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Orientador:
Prof.
Dr. Edvaldo Pereira Lima
SÃO PAULO
2001
SILVIO RICARDO DEMÉTRIO
Orientador:
Prof.
Dr. Edvaldo Pereira Lima
SÃO PAULO
2001
Comissão Julgadora
________________ - ________________ - ______
Nome Assinatura Data
This research have it´s object in the texts of the brazilian poet, composer
and journalist Torquato Neto, who was envolved with the Tropicalia scene in
the 60´s. Torquato wrote a daily collumn named Geléia Geral in the Última
Hora – one of the great newspapers of this century in Brazil. His style was
built with a radical experimentalism, melting journalism and a poetic
constructivism to found a form to handle with the dictatorial politics of
ideologic control in the dark years of militarism in the South America. In 1972
Torquato Neto comitted suicide. His work still being a strong influence in the
vanguard culture in Brazil. His journalistic style was a single experience with
the boundaries of literature and journalism in a poetry view.
In memoriam Pedro do Rosário Neto
AGRADECIMENTOS
Diante dessa dificuldade inicial, que por vezes faz parecer quixotesca
qualquer tentativa de recompor o movimento pelo qual Torquato Neto
constituiu sua obra, há de se ter em mente então que para entender um
estilhaçamento não se deve propor a inversão do processo original. Como
Leminsky aponta, “os vários possíveis” de Torquato dão a medida da
virtualidade que ronda seus textos. Buscar um princípio unificador aqui seria a
mesma coisa que tentar recompor uma peça de porcelana espatifada. Se o
processo original foi exatamente a aposta na ação determinante desse
estilhaçamento, deve-se entender esse movimento em seu próprio fundamento.
É o que Leminsky insinua, o “fato de mistério” que envolve a produção de
1
LEMINSKY, Paulo. Os Últimos Dias de um Romântico. São Paulo, Folhetim nº303, 07/11/1982.
Torquato – à rarefação do “corpus” sobrepõe-se a radicalidade de um estilo
que lhe dá a força. Se o “corpus” é rarefeito, a articulação entre a forma de
expressão e a forma de conteúdo no caso de Torquato Neto se dá no sentido
contrário: a sua “Geléia Geral” é densa – o registro de uma trajetória marcada
pela antropofagia onívora inaugurada pelo tropicalismo. Segundo Laura
Beatriz Fonseca de Almeida, o estilo da Geléia Geral afirmava-se:
2
ALMEIDA, Laura Beatriz Fonseca de. Um Poeta na Medida do Impossível – Trajetória de Torquato Neto.
Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas – USP. São Paulo, 1993. Pp.93-101.
3
LEMINSKI, Paulo. Forma é poder. São Paulo,Folhetim de 04/07/1982: Só a obra aberta (desautomatizada,
inovadora), engajando, ativamente a consciência do leitor no processo de descoberta/criação de sentidos e
significados, abrindo-se para sua inteligência, recebendo-a como parceira e colaboradora, é verdadeiramente
democrática”
“Um Édipo tenta decifrar as inscrições, os
alfabetos, as notas, os hieróglifos que a esfinge desenhou
com a ponta de suas garras nos lajedos, no leito do Rio
Parnaíba, nas palmas das carnaúbas, no canto da jurití,
nos gravetos esturricados, na inteira chapada do Corisco.
E se não há no entremeio o viço das coisas, há só o
presto intenso, há somente o prestissimo...
- Então doutor, não é possível tentar “L‟Anti-Oedipe”?
- Não vai adiantar nada. É tarde. A Livraria Leonardo da
Vinci ainda não recebeu nem o exemplar encomendado
pelo General Golbery por ser uma edição muito recente.
Les Editions Minuit acabam de dar à luz neste ano da
graça de 1972. Agora é cinza.”4
A linha assumida por Torquato Neto em sua produção foi uma linha de
intensidade crescente que culminou com um excesso, com uma explosão. A
expressão musical “prestissimo” à qual Waly Salomão se refere é esse ritmo
nervoso e crescente, e a Geléia Geral é o exemplo disto. Como será
desenvolvido mais adiante, a indicação de “O Anti-Édipo” por Waly Salomão
traz em sua ironia toda essa perspectiva de não interpretação como a
delineamos há pouco. O calibre da ironia está na coincidência do ano da morte
de Torquato com o da publicação do livro. Waly diz sobre a chegada tardia do
livro – indicando que certamente algo desta obra pode nos colocar em contato
com a força geratriz das virtualidades da Geléia Geral.
1.1. Esquizoanálise
Então é fixarda como ponto de partida a consideração de que a crônica
(chamemos assim os textos de Torquato, por força de expressão), tanto para o
jornalismo quanto para a literatura é considerada um “gênero menor”. De
acordo com o senso comum isto significa que a crônica seria uma literatura
envergonhada ou então um jornalismo estetizado, mas quando se fala em
Torquato Neto todo e qualquer senso comum deve ser suspenso. Portanto,
podemos tomar “menor” de acordo com “O Anti-Édipo”, o que significa que
estamos nos colocando dentro de uma das discussões que a obra conjunta de
Félix Guattari e Gilles Deleuze não para de perseguir.
4
SALOMÃO, Wally. Torquato Marginália Neto in “Armarinho de Miudezas”, Salvador, Fundação Casa de
Jorge Amado, 1993.
O percurso do trabalho em conjunto desse dois autores começa com
uma crítica da psicanálise , “O Anti-Édipo”. Essa obra traz em seu sub-título o
plano sobre o qual os seus trabalhos seguintes vão se desenvolver:
Capitalismo e Esquizofrenia. Obra de fôlego intenso, “O Anti-Édipo” rompe
com uma leitura freudiana do desejo como sendo fundamentalmente
determinado por uma falta. Para Deleuze-Guattari, o desejo é uma questão de
produção. O desejo produz alguma coisa, é uma afirmação de uma
positividade. O Desejo atualiza uma virtualidade 5 . Como Christian Descamps
expõe, a posição de Deleuze-Guattari:
5
DESCHAMPS, Christian. As Idéias Filosóficas Contemporâneas na França. Rio de Janeiro, Jorge Zahar,
1991. P19-23.
6
Ibdem. P21-22.
como representativo, ou melhor, como o palco mesmo onde o drama familiar
básico desempenha sua trama. E quando se fala em teatro temos então uma
representação. De acordo com Deleuze-Guattari, a metáfora de Freud para o
insconsciente é o teatro. A dupla de pensadores franceses inverte toda esta
posição. A imagem do inconsciente para Deleuze-Guattari é uma usina,
porque para estes autores, o inconsciente é produtivo e jamais tem seu
trabalho determinado por uma falta, senão por um excesso, ou melhor, um
acréscimo. Além disto, o inconsciente é atravessado por toda e qualquer
potência exterior: política, cultura, história, economia, etc.. Deleuze-Guattari
chamam a linha traçada pela psicanálise de neurotizante, dada a obsessão por
um princípio que isole o indivíduo das potências que o atravessam. A
psicanálise reduz todo o social e toda produção ao familiar - esta é, segundo
Deleuze e Guattari, a sua neurose. O „Anti-Édipo” é, como definem Deleuze-
Guattari, uma inversão do sentido dessa linha. O pólo oposto da neurose é a
esquizofrenia, porque, ao contrário da neurose, nela tudo desliza para fora, é
uma pura expansão em todos os sentidos, logo, onde nenhum sentido em
especial é afirmado. Daí Deleuze-Guattari proporem uma esquizoanálise, isto
é, discutir as manifestações do desejo e seus investimentos sobre uma
perspectiva que considere o inconsciente do ponto de vista da produção do
social. Em outras palavras, para Deleuze-Guattari há uma relação fundamental
entre o modo de produção social e a produção de subjetividade 7.
O que os autores franceses chamam de “literatura menor” começa a ser
preparado já nesta obra, quando nela emergem as primeiras referências ao
nome de Kafka (p. 58 e p.269 da tradução brasileira). O segundo trabalho em
conjunto de Deleuze e Guattari é dedicado inteiramente à obra do escritor
tcheco: “Kafka: Por uma literatura menor”. Neste livro, os autores franceses
definem o conceito de literatura menor. Primeiramente é necessário entender o
par conceitual molar-molecular para entender o que vem a ser a literatura
menor e também explicitar de maneira mais acurada o que os autores chamam
de territorialização, desterritorialização e reterritorialização (conceitos
desdobrados de codificação, decodificação e sobrecodificação). Para Deleuze-
Guattari todo fenômeno possui um devir (um tornar-se) molar e molecular.
São duas linhas de força. Uma, a molar, é uma linha de recognição, que
recorta um fenômeno e lhe dá uma identidade – seria uma linha de contorno.
Portanto, o molar pode ser entendido como o aspecto de reconhecimento de
determinado fenômeno, ou seja, o que permite estabelecer uma convenção
acerca de sua natureza. É uma linha de fechamento, de contorno.
7
“A tese da esquizo-análise é simples: o desejo é máquina, síntese de máquina, agenciamento maquinístico –
máquinas desejantes. O desejo é da ordem da produção, toda produção é ao mesmo tempo desejante e
social”. In “O Anti-Édipo”p 375.
O nível molecular é justamente o sentido contrário desse devir, que vai
em direção aos agenciamentos primeiros que determinam o fenômeno. Por
exemplo, em relação à esfera política, existe um devir molar quando o que se
têm sob foco são as instituições convencionais desta esfera: partidos, eleições,
etc. O molar é o plano das grandes categorias, ou melhor, das próprias
categorias, já que estas são um contorno traçado sobre um fenômeno. O devir
molecular refere-se portanto à tomada das relações mínimas onde é
engendrada a política: relações pessoais do dia-a-dia, onde os agenciamentos
são da ordem de uma flexibilidade que se contrapõe à linha de um contorno.
Podemos pensar molar-molecular como a interação entre a força centrípeta e a
centrífuga. De acordo com a definição da física, a força centrípeta é a que tem
sua ação orientada para o centro de um movimento de rotação. Toda rotação
determina um raio de ação e, logo, um centro. A força centrípeta dirige-se para
esse centro. Ao contrário disto, a força centrífuga é a que se dirige para fora
deste raio de ação. Ela coloca o movimento em contato com suas tangências.
Temos então que o devir molar é centrípeto, porque, ao dirigir-se para o centro
do fenômeno, lhe dá uma identidade. Todo centro é a imagem de uma
unidade. Na outra direção está o molecular, centrífugo porque é o que foge à
esta unidade reconhecível. O molecular é onde toda imagem se desfaz. É onde
um fenômeno afirma sua multiplicidade. Ao dirigir-se para fora do raio de
ação, coloca-se em relação às tangências do fenômeno, isto é, com o que ele
se agencia. O molecular dá entrada então à dimensão onde um fenômeno se
desconhece – ao que lhe faz diferir do que está fora de seu raio de ação e
também em relação a si mesmo. É uma linha de diferenciação, porque
“diferenciar de si mesmo” é durar, e todo fenômeno é uma duração.
Todo fenômeno é decorrente da soma desses dois devires, molar e
molecular – é o que determina o equilíbrio do sistema 8. Como Deleuze afirma,
a sua filosofia é uma afirmação do múltiplo – a filosofia como “teoria das
multiplicidades”. É então que sua filosofia dirige-se sempre a este nível
molecular, porque é nele que se afirma a diferença – as relações de um
fenômeno com seu fora. Dizemos “fenômeno” aqui por força de expressão –
não levando em consideração o que tal termo implica em termos de conceito
filosófico, pois acreditamos que essa discussão seria de uma envergadura tal
que não há recursos para tanto e, tampouco, é o objetivo do presente trabalho.
“Fenômeno” aqui pode ser entendido como o agenciamento entre estas duas
forças, o devir molecular e molar.
Voltando então à questão do que seja a “literatura menor” definida pelos
dois autores, como tudo o que é molar é da ordem das categorizações, tem-se
8
Toda essa conceituação remete ao pensamento de Maurice du Condillac, do qual Deleuze explorou a
proposição de que “O múltiplo explica o Uno enquanto que o Uno implica o múltiplo”.
que um literatura orientada neste sentido é aquela que se conforma aos
cânones que lhe são impostos. Há toda uma galeria de nomes que conformam
essa literatura maior como um legado de afirmação de uma língua através da
escrita, seu registro. Esse é o devir molar da literatura, seu devir maior, ou
seja, que lhe impõe uma linha de contorno e sobre o qual se constrói o modelo
com o qual se considere ou não um texto como sendo literário.
Mas há também o sentido inverso na literatura, um devir molecular, um
devir menor. Daí Deleuze-Guattari pensarem uma “literatura menor”. Esta é a
afirmação da diferença de si mesma da literatura, de como algo surge no plano
literário como uma voz antes não manifestada, portanto algo que dirige-se
para o seu fora. Toda literatura menor é então, primeiramente, aquela que dá
voz a algo dentro da própria língua que antes era dominado pelo silêncio. A
literatura menor atualiza uma virtualidade (a do silêncio como condição para
que algo seja dito, silêncio fundante), logo é investida pelo desejo, assim
como Deleuze-Guattari o definem. E estes autores chamam a atenção para esta
característica da literatura menor: ela é, como no exemplo que Deleuze-
Guattari encontram numa frase de Proust, “uma língua estrangeira dentro da
própria língua”9. Ela não representa, mas torna presente, isto é, manifesta esta
virtualidade da língua. Poderia acontecer, como no caso da assimilação pela
corrente teórica dos “Estudos Culturais” de origem americana, de se entender
“literatura menor” como necessariamente “literatura de minoria”. É por isto
que Deleuze Guattari enfatizam o aspecto revelado pelo exemplo proustiano.
A escolha de Kafka também não é aleatória ou tampouco por simpatia:
Deleuze-Guattari demonstram que a literatura desse autor tcheco é uma
literatura menor, mesmo com Kafka sendo um nome inquestionável do cânone
ocidental. Em outros termos, Deleuze-Guattari assim procedem para reafirmar
que o “menor” ao qual ambos se referem não é pobreza estética, nem a
conformação a guetos, mas sim como campo de manifestação desse devir
molecular da literatura, de seu devir menor. Kafka faz o alemão “gaguejar”,
isto é, lhe imprime uma dicção própria através da qual novos sentidos são
produzidos. Estes novos sentidos são o resultado da maneira pela qual Kafka
monta sua máquina de escrita tal qual uma máquina simples em que se amarra
um corpo qualquer a um fio e se gira em torno de si. Escrever é colocar um tal
sistema para funcionar. O centro desse sistema é o narrador. A força
centrípeta, os marcadores de poder da linguagem, ou seja, os elementos da
sintaxe que impõe o sentido que remete ao centro – que lhe dão uma
identidade reconhecível. A força centrífuga é a desterritorialização que as
tangentes imprimem ao sistema. As tangentes de uma máquina como esta são
9
A frase de Proust é a seguinte: “As mais belas obras são escritas numa espécie de língua estrangeira”.
todas linhas de fuga. As tangências são a própria virtualidade que conforma
esta máquina. Delas provêm os pontos pelos quais o sistema todo, isto é, a
máquina de escrita, passa a percorrer, traçando com isto uma linha de fuga –
uma linha de diferenciação de si mesma.
Então que é sobre essa dimensão molecular que a máquina desenvolve
seu devir revolucionário, porque é por essa linha que ela passa a territorializar
o que lhe chega pelas tangências. Nesse movimento de decodificação dos
elementos exteriores a si mesma, a máquina passa então a recodificar o que
lhe é próprio.
10
“na geléia geral brasileira, alguém tem que fazer o papel de medula e osso”. Décio Pignatari.
11
Geléia Geral – in “Tropicália ou Panis et Circencis”, LP manifesto coletivo do tropicalismo, Philips, 1968.
Décio Pignatari, mais uma vez vem nomear o exercício de
liberdade do poeta. No contato diário de segunda a
sábado o cronista seleciona informações e trabalha a
notícia através de pequenos textos reflexivos e breves
notas sobre acontecimentos em diferentes áreas da
cultura (...)
(...) Marcar um espaço, abrir uma brecha em um
veículo de maior circulação é a tônica dos textos da
Geléia Geral. Saindo da imprensa alternativa para
transformá-la em notícia para público maior, Torquato
expõe-se ao olhar do censor e trabalha as informações
que estão liberadas”.12
12
ALMEIDA, Laura Beatriz Fonseca de. Op.cit. p.88.
