, ou karada (pacote vazio), não
deveria, portanto, anular-se, mas sim reconstruir-se, dilatando seus intervalos de
silêncio, e transformando a si mesmo no próprio “ma”: um vazio cheio de
possibilidades.
Utilizando este repertório técnico, Tatsumi Hijikata buscava despertar a
sensibilidade corpórea valendo-se principalmente de tudo aquilo que era
considerado negativo pela sociedade, visando provocar sensações profundas
encobertas pelas regras sociais e, deste modo, dar vida a um corpo que
conseguisse transcendê-las: um corpo não-cotidiano. Com este processo de
escavação arqueológica celular, descobriu comportamentos e ações sepultadas
nos estratos profundos da existência física, desvelando a realidade do corpo
enquanto um reservatório de sensações, um acúmulo de experiências sensoriais
de tempo e espaço limitados. E ao dar vez e voz a estas dimensões de espaço-
tempo que habitam a materialidade do organismo humano, passou a
concentrar-se sobre a dança que vive ao interno do corpo.
3.2) O ARTESÃO
117
de um crescente público internacional, fazendo com que a cultura europeia não
fosse completamente desconhecida à atmosfera cosmopolita da época.
Tōzō Ōno (1880 – 1970), pai de Kazuo, desde jovem aprendeu a língua
russa e chegou a trabalhar, mais tarde, no consulado russo de Hakodate.
Contudo, passou realmente a maior parte de sua vida trabalhando como
pescador de salmão, navegando frequentemente por mares estrangeiros,
principalmente na frota marítima responsável pela região de Okhotsk. Kazuo
não pôde, portanto, aproveitar muito da escassa presença de seu pai em sua
formação, pois grande parte do pouco tempo que passava em sua cidade,
depois de navegar por muitos meses, Tōzō gastava nas casas das geishas, onde
Kazuo – como filho homem mais velho – por muitas vezes teve que ir buscá-lo
em meio às cantorias e às suas bebedeiras, que alcançavam até as primeiras
horas do dia.
Com a constante ausência do pai, Kazuo Ōno e seus irmãos
desenvolveram uma forte ligação com a mãe, Midori Ōno, a qual também
buscava preencher a solidão de suas noites conversando e contando histórias
para seus filhos antes de dormir. Kazuo recorda em seu livro (Ohno e Ohno,
2004, p. 243-4) o costume de sua mãe de contar histórias para dormir e de sua
afinidade com novelas de autores estrangeiros, principalmente as histórias de
fantasma escritas por Lafcadio Hearne. Mesmo tendo cerca de quatro anos de
idade, Kazuo ficou eternamente impressionado pela capacidade de sua mãe de
incorporar os personagens das histórias que contava, transformando-se física e
emocionalmente naqueles espectros. Esta competência performática de sua mãe
permaneceu em modo subterrâneo no corpo de Kazuo, ajudando-o a compor
em modo subliminar uma das tantas matrizes poéticas de seu percurso artístico.
Midori Ōno (1884 – 1962) possuía também uma formação muito
eclética, com um forte acento europeu em suas preferências musicais, trazendo
para dentro de sua casa a obra de personagens como Bach, Mozart e
Beethoven. De formação budista, Midori contaminou também a sua atmosfera
familiar com alguns valores característicos desta filosofia, os quais propõem
modelos menos hierarquizados de acesso à uma dimensão espiritual, bem como
a dissolução de uma doutrina antropocêntrica e o sentimento difuso de uma
profunda comunhão entre os seres. Alguns destes valores, relidos
posteriormente em uma chave com matizes cristãos, poderão também ser
identificados na poética futura de Kazuo Ōno.
O fato de ter crescido neste ambiente hibridizado com uma atmosfera
europeia, para alguns pesquisadores, como D’Orazi, (2001, p. 24), influenciou
de forma decisiva na construção de sua sensibilidade estética, aproximando-o
118
mais dos paradigmas ocidentais e fazendo-o conferir às suas obras um sabor
mais palatável aos estrangeiros. Neste sentido, estes pesquisadores defendem
que as obras de Kazuo Ōno, quando comparadas aos trabalhos colocados em
cena por Tatsumi Hijikata – permeados principalmente por elementos e
inspirações autóctones –, possuem mais elementos que serviriam como porta
de acesso para uma sensibilidade ocidental84.
Ainda em sua infância, o garoto Kazuo viveu a dura experiência das
perdas de uma irmã – atropelada por um bonde, em 1914 – e de um irmão
recém-nascido – que viria a falecer em seus braços, no ano de 1916 85. Foi
assim, deparando-se fisicamente com a morte de seus irmãos, que Ōno
começou a delinear o esboço de uma de suas importantes matrizes poéticas, ou
seja, a percepção profunda da interdependência entre todos os seres e da
onipresença da morte.
A sua formação escolar foi realizada quase toda na cidade de Ōdate,
prefeitura de Akita, onde obteve seu diploma, em 1925, e acabou
permanecendo por mais um ano para lecionar junto à Escola Elementar
Izumizawa. Durante esta sua formação, aproximou-se do time de basebol e
desde cedo demonstrou a sua propensão às práticas corporais, a qual o levou,
posteriormente, à escolha da formação em Educação Física junto ao Nihon
Taiku Daigaku (Colégio Japonês de Atlética), com sede em Tóquio, onde pôde
estudar, dentre outras coisas, os métodos ginásticos dinamarqueses e os
exercícios de expressão corporal de Rudolf Bode.
Ainda cursando o último ano do Colégio de Atlética, Kazuo Ōno foi
levado ao Teatro Imperial de Tóquio por seu amigo Yoshio Monden, para
assistir ao espetáculo Baile Español da dançarina de flamenco Antonia Mercé
(1888 – 1936), mais conhecida pelo seu nome artístico La Argentina. Kazuo
ficou fortemente impressionado com a performance que havia testemunhado,
modificando decisivamente a sua concepção de corpo e de dança, uma vez que
esta agora tinha tornado possível a revelação de profundos significados, ao
invés de limitar-se à execução de meros virtuosismos físicos. Ōno pôde
86 “Li sobre a Criação do mundo na Bíblia. Sempre interpretei esta passagem como
uma lenda, mas na dança da Argentina eu vi isso sendo realizado bem na frente de
meus olhos. Se isso era o que a Criação foi, pensei, então eu queria fazer parte disso.”
(Ohno e Ohno, 2004, p. 185).
87 “Kanzo Uchimura (1861-1930): Um influente filósofo cristão no Japão pré-guerra.
Convertido ao Cristianismo em 1877, posteriormente estudou em um seminário
teológico nos Estados Unidos. Um pacifista sincero, acreditava que a Igreja, como uma
instituição, era desnecessária e às vezes até mesmo um obstáculo para a fé cristã. Ele
cunhou o termo mukyoukai (‘cristianismo sem-igreja’) que ainda é usado para distinguir
sua tradição. Suas ideias refletem sua luta para servir a Jesus e ao Japão ao mesmo
tempo, e para desenvolver uma forma japonesa, mas intransigente, de cristianismo”
(Ohno e Ohno, 2004, p. 180).
120
pacifistas e por este desejo difuso, quase anarquista, de restituição aos seres
humanos da capacidade de conexão direta com suas dimensões espirituais, sem
instituições nem hierarquias, concebendo assim as relações entre os seres em
modo mais horizontal e equânime. De um outro lado, é possível perceber
também a impureza de seu cristianismo quando este se apresenta permeado por
valores e expressões mais comuns à cosmologia xintoísta ou budista, filosofias
estas presentes de alguma forma na sua formação familiar.
Em 1933, além de casar-se com Chie Nakagawa, sua companheira até o
final de sua vida, começou a frequentar o estúdio de Baku Ishii, ex-aluno de
Giovanni Vittorio Rossi e um dos pioneiros da dança moderna japonesa. Ishii
tinha acabado de retornar de sua tournée pela Europa e pelos Estados Unidos, na
qual pôde ter contato com os trabalhos iniciados por Isadora Duncan, Jaques-
Dalcroze e Mary Wigman, e propôs a criação no Japão daquilo que denominou
de “dança criativa”. Ōno frequentou seu estúdio apenas por um ano e decidiu
abandonar seu método de trabalho, pois não o via realmente como “uma busca
pela verdade”88.
Foi contratado pela escola batista feminina Soshin, também em
Yokohama, em 1934, como professor de Ginástica e responsável pelas aulas de
dança. Neste mesmo ano teve a oportunidade de testemunhar o espetáculo de
Harold Kreutzberg, aluno de Mary Wigman e grande expoente do
expressionismo alemão, que realizava uma tournée pelo Japão naquele período. A
sua técnica sublime e a concretização das possibilidades de expressão da alma
que emanavam de seus movimentos impressionaram Kazuo Ōno, que viria a
considerá-lo, posteriormente, como um de seus mestres indiretos. Contudo, o
impacto de Kreutzberg sobre a poética de Ōno foi muito diferente daquele
deixado pela arte de Antonia Mercé, pois enquanto este demonstrou a sutileza e
as potencialidades da técnica, La Argentina apresentou-lhe um universo no qual
a técnica parecia sucumbir diante da força geradora da vida, transformada em
corpo e gestos.
Estes estímulos misturaram-se no imaginário de Kazuo Ōno, ajudando-
o a construir uma outra concepção de dança que pudesse transcender a
primazia dos procedimentos técnicos e que permitisse escavar os níveis
profundos de verdade de seu próprio corpo. Revivia ainda os resquícios do
espetáculo de Kreutzberg, em 1936, quando decidiu aprofundar seus estudos
em dança e aproximou-se do estúdio de Eguchi Takaya e de sua mulher Misako
89 A primeira peça apresentada por Kazuo Ōno foi a imitação de um peixe, colocando
em cena a sua memória sobre o trabalho de seu pai, na ilha de Hokkaido; já na segunda,
construiu uma pequena homenagem a sua mãe. Desde estes primeiros esboços de sua
poética era já possível observar um dos mais importantes princípios de sua futura
dança, ou seja, a inspiração nos pequenos detalhes da vida cotidiana, subvertendo-os até
o ponto de fazer com que assumissem um significado cósmico (D’Orazi, 2001, p. 49).
122
de seu acampamento. Com o mesmo sentimento, recorda igualmente a dura
viagem de repatriação, na qual milhares de soldados foram transportados
espremidos como sardinhas no fundo do navio, em condições desumanas que
levaram muitos à morte. O triplo apito do navio que anunciava o lançamento
dos corpos sem vida em alto mar, permaneceu eternamente em Kazuo90.
