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SILVIO RICARDO DEMÉTRIO

A GELÉIA GERAL: UM ESTUDO DE CASO SOBRE RELAÇÕES


ESTÉTICAS ENTRE JORNALISMO E LITERATURA NA COLUNA
DE TORQUATO NETO.

Dissertação apresentada como exigência


do programa do curso de Mestrado em
Ciências da Comunicação (Núcleo de
Epistemologia do Jornalismo do CJE) da
Escola de Comunicação e Artes da
Universidade de São Paulo.

Orientador:
Prof.
Dr. Edvaldo Pereira Lima

SÃO PAULO
2001
SILVIO RICARDO DEMÉTRIO

A GELÉIA GERAL: UM ESTUDO DE CASO SOBRE RELAÇÕES


ESTÉTICAS ENTRE JORNALISMO E LITERATURA NA COLUNA
DE TORQUATO NETO.

Dissertação apresentada como exigência


do programa do curso de Mestrado em
Ciências da Comunicação (Núcleo de
Epistemologia do Jornalismo do CJE) da
Escola de Comunicação e Artes da
Universidade de São Paulo.

Orientador:
Prof.
Dr. Edvaldo Pereira Lima

SÃO PAULO
2001
Comissão Julgadora
________________ - ________________ - ______
Nome Assinatura Data

________________ - ________________ - ______


Nome Assinatura Data

________________ - ________________ - ______


Nome Assinatura Data
RESUMO

O presente estudo de caso tem como objeto a produção de Torquato


Neto no último ano de existência da Última Hora carioca. Sua coluna,
chamada Geléia Geral fundia um estilo radicalmente experimental com as
possibilidades estéticas do discurso jornalístico. Dessa tensão nasce uma
poética que tem no jornalismo um de seus principais componentes.A leitura
aqui proposta ampara-se principalmente nos conceitos da esquizoanálise de
Gilles Deleuze e Félix Guattari. A idéia central que percorre todo o trabalho é
de que Torquato Neto cria uma fusão entre o discurso jornalístico e o poético
que passa a assumir uma identidade própria. De acordo com a esquizoanálise
de Deleuze e Guattari, a estrutura que preside este tipo de encontro de códigos
heterogêneos chama-se rizoma. A conclusão a que se chega é de que a coluna
de Torquato Neto produziu uma poética fundamentada neste tipo de estrutura.
O estudo é uma tentavia de localizar e avaliar a dimensão da produção
“inclassificável” de Torquato Neto na história recente do jornalismo brasileiro
ABSTRACT

This research have it´s object in the texts of the brazilian poet, composer
and journalist Torquato Neto, who was envolved with the Tropicalia scene in
the 60´s. Torquato wrote a daily collumn named Geléia Geral in the Última
Hora – one of the great newspapers of this century in Brazil. His style was
built with a radical experimentalism, melting journalism and a poetic
constructivism to found a form to handle with the dictatorial politics of
ideologic control in the dark years of militarism in the South America. In 1972
Torquato Neto comitted suicide. His work still being a strong influence in the
vanguard culture in Brazil. His journalistic style was a single experience with
the boundaries of literature and journalism in a poetry view.
In memoriam Pedro do Rosário Neto
AGRADECIMENTOS

Á COMPREENSÃO E PACIÊNCIA DE ADRIANA HARTMANN QUE DURANTE O LONGO


TEMPO DE GESTAÇÃO DESSE TRABALHO SOUBE ENTENDER OS DRAMAS E IMPASSES
COM GENEROSIDADE DE CORAÇÃO. EM SE FALANDO DE GENEROSIDADE, UM
SUPERABRAÇO TAMBÉM PARA O POETA WALY SALOMÃO, CUJO O CORAÇÃO É MAIOR
DO QUE A PEDRA DA GÁVEA. AO SEO WALDOMIRO E À DONA DORA QUE NUNCA
DEIXARAM AS COISAS CAÍREM NA BANALIDADE E TIVERAM A PACIÊNCIA DE PELO
MENOS TENTAR ENSINAR-ME UM POUCO DISTO. A TODAS AS OUTRAS PESSOAS QUE
AJUDARAM NA DIFÍCIL ARTE DA HONESTIDADE.
AO PROFESSOR EDVALDO PEREIRA LIMA QUE SOUBE COMPREENDER CERTOS
MOMENTOS DIFÍCEIS NUMA LIÇÃO DE ELEGÂNCIA E SOBRIEDADE.ENFIM, À CAPES
QUE PERMITIU UM MERGULHO MAIS AGUDO NA PESQUISA QUANDO ISTO ERA
INADIÁVEL.
SUMÁRIO

1. UMA EXPLOSÃO PROGRAMADA 10


1.1. Esquizoanálise 13
1.2. Literatura menor e “dicção nanica” da imprensa 18
2. O PRINCÍPIO ESTÁ NO FIM 29
2.1. Devir literário e rompimento com a norma 32
2.2. Experimentando limites 35
2.3. Vitalidade para gerações seguinte 38
2.4. Poéticas do celulóide 41
3. DA LITERATURA COMO LINHA DE FUGA DO JORNALISMO 45
3.1. Forças centrípeta e centrífuga – “do lado de dentro”,
“do lado de fora” 48
3.2. Linhas de Fuga 53
3.3. Rizoma: hibridização de códigos heterogêneos 58
3.4. Ocupar espaço 60
3.5. Uma desterritorialização absoluta 62
4. EM BUSCA DA MARGINALIDADE 68
4.1. Adjacências e tangências 74
5. TRANSANDO COM O VENENO 76
5.1. Máquinas desejantes 81
5.2. Táticas de guerrilha 83
5.3. A lina de fuga do vampiro 86
6. AGENCIAMENTO JORNALISMO-LITERATURA 95
6.1. A Geléia Geral 101
6.2. Estética Marginal 104
6.3. Cordiais Saudações 113
6.4. Palavra de Torquato 122
6.5. Perder a fé 129
6.5.1. As ilusões perdidas 133
7. CONCLUSÃO – OS SIGNOS DO VAMPIRO 139
8. BIBLIOGRAFIA 144
1. – Uma explosão programada

“Dark star crashes


pouring its light into ashes”
Robert Hunter, da letra de Dark Star,
do grupo Grateful Dead

Logo de saída um trabalho sobre Torquato Neto apresenta uma


particularidade que deve ser colocada às claras: o corpus de sua produção é
rarefeito, tanto em relação às suas poesias e letras de músicas quanto à sua
produção jornalística. O tema que daqui em diante será trabalhado será esse
segundo pólo de sua produção, sobre o qual Torquato produziu uma das mais
instigantes colunas do jornalismo brasileiro, a Geléia Geral. Até onde se pôde
pesquisar, não foi encontrado nenhum trabalho que tratasse a coluna de
Torquato Neto na Última Hora sob o ponto de vista específico dos problemas
que ela suscita em relação ao jornalismo. Assim como em relação à poesia, a
Geléia Geral também apresenta esse caráter fragmentário – não só o que é
imposto pela condição da periodicidade, mas também o fragmento é tratado
como elemento construtivo do próprio estilo de texto desenvolvido por
Torquato Neto.
É possível então entender inicialmente essa rarefação como o resultado
da poética de Torquato Neto – a rarefação é inerente ao fragmentário e nos
seus interstícios é que sua força é depositada. Quem aponta para essa
rarefação do corpus torquatiano é o poeta Paulo Leminsky, num artigo do
suplemento cultural Folhetim:

“Como Buda, Confúcio, Sócrates, Jesus, Torquato


não deixou livros. O Livro de Torquato é esse “Últimos
Dias de Paupéria”, muito bem editado por Wally
Sailormoon, vitrina dos vários possíveis de Torquato; em
letra, poesia escrita, ensaios jornalísticos, fragmentos de
diário, retrato estilhaçado de um poeta por outro poeta.
Essa – digamos – precariedade do “corpus torquatiano”
(para falar como os mandarins é um fato de mistério; a
incompletude, a obra aberta, o poder-ser. Talvez, por
isso, Torquato tenha influenciado tanto. (...)
(...) Torquato dispersou-se em microepifanias, letras,
poemas, textos de jornal.”1

Diante dessa dificuldade inicial, que por vezes faz parecer quixotesca
qualquer tentativa de recompor o movimento pelo qual Torquato Neto
constituiu sua obra, há de se ter em mente então que para entender um
estilhaçamento não se deve propor a inversão do processo original. Como
Leminsky aponta, “os vários possíveis” de Torquato dão a medida da
virtualidade que ronda seus textos. Buscar um princípio unificador aqui seria a
mesma coisa que tentar recompor uma peça de porcelana espatifada. Se o
processo original foi exatamente a aposta na ação determinante desse
estilhaçamento, deve-se entender esse movimento em seu próprio fundamento.
É o que Leminsky insinua, o “fato de mistério” que envolve a produção de

1
LEMINSKY, Paulo. Os Últimos Dias de um Romântico. São Paulo, Folhetim nº303, 07/11/1982.
Torquato – à rarefação do “corpus” sobrepõe-se a radicalidade de um estilo
que lhe dá a força. Se o “corpus” é rarefeito, a articulação entre a forma de
expressão e a forma de conteúdo no caso de Torquato Neto se dá no sentido
contrário: a sua “Geléia Geral” é densa – o registro de uma trajetória marcada
pela antropofagia onívora inaugurada pelo tropicalismo. Segundo Laura
Beatriz Fonseca de Almeida, o estilo da Geléia Geral afirmava-se:

“Descobrindo tons diferentes nas informações, Torquato


dava feição nova às notícias da Geléia Geral. (...)
“ao impor à escrita o ritmo das imagens, o cronista
deixava que a informação falasse por si mesma.
Conversar generalidades era um modo de evitar as
metáforas – perigosas e ineficazes – em um tempo de
“transas difíceis (...)”
“Nesse tempo da palavra calada, a imagem impunha-se
como expressão viável para uma geração que não podia
mais recorrer à escrita como esteio de sua identidade.
Era preciso redescobrir outras linguagens e reagir ao
compasso da espera”.2

É esta força que determina o estilhaçamento, o estilo próprio de


Torquato Neto. Então o que se deve fazer é procurar desenvolver os
fragmentos e não soldá-los – buscar entender essa dispersão que impede o
fechamento da obra – o tateamento em busca das “brechas” tal como Torquato
o prescrevia. O princípio de abertura do qual nos fala Leminsky 3,
empregando-o de Humberto Eco, afirma todas as interpretações, portanto não
afirma nenhuma em especial, apenas a virtualidade que percorre todas ao
mesmo tempo. Não há o que interpretar (se temos por interpretar o ato de
imprimir um significado unificador) porque nada se fecha, tudo pulsa na
polifonia de um fluído, de uma Geléia Geral que escoa para todos os lados
(atingindo o próprio processo de significação). Não há então como seguir uma
linha de recomposição. Ela não existe. Foi apagada de uma vez por todas.
Waly Salomão, amigo de Torquato, é quem alerta para esse fato:

2
ALMEIDA, Laura Beatriz Fonseca de. Um Poeta na Medida do Impossível – Trajetória de Torquato Neto.
Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas – USP. São Paulo, 1993. Pp.93-101.
3
LEMINSKI, Paulo. Forma é poder. São Paulo,Folhetim de 04/07/1982: Só a obra aberta (desautomatizada,
inovadora), engajando, ativamente a consciência do leitor no processo de descoberta/criação de sentidos e
significados, abrindo-se para sua inteligência, recebendo-a como parceira e colaboradora, é verdadeiramente
democrática”
“Um Édipo tenta decifrar as inscrições, os
alfabetos, as notas, os hieróglifos que a esfinge desenhou
com a ponta de suas garras nos lajedos, no leito do Rio
Parnaíba, nas palmas das carnaúbas, no canto da jurití,
nos gravetos esturricados, na inteira chapada do Corisco.
E se não há no entremeio o viço das coisas, há só o
presto intenso, há somente o prestissimo...
- Então doutor, não é possível tentar “L‟Anti-Oedipe”?
- Não vai adiantar nada. É tarde. A Livraria Leonardo da
Vinci ainda não recebeu nem o exemplar encomendado
pelo General Golbery por ser uma edição muito recente.
Les Editions Minuit acabam de dar à luz neste ano da
graça de 1972. Agora é cinza.”4

A linha assumida por Torquato Neto em sua produção foi uma linha de
intensidade crescente que culminou com um excesso, com uma explosão. A
expressão musical “prestissimo” à qual Waly Salomão se refere é esse ritmo
nervoso e crescente, e a Geléia Geral é o exemplo disto. Como será
desenvolvido mais adiante, a indicação de “O Anti-Édipo” por Waly Salomão
traz em sua ironia toda essa perspectiva de não interpretação como a
delineamos há pouco. O calibre da ironia está na coincidência do ano da morte
de Torquato com o da publicação do livro. Waly diz sobre a chegada tardia do
livro – indicando que certamente algo desta obra pode nos colocar em contato
com a força geratriz das virtualidades da Geléia Geral.

1.1. Esquizoanálise
Então é fixarda como ponto de partida a consideração de que a crônica
(chamemos assim os textos de Torquato, por força de expressão), tanto para o
jornalismo quanto para a literatura é considerada um “gênero menor”. De
acordo com o senso comum isto significa que a crônica seria uma literatura
envergonhada ou então um jornalismo estetizado, mas quando se fala em
Torquato Neto todo e qualquer senso comum deve ser suspenso. Portanto,
podemos tomar “menor” de acordo com “O Anti-Édipo”, o que significa que
estamos nos colocando dentro de uma das discussões que a obra conjunta de
Félix Guattari e Gilles Deleuze não para de perseguir.

4
SALOMÃO, Wally. Torquato Marginália Neto in “Armarinho de Miudezas”, Salvador, Fundação Casa de
Jorge Amado, 1993.
O percurso do trabalho em conjunto desse dois autores começa com
uma crítica da psicanálise , “O Anti-Édipo”. Essa obra traz em seu sub-título o
plano sobre o qual os seus trabalhos seguintes vão se desenvolver:
Capitalismo e Esquizofrenia. Obra de fôlego intenso, “O Anti-Édipo” rompe
com uma leitura freudiana do desejo como sendo fundamentalmente
determinado por uma falta. Para Deleuze-Guattari, o desejo é uma questão de
produção. O desejo produz alguma coisa, é uma afirmação de uma
positividade. O Desejo atualiza uma virtualidade 5 . Como Christian Descamps
expõe, a posição de Deleuze-Guattari:

“Inicialmente, os autores quebram a relação entre


o desejo e a carência. A tradição liga o desejo àquilo que
está ausente, à Lei, ao proibido. Ora, para eles (Deleuze-
Guattari), trata-se de pensar uma força imanente, sem
carência, que depende de um arranjo no qual está
incluída. Produtor, o desejo estabelece conexões,
relações que não param de atravessar um real do qual
jamais sente falta, já que se alimenta dele. (...)
(...) Assim, “O Anti-Édipo” se mostra uma máquina
de guerra contra a psicanálise, acusada de ter
massacrado o desejo em sua representação familiar, por
ter restabelecido a ordem da produção na ordem da
apresentação. Contra todas as reduções, os autores
afirmam que a família, tão valorizada pela psicanálise, é
apenas um arranjo parcial eternamente desviado na
direção do extra-social (...) Reduzir o desejo a uma única
cena edipiana é situar as energias em pequenos e sujos
segredos familiares. Nossos autores propõem, ao
6
contrário, abrir o inconsciente ao social.”