13
A título especulativo, é curioso observar como o que se chama de jornalismo informativo vai contra o
conceito de informação tal qual como este tem seu significado fixado no estudo da Comunicação Social pela
estender-se ainda mais, mas isto já é o suficiente para que seja percebido um
processo de argumentação característico do que se tornou conhecido como
teologia negativa: se não é possível dizer aquilo que Deus é, podemos então
conhecê-lo pela enumeração daquilo que ele não é. Este processo especulativo
chama-se apófase.14 No caso, pode-se deduzir que Deus é o indizível, ou seja,
uma experiência direta, não mediada pela linguagem, irrecuperável por meio
desta.
Colocando então em curso uma apófase laica, se o que se pretende de
Torquato é uma imagem na qual ele possa ser reconhecido em sua totalidade,
isto está fadado ao fracasso. Torquato Neto assumiu para si a figura do
vampiro, depois de atuar no filme em super-8 de Ivan Cardoso, Nosferato no
Brasil. Cultivou essa assimilação de seu nome ao do personagem, tornando-se
o “vampiro” da marginália. O vampiro é sua figura estética.15 Fez disto um
elemento constituinte de toda a sua poiesis. Como se sabe, um vampiro “não
tem imagem de si mesmo”16 – nenhum espelho pode captá-la . Não há,
portanto, como enquadrar o que quer que seja a seu respeito de uma maneira
fixa, tal como um vampiro e todas as suas metamorfoses, seu devir animal.
Reduzir tudo sobre o plano da catástrofe? – a Geléia Geral como o registro de
um plano suicida? Seria perder muita coisa ao se conformar ao mito romântico
do poeta que ama tanto a vida que é capaz de oferecer a sua própria em
holocausto à essa devoção. Essa é uma linha possível, porém, já revelada de
antemão: seria falar a respeito do romantismo de um ponto de vista romântico.
Mistificar a figura de Torquato Neto, não é esse o propósito do trabalho a
seguir. Jamais, portanto, rebater o que quer que seja em relação à Geléia Geral
sobre um enquadramento, ou seja, não interpretar de maneira totalizante, mas
sim seguir as linhas com as quais Torquato Neto construiu sua poética na
Geléia Geral. Nunca perder de vista a proposta já fixada: desenvolver e não
teoria de Warren Weaver – texto que serviu de base para a construção da teoria da informação. Segundo este
autor, podemos deduzir que o que está em jogo no jornalismo informativo não é a própria informação, já que
esta é minimizada, mas a mensagem – é sobre esta que recai toda a tônica dos discursos que fundamentam
esse gênero jornalístico. A Teoria Matemática da Comunicação de Weaver diz que quanto maior o grau de
escolha dos sentidos em uma mensagem, maior é a informação. Ora, o jornalismo informativo coloca-se
exatamente no polo oposto, porque, segundo Weaver, temos também que a toda mensagem é maximizada
pela diminuição da tacha de informação que lhe é interior. Nestes termos, uma mensagem fundamenta um
poder, porque parte de um princípio de interdição de outros sentidos que possa assumir.
14
DERRIDA, Jacques. Salvo o Nome. Campinas, Papirus, 1995. P.8.
15
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O que É a Filosofia? São Paulo, 34, 1992. P.87-88. “A diferença
entre os personagens conceituais e as figuras estéticas consiste de início no seguinte: uns são potências de
conceitos, os outros, potências de afectos e perceptos. Uns operam sobre o Plano de Imanência que é um
plano de composição como imagem do Universo (fenômeno). As grandes figuras estéticas do pensamento e
do romance, mas também da pintura, da escultura e da música, produzem afectos que transbordam as
afecções e percepções ordinárias, do mesmo modo os conceitos transbordam as opiniões correntes.”
16
“O pensamento é como o Vampiro, não tem imagem, nem para constituir modelo, nem para fazer cópia”.
Deleuze-Guattari. Mille Plateaux. P. 47 Volume5.
tentar soldar os fragmentos 17. É isto o que está expresso na letra da música
Geléia Geral: um poeta em meio à confusão do jornalismo. Confusão porque
mistura onde tudo perde os seus limites distinguíveis: onde os gêneros se
confundem, onde o “lado de fora é igual ao lado de dentro” 18; onde o
jornalismo e a literatura acontecem ao mesmo tempo em que uma poética é
construída em público.
Há nisto tudo uma questão fundamental: em termos de jornalismo, não
há, no Brasil pelo menos, um exemplo mais radical de experiência dentro da
chamada grande imprensa. Depois de Torquato o “desbunde” engrenou com a
ebulição de um tipo de discurso reconhecível em toda a imprensa nanica. Daí
a importância de um estudo de caso sobre a Geléia Geral. Esse “desbunde”
pode ser entendido como uma manifestação tardia dos valores culturais e
comportamentais que passaram a circular pela cultura de massa após o
advento de fenômenos tais como a Contracultura nos EUA e maio de 68 na
França. É certo que isto começou com o Pasquim, o qual o próprio Torquato
Neto afirmava que lia, mas foi na Geléia Geral que se gestou o embrião da
geração marginal – um estilo jornalístico “desbundado”, do qual o eco pode
ser reconhecido até mesmo hoje na produção de José Simão 19 em sua coluna
na Folha de São Paulo. Tendo-se sob foco o Pasquim, pode ser localizada uma
primeira dicção nesse sentido, com a coluna Underground, de Luiz Carlos
Maciel, mas esta ainda fica por conta do conteúdo, e não chega ao grau de
radicalismo da Geléia Geral. Não há ainda uma poética porque ainda o
“desbunde” está no conteúdo e não chegou até a própria forma de expressão
do discurso. No caso de Torquato Neto é indissociável o conteúdo da forma:
trabalha-se ambos ao mesmo tempo.
Os valores que estão em jogo são aplicados na construção do discurso,
ou seja, o fazer, poiesis, é auto referente, afirma-se por si mesmo e não em
relação a algo que lhe é exterior, um conteúdo pré-existente. Daí o requinte da
modernidade que é afirmada na coluna Geléia Geral e na poesia de Torquato
Neto. A própria forma de expressão já traz em si os valores afirmados pelo
conteúdo – é ela mesma, muitas vezes, que desencadeia e articula os
conteúdos. Neste sentido, a Geléia Geral pode ser entendida como uma
manifestação contracultural. Isto porque o termo Contracultura, no presente
17
“A esquizoanálise deve desembaraçar o fio. Porque ler um texto não é nunca um exercício erudito em
busca dos significados, menos ainda um exercício altamente textual em busca de um significante, mas um uso
produtivo da máquina literária, uma montagem de máquinas desejantes, exercício esquizóide que retira do
texto sua potência revolucionária”. In DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo. P. 138-139.
18
Torquato Neto. Geléia Geral. “Cordiais Saudações” 19/08/1971. “O lado de fora é frio. O lado de fora é
fogo, igual ao lado de dentro. Estar bem vivo no meio das coisas é passar por elas e, de preferência,
continuar passando. Isso aí eu li uma vez no Pasquim.”
19
Torquato Neto abre a coluna publicada em 15/01/72, entitulada “Bem no pezinho do ouvido”, com a
expressão “”Bom dia flor do dia!”, a qual José Simão utiliza para abrir sua coluna na Folha de São Paulo.
caso, diz respeito à abolição do termo cultura como algo dissociado de outras
esferas – como se culturais fossem apenas os conteúdos e não a expressão
destes. O “contra” neste caso é da rejeição de qualquer dissociação desta
natureza. Pode-se entender melhor essa noção de “contra” cultura com Félix
Guattari:
20
GUATTARI, Félix e ROLNIK, Suely. Micropolítica – cartografias do desejo. Petrópolis, Editora Vozes,
1996. P. 15.
21
BLOOM, Allan. O Declínio da Cultura Ocidental. São Paulo. Ed. Best Seller, 1989. P273-285.
22
Expressão cunhada pelo cineasta Cacá Diegues. Podemos entender “patrulha ideológica” como sendo, em
certo sentido, a contrapartida da censura instituída no país pelo AI-5. Um policiamento estético-ideológico de
esquerda que via de maneira paranóica qualquer manifestação que fugisse de suas categorizações como
“alienante”.
próprios. Nesse sentido, o “desbunde” não foi alienante, mas alienígena
mesmo: uma mistura de extra-terrestre com indígena 23; nativo e ao mesmo
tempo irreconhecível; afirmação de uma diferença espontânea. É certo que
também foi “capitalizado para o modo de semiotização dominante”. Talvez
até porque no cerne da expressão “Contracultura” ainda subsista uma
“cultura” como termo negativo, de onde abre-se a fenda fundamental que a
separa de outros âmbitos da produção social – esse “contra” e essa “cultura”
talvez já tivessem sido reconduzidos à uma disjunção, criando-se nada mais do
que um termo suficientemente amplo para recortar e isolar um fenômeno que
em seu devir revolucionário trazia em si justamente o movimento contrário.
Mas não há como falar de algo sem uma palavra: truísmo fundamental pelo
qual se abre a dimensão onde toda palavra é uma palavra de ordem – então
impõe-se a utilização do termo “Contracultura”, mas sem perder de vista que
23
No seriado japonês “Nacional Kid”, de grande sucesso no começo dos anos 70 no Brasil, havia uma legião
bárbara de seres, os “Incas Venusianos”. Apesar do tom chistoso, a decomposição anagramática de alienígena
em alien/indígena remete a uma passagem da participação do filósofo Roberto Machado numa mesa redonda
transcrita no livro “Micropolíticas – Cartografias do Desejo” (coletânea de textos e transcrições de palestras e
debates com Félix Guattari – pp 116-119). O debate aconteceu na Folha de São Paulo, em 3 de setembro de
1982, quando Guattari participou de uma série de eventos no Brasil. A pergunta colocada a Roberto Machado
foi a seguinte:
“Gostaria que você desenvolvesse essa comparação entre o processo de pirataria cultural
característico da Europa e a maneira tupiniquim de pirataria, característica do Brasil.
Vicente de Huidobro
Foi depois de uma noite de Quinta-feira. Torquato Pereira de Araújo
Neto havia saído com a mulher, Ana, e amigos, para comemorar seu
aniversário. Havia completado 28 anos. Na madrugada, já em casa, esperou a
mulher e o filho Thiago dormirem, vedou todas as possíveis entradas de ar
com um lençol que levou para o banheiro. Enquanto o gás se espalhava deixou
sua última mensagem. A data escolhida marca ao mesmo tempo o dia de seu
nascimento e o dia de sua morte. O escorpião se fecha sobre si mesmo. Sua
morte o transforma no mito cult do poeta trangressor. Em paralelo a esta
imagem, muitas outras se intercalam, mas a principal é a do vampiro, que
ficou vinculada a Torquato depois da atuação no filme “Nosferatu no Brasil”,
de Ivan Cardoso. Ela também o coloca no limite entre a vida e a morte. Da
mesma maneira, toda a produção de Torquato Neto, reunida na compilação
Últimos Dias de Paupéria, organizada por Ana, sua esposa e o amigo Waly
Salomão, joga com os limites entre a poesia e a forma particular de jornalismo
que Torquato praticou em sua Geléia Geral (nome tanto de sua música em
parceria com Gilberto Gil quanto de sua coluna).
Além de um dos grandes letristas e poetas do tropicalismo, Torquato
Neto também foi o criador de um estilo de jornalismo inconfundível durante o
tempo que durou sua coluna na Última Hora. A importância e a inventividade
da experiência colocada em prática pelo vampiro da Tropicália foi apontada
pelo poeta Paulo Leminsky, dez anos após seu suicídio, num artigo-balanço
sobre a influência de Torquato Neto na poesia e no jornalismo brasileiro:
25
LEMINSKY, Paulo. Os ùlitmos Dias de Um Romântico. Folha de São Paulo – Folhetim nº303 de
07/11/1982, p. 06.
plano pelo qual sua estética traçou uma linha de fuga na conjugação do
jornalismo cultural e da poesia brasileira no começo da década de 70.
Como a pesquisadora Laura Beatriz Fonseca de Almeida define em sua
dissertação de mestrado, na Geléia Geral “a linguagem torna-se notícia”26, o
que pode direcionar o plano das discussões em direção à constatação da
professora Mayra Rodrigues Gomes de que grande parte dos estudos que tem
o jornalismo como objeto não levam em consideração que, antes de tudo, o
jornalismo é um fato de linguagem27.
É uma decisão, logo, uma escolha a partir da qual aqui se parte na
leitura que se segue, de buscar pela força do acontecimento da Geléia Geral.
De como o estilo dos escritos de Torquato Neto publicados na Última Hora
aponta para a seguinte questão: como, de que maneira o jornalismo pode ser
tomado como elemento fundamental na construção de uma obra literária, a tal
ponto que apagam-se os limites entre esses dois regimes de escrita
heterogêneos? Essa é uma das questões principais para entender e localizar o
nome de Torquato Neto na recente história cultural do País.
26
ALMEIDA, LauraBeatriz Fonseca de. Um Poeta na Medida do Impossível. Universidade de São Paulo
1993, p
27
“Há algo negligenciado nas reflexões sobre jornalismo. Antes de registrar, informar, antes de ser colocado
pelas condições que o caracterizam, por exemplo, periodicidade, universaqlidade, atualidade, difusão,
categorias que nos são dadas por Otto Groth, o jornalismo é ele próprio um fato de língua”. In
GOMES, Mayra, Rodrigues. Jornalismo e Ciências da Linguagem. São Paulo, Hacker Editores/ Edusp, 2000.
p 19.
novembro de 1972 reveste todas as suas palavras de um silêncio inesgotável.
Uma forma de silêncio que é a medida de toda a linguagem, de toda palavra.
Um silêncio que não é tolerado dentro da “normalidade” imposta pela
linguagem jornalística. “Imprevisíveis significados”, escrevia Torquato -
palavras que “explodem” e, principalmente, “perder a fé nas palavras”, são
expressões que marcam o paradoxo deste que, embora admitindo
publicamente seu desencanto com a palavra, cercou-se dela em todas suas
atividades (além de jornalista, Torquato foi poeta e compositor, chegando a
escrever também roteiros para TV e cinema que nunca foram filmados).
A “Geléia Geral” pode então ser tomada como o coda apoteótico que
Torquato, em sua face de poeta-jornalista, compôs com os estilhaços de sua
trajetória misturados ao desencanto de uma paisagem cultural devastada pelo
totalitarismo cinicamente triunfante da palavra de ordem sintetizada na
expressão “ninguém segura este país”.
Tudo isto pode convergir para um ponto de partida em que leitura do
jornalismo praticado por Torquato Neto seja pautada, em termos
nietzscheanos, por uma posição reativa, isto é, automática em relação a um
valor moral instituído e não à força de seu próprio acontecimento. Nesse caso,
a “Geléia Geral” desencadeia um afeto negativo, de desconforto mesmo em
relação a uma divisão clara e objetiva entre vida e obra, entre uma prática da
escrita de referência ao real e um outro tipo de escrita, puramente inventiva, já
que choca-se frontalmente não só com os valores impregnados nas formas
discursivas do jornalismo, mas, de uma maneira verdadeiramente “geral”, com
o rompimento de qualquer forma discursiva dada por uma “normalidade” da
linguagem: normalidade no sentido de proveniente de uma „norma”, ou seja de
uma forma que impõe uma ordem ao discurso. Pela própria natureza do
discurso poético, há um afrontamento das margens impostas por essa
normalidade. Daí o rompimento com a “normalidade” do discurso, a quebra
da “palavra de ordem”, ou, pelo menos, o traçado de um programa para tal
rompimento, como será desenvolvido ao longo deste estudo de caso. Segundo
o poeta Ezra Pound, “poesia é linguagem carregada de sentido” 28, portanto, o
que propomos aqui é a leitura do processo pelo qual o jornalismo é tomado de
assalto pela instalação de uma poética em seu seio. É dessa maneira que
Torquato assume o jornalismo. Uma poética que busca o jornalismo como um
de seus elementos fundamentais seria então a dimensão sobre a qual podem
ser observadas as tentativas de redimensionar esse tipo de discurso através da
busca de uma linguagem mais “carregada de sentido”. Num limite mais
abrangente, esta poética aponta para as perspectivas de um jornalismo
literário, assim como escreve o professor Edvaldo Pereira Lima :
28
POUND, Ezra. O ABC da Literatura. São Paulo, Cultrix, 1982.