Dos cerca oitocentos mil prisioneiros que se encontravam reclusos no
campo de Nova Guiné, mais de seiscentos mil perderam suas vidas perecendo
de fome ou perdidos nas profundezas da floresta. Kazuo Ōno foi um dos
poucos sobreviventes que conseguiram escapar desta dura situação. Esta
experiência fez com que ele se sentisse profundamente endividado com seus
colegas que perderam suas vidas durante a guerra, pois, de algum modo,
tornaram possível a manutenção de sua própria vida. Toda a morte e
sofrimento que o cercaram nestes anos de guerra o forçaram a questionar os
limites de sua própria existência.
Com o fim da guerra e seu retorno ao Japão no ano de 1946, retomou
seu trabalho junto à escola Soshin, e recomeçou a frequentar o estúdio de
Takaya e Miya, onde permaneceu por mais outros dois anos. Em 1949,
começou a participar da companhia de Mitsuko Andō, também discípula de
Eguchi, e subiu pela primeira vez sobre o palco, aos 43 anos de idade, para
interpretar um espetáculo coletivo e três solos ao interno do “1° Recital de
Dança Moderna”91, no Kanda Kyoritsu Kodo Hall, em Tóquio. Em meio ao
público de quase três mil expectadores, estava o jovem Tatsumi Hijikata, recém
chegado a Tóquio, na sua primeira tentativa de transferir-se para a capital. A
expressividade inebriante de Kazuo Ōno marcou profundamente Hijikata, que
retornou a Akita contagiado por um outro modo de conceber a dança.
Iniciou-se assim praticamente uma década de colaborações entre
Kazuo Ōno e a companhia de Andō, com a realização de vários recitais de
dança moderna92 e apresentação de inúmeros espetáculos solos e coletivos. A
90 Talvez não por coincidência, uma das primeiras coreografias compostas por Kazuo
Ōno ao seu retorno para a vida civil foi uma peça intitulada A dança da água-viva (1949),
apresentando assim uma possível relação com os enterros marítimos que testemunhou
durante seu último ano no exército (Ohno e Ohno, 2004, p. 112).
91 O espetáculo com o grupo foi intitulado Ennui for the City e os três solos foram The
Devil’s Cry, Tango e First Flower of Linden Tree, apresentadas em novembro de 1949 (Ohno
e Ohno, 2004, p. 310, 315).
92 Yoshito Ōno (Ohno e Ohno, 2004, p. 101) conta como Kazuo e a sua família
tiveram que endividar-se para financiar a organização destes recitais, nos duros anos do
pós-guerra japonês: “Os custos da produção de um recital chegavam quase há um ano
123
aproximação e o início de um percurso colaborativo entre Kazuo Ōno e
Tatsumi Hijikata aconteceu justamente através da companhia de Andō, da qual
Hijikata começou também a participar a partir de sua chegada definitiva em
Tóquio, no ano de 1952, atraído pelas sensações e pelas memórias do
espetáculo que havia testemunhado poucos anos antes. Ōno e Hijikata
compartilharam o palco pela primeira vez no espetáculo coletivo da companhia
de Andō intitulado Karasu – “O corvo”, em 1954. Um rico período de
discussões e colaborações artísticas entre ambos floresceu assim nos anos
seguintes.
Em 1959, Kazuo Ōno encontra-se em uma busca pessoal por uma
nova modalidade de expressão, procurando por novos estímulos e experiências
artísticas que tentassem desconstruir seus modelos técnicos pré-configurados.
Até aquele momento, Ōno era já conhecido como um dançarino com uma forte
marca lírica e, sobretudo como um dos melhores intérpretes da dança
expressionista alemã (Salerno, 1998, p. 30). Foi então que, no final dos ensaios
para o espetáculo O velho e o mar – baseado na novela homônima de Ernest
Hemingway e colocado em cena em abril de 1959, durante o 5° Recital de
Dança Moderna no Dai-ichi Seimei Hall – Ōno perdeu os sentidos e desmaiou,
percebendo logo após que tinha tocado em dimensões profundas de seu corpo,
indo além de seus próprios limites. Em suas palavras, ele havia tocado em uma
dança que se encontrava já ao interno de seu corpo: “encontrei-me face a face
com a minha alma” (Ōno, in Viala e Masson-Sekine, 1988, p. 24).
Durante os ensaios para este espetáculo, Tatsumi Hijikata também
começou a frequentar de modo mais regular o estúdio de Ōno, transformando
as suas visitas em verdadeiros encontros de colaboração e conselhos cênicos; os
primeiros de uma grande série de trabalhos conjuntos. Mesmo prometendo
grandes revelações em sua fase preparatória, o espetáculo acabou não obtendo
muito sucesso de público e crítica, sendo julgado demasiado simbolista. Foi
também o último espetáculo encenado pela companhia Unique Ballet de Mitsuko
Andō.
inteiro de salário. Ele gastaria em um único recital o que ganhava em um ano inteiro
como professor. Atuar para um público pagante transformou-se em um luxo que
poderia ser concedido somente àqueles que possuíam formas independentes de ganhar
dinheiro. Na verdade, eu diria que durante aqueles primeiros anos, meu pai nunca
pegou seu salário integral no dia do pagamento, pois ele sempre tinha pedido
antecipadamente parte dele emprestado”.
124
Ainda em 1959, em maio, na Associação de Dança Japonesa, Tatsumi
Hijikata colocou em cena o espetáculo Kinjiki, com a colaboração de Yoshito
Ōno, o filho ainda adolescente de Kazuo, lançando as bases de seu Ankoku
Butō. Depois de alguns poucos meses, propôs uma versão revisada de Kinjiki ao
interno de seu Dance Experience, na qual existia uma participação especial de
Kazuo Ōno executando um solo intitulado Divinariane, baseada no personagem
Divine, um velho e decadente travesti, provindo da obra Nossa Senhora das Flores
de Jean Genet. Kazuo Ōno foi sendo fortemente atraído pela perspectiva
experimental de Hijikata e começou a colaborar intensamente com ele e com o
coletivo Ankoku Butō-ha, formado também pelo seu filho, Yoshito e por Akira
Kasai, dentre outros colaboradores de diversas áreas artísticas.
Na realidade, Divine simbolizou um grande ponto de mudança da
poética de Kazuo Ōno, fazendo desabar aquilo que restava de seu simbolismo
ao imergi-lo inteiramente no universo de decadência moral e sexual do ser
humano93. Para Ōno, a coisa mais importante que recebeu de Tatsumi Hijikata
foi justamente este poder e esta força que estão presentes no erotismo. Uma
maior reflexão sobre o real significado da morte e da decadência proporcionou
uma mudança radical na sua perspectiva de dança, uma vez que estes conceitos
transformaram-se também em um ponto de partida criativo (Ohno e Ohno,
2006, p. 35). A partir de Divine, a vida e a morte passaram então a serem dois
dos temas mais proeminentes em suas obras94.
Mesmo que Divine tenha desengatilhado profundas transformações em
sua poética, uma vez que resumia em apenas um personagem diversos e
contrastantes atributos, Kazuo sempre sentiu uma forte atração por trágicas
heroínas, alimentando seu ímpeto performativo com histórias que retratavam
sofrimento e loucura. Neste sentido, a obra de Ōno começou a estruturar-se ao
redor da revelação de um espectro mais amplo de experiências humanas,
protagonizado por figuras não perfeitas que incorporam a “decadência” como
uma outra possível forma de beleza, contrapondo-se assim aos paradigmas
93 “Foi meu primeiro encontro com Genet, meu encontro com Hijikata, meu encontro
comigo mesmo. Meu encontro na dança é com a humanidade, um encontro com a
vida” (Ōno, in Fraleigh e Nakamura, 2006, p. 32).
94 Depois de ter vivido a experiência de dançar Divine, na qual deveria de algum modo
existir entre a vida e a morte, Ōno passou a acreditar que “uma dança que não tenha
nenhuma relação com a morte e a vida não vale a pena de ser vista nem de ser dançada”
(Ōno, in D’Orazi, 2001, p. 55).
125
ocidentais da dança que celebram em modo quase unânime a juventude e a
beleza.
Para Kuniyoshi (Entrevista pessoal, 2009), a experiência de interpretar
Divine foi realmente um dos pontos decisivos na carreira de Kazuo Ōno,
servindo como um estímulo essencial para a sua saída do universo da dança
moderna europeia – até então fonte de sua insatisfação e alvo de sua crítica.
Vestir as roupas íntimas de Divine colocou-o cara a cara com uma feminilidade
decadente e com a morte, além de introduzi-lo na arte do travestimento,
elementos que, mesmo sempre ressignificados pelas suas outras diversas
experiências de vida, deram forma à sua poética. A partir desta experiência,
Kazuo passou a jogar sempre com uma vacilação identitária e com a recriação
de individualidades sexuais, assumindo em cena tanto papéis “neutros”, como
masculinos, femininos ou infantis.
Neste sentido, os experimentos performativos iniciados nos primeiros
anos da década de 60 organizados por Hijikata, simbolizaram uma fundamental
reviravolta no percurso poético de Kazuo Ōno. Abandonando os domínios
técnicos que possuía da dança moderna, partiu em direção a uma exploração
profunda por novas expressões do corpo, encontrando um campo fértil de
investigação ao aproximar-se de uma mentalidade consonante com o fermento
cultural que eclodia naqueles anos no Japão.
Durante este intenso período de colaborações artísticas, de 1960 a
1966, Kazuo Ōno e Tatsumi Hijikata realizaram conjuntamente algumas
pequenas performances e colocaram em cena memoráveis espetáculos95 que
marcaram época. A encenação de Tomato (1966) marca o final deste rico ciclo de
colaborações e representa um divisor de águas no percurso artístico de ambos
os artistas. Nos anos que seguem à dissolução do coletivo Ankoku Butō-ha,
Tatsumi Hijikata continuou sua pesquisa cênica em modo intenso,
coreografando e participando de diversas performances96, até atingir o ápice de seu
97 Aparição como convidado nos dois recitais dirigidos por Hijikata no ano de 1967, e
organizados, respectivamente, por Tomiko Takai (“Emoção em Metafísica”) e
Mitsutaka Ishii (“Butō Genet”), além de atuar no evento Casa de Artaud junto com seu
filho Yoshito Ōno, no mesmo ano. Em 1968, participa novamente como convidado de
um espetáculo de Ishii “Comentário a Genet” [O-June shō] e do segundo recital de Takai
“A casa de Mandala” [Mandara Yashiki] (Ohno e Ohno, 2004, p. 311).
98 “Retrato do Senhor O” [O-shi no shōzō] em 1969, “Mandala do Senhor O” [O-shi no
mandara] em 1971 e “O livro dos mortos do Senhor O” [O-shi no sisha no sho] em 1973
(Ohno e Ohno, 2004, p. 144).