A crítica à psicanálise reside primeiramente quanto ao estatuto do


desejo como sendo produção e não mais falta. Em segundo lugar, decorre
desta interpretação psicanalítica do desejo como falta um rebatimento, uma
redução de toda e qualquer manifestação do desejo como uma representação
de um drama familiar básico. O que Félix Guattari e Gilles Deleuze apontam
como redutor nas bases do pensamento de Freud é justamente o caráter
totalizante que a psicanálise confere a esta redução: o inconsciente é visto

5
DESCHAMPS, Christian. As Idéias Filosóficas Contemporâneas na França. Rio de Janeiro, Jorge Zahar,
1991. P19-23.
6
Ibdem. P21-22.
como representativo, ou melhor, como o palco mesmo onde o drama familiar
básico desempenha sua trama. E quando se fala em teatro temos então uma
representação. De acordo com Deleuze-Guattari, a metáfora de Freud para o
insconsciente é o teatro. A dupla de pensadores franceses inverte toda esta
posição. A imagem do inconsciente para Deleuze-Guattari é uma usina,
porque para estes autores, o inconsciente é produtivo e jamais tem seu
trabalho determinado por uma falta, senão por um excesso, ou melhor, um
acréscimo. Além disto, o inconsciente é atravessado por toda e qualquer
potência exterior: política, cultura, história, economia, etc.. Deleuze-Guattari
chamam a linha traçada pela psicanálise de neurotizante, dada a obsessão por
um princípio que isole o indivíduo das potências que o atravessam. A
psicanálise reduz todo o social e toda produção ao familiar - esta é, segundo
Deleuze e Guattari, a sua neurose. O „Anti-Édipo” é, como definem Deleuze-
Guattari, uma inversão do sentido dessa linha. O pólo oposto da neurose é a
esquizofrenia, porque, ao contrário da neurose, nela tudo desliza para fora, é
uma pura expansão em todos os sentidos, logo, onde nenhum sentido em
especial é afirmado. Daí Deleuze-Guattari proporem uma esquizoanálise, isto
é, discutir as manifestações do desejo e seus investimentos sobre uma
perspectiva que considere o inconsciente do ponto de vista da produção do
social. Em outras palavras, para Deleuze-Guattari há uma relação fundamental
entre o modo de produção social e a produção de subjetividade 7.
O que os autores franceses chamam de “literatura menor” começa a ser
preparado já nesta obra, quando nela emergem as primeiras referências ao
nome de Kafka (p. 58 e p.269 da tradução brasileira). O segundo trabalho em
conjunto de Deleuze e Guattari é dedicado inteiramente à obra do escritor
tcheco: “Kafka: Por uma literatura menor”. Neste livro, os autores franceses
definem o conceito de literatura menor. Primeiramente é necessário entender o
par conceitual molar-molecular para entender o que vem a ser a literatura
menor e também explicitar de maneira mais acurada o que os autores chamam
de territorialização, desterritorialização e reterritorialização (conceitos
desdobrados de codificação, decodificação e sobrecodificação). Para Deleuze-
Guattari todo fenômeno possui um devir (um tornar-se) molar e molecular.
São duas linhas de força. Uma, a molar, é uma linha de recognição, que
recorta um fenômeno e lhe dá uma identidade – seria uma linha de contorno.
Portanto, o molar pode ser entendido como o aspecto de reconhecimento de
determinado fenômeno, ou seja, o que permite estabelecer uma convenção
acerca de sua natureza. É uma linha de fechamento, de contorno.

7
“A tese da esquizo-análise é simples: o desejo é máquina, síntese de máquina, agenciamento maquinístico –
máquinas desejantes. O desejo é da ordem da produção, toda produção é ao mesmo tempo desejante e
social”. In “O Anti-Édipo”p 375.
O nível molecular é justamente o sentido contrário desse devir, que vai
em direção aos agenciamentos primeiros que determinam o fenômeno. Por
exemplo, em relação à esfera política, existe um devir molar quando o que se
têm sob foco são as instituições convencionais desta esfera: partidos, eleições,
etc. O molar é o plano das grandes categorias, ou melhor, das próprias
categorias, já que estas são um contorno traçado sobre um fenômeno. O devir
molecular refere-se portanto à tomada das relações mínimas onde é
engendrada a política: relações pessoais do dia-a-dia, onde os agenciamentos
são da ordem de uma flexibilidade que se contrapõe à linha de um contorno.
Podemos pensar molar-molecular como a interação entre a força centrípeta e a
centrífuga. De acordo com a definição da física, a força centrípeta é a que tem
sua ação orientada para o centro de um movimento de rotação. Toda rotação
determina um raio de ação e, logo, um centro. A força centrípeta dirige-se para
esse centro. Ao contrário disto, a força centrífuga é a que se dirige para fora
deste raio de ação. Ela coloca o movimento em contato com suas tangências.
Temos então que o devir molar é centrípeto, porque, ao dirigir-se para o centro
do fenômeno, lhe dá uma identidade. Todo centro é a imagem de uma
unidade. Na outra direção está o molecular, centrífugo porque é o que foge à
esta unidade reconhecível. O molecular é onde toda imagem se desfaz. É onde
um fenômeno afirma sua multiplicidade. Ao dirigir-se para fora do raio de
ação, coloca-se em relação às tangências do fenômeno, isto é, com o que ele
se agencia. O molecular dá entrada então à dimensão onde um fenômeno se
desconhece – ao que lhe faz diferir do que está fora de seu raio de ação e
também em relação a si mesmo. É uma linha de diferenciação, porque
“diferenciar de si mesmo” é durar, e todo fenômeno é uma duração.
Todo fenômeno é decorrente da soma desses dois devires, molar e
molecular – é o que determina o equilíbrio do sistema 8. Como Deleuze afirma,
a sua filosofia é uma afirmação do múltiplo – a filosofia como “teoria das
multiplicidades”. É então que sua filosofia dirige-se sempre a este nível
molecular, porque é nele que se afirma a diferença – as relações de um
fenômeno com seu fora. Dizemos “fenômeno” aqui por força de expressão –
não levando em consideração o que tal termo implica em termos de conceito
filosófico, pois acreditamos que essa discussão seria de uma envergadura tal
que não há recursos para tanto e, tampouco, é o objetivo do presente trabalho.
“Fenômeno” aqui pode ser entendido como o agenciamento entre estas duas
forças, o devir molecular e molar.
Voltando então à questão do que seja a “literatura menor” definida pelos
dois autores, como tudo o que é molar é da ordem das categorizações, tem-se
8
Toda essa conceituação remete ao pensamento de Maurice du Condillac, do qual Deleuze explorou a
proposição de que “O múltiplo explica o Uno enquanto que o Uno implica o múltiplo”.
que um literatura orientada neste sentido é aquela que se conforma aos
cânones que lhe são impostos. Há toda uma galeria de nomes que conformam
essa literatura maior como um legado de afirmação de uma língua através da
escrita, seu registro. Esse é o devir molar da literatura, seu devir maior, ou
seja, que lhe impõe uma linha de contorno e sobre o qual se constrói o modelo
com o qual se considere ou não um texto como sendo literário.
Mas há também o sentido inverso na literatura, um devir molecular, um
devir menor. Daí Deleuze-Guattari pensarem uma “literatura menor”. Esta é a
afirmação da diferença de si mesma da literatura, de como algo surge no plano
literário como uma voz antes não manifestada, portanto algo que dirige-se
para o seu fora. Toda literatura menor é então, primeiramente, aquela que dá
voz a algo dentro da própria língua que antes era dominado pelo silêncio. A
literatura menor atualiza uma virtualidade (a do silêncio como condição para
que algo seja dito, silêncio fundante), logo é investida pelo desejo, assim
como Deleuze-Guattari o definem. E estes autores chamam a atenção para esta
característica da literatura menor: ela é, como no exemplo que Deleuze-
Guattari encontram numa frase de Proust, “uma língua estrangeira dentro da
própria língua”9. Ela não representa, mas torna presente, isto é, manifesta esta
virtualidade da língua. Poderia acontecer, como no caso da assimilação pela
corrente teórica dos “Estudos Culturais” de origem americana, de se entender
“literatura menor” como necessariamente “literatura de minoria”. É por isto
que Deleuze Guattari enfatizam o aspecto revelado pelo exemplo proustiano.
A escolha de Kafka também não é aleatória ou tampouco por simpatia:
Deleuze-Guattari demonstram que a literatura desse autor tcheco é uma
literatura menor, mesmo com Kafka sendo um nome inquestionável do cânone
ocidental. Em outros termos, Deleuze-Guattari assim procedem para reafirmar
que o “menor” ao qual ambos se referem não é pobreza estética, nem a
conformação a guetos, mas sim como campo de manifestação desse devir
molecular da literatura, de seu devir menor. Kafka faz o alemão “gaguejar”,
isto é, lhe imprime uma dicção própria através da qual novos sentidos são
produzidos. Estes novos sentidos são o resultado da maneira pela qual Kafka
monta sua máquina de escrita tal qual uma máquina simples em que se amarra
um corpo qualquer a um fio e se gira em torno de si. Escrever é colocar um tal
sistema para funcionar. O centro desse sistema é o narrador. A força
centrípeta, os marcadores de poder da linguagem, ou seja, os elementos da
sintaxe que impõe o sentido que remete ao centro – que lhe dão uma
identidade reconhecível. A força centrífuga é a desterritorialização que as
tangentes imprimem ao sistema. As tangentes de uma máquina como esta são

9
A frase de Proust é a seguinte: “As mais belas obras são escritas numa espécie de língua estrangeira”.
todas linhas de fuga. As tangências são a própria virtualidade que conforma
esta máquina. Delas provêm os pontos pelos quais o sistema todo, isto é, a
máquina de escrita, passa a percorrer, traçando com isto uma linha de fuga –
uma linha de diferenciação de si mesma.
Então que é sobre essa dimensão molecular que a máquina desenvolve
seu devir revolucionário, porque é por essa linha que ela passa a territorializar
o que lhe chega pelas tangências. Nesse movimento de decodificação dos
elementos exteriores a si mesma, a máquina passa então a recodificar o que
lhe é próprio.

1.2 - Literatura menor e “dicção nanica” na


imprensa
Torquato Neto desterritorializa tanto o jornalismo quanto a poesia
exatamente por atingir a zona das tangências inerentes aos dois regimes de
escrita. É nessa zona de tangência que é traçada a linha de seu devir
revolucionário. Tangência não como adjacência mas como fuga do centro –
centrífuga. O nome de sua coluna, “Geléia Geral”, vem da música que
Torquato compôs em parceria com Gilberto Gil – na época do tropicalismo
Torquato apropriou-se da expressão cunhada pelo poeta concreto Décio
Pignatari num texto-manifesto da revista Invenção. 10 E a letra faz alusão ao
jornalismo:

“Um poeta desfolha a bandeira


e a manhã tropical se inicia
resplandente, cadente, fagueira
num calor gira-sol com alegria
na Geléia Geral brasileira
que o Jornal do Brasil anuncia.”11

Daí surge um primeiro ponto, uma entrada na produção jornalística de


Torquato Neto. “Um poeta desfolha a bandeira (...) / na Geléia Geral
Brasileira/ que o Jornal do Brasil anuncia”. Torquato enuncia nesse verso
inicial o que mais tarde viria a ser sua condição em relação à grande imprensa.

“A coluna de Torquato circula de agosto de 1971 a


março de 1972. A expressão Geléia Geral, que se deve a

10
“na geléia geral brasileira, alguém tem que fazer o papel de medula e osso”. Décio Pignatari.
11
Geléia Geral – in “Tropicália ou Panis et Circencis”, LP manifesto coletivo do tropicalismo, Philips, 1968.
Décio Pignatari, mais uma vez vem nomear o exercício de
liberdade do poeta. No contato diário de segunda a
sábado o cronista seleciona informações e trabalha a
notícia através de pequenos textos reflexivos e breves
notas sobre acontecimentos em diferentes áreas da
cultura (...)
(...) Marcar um espaço, abrir uma brecha em um
veículo de maior circulação é a tônica dos textos da
Geléia Geral. Saindo da imprensa alternativa para
transformá-la em notícia para público maior, Torquato
expõe-se ao olhar do censor e trabalha as informações
que estão liberadas”.12

Levantando a bandeira da marginália, a Geléia Geral foi um espaço de


experimentação que constituiu uma forma inclassificável diante da rigidez das
categorias com as quais se pensa as fronteiras entre jornalismo, literatura e
assim por diante. Mas essa forma inclassificável, essa anti-forma tem um
nome, ou melhor, habita uma região que lhe serve de referência, de
sobrenome, como na Idade Média o sobrenome era dado pela cidade onde se
morava. Ela chama-se poética. Do grego poiesis, literalmente fazer. Em outros
termos, uma poética refere-se ao processo pelo qual se constitui uma estética
particular. Cada um que escreve como se assina o próprio nome cria com isto
uma poética – toda poética é uma questão de estilo. E com Torquato não é
diferente. Há um fazer de Torquato Neto que lhe é próprio – sua assinatura.
A coluna que manteve no Última Hora carioca é marcada por um estilo
inconfundível: não é crônica, mas há um elemento, às vezes, ficcional e que
guarda relações com uma dimensão factual que lhe dá sua historicidade; não é
também uma coluna simplesmente opinativa, porque uma opinião é algo
fechado, e, nos textos de Torquato, é patente o recurso de um discurso
polifônico – o que não imprime uma opinião, já que não verticaliza nada,
abolindo as coordenadas axiológicas em favor de uma explosão de referências
e apropriações; não é jornalismo informativo tão somente, porque segundo o
próprio conceito de informação, quanto menor esta, ou seja, quanto menor o
grau de escolha, mais potencializada é a mensagem, e este é o registro no qual
trabalha-se o texto informativo – Torquato situa-se no polo oposto, isto é,
onde a entropia é maior, ou seja, onde o grau de escolha chega ao seu limite,
quase um caos.13 A lista do que não é a produção de Torquato Neto poderia