29
LIMA, Edvaldo Pereira. Páginas ampliadas – o livro reportagem como extensão do jornalismo e da
literatura. Campinas, Editora da UNICAMP, 1993. p.138.
Torquato Neto se coloca dentro desta perspectiva exatamente por levar
adiante uma subversão do uso, imprimindo um outro fim ao jornalismo –
como será desenvolvido mais adiante, a Geléia Geral é o resultado de um
bricolage composto com os fragmentos das explosões que o Anjo Torto da
Tropicália provocou ao longo de sua trajetória. O que o professor Edvaldo
Pereira Lima coloca em questão é a possibilidade do jornalismo assumir um
devir literário, investindo numa potência que o faça fugir dos eixos
convencionais para também ser trabalhado segundo um plano que o tome
como fato de linguagem. É no momento em que se reconhece uma ilusão
como tal que ela se desfaz – é assim que se “perdem as ilusões”. Camaleão ou
vampiro, o texto jornalístico que assume um devir literário passa para uma
outra modalidade. Nem jornalismo, nem literatura, mas ambos ao mesmo
tempo nas duas direções. Esse devir é o que desmancha as formas estáticas . É
uma força que nasce desse encontro e que arrasta os dois domínios para um
plano em aberto, como num deserto. O crítico Boris Schnaiderman define esta
relação da seguinte maneira:“em termos modernos, a literatura e o jornalismo
são vasos comunicantes, são formas diferentes de um mesmo processo”30.
Disto se deduz que são polos complementares, que se colocam nos extremos
da linguagem, e que, como tal, tocam-se na circularidade das relações que
estabelecem entre si. O fim de uma forma de escrita é o princípio da outra.
30
in LIMA, Edvaldo Pereira. Ibdem. p.139.
Homônima da música composta em parceria com Gilberto Gil, a Geléia
Geral foi a crônica do desencanto provocado na cena cultural brasileira pelo
acirramento da censura à liberdade de expressão na virada dos 60 para os anos
70. Nela estão as marcas desse processo de desencanto que levou Torquato
Neto ao suicídio na madrugada do dia 10 de novembro de 1972. Mas também,
ao mesmo tempo, a Geléia Geral foi o espaço de expressão da potência de
liberdade decorrente dessa mistura de materiaias nobres x pobres de que fala
Leminsky em alusão à estética da nova objetividade de Hélio Oiticica.
Tomando emprestado de Oiticica o lema tropicalista “seja herói, seja
marginal”, Torquato tentou explorar toda a tensão e contraste entre o
despojamento da linguagem jornalística e a aposta na sombra das palavras de
sua poesia. Sua poética trabalha não só essa tensão entre diferentes materiais
no plano do conteúdo, mas também a própria materialidade em si da
linguagem em contraponto ao discurso que se forma da articulação dessa
contraparte material. Tudo isto faz da Geléia Geral um caso singular na
história do jornalismo brasileiro – um caso único, uma dissonância no acorde
dos contentes.
A Geléia Geral tornou-se um símbolo da vontade de transgressão que
animou a agitação cultural de uma época e, por esta força que lhe é própria,
tornou-se também a inspiração de grande parte dos inconformismos que lhe
foram subsequentes.
31
HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Impressões de viagem – CPC, vanguarda e desbunde: 1960-70. Rio de
Janeiro, Rocco, 1992. p.67-68.
32
PEREIRA, Carlos Alberto Messeder. Retrato de Época – Poesia Marginal anos 70. Rio de Janeiro,
FUNARTE, 1981. P. 95.
2.3 – Vitalidade para gerações seguintes
33
BUENO, André. Um poeta não se faz com versos in Antologia Prêmio Torquato Neto ano 1 – Diversas
manifestações da cultura alternativa década de 60-70.Rio de Janeiro, Centro de Cultura Alternativa / RioArte,
1984. p.138.
34
MATTOSO, Glauco. O que é poesia marginal. São Paulo, Brasiliense, 1981. P.22.
A coluna de Torquato Neto tornou-se também uma referência no
jornalismo cultural brasileiro pelo grau de liberdade presente na
experimentação com uma forma híbrida entre os limites do relato jornalístico
e a poesia. Torquato Neto inventa um crossover épico: menestrel, aedo,
jornalista – tudo num mesmo caldo, numa mesma geléia. Não publicou
nenhum livro em vida. Sua obra nasceu da compilação póstuma feita por sua
mulher, Ana Maria Silva de Araújo Duarte e pelo amigo Waly Salomão:
“Torquato, Neto – Os Últimos Dias de Paupéria”, que reúne anotações
pessoais de Torquato, poesias, letras de música, relatos em forma de diário
(escrito durante períodos de internação em hospitais psiquiátricos) e,
principalmente, o material publicado na coluna Geléia Geral, no jornal Última
Hora, de 19/08/1971 a 11/03/72.
Segundo o compositor Gilberto Gil35, Torquato Neto foi, junto com
Capinam e Caetano Veloso, um dos principais nomes que articularam o
programa estético do tropicalismo. Entender a posição que Torquato Neto
assume dentro deste movimento artístico é entender o plano sobre o qual ele
absorverá o jornalismo como um dos elementos constituintes de sua estética
particular. Toda a ambigüidade entre o novo e o arcaico, materiais nobres e
materiais pobres, referências vanguardistas e lixo da indústria cultural na qual
o tropicalismo apostou fazem parte da poética que Torquato Neto estendeu ao
jornalismo que praticou na Geléia Geral. Se a letra de “ Geléia Geral” foi um
dos principais manifestos do tropicalismo36, ao mesmo tempo seus versos
anunciam e definem definem essa extensão de uma poética que transborda
35
Depoimento de Gilberto Gil no documentário escrito e dirigido por Ivan Cardoso, “ Torquato Neto, O Anjo
Torto da Tropicália”, 1985, 35´.
36
“(...)Embora desencadeado num dos festivais da Record, com Alegria, Alegria de Caetano Veloso e
Domingo no Parque de Gilberto Gil, o principal manifesto tropicalista chama-se Geléia Geral, um poema de
Torquato Neto em cima de uma melodia de Gil orquestrada por Rogério Duprat(...)”. in MATTOSO, Glauco.
Op.cit.p21-22.
para o jornalismo: “um poeta desfolha a bandeira/ e a manhã tropical se
inicia/ resplandente, cadente, fagueira/ num calor girassol com alegria/ na
geléia geral brasileira; que o jornal do Brasil anuncia”. A bandeira que o
poeta desfolha é o próprio jornal que se abre como espaço a ser descoberto e
conquistado a cada edição, a cada manhã. “ Ocupar espaço” era a idéia
fundamental de sua poética:
37
Geléia Geral – “Filmes” 30/11/71.
2.4 – Poéticas do celulóide
Torquato Neto encarou sua máquina de escrever como uma moviola e
as palavras como fotogramas que, na aceleração do mecanismo que as
impulsiona, criam uma estética da fusão. Escritura-antimatéria, que atrai todos
os sentidos para uma indistinção assim como um buraco negro o faz - como na
estrela negra dos versos do poeta americano Robert Hunter: “ Dark star
crashes/ pouring its light into ashes”38. Escuridão que no cinema é o momento
no qual uma imagem se funde em outra. Torquato foi um cineasta das palavras
- um artesão dos lapsos imperceptíveis da sintaxe, e o jornal foi um dos
principais laboratórios onde este composto foi apurado. Cinema e jornalismo
guardam relações quanto ao seu aspecto coletivo de seu processo de produção
e quanto ao elemento maquínico que trabalha com um desenrolar: as rotativas
são como os carretéis de um projetor ou de uma câmera. Tudo isto é expresso
quando, durante o tempo que passou em Paris, Torquato escreve:
38
“ A estrela escura explode/ espalhando sua luz em cinzas”.
39
SALOMÃO, Waly e DUARTE, Ana Maria Silva de Araújo (org). Torquato Neto – Os Últimos Dias de
Paupéria. São Paulo, Max Limonad ,1982. p319
Kilkerry40 e suas Quotidianas-Kodaks, publicadas no Jornal Moderno em
Salvador41. A metáfora da fotografia está para Kilkerry assim como o cinema
está para Torquato Neto. Captar o real é, de certa maneira, apropriar-se de
uma porção desse real, logo, é projetar-se sobre ele, delimitá-lo segundo os
limites da própria imagem que se projeta. Grande fusão que alimenta todas as
outras – fusão que coloca como limites da subjetividade o campo do real como
um todo. O real passa a ser desejado, investido pelo desejo de quem se projeta
nele. Essa é a verdade que pulsa “não sei quantas vezes por segundo” no
cinema. Esta é a verdade que pulsa nas últimas edições do Última Hora em
que a Geléia Geral esteve presente.
Pulsação. Há isto no cinema tanto quanto num jornal. Ambos são
periódicos. E dessa pulsação estabelece-se um sistema de circulação que é o
fundamento e o fim dessa pulsação, assim como acontece com o coração e o
sistema circulatório. Um batimento cardíaco é um quadro-fotograma tal como
a edição de um jornal, e o sistema circulatório que é alimentado por essa
pulsação cumpre o mesmo estatuto da circulação do celulóide que passa de um
carretel para outro da câmera de acordo com a mesmo processo pelo qual um
jornal é concretizado no momento em que o papel se desenrola nas rotativas
para ganhar a circulação segundo a sua distribuição 42. Um vampiro nada mais
faz do que se apropriar dos fluxos que percorrem periodicamente um sistema
circulatório.Isto coloca Torquato Neto em contigüidade com a obra
“Apropriação de circuitos”, do artista plástico Cildo Meireles, que escrevia
mensagens anti-imperialistas em garrafas de coca-cola vazias, símbolo maior
dessa ideologia de consumo imperialista americana. Quando essas garrafas
40
Torquato Neto reproduziu na íntegra uma “Quotidiana Kodak” de Kilkerry na Geléia Geral do dia
19/02/1972 . Sua intervenção acontece apenas numa nota final, na qual recomenda a leitura do livro.
41
CAMPOS, Augusto de. ReVisão de Kilkerry.São Paulo, Brasiliense, 1985.
42
Aqui circulação e periodicidade são ententidas como conceitos básicos da “ ciência periodística” de Otto
Groth.
voltavam para seu circuito original de distribuiçãoi e eram cheias novamente,
a cor escura e opaca do refrigerante tornava-se o catalisador da mensagem do
artista, revelando o que sobre a transparência do vidro era ilegível.
Em toda idéia de pulsação subjaz um conceito de tempo. O próprio
termo “ jornal” nasceu como categoria de trabalho vinculada ao tempo. Um
jornal era o indivíduo que ganhava seu salário no fim da jornada de um dia de
trabalho. O jornalismo e a passagem do tempo são termos intimamente
interligados. Seria possível então dentro do jornalismo uma recherche em
busca desse tempo que passa? Este aparenta ser o programa estético assumido
por Torquato Neto – programa estético que o coloca, obviamente, em relação
ao programa de Proust, a partir da leitura que o filósofo Gilles Deleuze realiza
do mesmo. Se na recherche proustiana a preocupação é em recuperar o tempo
através da arte 43, na Geléia Geral e em toda a obra de Torquato a preocupação
principal será em experimentar efeitos de aceleração – efeito que é conseguido
com o recurso do anúncio, pelo qual há uma apropriação do tempo pela escrita
43
O pensador francês encontra um regime de quatro estatutos diferentes do signo com os quais Proust
compõe sua obra monumental. Em primeiro lugar Deleuze inverte o senso comum de que a Recherche dirige-
se para o passado. Para ele, tudo nessa obra está em devir porque ela dirige-se para o futuro. A Recherche
para Deleuze é o plano e o itinerário de Proust na constituição de „um aprendizado de um homem de letras”.
Como tal, segundo Deleuze, Proust quer então desenvolver os signos de sua escrita até o momento em que
eles possam ser considerados signos da arte. Nesse processo, o escritor começa por trabalhar os signos da
mundanidade – este é o primeiro regime de signos que Deleuze encontra em Proust. Tais signos são os que os
salões e os encontros da alta sociedade parisiense emitiam: o coquetismo, etiqueta e tudo mais que remetesse
a essa ordem de instituições e seus comportamentos preescritos. No aprendizado de Proust parte-se deste
regime de signos para experimentá-los e testá-los; Proust ainda não chega à arte através deles porque são
vazios, fruto de uma convenção social. Dessa maneira Deleuze estabelece ainda mais dois regimes de signos
na obra de Proust antes de chegar até os signos da arte: signos do amor e signos da memória sensível
(madeleine). A última categoria de signos da arte só é atingida quando a obra é acabada, isto é, o tempo é
redescoberto na visão de conjunto de todos os outros regimes de signos e de como eles articularam-se para
compor a obra. É aí que está o aprendizado de Proust do qual nos fala Deleuze. “Proust e os Signos” é uma
obra de classificação dos tipos de signos com os quais esse escritor francês trabalhou. Deleuze atribui à essa
característica de ser uma classificação uma inspiraçao em Pierce, o fundador da semiótica, que afirmava ser
esta uma ciência de classificação dos tipos de signos. Com relação à Geléia Geral, pode-se também entendê-
la, sob certo aspecto, como um aprendizado, nos termos em que Deleuze assim o define em relação a Proust.
Sendo uma experimentação constante e trabalhando com signos vazios das amenidades que lhe davam o
conteúdo da Geléia, Torquato Neto desenvolveu esses signos até dar-lhes um estatuto de signos da arte.
em seu acontecimento. Há a idéia de um domínio do tmepo a partir de sua
aceleração, direcionando o processo para o fim marcado e anunciado. A todo
momento Torquato anuncia o seu fim - seja em suas letras, em seu diário ou
em sua coluna no Última hora. “ Enquanto seu lobo não vem”, “parto, sei que
não vou voltar” , “ o princípio está no fim” e toda uma série de anúncios,
inconscientes ou não, que já adiantavam o desfecho pelo qual Torquato Neto
resolveria seus conflitos com a supressão de si mesmo. Essa prática já havia
sido definida na letra da Geléia Geral: “... na geléia geral brasileira/ que o
jornal do Brasil anuncia.” Jornal como espaço de anúncios. Como mapa para
territórios de um tempo que virá. Um tempo que tem como princípio o seu
próprio fim.
3. – Da literatura como linha de fuga do
jornalismo
Ao considerar os elementos que prefiguram um redirecionamento dos
valores que norteiam a prática jornalística, impõe-se a necessidade de um
rompimento, de um corte epistemológico. À inflexível inspiração positivista e
naturalista44 que subjaz ao modelo de jornalismo gestado na evolução do
capitalismo nos últimos séculos e da aplicação de sua lógica sobre a esfera da
produção de bens culturais - modelo que foi a condição primeira desta
evolução - colocam-se problemas de outra natureza, com variáveis e
interrogações que introduzem nestas discussões o questionamento do papel
que o próprio jornalista desempenha na relação entre sua prática e a sociedade
- dimensão ética por excelência.
Isto não significa que esse plano de discussões não tenha sido antes
considerado, até porque essa é a questão principal que serve de fundo a
qualquer estudo nesta área. O que demonstra ser a principal característica
dessa linha aqui percorrida é que tal questionamento surge da necessidade de
introduzir novos elementos que permitam a construção de um perfil desta
prática compatível com o estatuto científico assim como este se coloca frente
aos problemas epistemológicos que lhe são interiores. Dessa maneira, o
jornalismo pode ser considerado como uma modalidade de conhecimento, e
que guarda uma relação fundamental com os valores fixados por determinado
paradigma científico.
Assim como pode ser observada esta relação entre o positivismo do
modelo científico do século passado e a maneira pela qual o jornalismo se
configurou durante a eclosão das forças do momento histórico que Lucaks
44
LEMINSKI, Paulo. Forma é poder. São Paulo, Folhetim, 04/07/1982: “O discurso naturalista éa projeção
do jornalismo na literatura. [...] O discurso jornalístico é discurso automatizado. A automatização da
linguagem jornalística nasceu de razões práticas, decorrentes do caráter de NEGÓCIO que o jornalismo teve
desde o início[...]”
chamou de “capitalização do espírito” 45, também é possível o deslocamento
dessa problematização para um momento posterior, no qual historicamente se
determinam os prolongamentos destas forças. Por “forma de conhecimento”
tem-se em vista exatamente o acento sobre o aspecto formal que tais valores
determinam - seus contornos e limites reconhecíveis. Tem-se a possibilidade
então de considerar o jornalismo como “forma” de conhecimento, isto é, uma
relação de elementos que articulados resultam em dada expressão
reconhecível. A literatura entra aqui como o que escapa a esta determinação
formal, pois a todo momento o que se coloca na literatura, segundo Gilles
Deleuze, é o próprio “problema de escrever”:
45
LUKÁCS, Georg. Ensaios sobre literatura. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1965.