99 A sinopse que introduz o filme Mandala do Senhor O reflete bem o significado desta
viagem de autodescobrimento empreendida por Kazuo Ōno: “Este é um filme sobre a
experiência, ou, pode-se dizer, um filme sobre uma viagem para dentro de nossa
consciência interior. Este filme é a verdadeira expressão do amor humano pelo
universo. Nossa história desenrola-se na vila de uma antiga fazenda. Na verdade, é um
mundo dentro de um espelho. Lá, no mundo ao nosso redor, existem tensões saudáveis,
cheias de prazeres desconfortáveis e depravados, onde tudo pode acontecer a qualquer
momento. Poetas, valorizando suas memórias doces e cruéis, continuam viajando
profundamente dentro do espelho. Esta é uma história sobre aqueles que vagam em
busca desse sonho e utopia, tirados de nós pela nossa civilização mecanizada (Ohno e
Ohno, 2004, p. 183).
127
encontro cinematográfico com suas profundezas serviu para o Senhor O como
o húmus a partir do qual foi possível o seu renascimento cênico.
A participação de Kazuo nesta trilogia ajudou também a introduzir em
sua poética a sujeira e a imundice (Ohno e Ohno, 2004, p.144). Utilizando uma
fazenda de porcos como set de filmagens, um dos filmes retratava uma cena na
qual Ōno escava as profundezas da moral limpa e civilizada da sociedade, ao
deitar-se dentro do chiqueiro e sugar com afinco e profunda veracidade as tetas
de uma porca. Esta figura semi-humana, feita de barro e esterco, serviu como
porta de acesso à exploração das memórias mais recônditas de sua infância em
Hokkaido e Akita, ao mesmo tempo em que desengatilhou um movimento
profundo na matéria já decantada de sua história, trazendo à tona elementos
poéticos até então submersos.
Mas foi através de um estímulo visual que ganhou realmente forma o
renascimento de Kazuo Ōno. Em 1976, visitando a exposição de seu amigo
pintor Nakanishi Natsuyuki, ficou impressionado particularmente com uma
pintura a óleo sobre lastra de zinco, com motivos abstratos. Enfeitiçado pelo
seu movimento interno, exclamou quase inconscientemente: “A Argentina, esta
é a Argentina!”. Despertou-se assim a recordação da bailarina que deslocava o
ar diante de seus olhos e havia-lhe feito entender que sua dança poderia
equivaler-se a um ato de criação. Depois de alguns poucos meses nasceria assim
Ra Aruhenchīna-shō – “Homenagem para La Argentina”, espetáculo que daria
início a uma longa e ininterrupta série de sucessos para Ōno.
Em 1977, depois de diversos ensaios e a direção de Tatsumi Hijikata,
aos 71 anos de idade, Kazuo Ōno renasceu para o espetáculo neste solo
fascinante, subindo no palco do Dai-ichi Seimei Hall, em Tóquio. Um
espetáculo que seria colocado em cena novamente três anos depois, em 1980,
no Festival de Nancy, na França, e outras 119 vezes em diferentes palcos do
mundo, até o final de sua carreira artística, apresentando assim o raquítico
corpo de Ōno, e a dança Butō, à cultura ocidental.
“Homenagem para La Argentina” era um espetáculo dividido em duas
partes e composto por cenas muito singulares, as quais, em um certo sentido,
reconstruíam o percurso artístico pessoal de Ōno, ressaltando metaforicamente
seu processo de reconfiguração interna. O primeiro ato, intitulado Divinaries,
tinha início em meio ao público, do qual Kazuo levantava-se vestido de Divine –
em uma clara citação ao personagem de Genet que tanto o marcou – e muito
lentamente rumava para cima do palco cênico, onde morreria logo em seguida,
dando assim espaço para o surgimento de uma jovem garota.
128
A cena seguinte, intitulada “Pão cotidiano”, segundo Yoshito Ōno
(Entrevista pessoal, 2009), nasceu de uma eterna discussão entre seu pai e
Tatsumi Hijikata, na qual este último, no alto de seu ateísmo, afrontava a fé
cristã de Kazuo questionando-lhe sempre sobre o paradeiro deste deus no qual
ele acreditava. Kazuo colocou em cena, portanto, a sua resposta, dizendo que a
sua dimensão divina era celebrada em suas ações cotidianas. Assim sendo,
propôs a nudez e a simplicidade do cotidiano através de um palco vazio e
escuro, vestindo somente um pequeno calção preto, caminhando e executando
gestos embebidos por uma contradição essencial: ser contemporaneamente
pesado e etéreo.
A cena conclui-se com o início de outro fragmento no qual Kazuo
oferece um complemento de sua concepção divina da existência e, portanto,
também de sua dança. Além de continuar respondendo à Hijikata, introduz o
segundo ato apresentando explicitamente a sua homenagem à La Argentina,
oferecendo-se como ligação direta entre o céu e a terra, em uma cena simples e
intensa na qual ergue gradativamente os braços para o céu enquanto parece
enraizar-se junto ao piano que o acompanha sobre o palco. Procurou assim
sintetizar a dimensão profunda que tinha visto ser colocada em cena por
Antonia Mercé, cinquenta anos antes.
Depois de alguns momentos de escuridão, tem início o segundo ato no
qual Kazuo coloca em cena mais explicitamente a sua leitura reelaborada de
Antonia Mercé e, vestindo indumentos característicos, realiza alguns solos
baseados em uma gestualidade flamenca, relida sobre o acompanhamento de
uma orquestra de tango. Sem uma gestualidade estilizada e definida, Ōno
desfaz-se em movimentos improvisados e guiados pelo seu sentimento mais
profundo de gratidão e admiração pela mulher que lhe desvendou novas
fronteiras para seu universo de arte e poesia.
Em 1980, no Festival de Nancy, na França, Kazuo apresentou mais
uma vez “Homenagem para La Argentina” e causou estupor no público e na
crítica, pois com seu corpo nu e franzino, colocou em cena a velhice e a
decomposição da matéria, enquadrados ao interno de uma narrativa que
extrapolava os limites de uma auto-referencialidade e desfazia-se em
sentimentos de amor e gratidão. No mesmo Festival, Kazuo também encenou
O-zen mata wa Taiji no yume – “Ozen. O sonho de um feto”, o qual se ofereceu
como matriz para o seu próximo espetáculo colocado em cena em 1981, no
Dai-ichi Seimei Hall, também sob direção Tatsumi Hijikata, chamado Watashi no
oka-san – “Minha Mãe”, no qual colocou em foco um dos principais elementos
de sua poética: a mãe e o seu potencial gerador.
129
Observando assim as raízes de sua poética, é possível verificar que a
dança para Kazuo Ōno apresenta-se como algo intimamente ligado à vida e à
morte desde suas origens. A corrida do espermatozoide em direção ao óvulo, a
morte das inúmeras existências que não chegaram a fertilizá-lo, abdicando de si
mesmos para permitir que vida seja possível a um só indivíduo, está presente
cotidianamente dentro de nós, em cada uma de nossas ações. Para Kazuo,
portanto, a morte dessas potenciais existências que tornaram possível a sua vida
soma-se às concretas perdas de seus irmãos de sangue, bem como à dura
experiência das mortes de seus colegas nos campos de batalha, para construir
em sua poética a certeza de uma interligação profunda entre os seres e a eterna
dívida que a vida tem com os mortos, os quais a alimentam com sabedoria e
imaginação. Para ele, uma biografia pessoal só pode existir ao interno de uma
história universal, e ao interno de uma memória pessoal existe também uma
infinidade de memórias de vidas humanas passadas.
Neste sentido, a própria imagem de uma mãe pode simbolizar esta
ambivalência e esta sobreposição entre vida e morte, uma vez que caminha para
o seu fim enquanto gera em seu ventre uma nova vida. E foi essa interrelação
entre vida e morte inerente ao útero materno que passou a embasar a poética de
Kazuo Ōno em sua nova fase, resumida nestes dois momentos fundamentais: a
morte – a separação da conexão biológica com sua mãe – e o nascimento, o
início de uma existência autônoma (Ohno e Ohno, 2004, p. 76). O contraste
entre estas duas dimensões criou a tensão necessária para a definição de sua
concepção da dança Butō100.
A mãe simbolizaria também, para Kazuo, esta eterna busca do ser
humano pela fonte primária do universo, imagem sobre a qual edificou um dos
principais pilares de sua poética. Assim sendo, a conexão entre mãe e filho
apresenta-se como uma perspectiva fundamental para a sua vida e a sua dança,
embebida por sentimentos de profunda gratidão ao sangue e à carne que o
nutriram dentro do útero. A sua dança apresenta-se fundamentalmente como
um modo de agradecer e contar à sua mãe a sua tentativa de colocar em ato
todo o sofrimento pelo qual ela passou para poder gerá-lo. Neste universo de
sensações e ao interno das possibilidades cinéticas que teriam sido oferecidas ao
feto, Kazuo projetou o sentido da vida, bem como a energia motriz de todo o
universo. A exploração deste mundo pré-natal transformou-se então em uma
100 “Basicamente, ‘butō’ significa vaguear, ou mover-se, por assim dizer, em voltas e
curvas entre os reinos dos vivos e dos mortos” (Ohno e Ohno, 2004, p. 205).
130
das principais bases de seu Butō101, uma vez que possibilitou a tomada de
consciência dos sentimentos de sofrimento e perda.
Kazuo Ōno costumava dizer que, quando dançava, considerava o chão
como o útero de sua mãe. Para ele, a deusa mãe era o recipiente de toda a
natureza, em sua dimensão ambígua enquanto fonte nutriente e terrificante, na
qual não existiria a morte como um fim, mas somente como renascimento,
regeneração. Ressaltava, deste modo, o vínculo evidente e condescendente com e
ao interno da mãe, o qual inspiraria a dança íntima de cada ser, as suas
compreensões intuitivas, bem como o amor incondicional e o perdão. Este
amor com dimensões transcendentais, somado ao difuso sentimento de gratidão
incorporado pela sua dança, é o que tornaria possível, segundo suas próprias
palavras, a união constante e a interdependência entre os vivos e os mortos.
Esta multiplicidade de corpos que habitam a sua dança serviria assim como uma
de suas mais importantes matrizes poéticas, pois seriam justamente estes
mortos102 que, na realidade, lhe preencheriam de sabedoria e imaginação, de
força criativa e fantasia.
A concepção desta interdependência quase fisiológica entre os seres,
bem como a certeza de que toda a natureza sustenta a sua existência, faz com
que Kazuo utilize também o útero materno como metáfora para explicar a
relação entre seu corpo e a própria história, afirmando que toda a “história dos
homens e das pessoas que me circundam está concentrada dentro de mim, vive
em mim, como no útero de uma mãe” (in BT, 79-80, p. 233). A essencialidade
da figura materna em sua poética transcende o seu natural potencial gerador
para oferecer-se também como uma conexão direta e original com a dimensão
erótica da humanidade e com o seu potencial de crescimento em direção à
liberdade. Para ele, as nossas relações com nossas mães carregam em si a união
erótica entre o pai e a mãe, fazendo com que os seres humanos sejam eróticos
em suas verdadeiras naturezas e vidas.