12
ALMEIDA, Laura Beatriz Fonseca de. Op.cit. p.88.
13
A título especulativo, é curioso observar como o que se chama de jornalismo informativo vai contra o
conceito de informação tal qual como este tem seu significado fixado no estudo da Comunicação Social pela
estender-se ainda mais, mas isto já é o suficiente para que seja percebido um
processo de argumentação característico do que se tornou conhecido como
teologia negativa: se não é possível dizer aquilo que Deus é, podemos então
conhecê-lo pela enumeração daquilo que ele não é. Este processo especulativo
chama-se apófase.14 No caso, pode-se deduzir que Deus é o indizível, ou seja,
uma experiência direta, não mediada pela linguagem, irrecuperável por meio
desta.
Colocando então em curso uma apófase laica, se o que se pretende de
Torquato é uma imagem na qual ele possa ser reconhecido em sua totalidade,
isto está fadado ao fracasso. Torquato Neto assumiu para si a figura do
vampiro, depois de atuar no filme em super-8 de Ivan Cardoso, Nosferato no
Brasil. Cultivou essa assimilação de seu nome ao do personagem, tornando-se
o “vampiro” da marginália. O vampiro é sua figura estética.15 Fez disto um
elemento constituinte de toda a sua poiesis. Como se sabe, um vampiro “não
tem imagem de si mesmo”16 – nenhum espelho pode captá-la . Não há,
portanto, como enquadrar o que quer que seja a seu respeito de uma maneira
fixa, tal como um vampiro e todas as suas metamorfoses, seu devir animal.
Reduzir tudo sobre o plano da catástrofe? – a Geléia Geral como o registro de
um plano suicida? Seria perder muita coisa ao se conformar ao mito romântico
do poeta que ama tanto a vida que é capaz de oferecer a sua própria em
holocausto à essa devoção. Essa é uma linha possível, porém, já revelada de
antemão: seria falar a respeito do romantismo de um ponto de vista romântico.
Mistificar a figura de Torquato Neto, não é esse o propósito do trabalho a
seguir. Jamais, portanto, rebater o que quer que seja em relação à Geléia Geral
sobre um enquadramento, ou seja, não interpretar de maneira totalizante, mas
sim seguir as linhas com as quais Torquato Neto construiu sua poética na
Geléia Geral. Nunca perder de vista a proposta já fixada: desenvolver e não

teoria de Warren Weaver – texto que serviu de base para a construção da teoria da informação. Segundo este
autor, podemos deduzir que o que está em jogo no jornalismo informativo não é a própria informação, já que
esta é minimizada, mas a mensagem – é sobre esta que recai toda a tônica dos discursos que fundamentam
esse gênero jornalístico. A Teoria Matemática da Comunicação de Weaver diz que quanto maior o grau de
escolha dos sentidos em uma mensagem, maior é a informação. Ora, o jornalismo informativo coloca-se
exatamente no polo oposto, porque, segundo Weaver, temos também que a toda mensagem é maximizada
pela diminuição da tacha de informação que lhe é interior. Nestes termos, uma mensagem fundamenta um
poder, porque parte de um princípio de interdição de outros sentidos que possa assumir.
14
DERRIDA, Jacques. Salvo o Nome. Campinas, Papirus, 1995. P.8.
15
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O que É a Filosofia? São Paulo, 34, 1992. P.87-88. “A diferença
entre os personagens conceituais e as figuras estéticas consiste de início no seguinte: uns são potências de
conceitos, os outros, potências de afectos e perceptos. Uns operam sobre o Plano de Imanência que é um
plano de composição como imagem do Universo (fenômeno). As grandes figuras estéticas do pensamento e
do romance, mas também da pintura, da escultura e da música, produzem afectos que transbordam as
afecções e percepções ordinárias, do mesmo modo os conceitos transbordam as opiniões correntes.”
16
“O pensamento é como o Vampiro, não tem imagem, nem para constituir modelo, nem para fazer cópia”.
Deleuze-Guattari. Mille Plateaux. P. 47 Volume5.
tentar soldar os fragmentos 17. É isto o que está expresso na letra da música
Geléia Geral: um poeta em meio à confusão do jornalismo. Confusão porque
mistura onde tudo perde os seus limites distinguíveis: onde os gêneros se
confundem, onde o “lado de fora é igual ao lado de dentro” 18; onde o
jornalismo e a literatura acontecem ao mesmo tempo em que uma poética é
construída em público.
Há nisto tudo uma questão fundamental: em termos de jornalismo, não
há, no Brasil pelo menos, um exemplo mais radical de experiência dentro da
chamada grande imprensa. Depois de Torquato o “desbunde” engrenou com a
ebulição de um tipo de discurso reconhecível em toda a imprensa nanica. Daí
a importância de um estudo de caso sobre a Geléia Geral. Esse “desbunde”
pode ser entendido como uma manifestação tardia dos valores culturais e
comportamentais que passaram a circular pela cultura de massa após o
advento de fenômenos tais como a Contracultura nos EUA e maio de 68 na
França. É certo que isto começou com o Pasquim, o qual o próprio Torquato
Neto afirmava que lia, mas foi na Geléia Geral que se gestou o embrião da
geração marginal – um estilo jornalístico “desbundado”, do qual o eco pode
ser reconhecido até mesmo hoje na produção de José Simão 19 em sua coluna
na Folha de São Paulo. Tendo-se sob foco o Pasquim, pode ser localizada uma
primeira dicção nesse sentido, com a coluna Underground, de Luiz Carlos
Maciel, mas esta ainda fica por conta do conteúdo, e não chega ao grau de
radicalismo da Geléia Geral. Não há ainda uma poética porque ainda o
“desbunde” está no conteúdo e não chegou até a própria forma de expressão
do discurso. No caso de Torquato Neto é indissociável o conteúdo da forma:
trabalha-se ambos ao mesmo tempo.
Os valores que estão em jogo são aplicados na construção do discurso,
ou seja, o fazer, poiesis, é auto referente, afirma-se por si mesmo e não em
relação a algo que lhe é exterior, um conteúdo pré-existente. Daí o requinte da
modernidade que é afirmada na coluna Geléia Geral e na poesia de Torquato
Neto. A própria forma de expressão já traz em si os valores afirmados pelo
conteúdo – é ela mesma, muitas vezes, que desencadeia e articula os
conteúdos. Neste sentido, a Geléia Geral pode ser entendida como uma
manifestação contracultural. Isto porque o termo Contracultura, no presente
17
“A esquizoanálise deve desembaraçar o fio. Porque ler um texto não é nunca um exercício erudito em
busca dos significados, menos ainda um exercício altamente textual em busca de um significante, mas um uso
produtivo da máquina literária, uma montagem de máquinas desejantes, exercício esquizóide que retira do
texto sua potência revolucionária”. In DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo. P. 138-139.
18
Torquato Neto. Geléia Geral. “Cordiais Saudações” 19/08/1971. “O lado de fora é frio. O lado de fora é
fogo, igual ao lado de dentro. Estar bem vivo no meio das coisas é passar por elas e, de preferência,
continuar passando. Isso aí eu li uma vez no Pasquim.”
19
Torquato Neto abre a coluna publicada em 15/01/72, entitulada “Bem no pezinho do ouvido”, com a
expressão “”Bom dia flor do dia!”, a qual José Simão utiliza para abrir sua coluna na Folha de São Paulo.
caso, diz respeito à abolição do termo cultura como algo dissociado de outras
esferas – como se culturais fossem apenas os conteúdos e não a expressão
destes. O “contra” neste caso é da rejeição de qualquer dissociação desta
natureza. Pode-se entender melhor essa noção de “contra” cultura com Félix
Guattari:

“O conceito de cultura é profundamente reacionário. É uma


maneira de separar atividades semióticas (atividades de
orientação no mundo social e cósmico) em esferas, às quais os
homens são remetidos. Tais atividades, assim isoladas, são
padronizadas, instituídas potencial ou realmente e
capitalizadas para o modo de semiotização dominante – ou
seja, simplesmente cortadas de suas realidades políticas”. (...)
“A cultura enquanto esfera autônoma só existe a nível dos
mercados de poder, dos mercados econômicos, e não a nível
da produção, da criação e do consumo real.”(...)20

Seguindo Félix Guattari, é possível propor uma saída conceitual para


esse impasse. O fenômeno da Contracultura e suas extensões permite então
vislumbrar um fenômeno de outra natureza. Guattari afirma que essa
dissociação da cultura de outras esferas é politicamente reacionária porque
encobre as relações concretas de produção de subjetividade. A Contracultura,
em princípio, foi um fenômeno de investimento dessa subjetividade. Segundo
o crítico americano Allan Bloom21, o que aconteceu foi uma nietzscheização
da nova esquerda. Embora Bloom seja avesso e céptico em relação aos
resultados desse fenômeno que marcou a década de 60, sua caracterização é
precisa. Nietzscheização porque este filósofo propunha exatamente a própria
vida como algo a ser construído tal qual uma obra de arte.
Foi esta a perspectiva vislumbrada e assimilada pelo que ficou
conhecido no Brasil como o “desbunde dos anos 70”. Numa conjuntura
política de asfixia da liberdade de expressão e, em paralelo, com a
degeneração da militância política organizada em patrulhas ideológicas 22 , o
“desbunde” foi a expressão de uma alteridade radical, introduzindo e
adaptando valores éticos da Contracultura e, sobretudo, criando os seus

20
GUATTARI, Félix e ROLNIK, Suely. Micropolítica – cartografias do desejo. Petrópolis, Editora Vozes,
1996. P. 15.
21
BLOOM, Allan. O Declínio da Cultura Ocidental. São Paulo. Ed. Best Seller, 1989. P273-285.
22
Expressão cunhada pelo cineasta Cacá Diegues. Podemos entender “patrulha ideológica” como sendo, em
certo sentido, a contrapartida da censura instituída no país pelo AI-5. Um policiamento estético-ideológico de
esquerda que via de maneira paranóica qualquer manifestação que fugisse de suas categorizações como
“alienante”.
próprios. Nesse sentido, o “desbunde” não foi alienante, mas alienígena
mesmo: uma mistura de extra-terrestre com indígena 23; nativo e ao mesmo
tempo irreconhecível; afirmação de uma diferença espontânea. É certo que
também foi “capitalizado para o modo de semiotização dominante”. Talvez
até porque no cerne da expressão “Contracultura” ainda subsista uma
“cultura” como termo negativo, de onde abre-se a fenda fundamental que a
separa de outros âmbitos da produção social – esse “contra” e essa “cultura”
talvez já tivessem sido reconduzidos à uma disjunção, criando-se nada mais do
que um termo suficientemente amplo para recortar e isolar um fenômeno que
em seu devir revolucionário trazia em si justamente o movimento contrário.
Mas não há como falar de algo sem uma palavra: truísmo fundamental pelo
qual se abre a dimensão onde toda palavra é uma palavra de ordem – então
impõe-se a utilização do termo “Contracultura”, mas sem perder de vista que

23
No seriado japonês “Nacional Kid”, de grande sucesso no começo dos anos 70 no Brasil, havia uma legião
bárbara de seres, os “Incas Venusianos”. Apesar do tom chistoso, a decomposição anagramática de alienígena
em alien/indígena remete a uma passagem da participação do filósofo Roberto Machado numa mesa redonda
transcrita no livro “Micropolíticas – Cartografias do Desejo” (coletânea de textos e transcrições de palestras e
debates com Félix Guattari – pp 116-119). O debate aconteceu na Folha de São Paulo, em 3 de setembro de
1982, quando Guattari participou de uma série de eventos no Brasil. A pergunta colocada a Roberto Machado
foi a seguinte:

“Gostaria que você desenvolvesse essa comparação entre o processo de pirataria cultural
característico da Europa e a maneira tupiniquim de pirataria, característica do Brasil.

Alguns trechos da resposta de Roberto Machado:


