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A arte japonesa do Kabuki e o Barroco Europeu

Aos que não têm conhecimento do Kabuki, essa é uma arte que tem mais
de 400 anos e é tradicional no Japão. Trata-se do teatro, que originalmente era a
mais importante atração dirigida ao povo, para a sua diversão e deleite, nos idos do
século XVI. O ambiente de representação do Kabuki, hoje considerado clássico e
com alguns dos seus atores sendo considerados como patrimônio nacional era, nos
seus primórdios, uma atração montada em um tablado de madeira, onde os atores
se apresentavam e o público assistia toda a encenação comendo, bebericando e,
muitas vezes, gritando o nome de seus atores favoritos em voz alta, para
homenageá-lo, quando estes entravam em cena. Tudo isso envolto em enredos que
faziam referência a heroínas, guerreiros e tudo aquilo que é passível de emoldurar
as fantasias mais nobres dos romances medievais.
Segundo Darci Kusano, cada época cria as suas próprias formas de
manifestação artística para atender às necessidades de expressão do espírito do
seu tempo. Na Europa, em oposição às obras clássicas do Renascimento,
caracterizadas como harmoniosas, perfeitas, acabadas e o auge do equilíbrio sendo
alcançado pela arte italiana, as obras barrocas, identificadas como uma valorização
do “superlativo bizarro”, imperfeitas, fluidas, inacabadas, surgem rompendo a
pretensa luminosidade, equilíbrio e estabilidade greco-romanos alcançados pelo
estilo clássico, sendo consideradas, inicialmente, como decomposição, uma
decadência do estilo clássico renascentista, exatamente por surgirem como fator de
inquietação.
Na expressão do historiador de arte suíço Jacob Burckhardt, contida no
Cicerone (1855), o Renascimento atingira a arte ideal ao expressar a beleza ideal,
inspirando-se na natureza, na imitação dos antigos e no neoplatonismo,
materializando a verdade eterna contida nas coisas. Por sua vez, a arquitetura
barroca falaria a mesma língua do Renascimento, Mas “à maneira de um dialeto
selvagem”.
Comparando-se ao Renascimento, o Barroco é visto, no século XIX, como
algo de estilo inferior, decadente, pervertido, monstruoso.
Benedetto Croce fazia um julgamento do Barroco literário como “uma das
variações do feio”, ou como uma série de macaquices e contorções, ou
simplesmente manifestações de impotência de uma época, a se situar em relação a
um ideal. Identifica o Barroco então como sendo um estilo essencialmente de mau
gosto, ou um estilo patológico. Entretanto, mais tarde, Croce vai admitir a corrente
barroca com sendo caracteristicamente italiana, ou seja, que lhe dá personalidade.
Por outro lado, ou no outro lado do mundo, o Japão passa por um período
de isolamento quase completo do resto do planeta – período Edo (1603-1867) e, na
sua composição hierárquica social, faz com que algumas classes sejam
estabelecidas, onde os pertencentes às classes hinin (“marginais”), estavam
exatamente nas profissões de entretenimento. Portanto os atores de Kabuki sequer
eram considerados classe, oficialmente, pois nem constavam no senso oficial.
A situação dos atores do tetro Kabuki passou por mudanças profundas
desde o século XVI, tendo começado com a liderança de uma antiga sacerdotisa,
chamada Okuni, que coordenava a atuação somente de mulheres na interpretação
das personagens (Onna Kabuki). Como a sua atuação artística passava dos limites
do artístico depois das apresentações, momento em que as atrizes se prostituíam, o
poder imperial proibiu a atuação de mulheres e o Kabuki passou a ser produzido
apenas por rapazes, que ainda não tinham a sua voz tornada voz de homem adulto
(Wakashu Kabuki). Não funcionou a estratégia, pois os rapazes, pela sua beleza e
convencimento na sua atuação, chamavam a atenção da plateia de maneira que
também muitos samurais tinham casos com esses rapazes, causando rebuliços e
confusões nos teatros na disputa pela companhia dos atores, depois das
apresentações.
Por fim, o Kabuki passou a ser interpretado apenas por homens adultos
(Yaroo Kabuki), o que exigiu uma performance excepcional dos atuantes nessa
arte, que é tida como o contraponto do teatro Nô, expressão máxima da
formalidade do protocolo oriental, em se tratando de artes cênicas.
Chega-se a dizer que os papéis interpretados pelos homens não poderiam
ser objeto de atuação feminina, pois estes “elaboram a imagem da mulher ideal”,
coisa somente possível aos homens, e não às mulheres. Se alguma mulher
interpretasse a personagem feminina, teria todo o seu corpo a seu favor, para
convencer a plateia da sua atuação, o que não acontece com o homem. No caso do