101 “As raízes de minha dança podem ser encontradas no tempo em que passei no
ventre de minha mãe. A dança brota deste ventre universal onde a morte e a vida se
entrelaçam. A vida é cheia de contradições: os outros sacrificaram suas vidas para que
pudéssemos entrar neste mundo. Ao traçar todo o caminho de volta ao nosso início,
nós eventualmente chegamos à criação do céu e da terra” (Ohno e Ohno, 2004, p. 199).
102 Na cultura japonesa existe uma crença de que o bem-estar dos vivos é vinculado ao
conforto e tranquilidade dos mortos, uma vez que essencialmente um lar japonês
apresenta um círculo familiar composto por membros vivos e mortos (Ohno e Ohno,
2004, p. 176).
131
Neste sentido, Ōno circunscreve em sua poética a figura materna, tanto
como uma dimensão matriz universal quanto como a natureza erótica da
humanidade, fontes, estas, inesgotáveis para a sua dança. Utiliza, portanto, o
útero como elemento criativo e gerador, como princípio poético que exprime
proteção e liberdade, ao mesmo tempo em que se oferece como metáfora do
universo que envolve o corpo que dança. “A alma que está dentro de mim”,
disse Ōno, “endossa o cosmo e eu tenho a sensação de ser coberto por este
cosmo”. Endossar o universo, neste sentido, seria o melhor modo de dançar
Butō, pois o universo pode transformar-se no recipiente do corpo e o corpo,
por sua vez, transformar-se no recipiente da alma. A alma está no centro do
cosmo, endossando-o como um manto.
As relações entre cosmo, alma e corpo, apesar de apresentarem-se em
uma disposição concêntrica, na qual a alma serviria como verdadeiro epicentro,
revelam uma pessoal concepção unitária da existência construída por Ōno. A
indissociabilidade entre estas três dimensões do ser humano é que permite a
existência do significado para a sua gestualidade e a sua dança. Para Kazuo,
portanto, a sua pele e a sua carne são o resultado de suas experiências no
universo, são o próprio universo, uma vez que estão vestidas por ele. Neste
sentido, seria possível explicar também parcialmente a reincidência dos
indumentos longos e femininos103 no vestuário cênico de seus espetáculos, uma
vez que ressaltam seja a presença de sua mãe em sua dança como a sua
correspondência com o cosmo, o qual endossava e dentro ao qual se movia
(Schechner, 1986, p. 164).
Apresentando em sua poética leituras muito singulares de conceitos
como corpo, alma, cosmo, vida e morte, Ōno deixa transparecer o hibridismo
que caracteriza a sua fé religiosa, uma vez que evidentemente não reproduz as
concepções dicotômicas e hierárquicas propagadas por um cristianismo
puramente ocidental. O seu cristianismo híbrido é, como já dito, contaminado
por estratos subterrâneos de origens budista e xintoísta, bem como fortemente
referenciado na base pacifista e igualitária propagada pelo filósofo cristão
103 “Minha intenção vestindo-me como uma mulher no palco nunca foi tornar-me um
imitador do sexo feminino, ou transformar-me realmente em uma mulher. Pelo
contrário, eu quero traçar minha vida de volta às suas origens mais distantes. Mais do
que qualquer outra coisa, anseio voltar de onde eu vim” (Ohno e Ohno, 2004, p. 76).
Assim sendo, vestindo roupas femininas, Kazuo objetivava desprender-se dos papéis
masculinos que assumiu em sua atribulada existência cotidiana, descartando as
convenções sociais que o inibiam. Segundo Yoshito Ōno, Kazuo não poderia encontrar
verdadeiramente seus fantasmas vestindo-se somente de homem.
132
Kanzo Uchimura. Esta sua fé religiosa, em um certo sentido, influenciou
significativamente a sua dança, uma vez que esta se baseou na confiança no
amor e na generosidade, apresentando-se enquanto uma contínua criação do
mundo, como a revelação do ser e o seu encontro com a vida. Para Ōno, dentro
desta lógica, dançar não correspondia à execução de um esforço visível, e sim
caracterizava-se essencialmente pela percepção da força de nossa relação com
Deus (Ohno e Ohno, 2004, p. 222).
Esta sua particular fé cristã104 apresenta-se de forma difusa e transversal
em sua obra, servindo como uma importante inspiração poética e,
contemporaneamente, como fundamento de seus procedimentos técnicos.
Segundo Yoshito Ōno, as performances de Kazuo serviram como uma forma dele
expressar o seu eterno agradecimento; a sua gratidão para com as pessoas com
as quais se sentia profundamente endividado: sua mãe, La Argentina e a própria
vida. Sentir esta energia divina do universo e compartilhar este sentimento de
gratidão também pelas coisas mais ínfimas, acabou oferecendo-se como um
mecanismo técnico de inibição de seus desejos pessoais (Luisi e Bogéa, 2002, p.
98) e uma consequente dissolução de um self egoico. Ōno acreditava que
agradecendo o espírito universal presente dentro de si, em seu próprio corpo,
teria realizado a missão de sua vida.
Contudo, o amor e a emoção colocados em cena por Kazuo, segundo
seu filho Yoshito, não seriam aqueles que se dão no nível da carne e do sangue,
e talvez por isso teriam a capacidade de perfurarem de modo tão profundo o
coração do público. O amor de Kazuo Ōno possui características
transcendentais e, ao mesmo tempo, compartilha traços cristãos ao ser definido
por ele como “uma disposição para sofrer pelos outros” (Ohno e Ohno, 2004,
p. 258). Para Fraleigh e Nakamura (2006, p. 69), estendendo si mesmo para um
outro universal em suas danças, Ōno toca algo na audiência que os permite
perceber uma forma ideal de amor, o qual no ethos cristão de Kazuo seria
chamado de ágape. A sua forma de amor desenvolver-se-ia sobre o ato da
104 É importante aqui ressaltar novamente que o cristianismo de Ōno não pode ser
interpretado somente a partir de uma chave puramente ocidental, devendo ser
considerado ao interno de um contexto de hibridismo religioso. Muito além dos
conceitos e de determinados valores compartilhados com a cosmogonia cristã, a poética
de Ōno não se mostra fechada ao interno das estruturas simbólicas do cristianismo
tradicional, e sim permite que se entreveja a sua crença em uma transcendência
imanente em cada coisa do mundo, em uma força salvadora universal que não possui
fronteiras e por isso é transformadora.
133
doação, enquanto eros seria motivado pelo desejo, o preenchimento de cada um
através do outro, e filia seria o amor fraternal.
Alguns anos depois do sucesso do espetáculo “Minha mãe”, no qual
Kazuo Ōno condensa uma série de seus principais princípios poéticos, ele
colocou em cena, em 1985, um outro espetáculo intitulado Shikai: Uinnā warutsu
to yurei – “Mar Morto: Valsa Vienense e Espectros”, o qual, segundo Yoshito
Ōno, possuía fortes conotações e referências ao pai de Kazuo, desde a
indicação do mar no próprio título à escolha do terno preto – elemento de
força masculina – como indumento principal (Ohno e Ohno, 2004, p. 127).
“Mar morto” foi encenado durante o 1º Festival de Dança Butō do Japão, em
Tóquio, e marca a última colaboração oficial entre Kazuo Ōno, Yoshito Ōno e
Tatsumi Hijikata, uma vez que este realizou novamente a direção do espetáculo.
Em 1987, cerca de um ano após a morte de Hijikata, Kazuo Ōno
realiza outro espetáculo em parceria com seu filho Yoshito e intitulado Suiren –
“Ninfeias”, no qual presta uma homenagem explícita à obra de Monet,
fechando assim metaforicamente um ciclo de inspirações estéticas que tem
paradoxalmente suas origens na própria história japonesa (Fraleigh e Nakamura,
2006, p. 94). Em modo consciente ou não, Ōno relê a obra de um dos maiores
representantes da escola artística impressionista, a qual, por sua vez, sofreu
forte influência da estética japonesa por meio das estampas multicoloridas dos
Ukiyo-e, ainda no final do século XIX.
É interessante também observar como outras tantas inspirações
provindas do universo artístico tradicional figuram dentro do universo criativo
composto por Kazuo Ōno. Contudo, segundo o seu filho Yoshito, o seu Butō-fu,
ao contrário daquele construído por Tatsumi Hijikata, não possui fotografias ou
pinturas de outros artistas, sendo povoado somente por seus próprios
pensamentos sobre o processo de construção cênica, como seus rabiscos sobre
as movimentações de sua mão e de seu deslocamento sobre o palco. Durante a
criação de um novo trabalho, Kazuo observava incansavelmente pinturas e
retratos, lia poemas e haicais, registrando todos os seus movimentos internos
com canetas coloridas, repetidamente apagando e reescrevendo em grandes
folhas de papel. Ele sonhava muito durante este período, instaurando um rico
processo no qual as palavras entravam de alguma forma em seu inconsciente.
Este processo contínuo e intenso de anotar, apagar e revisar as suas
anotações o permitia realizar uma escavação em diferentes estratos de seu
corpo, tocando em seus níveis físicos, emocionais e espirituais. Era inconcebível
para Kazuo Ōno iniciar um trabalho de criação cênica sem a instauração deste
processo profundo de exploração do corpo. Da mesma forma que a sua poética
134
o ajudava a dar forma ao seu universo e à sua realidade, a poesia impregnava seu
movimento e as imagens o ajudavam a recriar a própria gestualidade.
Kazuo Ōno, mesmo não possuindo uma filiação estética direta com as
artes performativas tradicionais japonesas, sempre utilizou livremente citações
provindas destas manifestações em suas declarações e orientações durante seus
laboratórios, tendo-as como uma significativa fonte inspiradora. Referências a
inspirações poéticas e técnicas provindas do teatro Nō ou mesmo proferidas
diretamente por Zeami105, permeiam muitos dos discursos proferidos por Ōno,
como quando convoca em seus alunos a visão espiritual do mundo refletida na
atuação do ator Nō, o qual coloca em cena a concepção de que “cada simples
fenômeno no universo manifesta a si mesmo como uma alma” (Ohno e Ohno,
2004, p. 225).
Outra imagem reincidente na obra e na poética de Kazuo Ōno, trazida
por Zeami e de forte simbolismo na cultura performativa japonesa, é a própria
flor. Na dança tradicional japonesa, o corpo é considerado como uma “flor
efêmera”, um obstáculo que deve ser superado “afim que a eterna flor artística
da beleza possa desabrochar” (D’Orazi, 2001, p. 89). A flor, no discurso estético
de Kazuo Ōno, é constantemente citada como o modo de existência ideal, ao
qual todo dançarino deveria aspirar. No plano técnico metodológico de
expressividade cênica de Ōno, a flor aparece inicialmente como uma natural
extensão de sua mão, tornando-se assim posteriormente um ponto de contato
com o mundo exterior, uma parte integrante de seu sistema nervoso corporal,
assim como uma antena serviria a um inseto.