“(...) quanto à segunda parte de sua questão, sua expressão „a maneira tupiniquim‟ de fazer
pirataria cultural me parece muito apropriada; acho que é tupiniquim mesmo, pois me parece
que quem está fazendo um uso mais criativo dos meios de comunicação de massa no Brasil, hoje,
são exatamente os índios. Vocês devem estar lembrados dos episódios cômicos que envolveram o
Cacique Juruna há algum tempo, quando ele percorria os gabinetes ministeriais, carregando a
tiracolo um gravador portátil e gravando todos os discursos e promessas oficiais. Esta foi a
maneira que ele encontrou para chamar os homens do governo de mintirosos. Sua presença nas
cerimonias oficiais carregando um gravador portátil – presença que chegava a ser
desconcertante – era uma declaração, uma explicitação da demagogia dos homens que estavam
fazendo os discursos. (...)
“(...) Para mim, pirataria é isto: é inverter o uso que está previsto na própria construção do
aparelho; é, por exemplo, transformar um aparelho de recepção num aparelho de emissão. Isso
é exatamente o que fazem os índios, por incrível que pareça.(...)
“(...) Isso é pirataria. Esta é a maneira tupiniquim de se utilizar dos meios de comunicação de
massa”.
Alien e indígena ao mesmo tempo devido à essa natureza bárbara, de pirataria mesmo, descrita pelo filósofo
Roberto Machado. Como veremos mais adiante, o que está em jogo na poética que Torquato Neto construiu
dentro do jornalismo é exatamente esse processo de pirataria, de um uso dos meios de comunicação de massa
que afirme sua diferença radical. Uma recorrência da releitura que o tropicalismo fez da antropofagia de
Oswald de Andrade num contexto de Comunicação de Massa. Apesar de “Geléia Geral” ter sido o nome da
canção manifesto deste movimento, a Geléia Geral de Torquato Neto no Última Hora foi a crônica inaugural
de sua superação: o momento que passou a ser chamado de pós-tropicalismo.
sob ele uma multiplicidade se agita, com contrações e expansões, velocidades
e paradas.
O importante é reconhecer quais as linhas de um fenômeno o colocam
numa proliferação, que o desterritorializam e, ao mesmo tempo, as linhas que
o impedem de proliferar. Ambos os sentidos se afirmam de qualquer
fenômeno. Sentidos, direções, são devires: um devir revolucionário e um devir
reacionário. Velocidade e desaceleração (parada). Não é A cultura que é
reacionária enquanto fenômeno social e histórico, mas determinado Conceito
de Cultura, ou então, ainda melhor, uma cultura que seja o resultado da
criação de uma imagem determinada por este conceito – imagem no sentido de
gestalt, onde a cultura emerge como figura sobre um fundo de produção do
social do qual se destaca.
Se a cultura não existe como uma esfera desvinculada do fundo do qual
emerge é porque a linha que nos leva até ela é a mesma que a dissolve sobre
este mesmo fundo. A imagem de uma cultura não se recorta mais de todo o
processo pelo qual é gerada através da maquinaria de produção do social.
Onde antes havia um fundo agora há um a-fundamento. O que até aqui foi
chamado de cultura pela falta de um outro termo que permitisse escapar numa
velocidade maior é então um movimento, uma linha que se coloca em direção
a um imperceptível: situação onde figura e fundo se fundem pois não há mais
nada do que uma agitação das partículas que lhes são comuns. Não mais um
corpo sobre uma extensão que lhe sirva de referência, mas a própria agitação
molecular. Devir imperceptível que atravessa todas as produções que são
chamadas convencionalmente de culturais.
Se apesar de todos os cuidados que até agora foram tomados com o
termo cultura ele ainda insiste é porque então algo dessa insistência aponta
para um outro plano. Um devir revolucionário pode atravessá-lo e essa linha
que lhe permite proliferar novamente coloca-se em direção a esse
imperceptível arraigado nas mínimas engrenagens da produção de todo o
social. Quando antes tinha-se um conceito de cultura que se rebatia sobre toda
e qualquer produção, agora tem-se justamente o contrário. Então redireciona-
se conceito de cultura como produção.
O prefixo “contra” (de Contracultura) passa a designar uma inversão de
sentido, direcionando a “cultura” para as relações microscópicas pelas quais
figura e fundo não mais antagonizam, mas formam um só e mesmo plano que
produz a ambos. Tal plano de relações microscópicas, que não mais separa a
cultura de outras esferas, afirma o caráter do que antes era imperceptível, do
que era menor à perspetiva de um conceito de cultura como esfera autônoma.
Esse imperceptível não é somente uma minoria social, étnica ou de qualquer
outra natureza, mas também da ordem dos enunciados que o percorrem. Kafka
era um judeu-tcheco que escrevia em alemão. Como Deleuze-Guattari
propõem, existe em sua obra não só a afirmação da condição minoritária à
qual estava submetido, do ponto de vista de uma minoria étnica, mas toda a
montagem de uma máquina literária que afirmava também um uso próprio do
alemão em seu processo de escrita, que desentranhou do alemão uma dicção
própria, ao mesmo tempo interior e estrangeira, inaudita. Kafka “produziu”
algo que desterritorializou o alemão, que levou a língua a dizer algo que antes
não era dito. Deu voz ao não-dito, deu voz ao inaudito, ao não-sentido.
Quando se fala no silêncio fundante 24 de toda a linguagem, está se falando de
um silêncio povoado, carregado pela força que permite a atualização da
virtualidade que toda palavra envolve em sua imanência.
O não-sentido diz respeito ao que ainda não foi recuperado pela
convenção estabelecida ou que, pelos menos guarda uma parcela de sentido
devoluto, de não pertença ao convencionado. É como quando escutamos
alguém que gagueja: a princípio a dicção está carregada de não sentido, a
partir do momento em que conseguimos reter um morfema começa o processo
de decodificação, mas eis que no ritmo não convencional que a gagueira
imprime à fala, esse morfema, essa primeira forma custa a ser reconhecida –
neste intervalo é toda a multiplicidade de sentidos possíveis que é afirmada ao
mesmo tempo, de uma vez só. É isto o que dizem Deleuze-Guattari quando
afirmam que uma literatura menor como a de Kafka faz a língua “gaguejar”,
ou seja, a maneira pela qual se escreve afirma uma multiplicidade. E toda
multiplicidade é uma questão do que é menor, microscópico – dar voz ao que
é imperceptível, à parcela devoluta, zona de sombra de toda palavra. Podemos
então retomar o que acima dissemos a respeito de um devir menor da cultura,
uma contracultura como inversão do sentido que recorta e separa essa esfera
da produção social e não simplesmente uma negação de caráter reativo aos
valores instituídos, porque agora não temos mais aqui o termo Contracultura
como algo reativo, assim como o que dissemos sobre o conceito de Cultura,
mas como o sentido inverso ao processo todo: produção, e não a reprodução
de uma imagem. Daqui por diante contracultura passa a se referir a esse
sentido que aqui afirmamos. De acordo com este ponto de vista, a
contracultura da qual estamos falando não é aquela que se confunde com uma
moda e determinados valores e padrões de comportamento de uma época
específica, mas mostra-se sobre a própria força que desterritorializa tais
padrões; que inventa um padrão próprio; que gagueja. O desenho desse padrão
não é linear, mas uma linha quebrada que, em determinado momento emerge
sob determinada configuração histórica para proliferar neste meio, até ser
24
ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do Silêncio – No Movimento dos sentidos. Campinas, Editora da
Unicamp, 1995.
desacelerada, e num momento seguinte resurge sobre um outro plano, como
uma proliferação de elementos distintos da primeira e no entanto como
retomada do mesmo processo, da mesma linha que atravessa a história num
movimento quebrado.
Se até aqui o termo contracultura foi tratado dessa maneira é porque há
a necessidade de conduzir tudo de maneira que ele seja tomado como um
conceito e não como a nomeação de um fenômeno circunscrito a determinado
momento histórico. Neste sentido é contracultural toda e qualquer
manifestação que não endosse a separação da cultura de seu devir menor.
Pode-se entender a relação entre cultura e contra-cultura que aqui queremos
definir a partir de certa aproximação com a polaridade entre cultura e
civilização de Oswald Spengler: a primeira é, para este autor, de caráter
dinâmico, portanto instável, de pura mobilidade – afirmação de uma
multiplicidade que não cessa de se expandir em todas as direções, enquanto
que uma civilização marca a parada deste processo – para Spengler toda
civilização surge da morte de uma cultura, de sua desaceleração – uma
retorialização de toda a agitação molecular sobre as instituições.
Não se quer com isto propor uma morfologia, isto é, uma leitura e
recorte de formas históricas reconhecíveis – universais. Faz-se aqui o paralelo
com Spengler para encontrar um índice de mobilidade dentro do conceito de
cultura. O seu pensamento, em certo aspecto, permite o entendimento de uma
interação de forças de expansão e contração como constituitívas do processo
pelo qual se dá a gênese de uma cultura em relação à história. Então o
conceito de cultura do qual Guattari tece sua crítica é o que a coloca como
algo localizado no plano das instituições. A cultura como o resultado de um
processo civilizatório, em termos spenglerianos – é justamente para este
flanco aberto pelo conceito de cultura que Guattari dirige suas críticas.
Dessa maneira está garantido o devido cuidado conceitual em função de
imprimir um caráter dinâmico ao conceito de cultura, que, desta maneira,
acompanhe a linha de devir que a atravessa. Essa linha assume
necessariamente então o sentido inverso ao que inicialmente foi colocado,
seguindo Félix Guattari, como recortando-a do universo de outras esferas de
produção. Esse devir não é aquele que, portanto, traça os contornos dessa
separação, mas que justamente os apaga. A cultura como algo insinuando-se,
ou melhor, sendo produzido nas menores engrenagens dessa maquinaria – nas
moléculas dessa mesma. É um devir que a leva ao imperceptível, ao que é
menor. E é então que se torna possível desdobrar o conceito ao qual estará
sendo remetida a produção jornalística de Torquato Neto: literatura menor
(Deleuze-Guattari).
Isto porque, em primeiro lugar, é necessário fixar o ponto pelo qual
estamos abordando as relações entre jornalismo e literatura; em segundo,
porque, como é tomada aqui a Geléia Geral como um momento do jornalismo
brasileiro em que se criou um estilo, uma fala característica dos discursos que
circularam pela imprensa alternativa dos anos 70 em paralelo com o fenômeno
da poesia marginal; por fim, em terceiro, porque tal como o nome desse tipo
de imprensa foi assimilado, “imprensa nanica”, nos coloca em convergência
com o conceito de “literatura menor”. Torquato imprime uma dicção nanica a
um veículo da grande imprensa: a ùltima Hora carioca.
Literatura grafada com maiúscula só existe assim, em início de frase,
por força de regra ortográfica, no entanto, como conceito, a literatura é
exatamente a expressão de forças contrárias a qualquer poder que seja imposto
na ou pela linguagem. Toda literatura é uma questão de multiplicidades, de
desdobramento das virtualidades que perpassam a linguagem. Isto é
demonstrado ao longo dos trabalhos de Mikhail Bakhtin, por exemplo, quando
este teórico analisa a poética de Dostoyevsky e lá encontra os fundamentos de
um conceito de romance polifônico.
Ainda sobre Bakhtin repousa outra aproximação em relação aos
conceitos de Deleuze e Guattari: pode-se entender o princípio de
carnavalização na literatura, isto é, o surgimento de vozes de setores menores
da sociedade em dado texto literário como sendo convergente com o princípio
de um devir-menor tal como acima foi desenvolvido. Há então como,
respeitados os cuidados conceituais necessários, trabalhar sobre essas
convergências, pois é necessário localizar qual o conceito de literatura que
estará sendo empregado e suas relações com a paisagem teórica que este
suscita.
Optou-se por trabalhar com o conceito de Deleuze-Guattari porque
assim o presente trabalho estará, de alguma maneira, contribuindo para
ampliar o horizonte teórico das discussões sobre as tangências e afastamentos
entre o jornalismo e a literatura – isto porque, dadas as ementas dos cursos
oferecidos pelo Núcleo de Epistemologia do Jornalismo, encontrase em todas
a presença de Mikhail Bakhtin como referência sobre polifonia (uma forma de
discurso que permita a enunciação de vozes menores do ponto de vista de uma
condição política, social, cultural, etc.). Se Bakhtin é uma referência
constante, logo, a preocupação com um princípio de multiplicidade (polifonia)
também o é como princípio ético mesmo da prática do jornalismo. Sendo
assim, o presente trabalho propõe uma discussão destes mesmos fundamentos
éticos sob um outro plano teórico de referência a fim de, pelo menos, colocá-
los em conexão com outras virtualidades. Bakhtin é fundamental. Gilles
Deleuze e Félix Guattari também o são, pois ambas construções teóricas
dirigem-se para um tema comum: um pensamento que afirme o múltiplo.
Se Torquato inventa, como diz Leminsky, um novo padrão de
jornalismo cultural, é necessário precisar com rigor um plano conceitual que
seja convergente com tal padrão, com as linhas que o formam assim como
Torquato as traça. Se na própria matriz da linguagem, isto é, na gênese do
estilo de texto da Geléia Geral há toda uma fluidez de sentidos, o conceito de
cultura com o qual relacionar esta fluidez deve ser de mesma compleição. Isto
porque a polifonia é sua característica fundante. Impor qualquer conceito de
ordem rígida seria impor um marcador de poder, instaurando uma coordenada
axiológica sobre a qual todos os outros conceitos passariam a gravitar. Seria
interpretar de maneira totalizante a Geléia Geral e não explorá-la. Impor um
significado recalcado, subjacente a todo o texto. Coagular os fluxos da Geléia
Geral.
2. O princípio está no fim

“ Um poema só é um poema no momento em que existe nele o incomum”

Vicente de Huidobro
Foi depois de uma noite de Quinta-feira. Torquato Pereira de Araújo
Neto havia saído com a mulher, Ana, e amigos, para comemorar seu
aniversário. Havia completado 28 anos. Na madrugada, já em casa, esperou a
mulher e o filho Thiago dormirem, vedou todas as possíveis entradas de ar
com um lençol que levou para o banheiro. Enquanto o gás se espalhava deixou
sua última mensagem. A data escolhida marca ao mesmo tempo o dia de seu
nascimento e o dia de sua morte. O escorpião se fecha sobre si mesmo. Sua
morte o transforma no mito cult do poeta trangressor. Em paralelo a esta
imagem, muitas outras se intercalam, mas a principal é a do vampiro, que
ficou vinculada a Torquato depois da atuação no filme “Nosferatu no Brasil”,
de Ivan Cardoso. Ela também o coloca no limite entre a vida e a morte. Da
mesma maneira, toda a produção de Torquato Neto, reunida na compilação
Últimos Dias de Paupéria, organizada por Ana, sua esposa e o amigo Waly
Salomão, joga com os limites entre a poesia e a forma particular de jornalismo
que Torquato praticou em sua Geléia Geral (nome tanto de sua música em
parceria com Gilberto Gil quanto de sua coluna).
Além de um dos grandes letristas e poetas do tropicalismo, Torquato
Neto também foi o criador de um estilo de jornalismo inconfundível durante o
tempo que durou sua coluna na Última Hora. A importância e a inventividade
da experiência colocada em prática pelo vampiro da Tropicália foi apontada
pelo poeta Paulo Leminsky, dez anos após seu suicídio, num artigo-balanço
sobre a influência de Torquato Neto na poesia e no jornalismo brasileiro:

“Na coluna que, longo tempo, manteve no jornal


“Última Hora”, Torquato praticou, em nível de
massa, a mais ágil das linguagens; esplendidamente
“subjetiva”, descontínua, ideogrâmica, blocos
carregados de eletricidade, movida a elipses, elipse,
a figura-mestra de Torquato, conduzida até a
elíptica apoteose de auto eliminação final, o efeito
da Falta.
Não exagero ao dizer que Torquato criou um
padrão de jornalismo cultural. Um padrão baseado
na extrema criatividade de linguagem. Na
hibridização dos discursos: poéticos, factual,
materiais nobres x pobres.”25

Essa experiência incandescente com as possibilidades estéticas do


jornalismo não poderia furtar-se ao espírito de seu tempo e, tal como a
atualização do mito romântico que cercou a trilogia dos que partiram cedo na
Contracultura - Janis Joplin, Jimmy Hendrix e Jim Morrison - Torquato Neto
foi uma descarga elétrica no marasma e terror pós AI-5. É certo que sua morte
precoce e escolhida projeta uma sobra tão intensa sobre sua figura quanto a
força de sua escrita. Mas a escolha também é a prova dos nove da liberdade –
é seu fundamento. E toda a atividade que se quer baseada na liberdade de
expressão deve antes de tudo considerar a liberdade de escolha como seu
fundamento último. Segundo Albert Camus, em seu “ Mito de Sísifo, esta é a
maior questão filosófica que alguém pode se colocar. O caso de Torquato
Neto e sua Geléia Geral, portanto, será tomado aqui a partir de uma leitura do

25
LEMINSKY, Paulo. Os ùlitmos Dias de Um Romântico. Folha de São Paulo – Folhetim nº303 de
07/11/1982, p. 06.
plano pelo qual sua estética traçou uma linha de fuga na conjugação do
jornalismo cultural e da poesia brasileira no começo da década de 70.
Como a pesquisadora Laura Beatriz Fonseca de Almeida define em sua
dissertação de mestrado, na Geléia Geral “a linguagem torna-se notícia”26, o
que pode direcionar o plano das discussões em direção à constatação da
professora Mayra Rodrigues Gomes de que grande parte dos estudos que tem
o jornalismo como objeto não levam em consideração que, antes de tudo, o
jornalismo é um fato de linguagem27.
É uma decisão, logo, uma escolha a partir da qual aqui se parte na
leitura que se segue, de buscar pela força do acontecimento da Geléia Geral.
De como o estilo dos escritos de Torquato Neto publicados na Última Hora
aponta para a seguinte questão: como, de que maneira o jornalismo pode ser
tomado como elemento fundamental na construção de uma obra literária, a tal
ponto que apagam-se os limites entre esses dois regimes de escrita
heterogêneos? Essa é uma das questões principais para entender e localizar o
nome de Torquato Neto na recente história cultural do País.