46
DELEUZE, Gilles. Crítica e Clínica. 34, São Paulo, 1997. P11.
guarda com a literatura. O caráter de inacabamento da literatura ao qual se
refere Deleuze é o que nesse contexto a utilização do termo “poética” ,
relacionando-o ao jornalismo - poética do grego poiesis: literalmente “o
fazer”.
47
KHUN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo, Persectiva, 1976..
discurso, esse em sua aparente neutralidade, é ideológico.
Sua estabilidade é catártica: nos consola e engana com a
imagem de uma estabilidade do mundo. Ora, trata-se
apenas DE UMA CERTA ESTABILIDADE. Uma
estabilidade relativa a um determinado mundo, à visão do
mundo de uma dada classe, muito bem localizada no
tempo e no espaço.”48
48
LEMINSKI, Paulo. Forma é Poder. São Paulo, Folhetim de 04/07-1982.
49
AUERBACH, Erich. A cicatriz de Ulisses. In Mimeses – A representação da realidade na literatura
ocidental. São Paulo, Perspectiva, 1994. Neste ensaio Auerbach demostra como já para os gregos o
sentimento trágico era algo que deveria ser conjurado através da linguagem em sua potencialidade catártica. A
narração para os gregos, segundo este autor, é uma forma sempre no presente. Quando algum elemento é
relacionado à narração, passa-se então à sua descrição em tempo presente, jamais colocando-o na perspectiva
de um tempo que escapasse à linguagem e que deixasse dessa maneira elementos ocultos em relação ao que
foi narrado. O mundo grego era um mundo estável. Segundo Auerbach, a ideia de qualquer tragicidade que
por ventura pudesse desestabilizá-lo a partir do interior da linguagem era insuportável. Daí toda arte ser
trágica, no sentido de conjurar essa dimensão trágica através da catharsis, ou seja, da purgação.
relato, como fato de linguagem, que em sua interioridade estabiliza qualquer
força que possa desiquilibrar o efeito de verdade operado pela forma de
expressão. Ressalta-se o termo “apolíneo” por essa recorrência à imagem de
uma claridade completa, totalizante. É o predomínio de uma imagem total, de
superexposição.
O jornalismo, assim como a própria lógica midiática tem seus alicerces
nesse limite de uma visibilidade total. Não há, em nenhum momento a
consideração das zonas não-visíveis de um acontecimento. Disto decorre que
o resultado da prática jornalística segundo estes valores acarreta num
aplainamento dos desvãos e acidentes que fundamentam o real. Ligada em
essência à uma concepção de tempo linear, a prática jornalística produz uma
representação do mundo como se este fosse a instância geometrizada segundo
um plano euclidiano. A página do jornal impresso é uma metáfora desta
operação de desgaste das rombosidades dos acontecimentos. Ora, por essência
também, o ser do real é segundo seu caráter de multiplicidade 50. Uma ordem
apolínea que destrói por projeção todas essas zonas opacas, de
indiscernibilidade, que formam as sombras de um acontecimento, também age
como conjuração do trágico próprio ao acontecimento. Então não há liberdade
sem acaso - esta é a sua necessidade, a necessidade de uma afirmação do
trágico, como propõe Clement Rosset: aceitação do real 51. Se os
acontecimentos decorrem das misturas dos corpos, de acordo com a leitura dos
estóicos feita por Deleuze em Lógica do Sentido 52, não há como escapar da
50
Para Gilles Deleuze e Félix Guattari a filosofia é uma “teoria das multiplicidades”. Conhecer o real segundo
este princípio é afirmar o múltiplo, sustentar que algo sempre escapa a uma recognição.
51
ROSSET, Clement. Lógica do pior. Rio de Janeiro, Espaço e Tempo,
52
DELEUZE, Gilles. A lógica do sentido. São Paulo, Perspectiva, 1974. Nesta obra Deleuze parte da divisão
estóica em duas modalidades de seres – os corpos com suas qualidades físicas e seus estados de coisas
correspondentes e uma segunda modalidade, os acontecimentos, incorporais e que não tem uma existência
concreta, mas uma insistência: „não se pode dizer que existam, mas antes, que subsistem ou insistem, tendo
este mínimo de ser que convém ao que não é uma coisa, entidade não existente”. p5.
constatação de que, enquanto prática, a princípio, voltada a uma tomada do
real, o jornalismo, tal como é desenvolvido segundo a linha de suas
territorializações de fundo positivista, é uma leitura míope do mundo, ou, pelo
menos, investida de um certo astigmatismo, já que não consegue distinguir as
diferenças de profundidade e as gradações que vão da claridade à sombra que
envolve e determina os contornos de um acontecimento. Na planificação
euclidiana de uma página de jornal qualquer volume é abolido, qualquer
tragicidade que o acontecimento trouxesse em si, proscrita pela instituição de
uma ordem, de uma forma, logo, da afirmação de um poder formal 53.
Sob esse aspecto, o discurso jornalístico é uma máquina de vácuo:
extrai todo o ar, o reino molecular, que envolve um acontecimento, isolando-o
numa situação de laboratório. Tal procedimento encontra ecos com a
reprodutibilidade de um “fato” científico, ou seja, na sua reprodução induzida
pelo estabelecimento de condições gerais equivalentes. Mas se no vácuo o
som não propaga, não há como encontrar uma proliferação de vozes no
ambiente em que essa máquina trabalha. É pelo vácuo ilusório da equivalência
entre os acontecimentos, como se fossem fatos criados em laboratório, que se
dá o acabamento final do jornalismo como uma forma de expressão imposta a
uma matéria vivida.
Neste sentido, seguindo o pensamento de Deleuze, o jornalismo seria o
contrário, o avesso da literatura. A imposição de um achatamento dos
acontecimentos tal como o jornalismo exerce de maneira euclidiana é o
protocolo da imposição de uma forma ao vivido e ao vivível. Reafirmar isto na
prática é também banir a colocação do “problema de escrever”, o que mais
uma vez demonstra uma linha de divergência entre jornalismo e a literatura.
Ao contrário, toda vez que a prática jornalística coloca a si mesma esta
53
LEMINSKI, Paulo. Ibdem.
“questão”, temos então um meio por onde brota uma poética, de um “fazer-se”
- auto-referência que retoma a dimensão das sobras que perpassa toda a
linguagem.
À sobrecodificação do discurso operada pelos manuais de redação,
máquinas de vácuo, a experiência que foi a “Geléia Geral” nos sugere a
contraposição de procedimentos poéticos tais como a montagem e a elipse. A
recuperação do silêncio como princípio de uma poética instalada no
jornalismo. Isto coloca Torquato Neto como um caso que escapa, que rompe
com a estabilização na produção de sentido própria ao modelo jornalístico de
procedimentos em relação à linguagem. Daí seu caso inscrever-se numa
poética do jornalismo. A “Geléia Geral” então pode ser considerada uma
experiência, um itinerário da construção de uma poética que toma o
jornalismo como um de seus elementos constituintes. É nessa perspectiva que
o objeto de estudo aqui tratado, o caso específico de Torquato na imprensa
brasileira, permite abordar a relação jornalismo-literatura - tema básico nas
discussões sobre epistemologia do jornalismo - a partir da dimensão desta
última que mais parece se distanciar do jornalismo. Daí a configuração da
“Geléia Geral” como um caso limite no jornalismo brasileiro. Sob este ponto
de vista, a coluna de Torquato Neto é, em termos também nietzscheanos, a
manifestação de um gênio um intempestivo, de uma força ativa.
Dessa maneira desfaz-se o desconforto, ou pelo menos é imobilizada a
linha que pode circunscrevê-lo a uma visada reativa, tomando a Geléia Geral a
partir de suas forças constuitivas, pelo que significa seu acontecimento no
jornalismo brasileiro em termos de inventividade. Tal desconforto pode ser
encarado então como a tensão que precede à entrada em cena. O silêncio como
aquele que se estabelece no momento em que as cortinas sobem. Desconforto
trágico, porque é o indício do afrontamento com a própria força dos
acontecimentos – o enfrentamento das vozes surdas da linguagem que ficam
para trás dos holofotes, na escuridão viva que é o limite do palco onde os
sentidos encenam seu drama.
54
COMTE-SPONVILLE, André. Bom dia angústia. São Paulo, Martins Fontes, 1997.
55
DELEUZE, Gilles e PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo, Escuta, 1998. p.52-53.
Woolf, triste fim de Kérouac. A literatura inglesa e
americana é atravessada por um processo sombrio de
demolição, que arrasta consigo o escritor. Uma morte
feliz? Mas é justamente isso que só se pode aprender na
linha de fuga, ao mesmo tempo em que é traçada: os
perigos que se corre, a paciência e as precauções que é
preciso Ter, as retificações que é preciso fazer todo o
tempo para livrá-la das areias e dos buracos negros.”
56
DELEUZE, Gilles e PARNET, Claire. Ibdem. p. 53-54.
57
ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio – no movimento dos sentidos. Campinas, Ed. da
Unicamp, 1995.
58
Ibdem.p. 13.
Impõe-se então o imperativo de ler a produção de Torquato Neto na
Geléia Geral como um caso extremo, ou seja, tomá-lo como um momento em
que o jornalismo brasileiro se viu frente a algo não classificável, não
identificável ao padrão e normalidade da prática. Isto não significa um mero
aprofundamento de caráter biográfico, senão o reconhecimento da linha
traçada por Torquato Neto em sua trajetória pela página impressa.
Certamente há uma orientação vertical em todo estudo de caso. O
aprofundamento em uma singularidade é uma das especificidades deste opção
metodológica, mas, no entanto, onde se chegaria se de saída se assumisse uma
posição inversa à esta? - operado o recorte do objeto, logo se passa então a um
trabalho de expansão de seus limites, à observação de sua evolução quanto às
suas tangências e às contigüidades que lhe advém. Esta horizontalidade
concerne ao plano teórico dos conceitos de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Na
filosofia das multiplicidades que é delineada desde o “Anti-Édipo” até “O que
É a Filosofia” trabalha-se sempre a partir desta opção. O próprio conceito de
rizoma nasce como uma diferença radical do modelo de pensamento que
Deleuze e Guattari chamam de “arborescente”, ou seja, de bifurcações
sucessivas em função de um tronco originário 59. Portanto, a resultante de tal
atitude metodológica pautada por esta horizontalidade é traçar um perfil não
de uma personificação, de um sujeito ou autor recortado e estancado dos
fluxos que o arrastam, mas buscar, aí sim, uma subjetividade formada no
cruzamento de várias vozes.
Mas um caso é sempre específico, particular, não obstante seja uma
multiplicidade também, logo é nomeado e localizado: Torquato Neto e sua
coluna no Última Hora carioca, “Geléia Geral”. O “corpus” torquatiano é
59
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix. Mil Platôs Vol. 1. Rio de Janeiro, 34, 1995. p.11-37. “Um rizoma
é uma antigenealogia”.
formado quase que inteiramente pelo material “Últimos Dias de Paupéria”,
que o amigo e também poeta Waly Salomão e a Ana Maria Duarte Araújo,
então mulher de Torquato, organizaram com o material que sobreviveu de sua
passagem pelo jornalismo, como também de poesias e relatos escritos durante
as internações pelas quais Torquato Neto passou até sua morte. A Geléia Geral
começa em 19 de agosto de 1971, com “Cordiais Saudações” endereçadas ao
leitor do Última Hora carioca. De 1971 até meados do ano seguinte Torquato
Neto não poupou fogo e este rendeu. Da bandeira levantada em defesa do
cinema marginal de Rogério Sganzerla e Júlio Bressane, até o ataque amplo e
frontal ao próprio público com uma chamado como “Alô Alô Idiotas”, sua
coluna pode ser lida como uma crônica do desespero pós-tropicalista.
Mas a “Geléia Geral” também sugere outra degustação, ou melhor,
exige um exercício de fluidez. Torquato Neto tornou-se, por vontade própria,
ou seja assumiu o vínculo de sua própria figura à imagem mítica do vampiro
depois de atuar no filme “Nosferato no Brasil”, rodado em super-8 por Ivan
Cardoso. Seguindo essa imagem a qual Torquato reiteradamente utilizava para
tratar a si mesmo e para explicar o programa que dirigia sua escritura, tem-se
que todo vampiro é um senhor dos fluxos - quer seja o fluxo do sangue das
vítimas, quer seja o fluxo referente às metamorfoses, ao devir-animal de todo
vampiro. Há de se tomar então o cuidado necessário para jamais estancar essa
fluidez - buscar seguir a linha traçada por todas as metamorfoses, logo, seguir
um fluxo de transformações constantes. Não há como entendê-lo a partir de
uma imagem estática, posto que um vampiro não tem imagem de si 60 - jamais
tem seu reflexo captado por um espelho. As metamorfoses então não são uma
mera proliferação de imagens - elas são os signos de um devir. Não há
60
ROSSET, Clement. O real e seu duplo. Porto alegre, LPM, 1984. “Um vampiro não tem duplo, pois ele é o
duplo de si mesmo”. P.25-51.
imagem alguma em nenhum espelho, apenas uma intensidade instável que ao
transformar-se em algo pode, ao mesmo tempo, transformar quem dela se
aproxima no intuito de reconhecer uma imagem fixa. Mas se não há imagem
fixa, não há contornos, somente a força que transforma uma imagem noutra.
Que isto então seja tomado como uma primeira pista na busca do vampiro
Torquato Neto61.
61
O trabalho de demolição das potências fixas de que falam Deleuze e Claire Parnet. Ver nota anterior nº 31.
literatura. O conjuntivo marcando um agenciamento entre os dois campos, ou
ainda, entendido também como um símbolo matemático de pertença.
Essa síntese conectiva é própria de toda uma linha que perpassa desde o
movimento da tropicália, misturando materiais nobres x materiais pobres até o
cinema marginal de “O Bandido da Luz Vermelha”, que sobrepunha uma
narrativa paródica da linguagem sensacionalista do rádio a imagens montadas
de acordo com referências ao cinema experimental de Goddard e da novelle
vague. Logo, o procedimento pelo qual Torquato Neto faz a junção de
jornalismo E literatura segue a mesma linha constituitiva. E por esta região
que irrompe o germe de sua poética. A paródia, antes de tudo, fundamenta
uma estética da apropriação, e Torquato Neto trouxe do tropicalismo e do
cinema marginal a radicalidade deste procedimento como marca fundamental
de sua poética.
Se Torquato Neto é por definição um gênio intempestivo, isso o coloca
a par de figuras que marcaram a literatura e a poesia pela manifestação dessa
mesma natureza: das convergências de um Rimbaud, Lautreaumont,
Souzândrade, Lima Barreto, Artaud e todo um rol de nomes que colocam-se
como verdadeiros acontecimentos dentro da literatura . Assim como estes, há
também nos escritos de Torquato Neto um apagamento de fato e de direito do
sujeito em função do nascimento da obra. Assim como Isidore Ducasse
(Lautreamont), Torquato Neto também é uma daquelas figuras literárias das
quais pouco se sabe sobre suas vidas. “Somente através de sua obra é que
podemos imaginar o que foi sua alma”, escreve Bachellard em sua obra
dedicada à Lautréamont. No caso de Torquato Neto há um fator decisivo na
constituição desse registro (literário): o que mais tarde veio a compor a maior
parte de sua obra foram os artigos que publicou no Última Hora. Portanto,
para se entender um pouco sobre a alma desse vampiro é necessário que se
considere a prática do jornalismo. A discussão que aqui se coloca parte da
busca dos elementos próprios de uma literariedade que por vezes invade esta
prática - a conjunção jornalismo E literatura tomada a partir de um ponto de
vista que permita atingir o estrato sobre o qual uma prática de escrita torna-se
outra.