O ato de desabrochar da flor também serve como inspiração poética e
técnica para o trabalho de Kazuo, uma vez que lhe garante uma integridade e
uma particular qualidade de movimento para ação cênica, pois a sua ação de
abrir-se no ar possui uma íntima ligação com o movimento contraditório do
105 “Ōno cita muito livremente Zeami (também conhecido como Motokiyo Kanze), o
dramaturgo Nō, cujo gênio conduziu o teatro Nō ao nível de grande arte do século
XIV. O ponto de vista de Zeami, segundo o qual a realidade última é inteiramente
composta por uma substância, assemelha-se à concepção dos seguidores do monismo.
Ele escreveu vários estudos críticos ilustres, particularmente o Kadensho, que até hoje
ainda é considerado a autoridade máxima sobre o assunto. Ele escreve sobre a
necessidade de juntar coisas distintas em uma só. A habilidade de um ator Nō,
portanto, deve unir música e movimento, apesar de serem dois fenômenos distintos.
Zeami fala sobre transformar dois corações em um. Os princípios estéticos centrais em
seus escritos críticos são hana (flor), uma qualidade que distingue o bom ator, e yūgen,
que distingue um bom espetáculo (Ohno e Ohno, 2004, p. 304).
135
enraizar-se na e desde a terra. O “transformar-se em uma flor” convocado por
Kazuo Ōno buscava enfatizar a necessidade de desprendimento total de todos
os hábitos, técnicas e vaidades. A dança para ele, portanto, não deveria nunca
ser reduzida à replicação rotineira dos movimentos e posturas cotidianas, e sim
considerada como a possibilidade que cada um possui para experimentar
intimamente o desabrochar de uma flor.
A poética de Kazuo Ōno é também povoada por personagens e artistas
provindos de diferentes culturas, escolas e épocas artísticas. Nomes como os do
pintor e poeta William Blake (1758 – 1827) e de Odilon Rendon (1840 – 1916),
considerado um dos precursores do surrealismo, ajudaram com que Ōno
incluísse em sua arte formas gráficas que buscavam representar suas emoções e
sonhos, bem como adotasse a concepção de que “sem os contrários não existe
progressão”106 (Ohno e Ohno, 2004, p. 305). Uma outra significativa
contribuição em sua poética foi recebida não de um artista, mas do físico e
teólogo Emanuel Swedenborg, o qual procurava confirmar que a vida após a
morte seria mais “real” do que a existência cotidiana dos seres humanos. Tal
afirmação encontrou um fértil terreno para reproduzir-se no imaginário de
Kazuo, uma vez que esse já era impregnado por uma cristandade promíscua,
além de ser povoado por uma infinidade de mortos, antepassados, e pela certeza
de transitar constantemente por entre estes mundos107.
Toda a década de 90 representou um período fértil no percurso
artístico de Kazuo Ōno, pois pôde consolidar a sua fama internacional como
um dos maiores e mais significativos representantes da dança japonesa,
apresentando espetáculos108 e laboratórios em todo o mundo. Esta última
década de sua carreira artística foi também atravessada pela gravação de alguns
106 Tema central da obra The Marriage of Heaven and Hell, escrita por Blake por volta de
1793.
107 “Em cena me vejo cercado de mortos tanto quanto de expectadores (...) Se a vida
existe, é porque a morte é viva; se a morte é presente, é porque a vida está lá” (Luisi e
Bogéa, 2002, p. 41)
108 Além de performances de menor porte, durante toda a década de 90, Kazuo Ōno
replicou diversas vezes seus espetáculos já célebres, em diferentes países do mundo,
além de estrear algumas outras obras, entre as quais devemos destacar Ka cho fu getsu –
“Flor, pássaro, vento e lua”, de 1990; Hakuren – “A flor branca de lótus” e Oguri
Hangan, Terute-Hime – “Oguri Hangan e a princesa Terute”, de 1992 e Tendō Chidō – “A
estrada no céu, a estrada sobre a terra”, em 1995 (D’Orazi, 2001, p. 172).
136
filmes109 e pela constatação de uma certa independência estética assumida pelos
novos grupos de dança Butō, gerando uma certa proliferação de diferentes
“escolas” e um relativo enfraquecimento de suas originais forças subversivas.
Em 2001, aos 95 anos de idade, Kazuo Ōno retirou-se dos palcos
devido a evidentes limitações físicas, continuando, porém, a ensinar por mais
alguns meses em seu estúdio em Kamihoshikawa, Yokohama. Em seguida,
afastou-se de suas responsabilidades didáticas, deixando-as ao seu filho e
herdeiro artístico Yoshito Ōno. Kazuo Ōno viveu até meados de 2009, ainda
que sob intensos cuidados médicos, repousando sobre a mesma tênue linha da
qual sempre se alimentou para compor a poesia de sua dança: a fictícia fronteira
que divide os universos da vida e da morte.
109 Com destaque para Tamashii no fūkei: Ōno Kazuo no sekai – “Paisagem da alma: o
mundo de Kazuo Ōno”, de Hirano Katsumi, de 1991; e “Kazuo Ōno”, de 1995, sob a
direção de Daniel Schmidt.
137
“Como performers, é nosso dever nos perguntarmos como
podemos ajudar a vencer o ódio desenfreado que aflige a
raça humana” (Ohno e Ohno, 2004, p. 289).
110 “Aí, este ‘eu não consigo entender!’ é um ponto de partida tão bom como outro
qualquer. Não permita que a falta de compreensão detenha você; não tem a menor
importância se você não consegue entender o que você está fazendo. Como estaríamos
enganados pensando que nós podemos explicar tudo racionalmente. Se há alguma
coisa, não é esta verdadeira razão que dançamos – porque há muitas coisas que não
entendemos. Está tudo bem; a única coisa realmente importante é que você tente
sinceramente desabafar as suas preocupações "(Ohno e Ohno, 2004, p. 202).
140
identidades pessoais para tornar possível a busca por identidades novas e
polimorfas, não necessariamente humanas, em um processo contínuo de
superação de limites em direção ao ainda desconhecido. Ressalta assim a
importância da expansão da consciência física para além dos limites da
sensibilidade humana, desenvolvendo-a em resposta aos estímulos recebidos do
ambiente. Neste sentido, é possível identificar a tendência na assimilação de
outras formas de vida – e as suas possibilidades de relação com estas – como
um elemento fundamental de sua dança.
Como exemplo de seus procedimentos técnicos, Ōno estimula o
estudo das respostas dadas pelos insetos aos estímulos recebidos de seus
respectivos ambientes. Ressalta, porém, a importância da concentração sobre o
processo de aquisição do senso tátil destes insetos antes mesmo de sua
movimentação propriamente dita, pois acredita que entender a vida de um
inseto possa oferecer ao dançarino uma outra perspectiva de como o ser
humano poderia, também ele, responder aos seus estímulos sensoriais.
Contudo, é importante destacar que este seu processo de dissolução e
investigação identitária não possui necessariamente um acento somente sobre a
forma e a percepção física dos diferentes tipos de existências, mas também convoca
a alma destas diversas possibilidades de vida.
Kazuo Ōno, assumindo que todas as coisas e “seres criados por Deus”
vivem dentro do corpo (Ohno e Ohno, 2004, p. 227), acredita que para trazer
realmente a dança para a vida seja necessário transformar-se em um espírito, em
algo ainda sem forma que convoque em algum modo a qualidade da matéria na
qual o dançarino objetiva transmutar-se. Nas suas palavras: “Existe a verdade
mesmo em uma pedra. E até mesmo a pedra sabe disto. Não pense em ser uma
pedra, apenas encontre a pedra dentro de você” (Ōno, in Fraleigh e Nakamura,
2006, p. 116).
Procurando compartilhar esta sua particular concepção de corpo na
qual acolhia a possibilidade de dissolução e posterior reconfiguração
infinitesimal da qualidade e das formas da matéria, Kazuo construiu uma
espécie de metodologia de desequilíbrio e desconstrução dos automatismos
corporais. Julgava, portanto, de fundamental importância alcançar o ponto
interno de crise, no qual o “muco”, preso ao interno do dançarino, pudesse
forçar a si mesmo para fora de seu sistema habitual, para dissolver as formas
que refletem uma identidade pessoal e transmutá-las em categorias extra-
humanas (Ohno e Ohno, 2004, p. 236).
Esta sua ampla concepção de corpo abriga também, em níveis quase
metafísicos, seja a memória de todas as suas vidas passadas, como também uma
141
espécie de “memória-potência” de suas possíveis vidas futuras, as quais se
oferecem concomitantemente como base fundamental para a sua dança111. Uma
dança que, por sua vez, coloca em ato um entendimento do corpo que possui
uma materialidade imbricada quase fisiologicamente com suas dimensões sutis e
abstratas, tanto em um nível identitário-cultural como em uma dimensão
energético-cósmica. Deste modo, transcende os limites de uma individualidade
física ao admitir a copresença de uma coletividade invisível na constituição de
sua expressividade. Para Kazuo Ōno, portanto, a dança adquire densidade e
qualidade somente quando permite que os “fantasmas do universo” emerjam
das profundezas da consciência para se expressarem (Ohno e Ohno, 2004, p.
291).
Esta sua concepção transcendental da dança também deixa
transparecer a sua crença fiel no poder da vida, no potencial do amor e da
generosidade, bem como na força do próprio universo. Ōno, humildemente,
sempre ressaltou a sua condição de receptáculo e mediador de processos muito
mais amplos do que a sua consciência individual, colocando-se como “um
simples servo” que transfere estímulos para os outros (in Fraleigh e Nakamura,
2006, p. 29), sendo assim, na verdade, “forçado a dançar” por forças superiores
(in Salerno, 1998, p. 48). Este plano superior que alimenta e gera a sua dança, é
descrito por ele como uma outra dimensão com diferentes qualidades de tempo
e de espaço, na qual habitam os seus fantasmas: os verdadeiros responsáveis
por sua força criativa e imaginação. Assim sendo, as matrizes que compõem as
suas danças – e, portanto, o universo exploratório no qual acredita que deva
imergir um dançarino – correspondem não a uma capacidade racional
individual, e sim a um espaço-tempo amplo, composto por existências coletivas
e multidimensionais.
Neste sentido, imaginar e elaborar a realidade transforma-se muito
menos em uma tarefa conceitual e individual, do que em um projeto coletivo
conduzido “pela benevolência dos mortos”, uma vez que esta é vista como a
“verdadeira imaginação” e não aquela construída como o “fruto de uma
reflexão forçada” (D’Orazi, 2001, p. 155). Sua concepção de dança é, portanto,
essencialmente anti-egoica, uma vez que se desenvolve a partir de um encontro
111 “Seu corpo hospeda tanto suas vidas passadas como futuras. Esta não é apenas
algum tipo de imagem abstrata que eu tenho em mente, mas muito mais uma descrição
realista de sua postura. Isso é o que a postura de um dançarino fisicamente nos
transmite: a coexistência entre o passado e o futuro. Talvez isso seja aquilo para o qual
você está rogando” (Ohno e Ohno, 2004, p. 240).