2.1 – Devir literário e rompimento com a norma

Quando se pensa em Torquato Neto e o que sua coluna “Geléia Geral”


desencadeou dentro do jornalismo brasileiro nos anos que se seguiram à
Tropicália, não há como evitar um certo desconforto. Seu suicídio em 10 de

26
ALMEIDA, LauraBeatriz Fonseca de. Um Poeta na Medida do Impossível. Universidade de São Paulo
1993, p
27
“Há algo negligenciado nas reflexões sobre jornalismo. Antes de registrar, informar, antes de ser colocado
pelas condições que o caracterizam, por exemplo, periodicidade, universaqlidade, atualidade, difusão,
categorias que nos são dadas por Otto Groth, o jornalismo é ele próprio um fato de língua”. In
GOMES, Mayra, Rodrigues. Jornalismo e Ciências da Linguagem. São Paulo, Hacker Editores/ Edusp, 2000.
p 19.
novembro de 1972 reveste todas as suas palavras de um silêncio inesgotável.
Uma forma de silêncio que é a medida de toda a linguagem, de toda palavra.
Um silêncio que não é tolerado dentro da “normalidade” imposta pela
linguagem jornalística. “Imprevisíveis significados”, escrevia Torquato -
palavras que “explodem” e, principalmente, “perder a fé nas palavras”, são
expressões que marcam o paradoxo deste que, embora admitindo
publicamente seu desencanto com a palavra, cercou-se dela em todas suas
atividades (além de jornalista, Torquato foi poeta e compositor, chegando a
escrever também roteiros para TV e cinema que nunca foram filmados).
A “Geléia Geral” pode então ser tomada como o coda apoteótico que
Torquato, em sua face de poeta-jornalista, compôs com os estilhaços de sua
trajetória misturados ao desencanto de uma paisagem cultural devastada pelo
totalitarismo cinicamente triunfante da palavra de ordem sintetizada na
expressão “ninguém segura este país”.
Tudo isto pode convergir para um ponto de partida em que leitura do
jornalismo praticado por Torquato Neto seja pautada, em termos
nietzscheanos, por uma posição reativa, isto é, automática em relação a um
valor moral instituído e não à força de seu próprio acontecimento. Nesse caso,
a “Geléia Geral” desencadeia um afeto negativo, de desconforto mesmo em
relação a uma divisão clara e objetiva entre vida e obra, entre uma prática da
escrita de referência ao real e um outro tipo de escrita, puramente inventiva, já
que choca-se frontalmente não só com os valores impregnados nas formas
discursivas do jornalismo, mas, de uma maneira verdadeiramente “geral”, com
o rompimento de qualquer forma discursiva dada por uma “normalidade” da
linguagem: normalidade no sentido de proveniente de uma „norma”, ou seja de
uma forma que impõe uma ordem ao discurso. Pela própria natureza do
discurso poético, há um afrontamento das margens impostas por essa
normalidade. Daí o rompimento com a “normalidade” do discurso, a quebra
da “palavra de ordem”, ou, pelo menos, o traçado de um programa para tal
rompimento, como será desenvolvido ao longo deste estudo de caso. Segundo
o poeta Ezra Pound, “poesia é linguagem carregada de sentido” 28, portanto, o
que propomos aqui é a leitura do processo pelo qual o jornalismo é tomado de
assalto pela instalação de uma poética em seu seio. É dessa maneira que
Torquato assume o jornalismo. Uma poética que busca o jornalismo como um
de seus elementos fundamentais seria então a dimensão sobre a qual podem
ser observadas as tentativas de redimensionar esse tipo de discurso através da
busca de uma linguagem mais “carregada de sentido”. Num limite mais
abrangente, esta poética aponta para as perspectivas de um jornalismo
literário, assim como escreve o professor Edvaldo Pereira Lima :

“O jornalismo absorve assim elementos do fazer literário


mas, camaleão,transforma-os, dá-lhes um aproveitamento
direcionado a outro fim. A literatura está, até então,
basicamente interessada na escrita. Mesmo quando
representa o real, através da ficção, a factualidade
concreta, efetiva – de acontecimento, personagens e
ambientes perfeitamente existentes e nominados, no
espaço social verdadeiro – não é, na maioria dos casos, o
item primordial.”29

28
POUND, Ezra. O ABC da Literatura. São Paulo, Cultrix, 1982.
29
LIMA, Edvaldo Pereira. Páginas ampliadas – o livro reportagem como extensão do jornalismo e da
literatura. Campinas, Editora da UNICAMP, 1993. p.138.
Torquato Neto se coloca dentro desta perspectiva exatamente por levar
adiante uma subversão do uso, imprimindo um outro fim ao jornalismo –
como será desenvolvido mais adiante, a Geléia Geral é o resultado de um
bricolage composto com os fragmentos das explosões que o Anjo Torto da
Tropicália provocou ao longo de sua trajetória. O que o professor Edvaldo
Pereira Lima coloca em questão é a possibilidade do jornalismo assumir um
devir literário, investindo numa potência que o faça fugir dos eixos
convencionais para também ser trabalhado segundo um plano que o tome
como fato de linguagem. É no momento em que se reconhece uma ilusão
como tal que ela se desfaz – é assim que se “perdem as ilusões”. Camaleão ou
vampiro, o texto jornalístico que assume um devir literário passa para uma
outra modalidade. Nem jornalismo, nem literatura, mas ambos ao mesmo
tempo nas duas direções. Esse devir é o que desmancha as formas estáticas . É
uma força que nasce desse encontro e que arrasta os dois domínios para um
plano em aberto, como num deserto. O crítico Boris Schnaiderman define esta
relação da seguinte maneira:“em termos modernos, a literatura e o jornalismo
são vasos comunicantes, são formas diferentes de um mesmo processo”30.
Disto se deduz que são polos complementares, que se colocam nos extremos
da linguagem, e que, como tal, tocam-se na circularidade das relações que
estabelecem entre si. O fim de uma forma de escrita é o princípio da outra.

2.2. Experimentando limites

30
in LIMA, Edvaldo Pereira. Ibdem. p.139.
Homônima da música composta em parceria com Gilberto Gil, a Geléia
Geral foi a crônica do desencanto provocado na cena cultural brasileira pelo
acirramento da censura à liberdade de expressão na virada dos 60 para os anos
70. Nela estão as marcas desse processo de desencanto que levou Torquato
Neto ao suicídio na madrugada do dia 10 de novembro de 1972. Mas também,
ao mesmo tempo, a Geléia Geral foi o espaço de expressão da potência de
liberdade decorrente dessa mistura de materiaias nobres x pobres de que fala
Leminsky em alusão à estética da nova objetividade de Hélio Oiticica.
Tomando emprestado de Oiticica o lema tropicalista “seja herói, seja
marginal”, Torquato tentou explorar toda a tensão e contraste entre o
despojamento da linguagem jornalística e a aposta na sombra das palavras de
sua poesia. Sua poética trabalha não só essa tensão entre diferentes materiais
no plano do conteúdo, mas também a própria materialidade em si da
linguagem em contraponto ao discurso que se forma da articulação dessa
contraparte material. Tudo isto faz da Geléia Geral um caso singular na
história do jornalismo brasileiro – um caso único, uma dissonância no acorde
dos contentes.
A Geléia Geral tornou-se um símbolo da vontade de transgressão que
animou a agitação cultural de uma época e, por esta força que lhe é própria,
tornou-se também a inspiração de grande parte dos inconformismos que lhe
foram subsequentes.

“O caso Torquato, um dos líderes desse grupo,


certamente mobilizou toda uma geração. Seus textos,
reunidos e publicados após sua trágica morte no volume
Últimos Dias de Paupéria, foram por algum tempo lidos
como bíblia pelas novas gerações.”31

Exatamente por sua singularidade, marca de que o projeto em


“desafinar o coro dos contentes” foi cumprido à risca, a aura de marginalidade
buscada por Torquato Neto foi potencializada na recuperação histórica do
acontecimento que foi a sua coluna no jornalismo brasileiro. Essa força é
comentada por Carlos Alberto Massader Pereira:

“... Principalmente Torquato simboliza a experiência de


uma geração, num certo momento, frente à questão do
“desbunde”; especialmente, num contexto diferente
daquele dos poetas marginais. O “desbunde” simbolizado
por Torquato é mais dilacerador, destruidor, “ suicída”
mesmo, quando comparado ao desbunde vivido pelos
petas marginais, para quem a experiência já era de certa
forma mais “ conhecida” e já estava mais associada a
uma certa “ alegria”, a um certo “ espírito lúdico‟, que
surge no final dos anos 60. É claro que este raciocínio é,
num certo sentido, um pouco simplificador, no entanto,
acredito que exista aí a indicação de diferenças culturais
importantes, significativas.” 32

31
HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Impressões de viagem – CPC, vanguarda e desbunde: 1960-70. Rio de
Janeiro, Rocco, 1992. p.67-68.
32
PEREIRA, Carlos Alberto Messeder. Retrato de Época – Poesia Marginal anos 70. Rio de Janeiro,
FUNARTE, 1981. P. 95.
2.3 – Vitalidade para gerações seguintes

Além do suicídio, uma série de fatores acabou por associar o nome de


Torquato Neto a uma imagem que o coloca como precursor de toda e qualquer
marginalidade que lhe sobreveio. André Bueno define a posição de Torquato
em relação ao “desbunde” dos anos 70 e o fenômeno da poesia marginal:

“imagine um poeta que nem livro publicado tinha, que


deixou um corpo de poemas pequeno, algumas anotações,
nem vinte canções gravadas, marcar assim a geração
seguinte!”33

A Geléia Geral tornou-se nos 30 e poucos anos que se seguiram à sua


morte o receituário inspirador da vontade de transgressão das sucessivas
gerações de poetas, jornalistas, agitadores culturais, cinéfilos, compositores e
demais espécimes da fauna dos que não concordam com o coro dos contentes.
Na observação sobre Torquato Neto do também poeta Glauco Mattoso em seu
livro sobre poesia marginal:

“(...) se não foi o primeiro poeta marginal, foi um dos


primeiros a assumir esta postura e a jogar com o termo:
compôs Marginália II em parceria com Gil”.34

33
BUENO, André. Um poeta não se faz com versos in Antologia Prêmio Torquato Neto ano 1 – Diversas
manifestações da cultura alternativa década de 60-70.Rio de Janeiro, Centro de Cultura Alternativa / RioArte,
1984. p.138.
34
MATTOSO, Glauco. O que é poesia marginal. São Paulo, Brasiliense, 1981. P.22.
A coluna de Torquato Neto tornou-se também uma referência no
jornalismo cultural brasileiro pelo grau de liberdade presente na
experimentação com uma forma híbrida entre os limites do relato jornalístico
e a poesia. Torquato Neto inventa um crossover épico: menestrel, aedo,
jornalista – tudo num mesmo caldo, numa mesma geléia. Não publicou
nenhum livro em vida. Sua obra nasceu da compilação póstuma feita por sua
mulher, Ana Maria Silva de Araújo Duarte e pelo amigo Waly Salomão:
“Torquato, Neto – Os Últimos Dias de Paupéria”, que reúne anotações
pessoais de Torquato, poesias, letras de música, relatos em forma de diário
(escrito durante períodos de internação em hospitais psiquiátricos) e,
principalmente, o material publicado na coluna Geléia Geral, no jornal Última
Hora, de 19/08/1971 a 11/03/72.
Segundo o compositor Gilberto Gil35, Torquato Neto foi, junto com
Capinam e Caetano Veloso, um dos principais nomes que articularam o
programa estético do tropicalismo. Entender a posição que Torquato Neto
assume dentro deste movimento artístico é entender o plano sobre o qual ele
absorverá o jornalismo como um dos elementos constituintes de sua estética
particular. Toda a ambigüidade entre o novo e o arcaico, materiais nobres e
materiais pobres, referências vanguardistas e lixo da indústria cultural na qual
o tropicalismo apostou fazem parte da poética que Torquato Neto estendeu ao
jornalismo que praticou na Geléia Geral. Se a letra de “ Geléia Geral” foi um
dos principais manifestos do tropicalismo36, ao mesmo tempo seus versos
anunciam e definem definem essa extensão de uma poética que transborda

35
Depoimento de Gilberto Gil no documentário escrito e dirigido por Ivan Cardoso, “ Torquato Neto, O Anjo
Torto da Tropicália”, 1985, 35´.
36
“(...)Embora desencadeado num dos festivais da Record, com Alegria, Alegria de Caetano Veloso e
Domingo no Parque de Gilberto Gil, o principal manifesto tropicalista chama-se Geléia Geral, um poema de
Torquato Neto em cima de uma melodia de Gil orquestrada por Rogério Duprat(...)”. in MATTOSO, Glauco.
Op.cit.p21-22.
para o jornalismo: “um poeta desfolha a bandeira/ e a manhã tropical se
inicia/ resplandente, cadente, fagueira/ num calor girassol com alegria/ na
geléia geral brasileira; que o jornal do Brasil anuncia”. A bandeira que o
poeta desfolha é o próprio jornal que se abre como espaço a ser descoberto e
conquistado a cada edição, a cada manhã. “ Ocupar espaço” era a idéia
fundamental de sua poética:

“ Isso também tem a ver com a poesia, mãe de todas as


artes & manhas em geral; antes ocupar o espaço e logo
em seguida poetar conforme for. Na gaveta, baratas e
velharias. Poesia, não.” 37

A Geléia Geral foi um espaço de pura experimentação com a


permeabilidade do discurso jornalístico, de expansão de suas fronteiras.
Torquato poetava nas páginas do Última Hora praticando um texto no qual
fragmentos eram soldados num contínuo pela velocidade provocada segundo o
estilo de sua colagem de referências. A todo momento a Geléia Geral muda de
código, de registro, tornando-se um plasma estilístico amorfo, refratário a uma
definição rígida de gêneros. Esse procedimento de fusão de elementos
heterogêneos, a hibridização de discursos de origens heterogêneas da qual fala
Leminsky, fundamenta um procedimento básico de uma das artes que
Torquato mais amou: a montagem no cinema. O texto jornalístico é entendido
então como um composto de fragmentos, uma sucessão de planos a ser
composta pelo “poeta que desfolha a bandeira... na geléia geral brasileira que
o jornal do Brasil anuncia”.