62
CÉSAR, Ana Cristina. Escritos no Rio. Rio de Janeiro, Editora UFRJ e Brasiliense, 1993. A poeta Ana
Cristina Cesar escreve um trabalho acadêmico sobre “Literatura Marginal e Comportamento Desviante”, em
1979, no qual fala sobre Torquato Neto. É curioso como neste trabalho (p.121-134) há uma apropriação direta
do texto de Heloisa Buarque de Hollanda (op.cit p.69-70). Na mesma coletânea de seus texto também está um
de 1977 em colaboração com Ítalo Moriconi Jr. – “O poeta fora da República – O escritor e o mercado”, no
qual é trabalhado o tema do poeta como marginal: “Platão expulsou o peta da República. O poeta é inútil:não
governa, não legisla, não guerreia, não fabrica utensílios para a felicidade cotidiana, não faz serviços de
interesse público nem dá aulas de virtude. O poeta é arredio ao pensamento racional e à verdade. O poeta é
um sedutor. Um homem que fabrica simulacros. Prove-se a utilidade da poesia e elaserá admitida na orde e
progresso do Estado. Até prova em contrário o expurgo está consumado”. (p.97)
3.5 – Uma desterritorialização absoluta
63
BUENO, André. Op.cit.p.139.
64
Depoimento gravado em 20/11/1997.
discurso indireto nunca foi tão livre. Torquato Neto: “jornalista que esqueceu
das aspas”65. Não só as esqueceu como tratava blocos discursivos inteiros
através de um procedimento de montagem - técnica importada do cinema.
Com isto, ao invés de criar imagens, Torquato Neto provocou um tipo de
escrita vampiresca, uma escrita que não era o reflexo especular de algo, mas
atingia o próprio fluxo que circula entre a palavra e o objeto. Escrita-captura,
escrita predatória. A antropofagia de Oswald de Andrade retemperada pelo
vampirismo do qual Torquato Neto investiu-se depois de assumir para si a
imagem de “Nosferato”.
Extrair um fluxo: atividade vital de um vampiro. Também a seiva
circulante entre uma palavra e outra, entre um bloco formado por uma citação
e outra, colando tudo numa montagem de forma sempre instável, tensa. É o
próprio Torquato que escreve o estatuto desse vampirismo, explicando-o a
partir do Teorema de Pasolini66: uma tática de ocupar espaço, deixar as
marcas, demarcar um território, tomá-lo diretamente pelo fluxo que lhe
garante a singularidade e assim torná-lo próprio, apropriar-se. O vampirismo
de Torquato Neto é apropriação, a citação levada ao excesso, onde o citado
não mais se reconhece, a não ser pela marca do procedimento pelo qual a
citação é violentada, deglutida, tornada outra, assim como o vampiro
transforma o vampirizado em outro vampiro. O vampirismo é a imagem de
um processo, de um agenciamento que se estende em todas as direções, como
no agenciamento maquínico do desejo de Deleuze-Guattari67: uma máquina
65
SALOMÃO, Waly. Torquato Neto esqueceu as aspas. Folha de São Paulo, Caderno Mais, 08 de novembro
de 1992.
66
O enredo desse filme trata sobre um personagem deus ex machina que toma a vida de uma família
tradicional,cristã, classe média. Todos são seduzidos pela beleza e poder de conquista do jovem, que atento
àsoportunidades avança sempre até chegar ao pai, o chefe da casa, que também é conquistado e que por isto
enlouquece e sai errante ao sopé de um vulcão, andando nú e sem destino.
67
Conceito fundamental da crítica empreendida à psicanálise por Deleuze e Guattari. Um agenciamento é um
processo que se forma pela sucessão de conexões de objetos parciais. O desejo é a força que percorre este
agenciamento e o faz produzir algo. A crítica de Deleuze e Guattari sempre reafirma esse caráter de produção
corte operando sobre uma máquina fluxo e, desse corte, constituindo-se um
novo fluxo a ser cortado por outra máquina e assim por diante, tal como uma
força centrífuga, isto é, dirigida a um FORA que lhe dá um contorno de outra
natureza do que a do limite. Este Fora não é um limite porque jamais pode ser
tomado como o contorno de uma singularidade.
Neste contexto, FORA é da ordem de um limiar, isto é, um contorno
tangenciável, porém como algo que se coloca para além, isto é , sempre em
devir, como a linha do horizonte é o limiar de uma paisagem em contraposição
a uma moldura que venha a servir como limite, portanto fixo, à representação
dessa mesma paisagem. Um limite “enquadra” um fenômeno – o limiar se
coloca para além do mesmo fenômeno, é o momento em que interior e exterior
se tocam. Ao se atingir um limite, não há a mudança de natureza. O limite é da
ordem do penúltimo termo, do qual sempre é possível retornar ao estado de
coisas inicial. Como explicam Deleuze-Guattari68, o limiar é em si o
rompimento de um limite, porque ao atingí-lo, tudo muda de natureza. Daí o
limite ser sempre fixo, enquanto que o limiar é fluído, móvel, flexível, assim
como a linha do horizonte, que desloca-se ao mesmo tempo que o observador
tem seu deslocamento - quando este chega ao ponto que lhe servia de
horizonte, toda a paisagem já transfigurou-se.
Seguindo esse conceito de limiar-limite, Torquato Neto utilizava a
referência como um limiar a si mesmo, um horizonte ao qual colocava-se em
direção para daí chegar a algo como o resultado de uma transfiguração tanto
de si mesmo quanto da citação que lhe servia de limite. Rompia-se assim com
como fundamento do desejo. Segundo os dois autores, a psicanálise reduz tudo a um drama framiliar básico,
rebatendo todas as situações consideradas como desejantes sobre uma rede de representações que tem como
matriz as rela]ões familiares básicas. Para Deleuze-Guattari, o desejonão “representa”, mas produz aluma
coisa. Não há um termo inicial ausente. O desejo, segundo estes autores, jamais pode ser concebido como
resultante de uma falta, de uma carência.
68
No Anti-Édipo e em Mil Platôs Deleuze e Guattari falam reiteradamente de um regime de escrita que atinja
o limite da linguagem por escrever a (n-1), ou seja, uma totalidade sempre em aberto.
os limites dados pelo significado original do fragmento citado para abrir-lhe
sobre um plano de produção de sentido inesgotável porquê articulado à força
centrífuga própria a todo limiar. Assim pode-se considerar que não é uma
simples citação o procedimento de Torquato, já que dessa maneira teríamos
apenas forças centrípetas, guardando uma identidade com o sentido original
do fragmento – a paráfrase.
O vertiginoso procedimento de Torquato Neto é uma “ocupação do
espaço” em que as citações são os signos, as marcas territoriais que o autor
deixa ao longo de sua deambulação rumo ao FORA. A todo momento o que
encontramos na “Geléia Geral” é esse processo (pro-excesso) de citação, uma
tomada de espaço, um investimento da paráfrase que instala a tensão
característica do estilo de Torquato Neto que é a tensão acirrada entre a
interioridade de sua escrita e a maneira pela qual essa interioridade se
relaciona com o que lhe é exterior, com o que ou para quem ela se dirige. É o
próprio Torquato quem fixa estes pólos: “do lado de dentro” e “do lado de
fora”, já em sua primeira coluna, em agosto de 1971.
69
NETO, Torquato Neto. Cordiais Saudações, in Últimos Dias de Paupéria. São Paulo, Max Limoad, 1982
p.23.
alvo de Torquato Neto é o limiar próprio do jornalismo: regime de escrita que
se coloca tem em seus fundamentos o discurso poético, isto é, o rompimento
com a “norma”, o que é diametralmente o oposto à orientação do discurso
jornalístico. Enquanto a dimensão poética da linguagem amplifica os desvãos
pelos quais os sentidos deslizam para algo não estabelecido, isto é, de certa
maneira, toda poética é a experiência de desestabilização na redundância
própria à linguagem, o discurso jornalístico encontra-se no polo oposto, ou
seja, a referência ao estado de coisas é fundamental, e, para isto, a redundância
é que é investida. No jornalismo a produção de sentido deve ser controlada de
maneira que haja um limiar de referencialidade ao real. O jornalismo é uma
prática discursiva fundamentada pela informação, que pode ser entendida aqui
como unidade dessa referencialidade. Ao pensarmos o discurso poético nestes
termos, temos que a escrita poética é uma des-enformação, isto é, uma
desestabilização das formas, enquanto que à informação sobrepõe-se uma
formação: a recognição de um sentido estabelecido. São forças que atravessam
a linguagem em sentidos opostos: a “normalidade”, não só do jornalismo,
como de todo discurso dado por uma instituição, é centrípeta, ou seja, imprime
uma força ao discurso que o remete sempre a um centro de significação - o
discurso poético por sua vez é centrífugo porque, em seu movimento de
desestabilização desse centro de significação, dessa redundância de sentidos,
coloca-se à deriva e, dessa maneira, não há mais direções definidas, seu
movimento é intensivo, de outra natureza, daí ser descentrado, porquê a
exterioridade para a qual se encaminha está em crescimento contínuo,
indiferenciado. O movimento centrífugo do discurso poético que forma rizoma
em seu agenciamento com o jornalismo.
4. – Em busca da marginalidade
Uma das marcas que diferenciam Torquato Neto dentro da produção
jornalística brasileira é o caráter multifacetado de seus textos na Geléia Geral.
Um acirramento da literariedade dos signos que também desenvolveu em
outras árias como a poesia, música e o cinema. Tudo em relação a Torquato
Neto guarda essa indefinição quanto ao meio de expressão: há uma matéria
fluida por detrás das diferentes formas de expressão e isto não é diferente com
a prática jornalística que desenvolveu nos seus últimos dois anos de vida, nos
seus “últimos dias de paupéria”.
“Todo poeta é intersemiótico” escrevia Paulo Leminsky, num artigo
para o Folhetim dez anos após o suicídio de Torquato Neto. No mesmo artigo,
o poeta paranaense apontava a inventividade marcante da Geléia Geral:
70
“Filmes”, de 30/11/71 – Últimos Dias de Paupéria p.180-181
71
op.cit.p.57.
compensação dessa falta original, e a maneira pela qual se responde a este
complexo determina a regulação dos processo psicológicos.
Deleuze-Guattari partem de um outro pressuposto para abrir este
complexo, colocando a seguinte questão: e se o desejo não é uma falta
original, mas produção? Para responder a interrogação é necessário que se
desenvolva o que seria esse conceito de produção. Deleuze-Guattari buscam
então definir o termo produção segundo o que este implica no próprio curso
histórico de contituição do capitalismo. A produção aqui é então entendida em
termos marxistas, como processo pelo qual algo é gerado, produzido. Dessa
maneira, existem diferentes modos de produção, que determinam então
diferentes políticas do desejo. É na esteira disto que Deleuze-Guattari
delineam o plano de sua empreitada com o subtítulo do Anti-Édipo -
“Capitalismo e Esquizofrenia - que será entendido como o projeto de toda sua
obra conjunta, estendendo-se às duas obras seguintes: “Kafka - por uma
literatura menor” e “Mille Plateaux”.
“Capitalismo e esquizofrenia” porque para Deleuze-Guattari o desejo
assume um modo de produção da mesma natureza que o modo de produção do
capitalismo. O termo que relaciona o modo de produção do desejo ao do
capitalismo é a esquizofrenia. O modo de produção do capitalismo é
esquizofrênico. Isto porque, assim como na esquizofrenia, o modo de
produção capitalista escapa a uma codificação, ou melhor, decodifica todos os
fluxos: fluxos de moeda assim como fluxos de desejo. A proposta de uma
vizinhança entre capitalismo e esquizofrenia vem do fato de que na própria
teoria freudiana o esquizofrênico ser colocado como um limite à
edipeinização. Segundo Freud, o esquizofrênico escapa à triangulação básica
do complexo de Édipo. É daí que Deleuze-Guattari partem. Tanto no
capitalismo quanto na esquizofrenia, algo escapa a uma codificação. E quando
se fala em desejo, tendo-se em mente a aventura do pensamento que é o Anti-
Édipo, temos sempre que encará-lo como produção: em outros termos, o
desejo, para Deleuze-Guattari, é a atualização de uma virtualidade, e não a
representação de um drama familiar básico. O esquizofrênico, dessa maneira,
vive a própria natureza como produção. Disto surgem máquinas. Máquinas
desejantes, porquetudo na esquizofrenia é produzido por máquinas. Não no
sentido metafórico, que poderia sugerir um mecanicismo. Não é esta a direção
assumida por Deleuze-Guattari, tampouco a nossa. Máquinas desejantes
porque uma categoria de máquina que encontra seu fundamento no desejo.
Máquina, jamais mecanismo.
O fundamento deste conceito é a consideração de que num processo
produtivo, seja de desejo ou de qualquer outra natureza, há sempre uma
conexão entre elementos distintos da qual resulta esta produção, isto é, há um
agenciamento entre elementos heterogêneos. Neste agenciamento um
elemento opera um corte sobre o fluxo de um segundo. Portanto, para
Deleuze-Guattari, uma máquina desejante é formada toda a vez em que há um
agenciamento entre elementos no qual um produz um corte sobre outro que
funciona como fluxo. Uma máquina desejante é formada pela conexão entre
uma máquina-corte e uma máquina-fluxo. O resultado desta operação será a
formação de um novo elemento que será um fluxo a ser cortado por outra
máquina, e assim ao infinito. Daí então o desejo como a atualização de uma
virtualidade - porque o infinito ao qual todo agenciamento remete é o próprio
plano dessa virtualidade. Os cortes são as atualizações. Neste sentido, seja no
desejo, seja no capitalismo, tudo é uma questão de conexão, de agenciamento
dessas máquinas.
4.1 - Adjacências
72
DELEUZE-GUATTARI. Anti-Édipo cap.01.
dos códigos. Um rizoma é uma mais-valia de código, ou seja, determinada
característica da produção de sentido acarreta numa formação peculiar dentro
do processo de agenciamento. Rizoma no sentido de algo que é produzido
entre os elementos de determinado agenciamento. Deleuze-Guattari extraem
esta referência da botânica para marcar mais uma vez a diferença de seu
pensamento com relação à força centrípeta de que falamos, aquela que assim
denominamos tendo-a em vista como uma modulação de pensamento que gira
em torno e é atraída por um centro organizador, um centro de poder. Rizoma,
porque diferente de raízes. Estas últimas sempre pressupõem uma série de
bifurcações que afunilam-se de par em par até a unidade de um tronco
principal. Deleuze-Guattari chamam isto de estrutura arborescente. O rizoma é
de outra natureza: caule intermediário entre as raízes e o tronco, parte dentro,
parte fora da terra, expande-se em ambos os sentidos. É uma força que foge ao
centro. Se a lei da arborescência é determinada pelo sentido inverso ao de uma
proliferação, que vai da multiplicidade das raízes rumo a um tronco central, o
rizoma se caracteriza pelo brotamento, pela expanção.
Um rizoma, nesse sentido, é sempre um ponto pelo qual as
multiplicidades advém, as séries proliferam, porque a força que lhe é
característica é de expansão, de brotamento pelo meio e em todos os sentidos.
Enquanto que a arborescência fundamenta toda uma hierarquia, ou seja, impõe
o poder de um tronco central, o rizoma é a abertura para o que escapa a um
centro organizador dessa hierarquia arborescente. Deleuze-Guattari falam de
rizoma a toda vez que se referem à escrita: seja com relação ao próprio
trabalho teórico que desenvolvem, seja com relação à literatura, filosofia ou
qualquer outra modalidade da escrita.
5. -Transando com o veneno
Paulo Leminsky coloca-se a seguinte pergunta: o que se sabe sobre
Torquato Neto?73 Nasceu em Terezina. Do Piauí foi para Salvador estudar, o
que o levou a conhecer Caetano Veloso e todo o grupo bahiano que mais tarde
deflagaria a Tropicália, da qual Torquato escreveu a canção manifesto Geléia
Geral. Sua poesia começa a ganhar projeção nas letras de músicas em
parcerias com Edu Lobo, CaetanoVeloso e, principalmente, Gilberto Gil.
Torquato irá se transformar num dos principais articuladores do movimento
tropicalista. O Rio de Janeiro é uma festa. O Brasil é uma festa.