142
com a humanidade e com a vida, ainda que dentro da plena consciência de que
ambas descansam sobre a morte.
A morte representaria assim um fundamental elemento da poética de
Kazuo Ōno, seja enquanto uma matriz criativa – como fonte inesgotável e
coletiva de imaginação – seja como um princípio técnico-metodológico de
referência. A remoção gradual das energias expressivas, e a consequente
transmutação do dançarino em um “corpo morto”, apresenta-se como uma das
principais técnicas de construção do corpo cênico colocadas em ato por Ōno.
Com este método busca um modo eficaz de fragmentar os automatismos da
movimentação corporal de seus alunos, bem como de suas concepções de
mundo. O “corpo morto” apareceria assim como um espaço potencial dentro
ao qual o dançarino pode colocar uma emoção que, em um certo sentido,
poderá expressar a si mesma. A presença da morte na obra de Kazuo Ōno não
se limita, portanto, apenas ao seu entendimento enquanto uma condição
biológica, mas acolhe também o seu significado enquanto um possível estado
de consciência do ser humano.
Ōno sustenta que para construir este “corpo morto”, o dançarino deve
buscar sua ausência – e não sua força – de vontade, esvaziando a sua mente
juntamente com seu corpo, escutando e dando espaço a todo o universo, ao
invés de sua vontade pessoal (Borelli, in BT 79-80, 2006, p. 269). Esta
concepção encontra reverberação também em costumes culturais que
transcendem as próprias artes performativas, como, por exemplo, quando os
japoneses utilizam a expressão “viver a própria vida como já morto” para
simbolizar o modo de viver a própria vida “sobre o plano do conhecimento ou
da sabedoria” (Benedict, 1991, p. 274). E foi justamente sobre esta possibilidade
paradoxal de incorporar à vida algo já morto, que Ōno baseou o seu princípio
técnico e criativo.
Removendo as energias expressivas de um ego individual que deseja
impor-se, é possível deixar espaço para que comecem a emergir os diferentes
estratos de verdade do corpo, ou seja, as diferentes camadas de memória
inscritas nas profundezas do organismo, dando assim oportunidade ao
desvelamento de suas experiências encarnadas e das cicatrizes de sua percepção.
O corpo, neste sentido, é concebido como um fragmento da memória do
universo, acumulada durante milhões de anos. O ato de dançar seria, portanto,
a celebração intensa deste corpo que endossa a história do universo,
143
apresentando-se como a sua camada mais superficial: a dimensão mais avançada
do acúmulo de experiências e conhecimentos de tudo o que já existiu112.
Para Centonze (2003-2004, p. 31), a “técnica” de Kazuo Ōno
confrontar-se-ia com a memória do esqueleto – com a continuidade e a
descontinuidade dos ossos sendo deslizados pelo espaço em modo sutil ou
abrupto –, na qual seria possível distorcer a imagem estável do corpo. Contudo,
este corpo carnal que se move seria também penetrado por uma espécie de
código genético da humanidade, compartilhando assim sua memória, suas
conquistas e sofrimentos. Em suas lições, Kazuo Ōno sempre ressaltou esta
sobreposição “fisiológica” entre a subjetividade e a universalidade do corpo
humano que dança, isto é, a inseparabilidade destas múltiplas dimensões que
configuram o nikutai: a instância primeira que diferencia os seres humanos entre
si, ao mesmo tempo em que se oferece como anel de conexão destes com a
natureza.
Entretanto, o próprio conceito de “técnica” quando utilizado ao
interno do projeto artístico de Kazuo Ōno, recusa a sua limitação enquanto um
suposto conjunto de regras fixas e exteriores, pois se apresenta em sua prática
como um processo de pesquisa livre da e pela dança. Um processo investigativo
do gesto que pressupõe uma relativa “liberdade expressiva”, a qual surge
somente quando embebida por determinadas valências políticas, uma vez que
se insere ao interno de um projeto mais amplo de dissolução do individualismo.
Neste sentido, o “dançar livremente” proposto por Ōno em suas aulas, indica
prioritariamente o abandono da noção habitual do ego.
Assim sendo, a “liberdade” do dançarino – em um entendimento
também compartilhado com outras práticas orientais – não representaria
necessariamente a liberdade de um desejo pessoal, mas nasceria da
desconstrução dos limites deste próprio desejo. Ser realmente “livre”, na
proposta de Ōno, significaria, sobretudo, liberar-se eticamente do pensamento e
do desejo individual, permitindo assim que a “alma sopre a vida dentro da
carne” e corresponda ao princípio, sutil e coletivo, que dá origem à sua
concepção de expressividade.
112 “Eu sou, você é, todos nós somos, nada mais que a próxima camada sobre todas
aquelas coisas que já aconteceram em uma cadeia interminável de eventos. Visto dessa
perspectiva, a nossa força imaginativa é constantemente consolidada pela acumulação
gradual de conhecimento que herdamos” (Ohno e Ohno, 2004, p. 219).
144
O processo metodológico de investigação corporal proposto por ele
começaria assim pelo desvelamento do self e pela sua posterior possibilidade de
desconstrução. Para tanto, Kazuo Ōno utiliza frequentemente imagens e figuras
de linguagem ilógicas ou nonsense113 como instrumentos de libertação dos
ditames da mente racional. Para ele, portanto, os movimentos do corpo não
devem provir de uma fonte racionalizadora individual, e sim serem indicados,
em uma leve antecedência, pelos movimentos da alma, isto é, pelas dimensões
sutis que conectam organicamente o ser humano com o cosmo e com todos os
outros seres.
Neste modo, a única forma para se ultrapassar as limitações impostas
pelo organismo individual e pelo ego, seria justamente buscar um tipo de dança
em que não sejam pressupostos movimentos precisos e sequências pré-
determinadas. Um tipo de dança que não se apresente necessariamente como
uma linguagem, e sim como a radiação da expressão da coletividade que
sustenta silenciosamente nossa existência. Para Kazuo, o tamashii (espírito, alma,
fantasma) precede e guia o nikutai (corpo de carne), determinando a densidade
e a qualidade de sua movimentação, em um processo simbolizado
numericamente pela relação 10 x 7:
113 “Nonsensical: Ohno utiliza frequentemente o termo detarame quando pede aos
participantes para se liberarem do controle racional. Literalmente, significa nonsense, ou
uma ação irresponsável. Às vezes, carrega uma conotação pejorativa de lixo ou
rabiscos” (Ohno e Ohno, 2004, p. 303).
145
Todavia, esta relação numérica entre corpo e alma proposta por
Ōno114, mesmo que pareça pressupor uma separação hierárquica entre estas
dimensões, deve ser entendida em modo estritamente ilustrativo, buscando
apenas desconstruir o histórico acento que recai sobre o virtuosismo corporal
no âmbito das artes performativas. Objetiva assim, ao mesmo tempo, deslocá-lo
para uma real importância do sentimento e da expressividade enquanto forças
motrizes do gesto. Corpo e alma são, na concretude de seu projeto filosófico-
artístico, duas dimensões inseparáveis. E é justamente esta indissociabilidade
que se oferece como base para sua arte.
114 Na realidade, esta mesma proporção já é indicada por Zeami (1363-1445) no seu
Tratado sobre o Teatro Nō, oferecendo-se assim como um potencial elemento constitutivo
de muitas manifestações artísticas nipônicas: “Façam mover a mente por dez décimos,
façam mover o corpo por sete décimos” (Zeami, 1987, p. 156).
146
147
148
149
4.1) CORPOREIDADE CRÍTICA
150
A morte, o erotismo e a marginalidade social experienciada
cotidianamente, seja em sua vida real como em seu imaginário – povoado pela
“maldita” literatura francesa –, o ajudaram em algum modo a reelaborar suas
concepções de arte e de corpo, em meio ao turbulento contexto de revoltas
políticas e artísticas de um Japão pós-guerra. Assim sendo, a arte performativa
passou apresentar-se para ele não mais como uma fábrica de sonhos e sim
como possibilidade concreta de intervenção cultural, ao mesmo tempo em que
seu entendimento de corpo passou a admitir o peso, os desejos e a decadência
de sua carne enquanto matrizes de sua própria existência.
Muito além da messa in scena de polêmicos espetáculos, Hijikata
estruturou toda uma singular metodologia de trabalho para a construção da
presença cênica que revela, em cada ato, profundos sinais de pertencimento a
um desejo mais amplo de subversão. Uma metodologia que se posicionou
claramente, também em um plano ideológico, através de suas denúncias e de
seus anúncios. Um percurso de subversão física e cultural do corpo que teve
como ponto de partida a renúncia a uma precisa concepção de corpo e de
sociedade, bem como um nítido esforço em direção a um determinado
horizonte ideológico. Mesmo que a “heterogeneidade”115 de seus ideais não
permita que Hijikata seja rotulado e limitado ao interno de um movimento
organizado política ou socialmente, uma análise cuidadosa da complexidade de
sua obra e de seus pensamentos nos autoriza ao menos a identificar com
relativa precisão os horizontes em direção aos quais desejava caminhar.
Em To prison (1961, in TDR, 2000, p. 44/5), denuncia – e anuncia –
claramente os ideais contra os quais se posicionava, bem como a quais
princípios ideológicos corresponderiam seus esforços enquanto artista. A sua
afinidade com a criminalidade e a evocação da dança enquanto uma forma de
“uso despropositado do corpo”, ou como “instrumento de prazer”, ressalta
nitidamente a sua oposição ativa contra a “moralidade civilizada” e a “alienação
do trabalho”, edificadas por uma “sociedade orientada à produtividade” em
modo coerente com o “sistema econômico capitalista e suas instituições
políticas”.
116 “Pernas retas são geradas por um mundo dominado pela razão. Pernas arqueadas
nascem de um mundo que não pode ser expresso em palavras” (Hijikata, in Viala e
Masson-Sekine, 1988, p. 189).
152
criticada enquanto matriz simbólica da organização moral e cultural de uma
sociedade conservadora – ao ser pressionado pelas dimensões instintivas do
nikutai. Desta forma, Hijikata elaborou a sua particular práxis artística,
materializando em cena e em seus treinamentos uma epistemologia do corpo
que buscava despir o gesto de sua racionalidade funcional e, deste modo, tentar
desconstruir a concepção de indivíduo normatizado pelos ditames de uma
moralidade civilizada.