37
Geléia Geral – “Filmes” 30/11/71.
2.4 – Poéticas do celulóide
Torquato Neto encarou sua máquina de escrever como uma moviola e
as palavras como fotogramas que, na aceleração do mecanismo que as
impulsiona, criam uma estética da fusão. Escritura-antimatéria, que atrai todos
os sentidos para uma indistinção assim como um buraco negro o faz - como na
estrela negra dos versos do poeta americano Robert Hunter: “ Dark star
crashes/ pouring its light into ashes”38. Escuridão que no cinema é o momento
no qual uma imagem se funde em outra. Torquato foi um cineasta das palavras
- um artesão dos lapsos imperceptíveis da sintaxe, e o jornal foi um dos
principais laboratórios onde este composto foi apurado. Cinema e jornalismo
guardam relações quanto ao seu aspecto coletivo de seu processo de produção
e quanto ao elemento maquínico que trabalha com um desenrolar: as rotativas
são como os carretéis de um projetor ou de uma câmera. Tudo isto é expresso
quando, durante o tempo que passou em Paris, Torquato escreve:

“ Tom Jobim me disse que é impossível o otimismo,


porque simplesmente não dá mais pé, mas ele fala de
conversas e eu estou discordando porque estou falando de
cinema e o cinema nem é vida nem realidade, é verdade,
não sei quantas vezes por segundo.”39

Essa extensão de uma poética do celulóide para o papel jornal já havia


sido colocada em prática no começo do século pelo poeta bahiano Pedro

38
“ A estrela escura explode/ espalhando sua luz em cinzas”.
39
SALOMÃO, Waly e DUARTE, Ana Maria Silva de Araújo (org). Torquato Neto – Os Últimos Dias de
Paupéria. São Paulo, Max Limonad ,1982. p319
Kilkerry40 e suas Quotidianas-Kodaks, publicadas no Jornal Moderno em
Salvador41. A metáfora da fotografia está para Kilkerry assim como o cinema
está para Torquato Neto. Captar o real é, de certa maneira, apropriar-se de
uma porção desse real, logo, é projetar-se sobre ele, delimitá-lo segundo os
limites da própria imagem que se projeta. Grande fusão que alimenta todas as
outras – fusão que coloca como limites da subjetividade o campo do real como
um todo. O real passa a ser desejado, investido pelo desejo de quem se projeta
nele. Essa é a verdade que pulsa “não sei quantas vezes por segundo” no
cinema. Esta é a verdade que pulsa nas últimas edições do Última Hora em
que a Geléia Geral esteve presente.
Pulsação. Há isto no cinema tanto quanto num jornal. Ambos são
periódicos. E dessa pulsação estabelece-se um sistema de circulação que é o
fundamento e o fim dessa pulsação, assim como acontece com o coração e o
sistema circulatório. Um batimento cardíaco é um quadro-fotograma tal como
a edição de um jornal, e o sistema circulatório que é alimentado por essa
pulsação cumpre o mesmo estatuto da circulação do celulóide que passa de um
carretel para outro da câmera de acordo com a mesmo processo pelo qual um
jornal é concretizado no momento em que o papel se desenrola nas rotativas
para ganhar a circulação segundo a sua distribuição 42. Um vampiro nada mais
faz do que se apropriar dos fluxos que percorrem periodicamente um sistema
circulatório.Isto coloca Torquato Neto em contigüidade com a obra
“Apropriação de circuitos”, do artista plástico Cildo Meireles, que escrevia
mensagens anti-imperialistas em garrafas de coca-cola vazias, símbolo maior
dessa ideologia de consumo imperialista americana. Quando essas garrafas

40
Torquato Neto reproduziu na íntegra uma “Quotidiana Kodak” de Kilkerry na Geléia Geral do dia
19/02/1972 . Sua intervenção acontece apenas numa nota final, na qual recomenda a leitura do livro.
41
CAMPOS, Augusto de. ReVisão de Kilkerry.São Paulo, Brasiliense, 1985.
42
Aqui circulação e periodicidade são ententidas como conceitos básicos da “ ciência periodística” de Otto
Groth.
voltavam para seu circuito original de distribuiçãoi e eram cheias novamente,
a cor escura e opaca do refrigerante tornava-se o catalisador da mensagem do
artista, revelando o que sobre a transparência do vidro era ilegível.
Em toda idéia de pulsação subjaz um conceito de tempo. O próprio
termo “ jornal” nasceu como categoria de trabalho vinculada ao tempo. Um
jornal era o indivíduo que ganhava seu salário no fim da jornada de um dia de
trabalho. O jornalismo e a passagem do tempo são termos intimamente
interligados. Seria possível então dentro do jornalismo uma recherche em
busca desse tempo que passa? Este aparenta ser o programa estético assumido
por Torquato Neto – programa estético que o coloca, obviamente, em relação
ao programa de Proust, a partir da leitura que o filósofo Gilles Deleuze realiza
do mesmo. Se na recherche proustiana a preocupação é em recuperar o tempo
através da arte 43, na Geléia Geral e em toda a obra de Torquato a preocupação
principal será em experimentar efeitos de aceleração – efeito que é conseguido
com o recurso do anúncio, pelo qual há uma apropriação do tempo pela escrita

43
O pensador francês encontra um regime de quatro estatutos diferentes do signo com os quais Proust
compõe sua obra monumental. Em primeiro lugar Deleuze inverte o senso comum de que a Recherche dirige-
se para o passado. Para ele, tudo nessa obra está em devir porque ela dirige-se para o futuro. A Recherche
para Deleuze é o plano e o itinerário de Proust na constituição de „um aprendizado de um homem de letras”.
Como tal, segundo Deleuze, Proust quer então desenvolver os signos de sua escrita até o momento em que
eles possam ser considerados signos da arte. Nesse processo, o escritor começa por trabalhar os signos da
mundanidade – este é o primeiro regime de signos que Deleuze encontra em Proust. Tais signos são os que os
salões e os encontros da alta sociedade parisiense emitiam: o coquetismo, etiqueta e tudo mais que remetesse
a essa ordem de instituições e seus comportamentos preescritos. No aprendizado de Proust parte-se deste
regime de signos para experimentá-los e testá-los; Proust ainda não chega à arte através deles porque são
vazios, fruto de uma convenção social. Dessa maneira Deleuze estabelece ainda mais dois regimes de signos
na obra de Proust antes de chegar até os signos da arte: signos do amor e signos da memória sensível
(madeleine). A última categoria de signos da arte só é atingida quando a obra é acabada, isto é, o tempo é
redescoberto na visão de conjunto de todos os outros regimes de signos e de como eles articularam-se para
compor a obra. É aí que está o aprendizado de Proust do qual nos fala Deleuze. “Proust e os Signos” é uma
obra de classificação dos tipos de signos com os quais esse escritor francês trabalhou. Deleuze atribui à essa
característica de ser uma classificação uma inspiraçao em Pierce, o fundador da semiótica, que afirmava ser
esta uma ciência de classificação dos tipos de signos. Com relação à Geléia Geral, pode-se também entendê-
la, sob certo aspecto, como um aprendizado, nos termos em que Deleuze assim o define em relação a Proust.
Sendo uma experimentação constante e trabalhando com signos vazios das amenidades que lhe davam o
conteúdo da Geléia, Torquato Neto desenvolveu esses signos até dar-lhes um estatuto de signos da arte.
em seu acontecimento. Há a idéia de um domínio do tmepo a partir de sua
aceleração, direcionando o processo para o fim marcado e anunciado. A todo
momento Torquato anuncia o seu fim - seja em suas letras, em seu diário ou
em sua coluna no Última hora. “ Enquanto seu lobo não vem”, “parto, sei que
não vou voltar” , “ o princípio está no fim” e toda uma série de anúncios,
inconscientes ou não, que já adiantavam o desfecho pelo qual Torquato Neto
resolveria seus conflitos com a supressão de si mesmo. Essa prática já havia
sido definida na letra da Geléia Geral: “... na geléia geral brasileira/ que o
jornal do Brasil anuncia.” Jornal como espaço de anúncios. Como mapa para
territórios de um tempo que virá. Um tempo que tem como princípio o seu
próprio fim.
3. – Da literatura como linha de fuga do
jornalismo
Ao considerar os elementos que prefiguram um redirecionamento dos
valores que norteiam a prática jornalística, impõe-se a necessidade de um
rompimento, de um corte epistemológico. À inflexível inspiração positivista e
naturalista44 que subjaz ao modelo de jornalismo gestado na evolução do
capitalismo nos últimos séculos e da aplicação de sua lógica sobre a esfera da
produção de bens culturais - modelo que foi a condição primeira desta
evolução - colocam-se problemas de outra natureza, com variáveis e
interrogações que introduzem nestas discussões o questionamento do papel
que o próprio jornalista desempenha na relação entre sua prática e a sociedade
- dimensão ética por excelência.
Isto não significa que esse plano de discussões não tenha sido antes
considerado, até porque essa é a questão principal que serve de fundo a
qualquer estudo nesta área. O que demonstra ser a principal característica
dessa linha aqui percorrida é que tal questionamento surge da necessidade de
introduzir novos elementos que permitam a construção de um perfil desta
prática compatível com o estatuto científico assim como este se coloca frente
aos problemas epistemológicos que lhe são interiores. Dessa maneira, o
jornalismo pode ser considerado como uma modalidade de conhecimento, e
que guarda uma relação fundamental com os valores fixados por determinado
paradigma científico.
Assim como pode ser observada esta relação entre o positivismo do
modelo científico do século passado e a maneira pela qual o jornalismo se
configurou durante a eclosão das forças do momento histórico que Lucaks

44
LEMINSKI, Paulo. Forma é poder. São Paulo, Folhetim, 04/07/1982: “O discurso naturalista éa projeção
do jornalismo na literatura. [...] O discurso jornalístico é discurso automatizado. A automatização da
linguagem jornalística nasceu de razões práticas, decorrentes do caráter de NEGÓCIO que o jornalismo teve
desde o início[...]”
chamou de “capitalização do espírito” 45, também é possível o deslocamento
dessa problematização para um momento posterior, no qual historicamente se
determinam os prolongamentos destas forças. Por “forma de conhecimento”
tem-se em vista exatamente o acento sobre o aspecto formal que tais valores
determinam - seus contornos e limites reconhecíveis. Tem-se a possibilidade
então de considerar o jornalismo como “forma” de conhecimento, isto é, uma
relação de elementos que articulados resultam em dada expressão
reconhecível. A literatura entra aqui como o que escapa a esta determinação
formal, pois a todo momento o que se coloca na literatura, segundo Gilles
Deleuze, é o próprio “problema de escrever”:

“Escrever não é certamente impor uma forma (de


expressão) a uma matéria vivida. A literatura está antes
do lado do informe, ou do inacabamento, como
Gombrowicz o disse e fez. Escrever é um caso de devir,
sempre inacabado, sempre em via de fazer-se, e que
extravasa qualquer matéria vivível ou vivida. É um
processo, ou seja, uma passagem de Vida que atravessa o
vivível e o vivido.”46

É pela relação que o jornalismo entretém com a literatura que advém a


introdução de novos elementos ao jornalismo e, no sentido oposto, com
relação ao discurso científico, que esta mesma prática sedimenta valores
estabelecidos. Seguindo esse pressuposto, qualquer “corte” ou ruptura
paradigmática do jornalismo passa necessariamente pela relação que este

45
LUKÁCS, Georg. Ensaios sobre literatura. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1965.
46
DELEUZE, Gilles. Crítica e Clínica. 34, São Paulo, 1997. P11.
guarda com a literatura. O caráter de inacabamento da literatura ao qual se
refere Deleuze é o que nesse contexto a utilização do termo “poética” ,
relacionando-o ao jornalismo - poética do grego poiesis: literalmente “o
fazer”.

3.1 – Forças centrípeta e centrífuga – “do lado de


dentro”, “do lado de fora”

Existem portanto duas forças interagindo entre os fluxos e refluxos que


hora arrastam o jornalismo para uma fundamentação científica e hora
colocam-no em confronto com a literatura. Essa força que provém do âmbito
científico da verdade, ou seja, o que lhe é designado como o resultado de um
método aplicado à observação de determinados fenômenos, carrega-o dos
valores sobre os quais historicamente é composta sua “imagem” enquanto
forma de conhecimento – o que Thomas Khun 47 chama de paradigma. É a
linha das territorializações que atravessa o campo do jornalismo. Essa linha
convencional e territorializante se mostra como a sucessão de elementos
discursivos que operam uma política de silenciamento no seio do discurso
jornalístico: a determinação das formas estabelecidas de expressão que serão
assimiladas em detrimento de outras estruturas que não se deixam reduzir
quanto à produção de sentido.

“No discurso jorno/naturalista, o Poder, afirma, sob as


espécies da linguagem verbal, a estabilidade do mundo.
DE UM CERTO MUNDO, suas relações e hierarquia. O

47
KHUN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo, Persectiva, 1976..
discurso, esse em sua aparente neutralidade, é ideológico.
Sua estabilidade é catártica: nos consola e engana com a
imagem de uma estabilidade do mundo. Ora, trata-se
apenas DE UMA CERTA ESTABILIDADE. Uma
estabilidade relativa a um determinado mundo, à visão do
mundo de uma dada classe, muito bem localizada no
tempo e no espaço.”48

De certa maneira, o jornalismo tradicional, isto é, aquele modelo


resultante desta linha de territorializações, é o protocolo de uma ordem do
discurso estabilizada pela ação política de interdição ao “não dito”, ao que o
silêncio dentro da linguagem tem a dizer. O silêncio definido desta maneira é
a dimensão fundamental de toda a linguagem, isto é, a sua virtualidade, ele é
proscrito dos limites da forma determinada pela territorialização do discurso
jornalístico. Forma esta que é aplicada segundo seu modelamento a partir do
discurso científico. Este silêncio é calado, interditado. Dentro desse quadro, o
texto jornalístico, mesmo o sensacionalista, é fundamentalmente um texto
apolíneo, isto é, expurga qualquer tragicidade de seu interior. Como Leminski
bem o define, jornalismo é linguagem automatizada. Não há espaço para um
caos, pois este é banido dentro da tradição ocidental 49. Isto não diretamente
relacionado ao acontecimento em si que é relatado, mas à própria forma deste