A invenção e a experimentação encontram as condições ideais de
explosão na amplitude da arte de Hélio Oiticica. É 1968. “Tropicália” e “Cara-
de-Cavalo - Seja Herói Seja Marginal” - “Parangolés”: Todas obras de
Oiticica que irão marcar a arte brasileira para sempre. O Cinema Novo de
Glauber Rocha chega ao sublime com “ Terra em Transe”. Caetano Veloso e
Gilberto Gil explodem nos Festivais da Record. Mutantes. O Pasquim é um
nanico de tiragens gigantescas para a época e para o momento polítco
histórico do país. Tudo isto seria mesmo uma grande festa se este não fosse
também o ano em que foi baixado o Ato Institucional nº 5 e com ele
amordaçada toda e qualquer forma de liberdade de expressão no Brasil. A
festa acabou de modo brusco.
A repressão é acirrada. Caetano Veloso e Gilberto Gil vão para o exílio.
Torquato Neto resolve sair para um exílio voluntário e, com Ana, fixa-se em
Paris. Cada vez mais isolado Torquato começa a beber e, em 1971 retorna
para o Brasil. A festa continuou acabando durante o tempo em que esteve do
lado de fora. Em 71 havia um clima de exaustão frente à mão pesada da
73
LEMINSKY, Paulo. O último dos românticos. Folhetim, 10/11/1982.
ditadura. A luta armada dissolvera-se com a morte de Marighela e Lamarca. O
empastelamento dos jornais era freqüente. Os desaparecimentos e a tortura de
presos políticos também. Torquato começa tudo de novo procurando por
“brechas”. A Última Hora já não tinha mais a força dos tempos em que foi um
dos principais instrumentos que levaram Getúlio Vargas ao poder novamente
com a aprovação popular das urnas. Samuel Weiner já não estava mais na
condução do jornal desde o golpe de 64 que o levou para o exílio na França,
mesmo assim, a Última Hora continuava sendo um veículo da grande
imprensa. Torquato Neto desfolha sua bandeira na tentativa de encontrar
sinais para uma nova manhã. A tática é: OCUPAR ESPAÇO. Ele escreve
numa carta:
76
ùltimos Dias de Paupéria – p.347-349
77
Esse conceito é retomado em vários momentos na obra que Gilles Deleuze e Felix Guattari produziram
juntos. Desde o Anti-Édipo, publicado em 1972, passando por “ Kafka – Por Uma Literatura Menor” e em
Mille Plateux o conceito de linha de fuga sempre é relacionado ao campo definido por outro conceito destes
filósofos: a desterritorialização.
jornalística. O agenciamento que Torquato Neto produz acontece quando ele
faz essa conexão entre o jornalismo e a poesia.
78
DELEUZE, Gilles, Nietzsche e a filosofia. Rio de Janeiro, Editora Rio de Janeiro, 1976.
realidade, a uma não-indiferença social, sesual, política...
[...]
[...] Inicialmente, os autores quebram a relação entre o
desejo e a carência. A tradição liga o desejo àquilo que
está ausente, à Lei, ao proibido. Ora, depende de um
arranjo no qual está incluída. Produtor, o desejo
estabelece conexões, relações que não param de
atravessar um real do qual jamais sente falta, já que se
alimenta dele.”79
79
DESCHAMPS, Christian. As Idéias Filosóficas Contemporâneas na França. Rio de Janeiro, Zahar, 1991.
pp. 19-21.
códigos transformam-se mutuamente, colocando-se ambos num devir mútuo
que os arrasta. Desde o Anti-Édipo, primeira obra conjunta de Deleuze e
Guattari, aparece este conceito. Deleuze e Guattari recorrem a um exemplo
que está presente em Vendredi80 de Michel Tournier: a evolução a-paralela
entre a vespa e a orquídia. Certo tipo de orquídia atrai a vespa pelo desenho
de seu órgão reprodutor – a vespa é atraída e dessa maneira passa a fazer parte
do ciclo reprodutor da planta por ser o agente que irá carregar seu pólem para
fecundar outra planta. Por sua vez, a orquídia provém a vespa de alimento,
tornando-se um elemento fundamental para a sobrevivência da vespa. Ambos
os elementos que compõem o agenciamento se transformam um em função do
outro. Eles tornam-se outra coisa em relação às suas identidades. Aqui o verbo
tornar é uma das traduções para o verbo devenir em francês, que também tem
o sentido de devir. Deleuze e Guattari dizem exatamente isto de um rizoma,
que tanto o termo do agenciamento que corta quanto o que serve de fluxo
entram em devir um em relação ao outro. A vespa assume um devir orquídia,
um tornar-se orquídia, ao mesmo tempo que a orquídia assume um devir
vespa.
A mesma coisa acontece entre o jornalismo e a literatura (poesia) na
Geléia Geral de Torquato Neto. Ambos transformam-se mutuamente e desse
devir que um produz no outro desenvolve-se uma proliferação que rebate
qualquer gênero que se queira aplacar sobre o processo. Torquato Neto monta
sua máquina literária de maneira que ela funcione conectada com uma
máquina jornalística que lhe garante um circuito de distribuição e circulação.
Com isto fundamenta um tipo de escrita que se furta tanto ao jornalismo como
em relação à poesia.
80
TOUNIER, Michel. Sexta-feira (ou os limbos do Pacífico). São Paulo, Círculo do Livro, 1990
A Geléia Geral é um rizoma. Segundo ainda Deleuze e Guattari, num
rizoma há uma desterritorialização de cada termo, daí o porque dos autores
mencinarem uma “mais-valia” de código, ou seja, se faz a linguagem dizer
não somente de forma diferente, mas algo diferente do que ela tinha dito até o
momento – um excedente da produção de sentido. Desterritorialização aqui
tem esse sentido de levar a linguagem e os códigos sejam quais forem para
uma dimensão onde ainda não haja uma demarcação dos sentidos. Essa idéia e
esses conceitos seguem a Lógica do Sentido, na qual Deleuze busca nos
estóicos um modelo para entender as proposições que considere o sentido
como uma entidade ausente 81.
O sentido é produzido pelos termos que compõem uma proposição, um
agenciamento portanto. Se a linguagem é, antes de tudo, um sistema de
classificação, de demarcação do real, ela não deixa de, em sua auto-
reflexividade, criar as condições para que seus códigos internos de produção
de sentido deixem que alguma coisa escape para um terreno ainda não
demarcado. Nesse sentido toda arte e toda a literatura de fato e de direito são
desterritorializantes, pois o artista é um nômade da forma de expressão, e que,
como tal, cria formas de expressão nas quais o sentido também é nômade
porque desliza sem parada sobre um deserto inclassificado, não codificado.
Quando Torquato Neto constrói sua poética agenciando seu fazer
poético à máquina social de informação, ele cria as condições para que se
forme um rizoma entre o código de sua poética do fragmento e da apropriação
e o circuito de difusão dessa máquina que o jornal projeta sobre a sociedade.
Há uma conexão deliberada da parte dele, planejada, como tática de guerrilha
cultural, na qual manter o espaço é uma questão fundamental.
81
DELEUZE, Gilles. Lógica do Sentido. São Paulo, Perspectiva, 1974.
Uma desterritorialização produzida por um rizoma é também chamada
por Deleuze e Guattari de linha de fuga 82 – uma direção à qual se voltam os
devires dos termos que formam um rizoma e pela qual o sistema todo é
arrastado para fora das identidades de seus termos que o constituem. Uma
pura desterritorialização, sem parada possível, é a própria esquizofrenia,
condição na qual todos os sentidos deslizam por dissociação. E este é o
problema com as linhas de fuga: sempre há o perigo de que elas se
transformem em “paixão pela abolição” : suicídio (abolição de si mesmo) ou
em micro-fascismos (abolição do outro). Há a necessidade de que se efetuem
cortes portanto, como condição para que os sentidos não deslizem. Há,
também, a necessidade de reterritorializações.
82
In DELEUZE-GUATTARI. Mil Platôs V. 3. Rio de Janeiro, 34, 1996. p78-79:
“[...] Quanto às linhas de fuga, estas não consistem nunca em fugir do mundo, mas antes em fazê-lo fugir,
como se estoura um cano, e não há sistema social que não fuja/escape por todas as extremidades, mesmo se
seus segmentos não param de se endurecer para vedar as linhas de fuga. Nada de imaginário nem de
simbólico em uma linha de fuga. [...]
[...] Contudo, de modo mais freqüente, um grupo, um indivíduo funciona ele mesmo como linha de fuga; ele a
cria mais do que a segue, ele mesmo é a arma viva que ele forja, mais do que se apropria dela.”
Geléia Geral do tropicalismo para a Geléia Geral da Última Hora o
movimento é o de um transbordamento que irá apagar todas as demarcações,
abolir todos os limites na formação de um plano que se coloca como um
FORA absoluto para o qual a navilouca de Torquato deveria derivar. Esse
plano já é anunciado em sua parceria com Edu Lobo – a letra de Veleiro diz
“sei que vou/ vou prá não voltar”.
Todos estes componentes fazem da Geléia Geral uma coluna única na
história da imprensa no Brasil – é um caso particular no qual o jornalismo
surge como possibilidade para o desenvolvimento de uma poética. Cria-se
então uma evolução a-paralela entre as duas formas diferentes de se habitar a
linguagem e a escrita. Forma-se uma máquina desejante na maneira pela qual
Torquato produz um corte sobre o fluxo de circulação de informações da
imprensa. Essa máquina desejante tem um nome: GELLETE – fusão entre
Geléia (fluxo) e Gillete (corte). Sua coluna é escrita numa forma particular de
texto que corta para os dois lados. Waly Salomão diz o seguinte:
83
SALOMÃO, Waly. Armarinho de Miudezas. Salvador, Fundação Casa de Jorge Amado, 1993. p. 71
A pista portanto de onde Torquato Neto inicia a montagem de sua
máquina literária está no poema visual GELETTE 84. É com esta forma de
escrita que corta para os dois lados – jornalismo e poesia - que Torquato traça
uma linha de fuga, isto é, cria um um estilo que se coloca no meio, que brota,
em certo sentido, nos desvãos entre as diferentes experiências da escritura das
quais ele se cerca. Como resultado de um código híbrido que passa a proliferar
do encontro de dois códigos heterogêneos forma-se o que Deleuze e Guattari
chamam de Rizoma. Este conceito aparece pela primeira vez em Anti-Édipo.
O poeta e amigo Waly Salomão é quem indica esta obra como sendo
convergente com a estética de Torquato Neto. Na coletânea de seus ensaios
publicada pela Fundação Jorge Amado ele escreve:
84
Op.cit.
85
SALOMÃO, Waly. Armarinho de Miudezas. Salvador, Fundação Casa de Jorge Amado, 1993. p. 73.
Torquato. Subentende-se que a partir das proposições básicas do Anti-Édipo
pode-se encontrar uma chave para decodificar a fluidez dos sentidos da Geléia
Geral.
Explorando a indicação feita por Waly chega-se de fato a considerações
precisas quanto à poética de Torquato e a posição que o jornalismo vai
assumir dentro dela. A primeira dessas considerações é sobre a própria
trajetória de vida do vampiro da Tropicália. De maneira geral, O Anti-Édipo
tenta construir uma crítica à psicanálise enquanto alicerçada numa concepção
de desejo enquanto falta. Segundo Deleuze e Guattari, o desejo não pode ser
fundamentado por uma falta originária porque isto reduz o inconsciente à uma
instância de mera encenação de dramas familiares básicos. Esta postura da
psicanálise tem o teatro como metáfora para o inconsciente. Cabe, segundo
este princípio, unicamente ao inconsciente a tarefa de suprir através de
fantasmas o objeto do desejo suprimido. Dar conta da falta básica que
fundamenta a lei do desejo. Para Deleuze e Guatarri o que fundamenta o
desejo é exatamente o contrário. O inconsciente é produtivo. O desejo é uma
força de atualização, uma força produtivo. Neste sentido, o real é desejado,
isto é, produzido pelo inconsciente através das atualizações promovidas pelo
desejo. Assim , segundo Deleuze e Guattari, o desejo jamais pode ser
interpretado como vinculado a uma noção de falta primordial. Tudo isto
parece distante da obra de Torquato, mas só aparentemente.
O fundamento da idéia de um inconsciente funcionando segundo uma
lógica de produção tem como princípio o conceito de máquina desejante, isto
é, uma produção do desejo que se dá segundo um agenciamento de termos
heterogêneos, isto é, um cumprindo o papel de servir de corte para o segundo
termo que é cortado enquanto fluxo. Sempre o inconsciente opera cortes num
fluxo amorfo que é a virtualidade própria do desejo enquanto fundamento de
todo o real. O real é produzido, portanto, pela ação do desejo. O desejo é o
princípio da produção que se rebate sobre todo e qualquer agenciamento entre
dois termos heterogêneos. O inconsciente torna-se assim o princípio do real
segundo uma lógica de produção. A força que percorre um agenciamento é
que é o desejo. Todo desejo portanto remete à condição de um agenciamento
que produz algo a partir do encontro de seus elementos heterogêneos – fluxo /
corte.
Em termos práticos isto pode ser entendido da seguinte forma: para
Deleuze e Guattari, quando uma criança suga o seio da mãe, isto não acontece
única e exclusivamente segundo uma idéia de carência enquanto princípio de
todo o desejo. A criança forma uma máquina desejante com o seio de sua mãe
– ela opera um corte num fluxo de leite. Não só porque ela sente a fome como
falta, como um desconforto provocado pela ausência de alimento no
estômago, mas porque a criança produz algo que prolifera para além do fluxo
de leite (o seio da mãe) e o corte operado pela boca que suga o seio.
Desse encontro passa a proliferar um devir que vai nas duas direções.
Daí um agenciamento – sempre uma conexão. Esta é a primeira das sínteses
seguindo o Anti-Édipo. A síntese conectiva do desejo. Sob este ponto de vista,
o da primeira síntese do desejo, o agenciamento coloca-se num plano que
pode proliferar em qualquer direção. A boca E o seio E... produzindo
máquinas que operam cortes sobre fluxos que funcionam a partir de outros
cortes e assim sucessivamente, ao infinito. Um agenciamento é antes de tudo
uma proliferação de conexões.
Mas um processo não acontece sem um fim. Se o desejo é um processo
de atualização de uma virtualidade, então em algum momento os
agenciamentos devem parar de proliferar. É quando acontece a segunda
síntese do desejo. A síntese disjuntiva é uma pausa improdutiva na
proliferação das máquinas desejantes. Isto se dá no momento em que se forma
uma identidade entre o produzir e o produto desse processo desencadeado pelo
desejo. Em algum momento do processo tudo para em função de um
suplemento que é exterior ao processo e que sobre ele se aplaca, assim como o
capital – decorrente do modo de produção capitalista e que, segundo Marx, se
mostra como sua causa e não como, em verdade, conseqüência direta. Essa
idéia de inspiração marxista é um dos momentos mais importantes na análise
do desejo empreendida no Anti-Édipo. Ela dá conta da pulsão de morte, em
termos freudianos.
Deleuze e Guattari tratam esse elemento suplementar e que impõe uma
parada ao processo do desejo de corpo-sem-órgãos – numa alusão direta a
Antonin Artaud. Como identidade entre o produto e o produzir podemos
entender que é por esta pausa improdutiva que se reconhece um agenciamento
- que sua totalidade, mesmo que relativa e instável, deixa-se mostrar. Um
processo extendido ao infinito, isto é, uma síntese conectiva sem esta parada
seria a própria esquizofrenia. Para que o desejo atualize algo, para que ele
cumpra sua essência produtiva, é necessário que haja essa parada que lhe dê
um contorno reconhecível do conjunto de termos heterogêneos que o formam.
Mas essa totalidade se dá ao lado do agenciamento, rebatendo-se sobre ele.
Segundo Deleuze-Guattari, qualquer idéia de totalidade sempre é exterior aos
termos de um agenciamento. Daí o conceito de corpo-sem-órgãos, porque
dentro da obra de Artaud essa idéia fundamenta o reconhecimento da própria
subjetividade que se produz como um todo e que se aplaca sobre o conjunto de
órgãos. Corpo-sem-órgãos porque é assim que a experiência da própria
subjetividade se dá – não como o somatório do funcionamento de todos os
órgãos, mas como uma totalidade que se rebate sobre eles. Produzida pelo
agenciamento de todos os termos que formam o conjunto, o organismo, mas
enquanto resultado deste agenciamento, coloca-se como algo de outra natureza
– em essência diferente e estrangeira a qualquer idéia de um funcionamento
orgânico. Segundo Deleuze e Guattari o corpo-sem-órgãos é o elemento
neutro de todo e qualquer agenciamento. Ele também não se dá por uma
negação, mas por um limite pelo qual a proliferação da síntese conectiva tende
a uma parada.