Quando sobrepomos também, a esta subversiva práxis do corpo, a
metodologia de trabalho – bem como a filosofia e a poética que a embasam –
proposta pelo mestre Kazuo Ōno, reconhecido historicamente como
cofundador da dança Butō, passa então a ser possível delinear em grandes
linhas os fundamentos do butōtai, ou do “corpo butō”. Em outras palavras,
quando analisamos, em uma chave relacional, os princípios metodológicos,
filosóficos e poéticos que compõem a obra de cada um destes artistas torna-se
possível identificar uma série de elementos que se interseccionam,
potencializando-se reciprocamente. As similaridades e diferenças que
constituem cada um dos percursos artísticos possibilitam o esboço dos limites
que circunscrevem uma espécie de “anatomia” global do corpo cênico presente
nas origens da dança Butō.
Neste sentido, sobrepondo a obra de Kazuo Ōno aos fundamentos
subversivos postos pelo Ankoku Butō de Tatsumi Hijikata, seria possível
observar suas relações de complementariedade e, ao mesmo tempo, de
diferenciação. Neste encontro, portanto, se materializariam os confins mais
precisos do corpo cênico que protagonizou o projeto político-artístico
colocado em cena pelos dois principais fundadores do Butō. Um corpo cênico
plural que – justamente pelas dimensões políticas e indóceis que lhe são
características – se apresenta como principal elemento de legitimação da
singularidade e da especificidade da dança Butō no campo das Artes Cênicas.
Devido também às influências recíprocas exercidas em suas obras, bem
como ao longo período de colaboração artística entre ambos os artistas, é
possível verificar uma grande similaridade epistemológica nos fundamentos de
suas práxis, mesmo que suas poéticas e seus princípios filosóficos tenham raízes
muito distintas, como já visto anteriormente. Muito além das diferenças no
plano estético de seus espetáculos, bem como no plano filosófico-metodológico
de suas propostas de formação artística, é possível identificar alguns elementos
que acomunam ambos os projetos, caracterizando-os como margens limítrofes
dentro às quais se moveria o fenômeno chamado Butō. Apesar de nitidamente
diversos, os “butōs” de Kazuo Ōno e Tatsumi Hijikata compartilham alguns
153
núcleos essenciais que poderiam servir como uma espécie de coluna vertebral
das origens da dança Butō. Muito mais do que um estilo preciso e codificado, a
dança Butō se apresentaria, nas obras de seus fundadores, como um
comportamento, uma postura diante do mundo, ou mesmo uma qualidade da
existência117.
Compartilhando a mesma atmosfera de contestação política, social e
artística dos anos 50 e 60, tanto Ōno como Hijikata estabeleceram ricos
diálogos entre si e com o fermento cultural característico daquela época,
contaminando reciprocamente as suas poéticas. Contudo, as suas experiências
pessoais de vida acabaram ajudando a construir caminhos muito distintos na
configuração de suas práticas artísticas. Por isso, quando observados em suas
profundidades, alguns conceitos ou princípios técnicos aparentemente
equivalentes podem apresentar uma significativa distinção semântica118.
Ainda assim, mesmo com essas inúmeras variações práticas e
conceituais, existe um consistente corpus poético, político e metodológico
entorno ao qual os fundadores da dança Butō desenvolveram as suas práticas.
Em outras palavras, seria possível afirmar que a dança Butō estrutura-se
principalmente a partir de uma matriz subversiva, isto é, de mecanismos de
contestação cultural, política e artística, a qual se materializou em precisos –
mas distintos – métodos de construção cênica.
A dissolução do individualismo figuraria como um dos princípios
fundamentais que acomunam os percursos de ambos os seus fundadores e, por
isso, legitima-se como um de seus atributos definidores. O tensionamento de
uma precisa concepção de indivíduo se apresentaria, portanto, inicialmente
117 “Afinal, desde os tempos antigos cerimônias solenes têm corrido bem somente
com a ajuda da dança. Pinturas, também, são criadas por seres humanos e revelam uma
fundamental 'qualidade butō' [butō-sei]. De fato, isto pode ser visto por qualquer um.
Mas as pessoas se prendem aos seus próprios pequenos mundos, seus gêneros
particulares e perdem isto de vista. Muitas pessoas agora estão exigindo o fim de
gêneros, mas se eles apenas aplicassem a ideia de 'qualidade butō' para tudo, o problema
estaria totalmente resolvido” (Hijikata, Plucking off the darkness of the flesh, 1968, in TDR,
2000, p. 49).
118 Por exemplo, o conceito de morte ou cadáver é presumivelmente distinto para alguém
que experienciou uma guerra em primeira pessoa, como no caso de Kazuo Ōno; ao
mesmo tempo em que a experiência do erotismo, convocada por Hijikata – fruto de seu
cotidiano entre prostitutas e ladrões em uma marginalidade urbana, bem como de sua
admiração pela literatura maldita francesa –, é significativamente diversa da dimensão
erótica identificada por Ōno na original conexão com a imagem materna.
154
como uma matriz filosófica – enquanto contestação cultural do individualismo
como unidade referencial de um determinado sistema sócio-político-econômico
– para então desdobrar-se em uma matriz técnico-metodológica, na qual a
desconstrução do self físico e simbólico passaria a ser também um dos
principais recursos no processo de criação e de preparação cênica.
Todavia, mesmo compartilhando deste princípio comum, isto é, da
necessidade da desconstrução de uma individualidade alienada e a possibilidade
de uma maior comunhão com dimensões extra-humanas através da
materialidade que as acomuna, Ōno e Hijikata construíram abordagens
metodológicas muito distintas. Enquanto Hijikata buscava alcançar tal objetivo,
eliminando o self físico e fragmentando o corpo, através de uma degradação do
sujeito, Ōno propunha em seus treinamentos formas de anulamento da
individualidade através do amor e da gratidão, ressaltando a interdependência
dos reinos da existência.
Adotando tal perspectiva metodológica, Ōno deixa transparecer já no
princípio fundamental de sua dança, uma considerável influência de sua opção
religiosa, a qual atravessa, em modo difuso, toda a sua poética e também, em
um certo sentido, a sua técnica. Converter-se ao hibridizado cristianismo batista
japonês, já em uma idade relativamente avançada, fez com que Kazuo Ōno
assumisse uma cosmologia específica que acabou modificando a sua forma de
conceber alguns conceitos essenciais de sua poética, infiltrando-se
organicamente na metodologia de trabalho que desenvolveu posteriormente.
A convicção de sua crença em Deus contrastava fortemente com o
ceticismo e o ateísmo propagado por Hijikata, causando grandes debates entre
ambos, dos quais derivaram também outras significativas distinções conceituais
de suas práticas. A questão da improvisação, bem como a relação entre a forma
e o “espírito” na dança, delineia uma cisão basilar na obra de ambos os artistas.
Ōno considerava a dança como uma arte da improvisação, coerentemente com
a concepção de que a sua “forma” se concretizaria por si mesma, desde que
existisse um conteúdo espiritual que a convocasse.
Hijikata, por sua vez, possuía uma concepção mais metódica e precisa
da dança – muito devido às exigências de seu olhar de coreógrafo. Assim sendo,
refutava explicitamente a improvisação como procedimento técnico em cena,
mesmo que a assumisse como recurso, por vezes catártico, em seus processos
de construção cênica. Para ele, baseado em seu radical materialismo, a vida é
que perseguiria a “forma”, isto é, a precisão do gesto de um dançarino, uma vez
155
transmutado – quase em um nível quântico – em objeto, “convocaria” o seu
espírito119: a energia que animaria a sua expressividade passiva.
Por outro lado, a explícita matriz arquetípica feminina presente na obra
de Ōno, indicaria também uma significativa diferença em relação ao trabalho de
Hijikata, uma vez que este último utilizava o feminino, principalmente através
do travestimento e do erotismo, como instrumento técnico e poético na
indução da vacilação identitária. Ōno, ao invés, tinha a matriz feminina como
chave de leitura para inúmeras manifestações do universo, sintetizando-a na
figura emblemática da mãe. Até mesmo seus famosos travestimentos com
roupas femininas, possuíam para ele um significado muito mais cósmico do que
literal, pois seus longos vestidos corresponderiam também à sua concepção do
universo como um manto que deve ser vestido pela alma que dança.
Deste modo, a figura materna, pura energia feminina, representaria um
dos principais conceitos-potência na obra de Ōno, uma vez que sintetizava
muitas de suas matrizes poéticas. A mãe enquanto útero, enquanto superfície
nutritiva e regeneradora, que abrigaria não somente a dimensão criativa da vida
como também as próprias possibilidades cinéticas vividas pelos sujeitos em seu
período pré-natal. A mãe como conexão com a dimensão erótica da
humanidade, já presente em sua relação sexual com o pai. A mãe como síntese
da dimensão dialética entre vida e morte, já que enquanto caminha para o fim
de sua existência, gera uma nova vida dentro de si.
O butōtai construído por Kazuo Ōno possuiria, portanto, uma essencial
matriz feminina, a qual se encontraria potencializada pela inspiração de sua
específica religiosidade. Em seu entendimento, o corpo seria visto enquanto
lócus de conexão entre o micro e o macrocosmo, como espaço-tempo no qual
alma e universo se fagocitam reciprocamente para dar lugar ao que ele chama
de dança. Uma dança que se baseia em uma espécie de concepção pancinética
do universo e, por isso, faz com que ele se recuse a pensar o seu ensinamento
através da transmissão de técnicas codificadas, uma vez que o movimento é a
própria vida e mover-se significa busca-la.
119 É importante ressaltar novamente que o conceito de espírito para Hijikata possui
fortes distinções daquele indicado por Ōno, devido também à sua origem camponesa,
povoada por lendas e espíritos da natureza, e ao seu radical ateísmo que o afasta de
qualquer concepção dicotômica do indivíduo cindido em um corpo concreto e uma
alma etérea, tão presente e propagada pelo neoplatonismo de inúmeras correntes
religiosas modernas. Para Hijikata, “a existência da alma não é importante. A sua dança
é materialismo” (Sakurai in BT, 79-80, 2006, p. 208).
156
No treinamento que propõe, ao invés de oferecer um modelo gestual a
ser reproduzido por seus alunos, Ōno parte da dissolução dos automatismos
corporais e das ações cotidianas para aprofundar a exploração das infinitas
possibilidades cinéticas inerentes ao fenômeno vital. Neste sentido, o gesto e a
expressividade que afloram desta investigação se apresentariam não como
resultado dos desejos de uma racionalidade individual, mas como uma espécie
de secreção resultante da fricção entre a alma e o universo. A dança se apresenta
assim não mais como linguagem, mas como a radiação de sua expressão (Ohno
e Ohno, 2004, p. 285).