48
LEMINSKI, Paulo. Forma é Poder. São Paulo, Folhetim de 04/07-1982.
49
AUERBACH, Erich. A cicatriz de Ulisses. In Mimeses – A representação da realidade na literatura
ocidental. São Paulo, Perspectiva, 1994. Neste ensaio Auerbach demostra como já para os gregos o
sentimento trágico era algo que deveria ser conjurado através da linguagem em sua potencialidade catártica. A
narração para os gregos, segundo este autor, é uma forma sempre no presente. Quando algum elemento é
relacionado à narração, passa-se então à sua descrição em tempo presente, jamais colocando-o na perspectiva
de um tempo que escapasse à linguagem e que deixasse dessa maneira elementos ocultos em relação ao que
foi narrado. O mundo grego era um mundo estável. Segundo Auerbach, a ideia de qualquer tragicidade que
por ventura pudesse desestabilizá-lo a partir do interior da linguagem era insuportável. Daí toda arte ser
trágica, no sentido de conjurar essa dimensão trágica através da catharsis, ou seja, da purgação.
relato, como fato de linguagem, que em sua interioridade estabiliza qualquer
força que possa desiquilibrar o efeito de verdade operado pela forma de
expressão. Ressalta-se o termo “apolíneo” por essa recorrência à imagem de
uma claridade completa, totalizante. É o predomínio de uma imagem total, de
superexposição.
O jornalismo, assim como a própria lógica midiática tem seus alicerces
nesse limite de uma visibilidade total. Não há, em nenhum momento a
consideração das zonas não-visíveis de um acontecimento. Disto decorre que
o resultado da prática jornalística segundo estes valores acarreta num
aplainamento dos desvãos e acidentes que fundamentam o real. Ligada em
essência à uma concepção de tempo linear, a prática jornalística produz uma
representação do mundo como se este fosse a instância geometrizada segundo
um plano euclidiano. A página do jornal impresso é uma metáfora desta
operação de desgaste das rombosidades dos acontecimentos. Ora, por essência
também, o ser do real é segundo seu caráter de multiplicidade 50. Uma ordem
apolínea que destrói por projeção todas essas zonas opacas, de
indiscernibilidade, que formam as sombras de um acontecimento, também age
como conjuração do trágico próprio ao acontecimento. Então não há liberdade
sem acaso - esta é a sua necessidade, a necessidade de uma afirmação do
trágico, como propõe Clement Rosset: aceitação do real 51. Se os
acontecimentos decorrem das misturas dos corpos, de acordo com a leitura dos
estóicos feita por Deleuze em Lógica do Sentido 52, não há como escapar da

50
Para Gilles Deleuze e Félix Guattari a filosofia é uma “teoria das multiplicidades”. Conhecer o real segundo
este princípio é afirmar o múltiplo, sustentar que algo sempre escapa a uma recognição.
51
ROSSET, Clement. Lógica do pior. Rio de Janeiro, Espaço e Tempo,
52
DELEUZE, Gilles. A lógica do sentido. São Paulo, Perspectiva, 1974. Nesta obra Deleuze parte da divisão
estóica em duas modalidades de seres – os corpos com suas qualidades físicas e seus estados de coisas
correspondentes e uma segunda modalidade, os acontecimentos, incorporais e que não tem uma existência
concreta, mas uma insistência: „não se pode dizer que existam, mas antes, que subsistem ou insistem, tendo
este mínimo de ser que convém ao que não é uma coisa, entidade não existente”. p5.
constatação de que, enquanto prática, a princípio, voltada a uma tomada do
real, o jornalismo, tal como é desenvolvido segundo a linha de suas
territorializações de fundo positivista, é uma leitura míope do mundo, ou, pelo
menos, investida de um certo astigmatismo, já que não consegue distinguir as
diferenças de profundidade e as gradações que vão da claridade à sombra que
envolve e determina os contornos de um acontecimento. Na planificação
euclidiana de uma página de jornal qualquer volume é abolido, qualquer
tragicidade que o acontecimento trouxesse em si, proscrita pela instituição de
uma ordem, de uma forma, logo, da afirmação de um poder formal 53.
Sob esse aspecto, o discurso jornalístico é uma máquina de vácuo:
extrai todo o ar, o reino molecular, que envolve um acontecimento, isolando-o
numa situação de laboratório. Tal procedimento encontra ecos com a
reprodutibilidade de um “fato” científico, ou seja, na sua reprodução induzida
pelo estabelecimento de condições gerais equivalentes. Mas se no vácuo o
som não propaga, não há como encontrar uma proliferação de vozes no
ambiente em que essa máquina trabalha. É pelo vácuo ilusório da equivalência
entre os acontecimentos, como se fossem fatos criados em laboratório, que se
dá o acabamento final do jornalismo como uma forma de expressão imposta a
uma matéria vivida.
Neste sentido, seguindo o pensamento de Deleuze, o jornalismo seria o
contrário, o avesso da literatura. A imposição de um achatamento dos
acontecimentos tal como o jornalismo exerce de maneira euclidiana é o
protocolo da imposição de uma forma ao vivido e ao vivível. Reafirmar isto na
prática é também banir a colocação do “problema de escrever”, o que mais
uma vez demonstra uma linha de divergência entre jornalismo e a literatura.
Ao contrário, toda vez que a prática jornalística coloca a si mesma esta
53
LEMINSKI, Paulo. Ibdem.
“questão”, temos então um meio por onde brota uma poética, de um “fazer-se”
- auto-referência que retoma a dimensão das sobras que perpassa toda a
linguagem.
À sobrecodificação do discurso operada pelos manuais de redação,
máquinas de vácuo, a experiência que foi a “Geléia Geral” nos sugere a
contraposição de procedimentos poéticos tais como a montagem e a elipse. A
recuperação do silêncio como princípio de uma poética instalada no
jornalismo. Isto coloca Torquato Neto como um caso que escapa, que rompe
com a estabilização na produção de sentido própria ao modelo jornalístico de
procedimentos em relação à linguagem. Daí seu caso inscrever-se numa
poética do jornalismo. A “Geléia Geral” então pode ser considerada uma
experiência, um itinerário da construção de uma poética que toma o
jornalismo como um de seus elementos constituintes. É nessa perspectiva que
o objeto de estudo aqui tratado, o caso específico de Torquato na imprensa
brasileira, permite abordar a relação jornalismo-literatura - tema básico nas
discussões sobre epistemologia do jornalismo - a partir da dimensão desta
última que mais parece se distanciar do jornalismo. Daí a configuração da
“Geléia Geral” como um caso limite no jornalismo brasileiro. Sob este ponto
de vista, a coluna de Torquato Neto é, em termos também nietzscheanos, a
manifestação de um gênio um intempestivo, de uma força ativa.
Dessa maneira desfaz-se o desconforto, ou pelo menos é imobilizada a
linha que pode circunscrevê-lo a uma visada reativa, tomando a Geléia Geral a
partir de suas forças constuitivas, pelo que significa seu acontecimento no
jornalismo brasileiro em termos de inventividade. Tal desconforto pode ser
encarado então como a tensão que precede à entrada em cena. O silêncio como
aquele que se estabelece no momento em que as cortinas sobem. Desconforto
trágico, porque é o indício do afrontamento com a própria força dos
acontecimentos – o enfrentamento das vozes surdas da linguagem que ficam
para trás dos holofotes, na escuridão viva que é o limite do palco onde os
sentidos encenam seu drama.

3.2 – Linhas de fuga

Essa posição que aqui assumida se deve a rejeição de uma mistificação


de seu suicídio - como escreve André Comte-Esponville, “do suicídio não há
nada a dizer”54. E se há algo com que se pode encerrar logo de partida esse
fato intransponível diretamente relacionado ao nome de Torquato Neto, isto
está expresso no livro de Deleuze em conjunto com a jornalista Claire Parnet,
quando ambos escrevem sobre a devida prudência a ser tomada com as linhas
de fuga, pois estas podem tornarem-se uma paixão pela abolição: duas formas
de niilismo, uma do sujeito que culmina com o suicídio (caso expresso de
Torquato) e outra da esfera política coletiva, os fascismos que invertem o polo
revolucionário numa nova ordem totalitária55:
“[...] Fugindo do fascismo, nós encontramos concreções
fascistas sobre a linha de fuga. Fugindo de tudo, como
não reconstituir tanto nosso país natal quanto nossas
formações de poder, nossos álcoois, nossas psicanálises e
nossos papais-mamães? Como fazer para que a linha de
fuga não se confunda com um puro e simples movimento
de autodestruição, alcoolismo de Fitzgerald,
desencorajamento de Lawrence, suicídio de Virgínia

54
COMTE-SPONVILLE, André. Bom dia angústia. São Paulo, Martins Fontes, 1997.
55
DELEUZE, Gilles e PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo, Escuta, 1998. p.52-53.
Woolf, triste fim de Kérouac. A literatura inglesa e
americana é atravessada por um processo sombrio de
demolição, que arrasta consigo o escritor. Uma morte
feliz? Mas é justamente isso que só se pode aprender na
linha de fuga, ao mesmo tempo em que é traçada: os
perigos que se corre, a paciência e as precauções que é
preciso Ter, as retificações que é preciso fazer todo o
tempo para livrá-la das areias e dos buracos negros.”

A prudência de que falam Deleuze e Parnet é o devido cuidado de se


colocar sobre uma linha de fuga mas dela saber retornar com algo novo - não
entrar numa deriva absoluta sobre as linhas de fuga. Pode-se entender linha de
fuga como uma linha de “desterritorialização”, isto é, a um movimento de
rompimento dos limites dados, um apagamento das fronteiras que instituem a
separação entre domínios heterogêneos:

“Uma fuga é uma espécie de delírio. Delirar é


exatamente sair dos eixos (como “pirar” etc.). Há algo de
demoníaco, ou de demônico, em uma linha de fuga. Os
demônios distinguem-se dos deuses, porque os deuses têm
atributos, propriedades e funções fixas, territórios e
códigos: eles têm a ver com os eixos, com os limites e com
cadastros. É próprio saltar os intervalos, e de um
intervalo a outro. [...]
[...] Sempre há traição em uma linha de fuga. [...]
[...] Trai-se as potências fixas que querem nos reter, as
potências estabelecidas da terra.”56

Tal linha de fuga é determinada por uma força centrífuga presente na


linguagem, não-sentido, non sense, não dito, modalidades do silêncio como
dimensão fundante de toda a linguagem assim como o define Eni Puccinelli
Orlandi57: condição essencial para que algo seja dito.

“O silêncio é assim a “respiração” (o fôlego) da


significação; um lugar de recuo necessário para que se
possa significar, para que o sentido faça sentido. Reduto
do possível, do múltiplo, o silêncio abre espaço para o
que não é “um”, para o que permite o movimento do
sujeito”.58

O silêncio é o fundo de toda a linguagem tal como toda palavra e toda


proposição coagula desse fundo uma forma determinada. Ao atingir esse
silêncio fundante, os sentidos deslizam, tornam-se flexíveis, móveis. Mesmo
as formas recortadas desse fundo de silêncio remetem ao não dito que lhes deu
origem, à força extra-linguagem que as localiza na linguagem, o que lhes
imprime o caráter de abertura que lhes define. Uma modalidade deste silêncio
é a elipse com a qual trabalhava profusamente Torquato Neto. Dessa maneira,
o sentido em sua escrita é trabalhado em sua força constituitiva.

56
DELEUZE, Gilles e PARNET, Claire. Ibdem. p. 53-54.
57
ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio – no movimento dos sentidos. Campinas, Ed. da
Unicamp, 1995.
58
Ibdem.p. 13.
Impõe-se então o imperativo de ler a produção de Torquato Neto na
Geléia Geral como um caso extremo, ou seja, tomá-lo como um momento em
que o jornalismo brasileiro se viu frente a algo não classificável, não
identificável ao padrão e normalidade da prática. Isto não significa um mero
aprofundamento de caráter biográfico, senão o reconhecimento da linha
traçada por Torquato Neto em sua trajetória pela página impressa.
Certamente há uma orientação vertical em todo estudo de caso. O
aprofundamento em uma singularidade é uma das especificidades deste opção
metodológica, mas, no entanto, onde se chegaria se de saída se assumisse uma
posição inversa à esta? - operado o recorte do objeto, logo se passa então a um
trabalho de expansão de seus limites, à observação de sua evolução quanto às
suas tangências e às contigüidades que lhe advém. Esta horizontalidade
concerne ao plano teórico dos conceitos de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Na
filosofia das multiplicidades que é delineada desde o “Anti-Édipo” até “O que
É a Filosofia” trabalha-se sempre a partir desta opção. O próprio conceito de
rizoma nasce como uma diferença radical do modelo de pensamento que
Deleuze e Guattari chamam de “arborescente”, ou seja, de bifurcações
sucessivas em função de um tronco originário 59. Portanto, a resultante de tal
atitude metodológica pautada por esta horizontalidade é traçar um perfil não
de uma personificação, de um sujeito ou autor recortado e estancado dos
fluxos que o arrastam, mas buscar, aí sim, uma subjetividade formada no
cruzamento de várias vozes.
Mas um caso é sempre específico, particular, não obstante seja uma
multiplicidade também, logo é nomeado e localizado: Torquato Neto e sua
coluna no Última Hora carioca, “Geléia Geral”. O “corpus” torquatiano é

59
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix. Mil Platôs Vol. 1. Rio de Janeiro, 34, 1995. p.11-37. “Um rizoma
é uma antigenealogia”.
formado quase que inteiramente pelo material “Últimos Dias de Paupéria”,
que o amigo e também poeta Waly Salomão e a Ana Maria Duarte Araújo,
então mulher de Torquato, organizaram com o material que sobreviveu de sua
passagem pelo jornalismo, como também de poesias e relatos escritos durante
as internações pelas quais Torquato Neto passou até sua morte. A Geléia Geral
começa em 19 de agosto de 1971, com “Cordiais Saudações” endereçadas ao
leitor do Última Hora carioca. De 1971 até meados do ano seguinte Torquato
Neto não poupou fogo e este rendeu. Da bandeira levantada em defesa do
cinema marginal de Rogério Sganzerla e Júlio Bressane, até o ataque amplo e
frontal ao próprio público com uma chamado como “Alô Alô Idiotas”, sua
coluna pode ser lida como uma crônica do desespero pós-tropicalista.
Mas a “Geléia Geral” também sugere outra degustação, ou melhor,
exige um exercício de fluidez. Torquato Neto tornou-se, por vontade própria,
ou seja assumiu o vínculo de sua própria figura à imagem mítica do vampiro
depois de atuar no filme “Nosferato no Brasil”, rodado em super-8 por Ivan
Cardoso. Seguindo essa imagem a qual Torquato reiteradamente utilizava para
tratar a si mesmo e para explicar o programa que dirigia sua escritura, tem-se
que todo vampiro é um senhor dos fluxos - quer seja o fluxo do sangue das
vítimas, quer seja o fluxo referente às metamorfoses, ao devir-animal de todo
vampiro. Há de se tomar então o cuidado necessário para jamais estancar essa
fluidez - buscar seguir a linha traçada por todas as metamorfoses, logo, seguir
um fluxo de transformações constantes. Não há como entendê-lo a partir de
uma imagem estática, posto que um vampiro não tem imagem de si 60 - jamais
tem seu reflexo captado por um espelho. As metamorfoses então não são uma
mera proliferação de imagens - elas são os signos de um devir. Não há

60
ROSSET, Clement. O real e seu duplo. Porto alegre, LPM, 1984. “Um vampiro não tem duplo, pois ele é o
duplo de si mesmo”. P.25-51.
imagem alguma em nenhum espelho, apenas uma intensidade instável que ao
transformar-se em algo pode, ao mesmo tempo, transformar quem dela se
aproxima no intuito de reconhecer uma imagem fixa. Mas se não há imagem
fixa, não há contornos, somente a força que transforma uma imagem noutra.
Que isto então seja tomado como uma primeira pista na busca do vampiro
Torquato Neto61.