Sempre produzindo a partir do agenciamento entre cortes e fluxos, as
máquinas desejantes são responsáveis pela produção de subjetividade. Há
portanto, dois extremos entre os quais esse processo oscila: um polo
esquizofreneizante, de uma conectividade sem parada, sem a possibilidade de
um corte significante e que produza um sentido como recognição do processo
e um outro polo neurotizante onde todo corte fecha-se sobre si mesmo, numa
produção de sentidos que sempre gravita e para sobre um mesmo centro.
Proliferação sem parada e parada sem proliferação são as duas situações limite
a que o desejo pode tender86.
Não que a esquizofrenia e a neurose sejam excludentes, antagônicas.
Deleuze e Guattari colocam o problema em outros termos, trata-se de abrir o
inconsciente, assim como ele é entendido por certa ortodoxia psicanalítica, de
uma dimensão individual, para uma esfera social e política. Segundo os dois
pensadores, a psicanálise insiste no polo neurotizante para o qual o desejo
tende, isto é, relaciona-o demasiadamente ao indivíduo em detrimento das
forças políticas e históricas que produzem as subjetividades de um
determinado momento histórico.
A crítica central do Anti-Édipo diz respeito à uma reorientação do
conceito de inconsciente para o plano coletivo, não em termos Jungnianos,
86
Inspiração reichiana que é retomada ostensivamente como uma das bases da argumentação presente no
Anti-Édipo.
que não equacionam sua dimensão política, mas numa perspectiva Reichiana.
As massas desejam a própria história. A história como resultado de um
processo de produção coletiva. E para atingir essa dimensão político coletiva
do insconsciente, Deleuze e Guattari propõem um direcionamento para o polo
esquizofreinizante, para onde os sentidos deslizam para um corpo-sem-órgãos,
para uma totalidade que se dá sempre em aberto, porque é nesta direção que o
desejo produz algo, atualiza algo que coletivamente dispersava-se numa
virtualidade. Uma máquina miraculante que produz um corpo-sem-órgãos,
uma totalidade paralela ao agenciamento e que se coloca sobre o mesmo de tal
maneira que faz parecem com que o processo de produção fosse efeito e não
causa da formação desta máquina – daí ela ser “miraculante”, por essa
gravidade e atração. Mas ao mesmo tempo forças colocam-se no interior do
agenciamneto como dispersão - fruto dessa segunda síntese do desejo: a
síntese disjuntiva. Nela pode acontecer das máquias desejantes serem
arrombadas sobre o corpo-sem-órgãos e passarem a ser decodificadas como
clandestinas, como uma ameaça à própria subjetividade: é quando se forma
uma máquina paranóica. Rompe-se a possibilidade de uma recognição dos
termos do agenciamento. A anorexia (hesitação entre um orifício que serve
para a entrada de alimentos e outro que cumpre a função de expelir o resultado
da digestão dos mesmos) – curto-circuito no sistema todo.
A essas duas sínteses, Deleuze e Guattari acrescentam uma terceira e
última, uma síntese conjuntiva, que forma uma máquina celibatária. Isto no
sentido de que ao seguir o agenciamento maquínico do desejo chega-se a uma
linha de pura abstração, a uma máquina abstrata para qual todo o desejo tende
e que é a própria virtualidade que percorre o processo todo. É por essa
máquina abstrata que se chega à esquiza – outro conceito delineado em O
Anti-Édipo. A esquiza é essa linha abstrata que serve de linha de fuga para
todo o sistema englobado no agenciamento maquínico. Linha de fuga porque é
por essa possibilidade aberta pela esquiza de que algo escape em direção ao
polo esquizofreneizante. De que o agenciamento seja percorrido por um fluxo
esquizo. Para Deleuze e Guattari “fluxo-esquiso” é o contrário da
esquizofrenia. Nesta, todos os sentidos deslizam sem a possibilidade de um
corte significante. O “fluxo-esquizo” é a possibilidade assegurada de trânsito
com essa linha de fuga, com e através da esquiza. Pela abstração o
agenciamento escapa aos sentidos codificados. Há, como chamam Deleuze e
Guattari, uma desterritorialização, isto é, um apagamento da delimitação dos
sentidos dados. Na esquizofrenia os limites impostos pelo sentido são
completamente apagados, sem a possibilidade de uma de que um corte possa
gerar um novo sentido. Tudo desliza num puro fluxo em direção ao FORA da
linguagem – a um puro campo de sentidos em aberto. O “ fluxo-esquizo” não
se comporta dessa maneira. Ele é um investimento do desejo sobre o campo
imediatamente social político e econômico. É o fluxo esquizo que faz com que
algo escape aos códigos. Ele desterritorializa. Sempre.
A arte trabalha basicamente com fluxos-esquizo. Com a literatura não é
diferente. Em certo sentido, uma poética nada mais é do que a montagem de
uma máquina de escrita com um plano de se atingir a esquiza, a linha de fuga
pela qual toda a linguagem assume um devir minoritário. Isto é, a linguagem
passa a dar voz ao que lhe é menor, aos sentidos que são uma virtualidade em
seu interior mas que ficam obstacularizados pelas codificações e
territorialidades do estabelecido, do já codificado. Se a poesia é, antes de tudo,
um processo de construção de novos sentidos, de produção portanto, ela
trabalha necessariamente com uma desterritorialização da linguagem.
6. Agenciamento jornalismo-literatura
Toda esse percurso levado aqui sobre o agenciamento maquínico do
desejo tal como ele é exposto no O Anti-Édipo se dá em função de fixar as
bases sobre as quais os dois pensadores constrõem um conceito que irá está
presente em toda sua obra conjunta e que é tratado aqui como fundamental
para entender o agenciamento que Torquato Neto produz entre jornalismo e
literatura: o rizoma.
Um rizoma é um agenciamento de um tipo muito especial. Ele aparece
pela primeira vez formulado ainda no Anti-Édipo, na página 57 da tradução
brasileira. Um rizoma surge da evolução a-paralela como resultado do
encontro, do agenciamento, entre dois códigos heterogêneos. Segundo
Deleuze e Guattari, um rizoma é uma estrutura que se forma quando dois
códigos exercem uma desterritorialização mútua, ou seja, de seu encontro
forma-se uma terceiro termo neutro, um corpo-sem-órgãos, pelo qual ambos
os códigos agenciados transmutam-se mutuamente.Um rizoma é uma
desterritorialização que um código provoca sobre outro em reciprocidade. O
exemplo apontado por Deleuze e Guattari é o da vespa e da orquídia:
89
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix. Kafka – por uma literatura menor. Rio de Janeiro, Imago, 1976.
6.1 A Geléia Geral
90
O termo aparece num texto de Pignatari publicado na revista Invenção.
91
Do verso “ ... os brazas e os brazões silencifrados...”, numa apropriação de “... as armas e os brazões
assinalados” -Do poema de Torquato “ arena a: festivaia – gb” (Últimos Diasde Paupéria p.372.)
volta ao Brasil no começo de 71, Torquato ocupa espaço na Última Hora e
Geléia Geral passa a ser o nome da sua coluna. “O poeta desfolha a sua
bandeira”. O jornal é sua bandeira, não como símbolo mas como marca de um
território do qual se toma posse. Esse território, no caso é o espaço de
exposição que a circulação de um jornal da grande imprensa da época tinha a
oferecer. Tomada a posse, ocupado o espaço, a Geléia Geral torna-se o
principado do Nosferatu Brasileiro. Um vampiro apropria-se de um sistema de
circulação, sempre. E com Torquato não seria diferente. A Geléia Geral passa
então a ser o plasma que alimenta a sua produção a partir do circuito garantido
pelo Última Hora. É como na maldição de um vampiro, que transforma em
sua igual toda e qualquer vítima. Um vampiro apropria-se do que lhe é
essencial, sua identidade. Quando então um vampiro como Torquato Neto
procura um grande sistema circulatório como o de um jornal, além de extrair
um fluxo vital ao cravar suas presas também apropria-se da identidade desse
sistema circulatório. O jornal passa a cumprir uma função outra da que lhe era
própria. Torquato Neto captura o jornal como um elemento fundamental de
sua estética pós-tropicalista.
O jornalismo passa então a assumir outro estatuto, principalmente em
suas relações com a literatura, pois o seu princípio está justamente neste fim
outro que lhe é dado pelo poeta que desfolha a bandeira. Entender qual é esse
novo fim ao qual o jornalismo passa a servir na produção de Torquato Neto é
a tarefa que será perseguida aqui. Essa readequação tal como Torquato Neto a
empreende é própria do processo do bricoleur – uma subversão do uso.
Torquato Neto participou diretamente do tropicalismo como
compositor. Amigo do artista plástico Hélio Oiticica, ficou conhecido como o
“Nosferato Brasileiro”, por sua atuação no filme de Ivan Cardoso rodado em
super-8. O tom de sua coluna no Última Hora é, muitas vezes, confessional,
dada a proximidade com as figuras sobre as quais escreve: Caetano Veloso,
Glauber Rocha, Gilberto Gil e o próprio Oiticica. Em paralelo à atitude destes
amigos e artistas, Torquato vai imprimir em sua coluna uma maneira
“tropicalista” de construção do texto jornalístico. Como em suas poesias,
trabalhará com uma profusão de citações, subvertendo-as a todo momento; um
trabalho antropofágico de bricolage que resultará num estilo de texto que tem
no fragmento o seu princípio constituitivo.
O bricolage92 é uma subversão do uso, a descontextualização da função
original de algo que passa a cumprir um novo sentido na totalidade da qual
passa a ser um dos fragmentos. Mas também ainda há no bricolage o sentido
de montagem de fragmentos heterogêneos, como em certa medida também se
faz no cinema. A montagem é uma maneira de articular um discurso
polifônico e é um dos fundamentos da arte moderna. Esse processo de
montagem, que como Décio Pignatari93 observa, fundamenta um
construtivismo da linguagem de Torquato Neto na Geléia Geral, é o seu
elemento principal. A Geléia Geral na Última Hora foi o espaço de fundação
de um discurso híbrido que transita entre o poético e o factual, assim como
observou o poeta Paulo Leminsky.
A maneira pela qual Torquato Neto constrói sua experiência nas páginas
da Última Hora transforma ao mesmo tempo sua poesia e sua maneira de fazer
jornalismo. Poesia e jornalismo são duas formas de se habitar a linguagem
com diferenças marcantes. São dois reinos assim como um vampiro se coloca
entre o mundo dos vivos e o dos mortos. Um vampiro é por definição um ser
marginal. A estética marginal de Torquato Neto desenvolve-se num espaço
assim, entre-margens. A Geléia Geral mantem-se num trânsito constante entre
92
DELEUZE-GUATTARI.Anti-Édipo, p-15: “ É por isto que somos todos bricoleurs, cada um suas
pequenas máquinas
93
in “Torquato Neto – o anjo torto da Tropicália, de Ivan Cardoso.
estas duas margens. Daí a radicalidade da sua experiência fundadora de uma
estética singular. A Geléia Geral e a terceira margem do rio que separa o
jornalismo da poesia.
95
HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Op.cit.p.68.
96
in MATTELART, Armand e Michele. História das teorias da comunicação. São Paulo, Edições Loyola,
1999. p.76-77.
Ao analisar “Bandido da Luz Vermelha”, o crítico Ismail Xavier 97
observa a citação que Sganzerla faz de “Pierrot Le Fou”, de Goddard. Em
ambos os filmes há uma concordância: a um anti-herói só resta a morte como
desfecho de seu drama. Em ambos também esta morte é um suicídio – recusa
radical, linha de fuga que se transforma em paixão pela abolição. Haverá um
limte maior para a deserção?
Um anti-herói é um ser trágico por definição. Tudo indica, portanto, que
a marginália de Torquato Neto foi um ato de deserção e que a Geléia Geral foi
o seu diário. Com ela, Torquato desenvolveu uma forma de escrita que
também deserta de categorias e gêneros que venham se colocar como formas
pré-estabelecidas, como margens que definam os limites de seu estilo. Uma
estética marginal, portanto, seria aquela então que teria como marca
fundamental a impossibilidade de uma classificação. A marginalidade de
Torquato reside na constatação de que ele a atingiu como fato de linguagem.
A Geléia Geral está à margem do discurso poético e do discurso jornalístico
ao mesmo tempo – ela serve de meio pelo qual brotam ao mesmo tempo as
duas formas de discurso. A Geléia Geral é um rizoma. Ela é uma mestiçagem
destas duas formas de discurso. A deserção está no aspecto furtivo aos gêneros
que o tipo de discurso que povoa a Geléia Geral.
O verbo desertar tem como primeiro sentido a ação de tornar deserto,
abandonar, fugir, retirar-se. Há uma tripla deserção na Geléia Geral: a poesia
deserta de si mesma, da mesma maneira o jornalismo deserta do que lhe é
próprio e Torquato Neto serve-se de sua coluna como o registro do seu
processo de deserção do mundo. É nesse sentido que a deserção é uma fuga.
Esse abandono do que é próprio é um colocar-se em devir, um tornar-se outro.
97
XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento – cinema novo, tropicalismo, cinema marginal. São
Paulo, Brasiliense, 1993. p.71-97.
Nem poesia, nem jornalismo. Seja Herói – Seja marginal. Há a afirmação
paradoxal ao mesmo tempo de valores tidos como antagônicos – certamente
uma influência direta do tropicalismo, no qual o novo e o arcaico eram
trabalhados da mesma maneira. Em nenhum momento esta articulação de dois
termos em princípios antagônicos é vista como excludente. Ambos os sentidos
afirmam-se ao mesmo tempo. Este procedimento na Geléia Geral torna-se um
disfarce pelo qual Torquato Neto constrói sentidos fluídos, insuspeitados,
através de uma linguagem fragmentada e poliédrica.
Esta forma construtivista de lidar com a linguagem já está na letra da
música que deu nome à coluna de Torquato Neto. A letra de Geléia Geral é a
seguinte
98
ROSSET, Clement. Op.cit.
6.3 - Cordiais Saudações
99
Últimos Dias de Paupéria, p.23.
Um LP de Sinatra
Maracujá, mês de abril
Santo barroco baiano
Superpoder de paisano
Formiplac e céu de anil (...)”100
105
Letra de Geléia Geral
106
ALMEIDA, Laura Beatriz Fonseca de. Um Poeta na Medida do Impossível (Trajetória de Torquato Neto),
tese de doutorado apresentada ao Departamento de Teoria literária e Literatura Comparada da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. p.113.
107
GOMES, Mayra Rodrigues. Jornalismo e Ciências da Linguagem. São Paulo, Haker Editores / Edusp,
2000. P.19.
Logo, a coluna de Torquato Neto é um documento adequado para se
pensar o jornalismo como fato de língua porque a todo momento essa
dimensão é trabalhada. Desde esta primeira crônica fica patente a total falta de
inocência de Torquato Neto no trato com a palavra. A linguagem é a notícia
de sua coluna. Daí a forma de jornalismo que Torquato pratica ser uma
extensão de sua poética. Não há como separar os códigos. Eles se amalgamam
numa “geléia” polifônica que produz um caldo espesso de sentidos que
escorrem por todos os lados. A Geléia Geral é a manifestação de uma escrita
refratária à categorização em gêneros. Ela surge da química entre o código
poético e o jornalístico que Torquato coloca em reação.
A velocidade do Vampiro da Tropicalia vem da fluidez de seu estilo,
que não para nunca de se transformar. Um vampiro é um ser em devir, ser
d´entre mundos – assim como no mito de Orfeu. Torquato Neto é o jornalista
vampiro e o poeta Orfeu encarnados ao mesmo tempo sob o signo do conflito
entre a meia-noite e o meio-dia. Uma forma de escrita que ao mesmo tempo
encobre e revela. Escrita hermética – o mito de Hermes como o deus
mensageiro entre o mundo dos deuses e dos mortais, o deus da aurora e do
arrebol: “Onde se vê noite, veja-se dia”108. “ Uma palavra: Deus e o
Diabo.”109 . A arte de Torquato Neto é uma arte de afirmação de extremos. A
contradição como fundamento já fazia parte do programa estético do
tropicalismo, com a mistura de materiais nobres x pobres que marca, por
exemplo, a obra de Hélio Oiticica, ou ainda o convívio do novo com o arcaico
que, segundo Celso Favaretto 110, é o elemento fundamental do “procedimento
108
Letreiro do filme “Nosferatu no Brasil”, do cineasta Ivan Cardoso, do qual Torquato faz o papel principal
que o associará à imagem do vampiro.