Segundo Ōno, para revelar a forma de sua alma o dançarino deve
aprender a separar ele mesmo de sua identidade física e social. Para tanto,
incentivava a dissolução de suas identidades através do acesso a níveis
profundos de verdade do corpo, nos quais seria então possível a tomada de
consciência sobre o co-pertencimento, em níveis sutis, da própria materialidade
do ser humano com outros seres e existências. Esta assimilação de outras
formas de vida como elementos constituintes da própria corporeidade,
potencializava o entendimento proposto por Ōno, no qual o corpo figuraria
como instância fluida onde se encontra inscrita a memória do universo. O
corpo como espaço-tempo dinâmico que, em sua cosmologia hibridizada,
abrigaria igualmente a memória tanto de suas vidas passadas como a
potencialidade de suas vidas futuras. Um corpo que, diante da radicalidade de
sua matéria, assumiria o peso do tempo e a sua consequente caducidade,
admitindo os diferentes matizes da existência humana, em sua banalidade e
imperfeição, bem como o sofrimento e a alegria da vida.
A importância da expansão da consciência física para além da sensibilidade
humana, mesmo que trabalhada através de diferentes metodologias, encontra-se
igualmente na obra de Tatsumi Hijikata, configurando-se, portanto, como um
outro elemento comum ao butōtai de ambos os artistas. Esta sensibilidade
expandida, responsável pela assimilação de outras formas de vida na
constituição da corporeidade, potencializaria o desenvolvimento de uma
consciência também ampliada que, ao invés de aumentar a capacidade de ação
do dançarino, aumentaria a compreensão de seus próprios limites. Neste
sentido, o conhecimento das possibilidades e dos limites de seu corpo seria um
dos mecanismos indispensáveis ao dançarino para o processo de construção
cênica, enquanto que o domínio técnico de um gesto codificado, em si mesmo,
poderia apresentar-se mais como um obstáculo do que como um valor.
A concepção do corpo como memória do universo inscreve-se também na
intersecção geradora do butōtai, uma vez que vem proposta já nas bases do
157
Ankoku Butō de Hijikata. Contudo, em seu projeto artístico, o corpo enquanto
um reservatório da memória apresenta alguns matizes mais explícitos ao
ressaltar, além de sua dimensão universal, também seus níveis pessoal e coletivo.
No butō de Kazuo Ōno o corpo vem entendido como inteireza, como uma
espécie de individualização dos movimentos complexos que constituem o
cosmo, fazendo com que uma possível estratificação da memória seja mais
inconsistente, ou difusa, do que na obra de Hijikata.
No processo de investigação arqueológica do corpo, colocado em cena
pela práxis artística de Tatsumi Hijikata, se instaura o fenômeno de reificação
dos múltiplos níveis da memória inscritos na materialidade do corpo. Esta
objetificação das memórias pessoais, coletivas e universais, tem como intuito
modificar as qualidades da matéria que compõe o “corpo de carne”, tornando-
as visíveis também em um plano físico. Neste sentido, o próprio corpo é
reconstruído enquanto um objeto, uma vez que sua carne, ao despir-se das
configurações cotidianas propostas por seu shintai, pode assumir outras
qualidades físicas e cinéticas provindas de diferentes objetos ou seres nos quais
se transmuta. Este processo desvela ao dançarino o seu naru shintai, ou seja, o
shintai em devir, no qual se sente desafiado em descobrir o verdadeiro estado de
ser do objeto. Esta compaixão quase ontológica com o objeto, isto é, este
radical compartilhamento dos pesos inerentes ao seu estado de ser, desdobra
diante do dançarino os seus kanōtai: seus “corpos possíveis” (Centonze, 2001, p.
156), ou seus “corpos em potência”. Essas diferentes condições e modos de ser
de seu shintai circunscrevem as potencialidades que o corpo tem de produzir
uma infinita gama cinética, bem como as diversas qualidades de sua presença.
Com princípios muito similares e métodos distintos, Ōno também ativa
a reificação da memória através, porém, de uma espécie de “lastro” cósmico,
isto é, de uma concepção de memória que tem a dimensão do cosmo como
unidade referencial, da qual dependem e se desdobram os outros níveis, mas
sempre tendo a carne como palco de suas objetificações. A memória uma vez
reificada, revelando o shintai em devir ao dançarino, torna também possível a
tomada de consciência da dimensão objetiva de seu próprio nikutai: o peso e a
materialidade de sua carne. A técnica do “corpo morto” trabalhada tanto por
Hijikata como por Ōno, corresponderia assim a uma possibilidade
metodológica para se alcançar tal nível de consciência.
A remoção gradual das energias expressivas, até seu zeramento,
proporcionado pela técnica do “corpo morto”, transforma assim o corpo em
uma substância latente na qual é possível colocar uma expressão ou sentimento
que passa a expressar a si mesmo, ocupando o espaço deixado pela dissolução
158
da racionalidade individual e desejosa do dançarino, ocorrida precedentemente.
Tal técnica se baseia na desconstrução dos gestos cotidianos, gerando uma
fragmentação dos automatismos corporais seja em sua movimentação como em
suas concepções. Este corpo (an)atomicamente (Centonze, 2003/2004, p. 22)
destituído dos imperativos de seu shintai pode oferecer-se como recipiente para
abrigar a consciência de um novo estado de ser, de uma nova existência
assumida por uma sensibilidade mais ampliada. O zeramento do corpo, bem
como a assunção consciente do status de devir de seus kanōtai, torna assim
possível a sua reconstrução através de processos metamórficos que incorporam
as qualidades da matéria das diferentes existências.
Em outras palavras, a dissolução do individualismo inerente aos
paradigmas que configuram o shintai do dançarino – através da técnica do
“corpo morto” e do processo de reificação dos níveis de memória que neles se
inscrevem – evidencia a latência e a potência da transmutabilidade da matéria e,
com isso, a possibilidade concreta de processos metamórficos que alterariam a
qualidade de sua presença. Neste contexto, a dissolução de uma individualidade
alienada através da assunção de outras formas de existência na constituição da
corporeidade, bem como a exigência da construção de uma sensibilidade e de
uma consciência intersubjetivas, que potencializem o protagonismo técnico e
poético dos “corpos possíveis” – presentes nos procedimentos metamórficos
que sustentam os mecanismos de construção cênica da dança Butō – são
somente alguns exemplos que possibilitam a assunção do butōtai como matriz
de uma concepção crítica do corpo.
Quando a estes princípios técnicos e filosóficos somam-se as
dimensões históricas e sociológicas que tornaram possível o surgimento da
dança Butō, começa a delinear-se a possibilidade de interpretá-la enquanto uma
“manifestação incorporada de resistência” (Scott, 2006, p. 23), uma vez que se
fundamenta em um criticismo corporal que se levanta contra inúmeras
modalidades de opressão e dominação cultural. Os procedimentos de
construção do butōtai – edificados sobre as intersecções e diferenças
metodológicas propostas por Tatsumi Hijikata e Kazuo Ōno – legitimam-se
enquanto práticas de instauração de políticas do corpo, as quais visam inscrever a
subversividade e a contestação na própria carne, buscando demolir os modelos
conservadores de organismo físico e social que a subjugam. Assim sendo,
enquanto uma forma de contestação encarnada na natureza básica e orgânica da
existência física, o butōtai pode servir como instância referencial de resistência
aos mecanismos de opressão cultural colocados em ação pelos paradigmas
ocidentais modernos, assumidos e vividos cotidianamente pelos sujeitos.
159
O nikutai, ou a investigação do corpo de carne, que sustenta o corpo
colocado em cena pela dança Butō, pode assim ser interpretado também em
uma chave política. A carne, refeita na radicalidade de sua matéria, encontra em
sua potência intersubjetiva a matéria-prima para o seu devir, bem como um
fundamento ético para sua dimensão política. O butōtai, enquanto lócus de
resistência e instauração de políticas do corpo, se oferece, portanto, como
possível instância de realização da shutaisei, isto é, de uma subjetividade porosa e
comprometida radicalmente com “ações políticas e com atitudes de
independência e autonomia em relação às forças potencialmente
condicionadoras da história e da estrutura social” (Koschmann in Klein, 1988,
p. 31).
Deste modo, esta espécie de política de resistência da carne instaurada
pelo butōtai pode sustentar uma interessante possibilidade de desconstrução da
hegemonia dos paradigmas de desafio e produtividade, tão cultivados pela
sociedade ocidental moderna e assumidos na experiência individual cotidiana.
O corpo “demasiadamente humano” proposto pela dança Butō oferece-se
assim como inspiração para a construção de suas antíteses, pois incorpora em
suas matrizes poéticas e em seus procedimentos técnicos, algumas das muitas
dimensões renegadas pela moralidade civilizada e pela racionalidade
instrumental de nossa sociedade orientada à produtividade: como por exemplo
a morte, a deformidade, o grotesco, o erotismo, a criminalidade, a velhice e a
comunhão (meta)física com a materialidade da natureza.
Butōtai, o corpo proposto pela dança Butō, em sua constante crise e
transformação, pode assim servir como matriz para a construção de uma
corporeidade crítica. Uma corporeidade que acolha a encarnação física e
simbólica da subversividade e da contestação. Uma corporeidade que se refuta a
conceber-se enquanto individualidade alienada e configura-se nos interstícios de
sua matéria e na sua essencial intersubjetividade. Uma corporeidade que assume
ativamente a politicidade inerente à sua presença120 e ao seu mover-se no mundo.
pelo educador Paulo Freire, através do qual ele parece reivindicar radicalmente uma
responsabilidade ética, histórica, política e cultural na constituição ontológica do
próprio ser humano. Isto porque, em sua leitura, perceber-se enquanto uma presença no
mundo, ou seja, como um sujeito histórico, intersubjetivo e mediatizado pelo mundo,
pressupõe admitir-se enquanto uma existência consciente que intervêm e modifica a sua
realidade, e, ao fazê-lo, modifica a si mesmo. “Uma presença no mundo, com o mundo e
com os outros. Presença que, reconhecendo a outra presença como um ‘não-eu’ se
reconhece como ‘si própria’. Presença que se pensa a si mesma, que se sabe presença,
160
Uma corporeidade que coloca em tensão a hegemonia dos paradigmas
sustentadores de um corpo eficaz e funcional, bem como o próprio sistema
produtivista ao qual serve dialeticamente como unidade funcional. Uma
corporeidade crítica que acrescenta uma dimensão política a seus gestos e exige
uma dimensão ética para sua existência, uma vez que não refuta a
responsabilidade inerente às potencialidades de sua presença. Uma
corporeidade que renuncia aos imperativos culturais da sociedade para celebrar
a instabilidade e a subversão identitária de seus corpos possíveis.
que intervém, que transforma, que fala do que faz mas também do que sonha, que
constata, que compara, avalia, valora, que decide, que rompe. E é no domínio da
decisão, da avaliação, da liberdade, da ruptura, da opção, que se instaura a necessidade
da ética e se impõe a responsabilidade” (Freire, 1997, p. 20).
161
162
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