homem, ele mergulha no universo feminino de tal maneira que até as suas atitudes
fora do palco são pautadas pela sensibilidade e pela delicadeza dos movimentos.
Esses atores, hoje considerados como patrimônio cultural nacional, pelo
império japonês, têm esposas filhos. Seus antepassados das artes pagaram alto
preço pela conquista do lugar que ocupam na memória e no reconhecimento de sua
contribuição para a expressão artística japonesa. No começo os atores do teatro
kabuki manifestavam os anseios de outras classes sociais, que não a elite
monárquica, e talvez por isso fossem considerados como uma espécie de classe
invisível.
Ocorre que no mesmo período Edo citado acima (1603-1867), a burguesia
cresce em poder econômico e passa a sentir necessidade de expressar o seu modo
de vida e sua visão do mundo, que é completamente diferente da visão hierática e
lírica expressa no teatro nô, que é uma manifestação cultural da classe militar da
Idade Média (período Muromachi). Assim, os teatros bunraku e kabuki são
considerados artes irmãs e rivais na atração do público, ou seja, são as novas
manifestações artísticas da cultura popular e urbana japonesa e, especificamente,
uma cultura mercantil centrada nas cidades, Edo, Osaka e Kyoto.
Foi o primeiro florescimento de uma cultura genuinamente plebeia no
Japão, o que o coloca em posição análoga à da manifestação que chamamos de
Barroco, na Europa, ou seja, estavam no mesmo patamar artístico e conceitual do
barroco europeu. Aqui, nos parece que o mundo entra em fases de
amadurecimento que alcançam povos em torno na terra, que acabam por se
comunicarem sem se conhecerem. Somos parte de um mesmo organismo e
pertencemos a ele.
Os atores de Kabuki são considerados como uma espécie de extensão dos
atores que já faleceram, tendo a chance de acrescentar a seus nomes, os daqueles
que fizeram história na arte da interpretação. Dessa forma, os nomes são
perpetuados, juntamente com as suas obras, como acontece muito entre culturas
cristãs, quando são feitos os votos de celibato e obediência à Igreja, e também
entre etnias indígenas, como a dos Tupinambás, que acrescentavam nomes ao
guerreiro cada vez que ele capturava e matava um inimigo. Quando um cardeal é
eleito Papa da igreja Católica, adota também um novo nome, como ocorreu com o
argentino que assumiu o seu pontificado e adotou o nome de Francisco I.
Hoje as grandes apresentações de teatro no Japão são altamente
concorridas, pelo apreço que os japoneses têm pelas suas tradições. Sabe-se que
muitos aficionados pelo Kabuki, compram ingressos apenas para ver um trecho
especialmente dramático no decorrer da apresentação integral. Aguardam
ansiosamente aquele trecho da apresentação para se deliciar com a performance de
atores, que traduzem em seus gestos o ideal de regras eternas, da moral aceita na
sociedade daquele país, do comportamento e gestos da mulher que, na opinião dos
críticos da arte do Kabuki, somente pode ser interpretada por um homem, pois este
vai colocar em sua interpretação todos os ideais em torno do que se espera de uma
mulher.
Toda a trajetória do teatro Kabuki está enriquecida pelas contribuições de
seus idealizadores, que existiram à margem de qualquer reconhecimento oficial, no
passado, dando a sua vida pela arte de interpretar o mundo e a sociedade
japonesa, ao modo da visão de mercadores, e do povo em geral. Hoje estão
elevados à condição de patrimônio cultural nacional, pela importância histórica que
adquiriram, passados cerca de meio milênio desde o início de sua inserção no
mundo das artes cênicas.
Da mesma forma que algumas músicas e objetos foram considerados
inferiores, sendo chamados dos mais variados adjetivos pejorativos, hoje o Kabuki
alcançou a respeitabilidade dos ícones que a tradição japonesa hoje reconhece
como acima do que classificamos hoje como cult. O labor de seus persistentes
atores, fez com que a sua arte permanecesse acima de todas as expectativas de
alcance de glórias e de status, pois persistiram, que e isso deu tempo ao kabuki, no
curso de gerações, de ver a sua arte ser devidamente digerida e elevada à condição
de nobreza que goza junto ao público nipônico.

Fontes:
Kusano, Darci. Os Teatros Bunraku e Kabuki: uma visada barroca – São
Paulo: Perspectiva: Fundação Japão. Aliança Cultural Brasil-Japão. 1993 – (Coleção
de estudos: 133).
Site: http://www.kabuki-bito.jp/eng/top.html
Bráulio Antônio Calvoso Silva é professor de literatura portuguesa e língua
japonesa, membro colaborador da Universidade do Cerrado e escritor.
brauliocalvoso@hotmail.com

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