109
Op.cit.p.98 “Marcha à Revisão”
110
FAVARETTO, Celso. Tropicália Alegoria Alegria. São Paulo, Ateliê Editorial, 1996.
cafona” no disco coletivo do movimento quando então Caetano Veloso grava
um dramalhão de Vicente Celestino 111. Essa proposta estética do tropicalismo
subjaz na construção em que Torquato Neto joga com a tensão provocada
pelos sentidos opostos que uma mesma expressão pode tomar ao ser colocada
como título de sua crônica e, ao mesmo tempo, marcar o fim da mesma:
cordiais saudações.
111
O nome da canção é “Coração Materno”. A faixa é a segunda do disco, ficando entre Miserere Nóbis, de
gilberto Gil e Capinan e Panis et Circenses, De Gil e Caetano gravada pels Mutantes.
112
ECO, Humberto. A Obra Aberta. São Paulo, Perspectiva, 1989.
113
SALOMÃO, Waly.
Interview. O nome da crônica neste dia (20/08/1971) é “Palavra de
Glauber”114. A maneira pela qual Torquato edita a entrevista do cineasta já
abre campo para uma interpretação mais primitivista do modo de se fazer
cinema – tendência que mais tarde será desenvolvida diretamente na
campanha que Torquato levou como sua bandeira desfolhada na Última Hora
– a defesa do cinema marginal – uma ruptura radical com todo o Cinema
Novo, inclusive Glauber Rocha.
Em outros momentos esse tipo de recurso será utilizado novamente,
chegando mesmo a Torquato abrir seu espaço na Geléia Geral para textos
inteiros de Hélio Oiticica, Waly Salomão, Chacal, Pedro Kilkerry, Augusto de
Campos. A relação com a poética que Torquato Neto desenvolveu durante os
anos do tropicalismo é direta. Assim como nas letras de Geléia Geral,
Marginália II, Let´s Play That e outras, existem apropriações de origens
heterogêneas: Carlos Drummond de Andrade, Oswald de Andrade, Beatles e
frases de para-choques de caminhão – tudo amalgamado numa mesma geléia.
Ao apropriar-se da fala do outro, Torquato subverte os sentidos – imprime sua
marca de vampiro e transforma a fala apropirada em algo do qual aquele de
quem a fala fora expropriada já não mais a reconheceria como sua.
Outra origem desta maneira de se produzir jornalismo está intimamente
ligada à estética tropicalista, especialmente em relação às canções compostas
por Toquato. O crítico Charles Perrone chama a atenção para a ligação da
poética das canções do tropicalismo com a poesia concreta a partir da leitura
que Celso Favaretto faz do movimento em “Tropicália Alegoria Alegria”.
115
PERRONE, Charles. Poesia Concreta eTropicalismo. São Paulo, Revista da USP, 1990. P.56.
116
Ibdem.P.57.
Pode-se entender esta opção por uma “sintaxe não-discursiva” como
uma opção pelo não-dito como princípio. Uma estética do silêncio 117. É pelos
intervalos que a poética de Torquato Neto brota. Intervalo tanto no sentido de
espaço intermediário como no sentido musical mesmo do termo: diferença
entre alturas, diferença de registros portanto.
Convencionalmente o jornalismo é uma prática de afirmação do que
Gilles Deleuze e Félix Guattari definiram como palavra de ordem. Isto no
sentido de que existe uma dimensão da linguagem que sempre remete à sua
imanência. Diz-se alguma coisa sobre o que é dito. A linguagem jamais adere
ao real, mas se aplaca sobre ele:
117
Como fundamenta a crítica norte-americana Susan Sontag no primeiro capítulo de sua obra “A Vontade
Radical”, há em toda a arte produzida pela modernidade a presença marcante do silêncio como uma potência
que define a possibilidade de um discurso estético.
118
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil Platôs. Rio de Janeiro, 34, 1995, v.2, p.13.
A ordem em questão colocada pelos autores franceses é aquela já
antevista por Roland Barthes em sua aula inaugural no Colége de France,
quando este autor afirma que “a língua é fascista”. Isto quer dizer que a
linguagem impõe-se a partir de suas regras de produção de sentido. Portanto,
para que a linguagem “comunique” algo, antes é necessário que os sentidos
tornem-se comuns segundo suas regras imanentes. Antes de tudo a linguagem
dialoga consigo mesma, para além de qualquer ato de fala. É neste sentido que
existe, portanto, uma palavra de ordem:
120
Ibdem. P.13. nota 4.
121
Últimos Dias de Paupéria, p. 180 – “Filmes”.
desencadeada dentro da linguagem. Produção no sentido marxista mesmo,
segundo uma lógica do produto excedente como fundamento que gera um
valor. Desejante porque atualiza uma virtualidade que já percorre a linguagem.
“Ocupar espaço” na linguagem é fazer com que ela vá além de seus limites
convencionais. É fazer com que a própria linguagem passe a “ocupar um
espaço” que antes não lhe pertencia. Daí a apropriação na poética de Torquato
Neto ser oposta à redundância. Quando algo é citado na Geléia Geral, assim
como nas letras de Torquato, diretamente essa citação é “vampirizada”. Isto é,
há uma apropriação do sentido do enunciado, que passa a cumprir um novo
estatuto dentro do fluxo de sentidos que o estilo de Torquato produz. Torquato
Neto constrói com isto uma poética que se utiliza do discurso indireto como
forma de romper com a palavra de ordem. Se a linguagem impõe uma ordem
que lhe é imanente, essa ordem é assumida por Torquato Neto como uma
fronteira a ser apagada. Mas como fazer para se colocar fora da ordem da
linguagem se ela já se impõe antes mesmo de qualquer pensamento e de
qualquer enunciado?
Exatamente numa sintaxe não-discursiva. Uma poética rica em silêncios
enquanto potências de sentido como forma de “ocupar espaço” frente ao
estrangulamento da liberdade de expressão com a imposição da censura. Um
silêncio é um deserto na linguagem – um não-lugar porque ainda não
demarcado, agrimensurado. Ocupar espaço portanto é apropriar-se também
desse silêncio que repousa na potência da linguagem. Silêncio como não-
lugar. Como terra de ninguém. Deserto. Silêncio utópico de toda a poesia.
6.5 - Perder a fé
122
Acrescida à imagem também as palavras que jogam com o sentido entre o verbo ver e a cor verde: “VER
DE NOVO/ VER DE NOVO/ VIOLETO/ VEJO VIOLETO”.
123
William Burroughs.
a falar a partir de seu interior, é possível responder com uma outra forma de
“violência” que tem como objeto as próprias palavras e seu processo de
significação. O poeta é quem responde à coerção da língua de forma a
provocar um excesso que a faça transbordar sentidos que antes ela estancava.
Perder a fé nas palavras, portanto, seria fatal a quem, por paixão pela
linguagem, deixasse de apostar na possibilidade de concretização desse
excesso. No entanto, do ponto de vista do jornalismo este é um imperativo já
que o seu trato com a palavra pauta-se pela depuração da linguagem. A fé
perdida e a fé resgatada portanto são as duas faces do conflito entre o poeta e o
jornalista Torquato Neto.
O mesmo conflito está na obra de Hoffmansthal que é citada por Deleuze e
Guattari em Mil Platôs para definir o conceito de devir-anima – „ A Carta a
Lord Chandos”. Há uma convergência entre essa obra capital da literatura
moderna e a poética de Torquato Neto. Quando Torquato Netoem 03/11/1971
agradece ao poeta Wally Salomão o reestabelecimento na fé em relação às
palavras, isso indica que ele tinha experimentado um processo de inércia com
relação à elas que foi o mesmo experimentado pelo narrador que escreve a
carta na ficção de Hofmannsthal: uma : perda da “fé nas palavras”124. Essa
inércia discursiva parece ser uma marca da modernidade – a linguagem
dobrada ao indizível, isto é à experiência direta. Se por intermédio da
linguagem teremos sempre uma duplicação do real, ou seja, uma experiência
indireta, podemos então pensar em pelo menos uma modalidade de
experiência que seja direta: a experiência da própria linguagem. Em outras
palavras, quando a linguagem torna-se auto-referente, realizamos uma
experimentação ao mesmo tempo em que escrevemos sobre este processo.
124
Nessa obra marcante da modernidade, o escritor austríaco narra ficticiamente um drma similar ao de
Torquato, explicando os motivos de um afastamento da vida literária exatamente por uma “perda na fé das
palavras”.
Neste sentido os textos jornalísticos de Torquato Neto afirma-se por sua
modernidade, pois a todo momento demonstra-se a habilidade em lidar com
este plano de delusão em relação à linguagem. Não esqueçamos que Torquato
Neto se vale da figura estética do vampiro para articular sua poética na Geléia
Geral e, como sabemos, todo vampiro “não tem uma imagem de si mesmo”.
Essa imagem inexistente pode ser entendida aqui como a condição da
linguagem quando esta se auto-referencia. Dessa maneira não há a formação
de um duplo porque a própria natureza de duplicação que a linguagem opera
sobre o real é revelada. Não há mais mímese, isto é, imitação. Neste sentido é
fundamental pontuar o que significa essa “perda da fé nas palavras” de que
Torquato fala em sua coluna e Hofmannsthal em sua carta fictícia.
Ao descarnar o texto, o jornalismo impõe uma forma sóbria às palavras,
primando pela exatidão. É uma forma de escrita que tem como base o caráter
redundante da linguagem. Por princípio, em nenhum momento o jornalismo se
deixa seduzir pelas forças que atraem os sentidos para fora da linguagem.
Parte-se sempre de um plano no qual a linguagem é tratada segundo as suas
redundâncias em relação aos sentidos. É um tipo de texto que não joga com os
sentidos dados, até porque tem como princípio de legitimidade seu
compromisso fundamental com a correspondência para com a realidade. O
efeito de verdade é necessário e sempre presente num texto jornalístico
convencional. A referencialidade portanto sempre acompanhará essa
modalidade de textos. Pode-se então categorizar o texto jornalístico como uma
forma de escrita que incide sobre o eixo denotativo da linguagem, em
detrimento do conotativo. A ordem deve ser sempre direta portanto. Isto para
que haja precisão e uma referencialidade ao real legítima.
A literatura e, num contraste ainda mais intenso, a poesia, apostam no
polo oposto do que o jornalismo em relação à linguagem. Não a redundância
dos sentidos dados pelo senso comum, mas a ruptura com essa forma de texto.
Tanto na literatura como na poesia joga-se com os limites da linguagem. Daí
toda literatura e toda a poesia assumirem uma força que empurra a linguagem
para o seu FORA. Enquanto numa forma de produção de texto se trabalha uma
busca de referencialidade através do investimento na redundância dos
sentidos, na outra aposta-se tudo na diferença, no rompimento com os sentidos
dados. O jornalismo está ao lado da linguagem científica e a das leis, do lado
da razão. A literatura e a poesia do lado dos sonhos e dos mitos, da
imaginação. E essa era a divisão da linguagem para os gregos: logos, a face da
linguagem que explica as coisas de maneira racional e mythos, a outra face da
linguagem que narra os acontecimentos e que para isto se vale da imaginação.
Uma obra literária encena esse drama dos polos opostos da linguagem que por
algum motivo são forçados a um encontro: “As Ilusões Perdidas”, de Balzac.
Entender como esta obra relaciona de maneira diferente estes polos da
linguagem pode dar margem a uma melhor compreensão de como Torquato
Neto viveu este conflito em sua produção.
125
WISNIK, José Miguel. Ilusões Perdidas in NOVAES, Adauto (org) Ética. Cia das Letras, São Paulo, 1992.
p.321 – 343.
Ilusões Perdidas” a obra síntese da “capitalização do espírito” – problema que
no século seguinte vai marcar grande parte das discussões sobre o estatuto da
cultura na sociedade contemporânea.
127
MICHELLI, Mário de. As Vanguardas Artísticas. São Paulo, Martins Fontes, 1991, p. 14-15.
128
Wisnik. Op. Cit, p323.
Apaixonaram-se mas sequer chegaram a alguma proximidade que não fosse
lícita para a moral da época. O caso dos dois acaba por se consumar apenas na
boatagem. A Sra de Bargeton resolve se afastar do marido de vez, levando
para Paris Rubempré como seu protegido e amante. Lá chegando, o
provincianismo de ambos acaba por diluir subitamente a paixão frente os
valores da sociedade parisiense. A primeira ilusão de Lucien de Rubempré já
está perdida, e os dois acabam por terminar com o caso que sequer iniciaram.
Desabonado de sua protetora, com a qual contava para se manter, além
das economias que sua mãe e seu cunhado, David Séchard, o haviam dado,
Rubempré tenta vender seus dons da escrita a algum livreiro. Mais uma
tentativa frustrada. O jornalismo surge então como a alternativa redentora.
Rubempré aprende todas as técnicas e expedientes da profissão. Neste ponto
do livro, Balzac faz uma listagem dos métodos que os jornalistas de então
empregavam para sustentar toda uma rede de tráfego de influências e troca de
favores com editores, casas de espetáculos, políticos, etc.
Balzac empreende um ataque caudaloso por todos os flancos que pode.
Se há um mal no mundo esté é a imprensa. De espírito conservador, o escritor
francês defendia a monarquia e chegou a apregoar o controle prévio sobre os
jornais, no entanto, apesar da sua ira contra a imprensa, Balzac conseguiu
articular questões cruciais sobre as quais o jornalismo se constituiu durante as
grandes transformações engendradas pela Revolução Industrial. Como observa
Wisnik:
130
LEMINSKI, Paulo. Os Últimos Dias de Um Romântico. Folha de São Paulo, Folhetim nº 303, 07/11/1982.
p.7.
conflito sobre o “estilo” é uma questão fundamental do jornalismo. Há toda
uma história dos assaltos empreendidos às fronteiras que este poder demarca.
Escrever um pequenocapítulo dessa história foi um dos objetivos aqui
perseguidos.
Isto acontece toda vez em que se trabalha o jornalismo enquanto fato de
linguagem - condição necessária para a criação de uma poética que faça o
poder que legitima estas fronteiras implodirem. O poder do qual fala Leminski
é o poder da forma. Que forma é esta? A do discurso automatizado no
jornalismo, de inspiração naturalista, isto é, que estabelece uma forma
“natural” de conteúdo em detrimento de outras. No artigo anterior 131, também
publicado no Folhetim, Leminski faz uma análise do problema do estilo no
jornalismo. Leminski retoma essa discussão. O artigo coloca em questão
princípios que são diretamente reconhecíveis na produção de Torquato Neto
na Geléia Geral.. Neste artigo Leminski começa falando sobre esta idéia de
“naturalidade da expressão”, que em literatura, segundo o artigo, está ligada a
uma idéia de forma eleita como padrão que melhor corresponderia à realidade
à qual se reporta. É a partir dessa “forma natural” que se estabelece um poder
dentro da linguagem. Assim como em relação à ordem econômica, de
produção de riquezas, também há uma ordem da significação na produção dos
sentidos. A poesia trabalha exatamente colocando em questão essa ordem
vigente na produção de sentido. De acordo com os conceitos de Deleuze e
Guattari no Anti-Édipo, a poesia se encontra no polo esquizo-revolucionário
da linguagem. Em essência, ela não reafirma os sentidos dados, mas resulta de
uma força que arrasta esses sentidos para uma zona ainda não decodificada. A
poesia desterritorializa os sentidos da linguagem. É então por uma linha
poética que se implodem os sentidos automatizados das palavras:
131
LEMINSKY, Paulo. Forma É Poder. Folha de São Paulo, Folhetim nº 288, 04/07/1982.
“Poesia é apenas um outro nome para essa linguagem
desautomatizadora. Mais ligada ao não-verbal (artes
plásticas, música, cinema, mímica), ela se afasta, coloca-
se longe ou fora do alcance do discurso naturalista, de
origem jornalística”. 132
132
Ibdem.
133
PIVA, Roberto. O jogo gratuito da poesia. Folha de São Paulo, Folhetim, 28/02/1982.
qual Torquato Neto produziu um verdadeiro acontecimento na história do
jornalismo brasileiro.
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