3.3 – Rizoma: hibridização códigos heterogêneos

Geléia Geral: plasma amorfo: escrita refratária à definição de um


gênero. O que é singular, logo o que pode definir a peculiaridade fundamental
para um estudo de caso, é que, na relação jornalismo-literatura, Torquato Neto
colocou-se sobre o hífen. Ao se estudar a poética instalada por Torquato no
jornalismo não há como escapar da consideração de uma zona de
indiscernibilidade, de um espaço de hibridização entre duas práticas, entre
dois exercícios distintos da escrita. Colocar-se sobre uma fronteira é colocar-
se sobre uma terra devoluta, um espaço de indistinção, como o que é
explorado no vídeo sobre as fronteiras na Amazônia brasileira dirigido por
Carlos Nasser, e que tem como protagonista Waly Salomão, amigo de
Torquato Neto.
A caracterização da Geléia Geral então define-se por esse amálgama de
gêneros e formas distintas de escrita. Não mais, portanto, jornalismo-
literatura, como se o hífem fosse um sinal de subtração, mas sim, jornalismo E

61
O trabalho de demolição das potências fixas de que falam Deleuze e Claire Parnet. Ver nota anterior nº 31.
literatura. O conjuntivo marcando um agenciamento entre os dois campos, ou
ainda, entendido também como um símbolo matemático de pertença.
Essa síntese conectiva é própria de toda uma linha que perpassa desde o
movimento da tropicália, misturando materiais nobres x materiais pobres até o
cinema marginal de “O Bandido da Luz Vermelha”, que sobrepunha uma
narrativa paródica da linguagem sensacionalista do rádio a imagens montadas
de acordo com referências ao cinema experimental de Goddard e da novelle
vague. Logo, o procedimento pelo qual Torquato Neto faz a junção de
jornalismo E literatura segue a mesma linha constituitiva. E por esta região
que irrompe o germe de sua poética. A paródia, antes de tudo, fundamenta
uma estética da apropriação, e Torquato Neto trouxe do tropicalismo e do
cinema marginal a radicalidade deste procedimento como marca fundamental
de sua poética.
Se Torquato Neto é por definição um gênio intempestivo, isso o coloca
a par de figuras que marcaram a literatura e a poesia pela manifestação dessa
mesma natureza: das convergências de um Rimbaud, Lautreaumont,
Souzândrade, Lima Barreto, Artaud e todo um rol de nomes que colocam-se
como verdadeiros acontecimentos dentro da literatura . Assim como estes, há
também nos escritos de Torquato Neto um apagamento de fato e de direito do
sujeito em função do nascimento da obra. Assim como Isidore Ducasse
(Lautreamont), Torquato Neto também é uma daquelas figuras literárias das
quais pouco se sabe sobre suas vidas. “Somente através de sua obra é que
podemos imaginar o que foi sua alma”, escreve Bachellard em sua obra
dedicada à Lautréamont. No caso de Torquato Neto há um fator decisivo na
constituição desse registro (literário): o que mais tarde veio a compor a maior
parte de sua obra foram os artigos que publicou no Última Hora. Portanto,
para se entender um pouco sobre a alma desse vampiro é necessário que se
considere a prática do jornalismo. A discussão que aqui se coloca parte da
busca dos elementos próprios de uma literariedade que por vezes invade esta
prática - a conjunção jornalismo E literatura tomada a partir de um ponto de
vista que permita atingir o estrato sobre o qual uma prática de escrita torna-se
outra.

3.4 – Ocupar Espaço

Os textos da “Geléia Geral” foram em sua época a crônica da barra-


pesada pós-AI5. Na composição política asfixiante da época entraram todos os
elementos necessários para o envenenamento cultural do país. A doutrina da
segurança nacional prescrevia um regime baseado em bocas fechadas a
qualquer custo: mordaças de todos os tipos, para todas as situações - da
interdição à livre expressão pela instituição de uma censura até o inferno
aberto na carne pela técnica dos torturadores em seu ofício de extração de
palavras dos corpos. Diante desta paisagem política, a maneira pela qual
Torquato Neto estreitou os limites entre a literatura e o jornalismo não foi
meramente uma opção estética. A “Geléia Geral” foi uma experiência de
implantação de uma poética dentro do jornalismo, acarretando com isto na
produção de uma forma híbrida, de um texto fugidio à decantação dos gêneros
- um texto jornalístico desterritorializado pela literatura: opção de “ocupar
espaço”, invasão de terras devolutas, de terras de ninguém. A abolição de
fronteiras e demarcação de novos territórios como procedimento a fim de
escapar a uma política de silenciamento, de interdição à circulação de
discursos com potencialidade para romper com a “norma” estabelecida por
uma censura instituída - sobrecodificação ainda maior rebatida sobre o
estatuto já sobrecodificado da prática da escrita no jornalismo 62.
Assim se pode entender o processo desencadeado por Torquato:
“ocupar espaço” entendendo por “espaço” o que está entre as coisas, entre as
categorias, entre os gêneros, entre as palavras - o que é independente,
devoluto, sem pertença: um espaço de manifestação das forças que arrastam e
transformam qualquer generalização. O hífen de um substantivo composto.
Nenhuma estabilização de significados, daí o rompimento com a „norma‟, daí
sua poética instalada dentro do jornalismo.
Tais forças são assumidas por Torquato de maneira que a guerrilha
deflagrada pela Geléia Geral tem seu ponto de partida neste espaço
entrementes – um espaço marginal por definição. A literatura torna-se
jornalismo, assume uma linhade devir nesta direção, jamais arremedar ou
imitar o jornalismo. É apenas umacontecimento, um artifício, um recurso
próprio ao vampiro: tornar-se. O jornalismo torna-se literatura: toda edição é
uma morte, signo pleno do tempo que condena a prática ao eterno recomeço,
assim como no mito de Sísifo, condenado a empurrar uma pedra colina acima
por ter enganado a Morte. Um vampiro é um morto-vivo, uma aporia, um
paradoxo pelo qual se afirma a vida e a morte numa mesma manifestação,
indissociadas.

62
CÉSAR, Ana Cristina. Escritos no Rio. Rio de Janeiro, Editora UFRJ e Brasiliense, 1993. A poeta Ana
Cristina Cesar escreve um trabalho acadêmico sobre “Literatura Marginal e Comportamento Desviante”, em
1979, no qual fala sobre Torquato Neto. É curioso como neste trabalho (p.121-134) há uma apropriação direta
do texto de Heloisa Buarque de Hollanda (op.cit p.69-70). Na mesma coletânea de seus texto também está um
de 1977 em colaboração com Ítalo Moriconi Jr. – “O poeta fora da República – O escritor e o mercado”, no
qual é trabalhado o tema do poeta como marginal: “Platão expulsou o peta da República. O poeta é inútil:não
governa, não legisla, não guerreia, não fabrica utensílios para a felicidade cotidiana, não faz serviços de
interesse público nem dá aulas de virtude. O poeta é arredio ao pensamento racional e à verdade. O poeta é
um sedutor. Um homem que fabrica simulacros. Prove-se a utilidade da poesia e elaserá admitida na orde e
progresso do Estado. Até prova em contrário o expurgo está consumado”. (p.97)
3.5 – Uma desterritorialização absoluta

O jornalismo praticado por Torquato Neto sobreviveu durante a asfixia


ditatorial porque permitiu-se ser vampirizado pela literatura, por sua poética,
transformou-se em seu igual por natureza – uma linguagem “carregada” de
sentido dada a construção fragmentária de seus textos que fogem a qualquer
definição de texto jornalístico e que trazem em si um regime de produção de
sentidos em aberto, como observa André Bueno:

“ dois minutos de teoria: o trabalho dos chamados


formalistas russos, teóricos da literatura, lançou o
conceito de estranhamento ligado ao conceito de
dificuldade da forma (ligada à intensidade e à duração da
percepção, para tentar conceituar relações novas entre o
produtor e seus leitores, ligados pela linguagem).
aconteceu que, nas academias, esse conceito tornou-se
morto, inadequado,pau para toda obra, tudo cabendo em
tudo, em qualquer circusntância.
mas são conceitos ainda úteis, se não forem
desvinculados da história: a densidade e a estranheza dos
textos de torquato neto são a cristalização verbal de uma
gama variadíssima de sinais corporais, históricos,
traduzidos num peculiar ritmo e pulsação da linguagem,
fragmentada e ondulante, nos poemas, nos fragmentos e
nas letras de música, respeitadas as diferenças.
daí a longa digestão: o sentido não se esgota, a qualidade
da informação dos textos de torquato é, ainda, muito
intensa porque visceralmente ligada a lances pessoais,
coletivos, bastante profundos, que permaneceram em
grande parte irresolvidos.”63

Daí, seguindo a primeira das proposições de Ítalo Calvino, a trajetória


de Torquato Neto nunca ter sido pautada por um limite territorializante que lhe
desse uma identidade fixa, tal como no mito de Sísifo que assombra o
jornalismo, porque toda literatura e toda poética contêm a leveza de Ícaro que
voa rumo à luz do Sol sem jamais voltar, querendo cada vez mais afastar-se,
desterritorializar-se, assumindo como direção o vetor centrífugo da linguagem
em seu devir poético, mesmo que com asas de morcego. Nas palavras de Waly
Salomão, “Torquato Neto explodiu todas as possíveis pontes para o
regresso”64. A Geléia Geral foi o registro desse percurso sem volta, de uma
desterritorialização completa e radical de um Sísifo que tentou ser Ícaro. A
pedra pesou demais e lhe arrancou as asas no labirinto íngreme e sem saída,
no alto da colina, à beira do precipício.
Mas durante o tempo que durou a Geléia Geral a morte de cada edição
na verdade foi uma suspensão, um prolongamento da escrita. Uma escrita em
sursis, uma escrita sem fim. Processo, logo da natureza do desejo. Todos os
procedimentos estéticos que Torquato Neto utilizava demonstram uma
radicalidade quanto à forma de expressão permitida pelo jornalismo. O

63
BUENO, André. Op.cit.p.139.
64
Depoimento gravado em 20/11/1997.
discurso indireto nunca foi tão livre. Torquato Neto: “jornalista que esqueceu
das aspas”65. Não só as esqueceu como tratava blocos discursivos inteiros
através de um procedimento de montagem - técnica importada do cinema.
Com isto, ao invés de criar imagens, Torquato Neto provocou um tipo de
escrita vampiresca, uma escrita que não era o reflexo especular de algo, mas
atingia o próprio fluxo que circula entre a palavra e o objeto. Escrita-captura,
escrita predatória. A antropofagia de Oswald de Andrade retemperada pelo
vampirismo do qual Torquato Neto investiu-se depois de assumir para si a
imagem de “Nosferato”.
Extrair um fluxo: atividade vital de um vampiro. Também a seiva
circulante entre uma palavra e outra, entre um bloco formado por uma citação
e outra, colando tudo numa montagem de forma sempre instável, tensa. É o
próprio Torquato que escreve o estatuto desse vampirismo, explicando-o a
partir do Teorema de Pasolini66: uma tática de ocupar espaço, deixar as
marcas, demarcar um território, tomá-lo diretamente pelo fluxo que lhe
garante a singularidade e assim torná-lo próprio, apropriar-se. O vampirismo
de Torquato Neto é apropriação, a citação levada ao excesso, onde o citado
não mais se reconhece, a não ser pela marca do procedimento pelo qual a
citação é violentada, deglutida, tornada outra, assim como o vampiro
transforma o vampirizado em outro vampiro. O vampirismo é a imagem de
um processo, de um agenciamento que se estende em todas as direções, como
no agenciamento maquínico do desejo de Deleuze-Guattari67: uma máquina

65
SALOMÃO, Waly. Torquato Neto esqueceu as aspas. Folha de São Paulo, Caderno Mais, 08 de novembro
de 1992.
66
O enredo desse filme trata sobre um personagem deus ex machina que toma a vida de uma família
tradicional,cristã, classe média. Todos são seduzidos pela beleza e poder de conquista do jovem, que atento
àsoportunidades avança sempre até chegar ao pai, o chefe da casa, que também é conquistado e que por isto
enlouquece e sai errante ao sopé de um vulcão, andando nú e sem destino.
67
Conceito fundamental da crítica empreendida à psicanálise por Deleuze e Guattari. Um agenciamento é um
processo que se forma pela sucessão de conexões de objetos parciais. O desejo é a força que percorre este
agenciamento e o faz produzir algo. A crítica de Deleuze e Guattari sempre reafirma esse caráter de produção
corte operando sobre uma máquina fluxo e, desse corte, constituindo-se um
novo fluxo a ser cortado por outra máquina e assim por diante, tal como uma
força centrífuga, isto é, dirigida a um FORA que lhe dá um contorno de outra
natureza do que a do limite. Este Fora não é um limite porque jamais pode ser
tomado como o contorno de uma singularidade.
Neste contexto, FORA é da ordem de um limiar, isto é, um contorno
tangenciável, porém como algo que se coloca para além, isto é , sempre em
devir, como a linha do horizonte é o limiar de uma paisagem em contraposição
a uma moldura que venha a servir como limite, portanto fixo, à representação
dessa mesma paisagem. Um limite “enquadra” um fenômeno – o limiar se
coloca para além do mesmo fenômeno, é o momento em que interior e exterior
se tocam. Ao se atingir um limite, não há a mudança de natureza. O limite é da
ordem do penúltimo termo, do qual sempre é possível retornar ao estado de
coisas inicial. Como explicam Deleuze-Guattari68, o limiar é em si o
rompimento de um limite, porque ao atingí-lo, tudo muda de natureza. Daí o
limite ser sempre fixo, enquanto que o limiar é fluído, móvel, flexível, assim
como a linha do horizonte, que desloca-se ao mesmo tempo que o observador
tem seu deslocamento - quando este chega ao ponto que lhe servia de
horizonte, toda a paisagem já transfigurou-se.
Seguindo esse conceito de limiar-limite, Torquato Neto utilizava a
referência como um limiar a si mesmo, um horizonte ao qual colocava-se em
direção para daí chegar a algo como o resultado de uma transfiguração tanto
de si mesmo quanto da citação que lhe servia de limite. Rompia-se assim com

como fundamento do desejo. Segundo os dois autores, a psicanálise reduz tudo a um drama framiliar básico,
rebatendo todas as situações consideradas como desejantes sobre uma rede de representações que tem como
matriz as rela]ões familiares básicas. Para Deleuze-Guattari, o desejonão “representa”, mas produz aluma
coisa. Não há um termo inicial ausente. O desejo, segundo estes autores, jamais pode ser concebido como
resultante de uma falta, de uma carência.
68
No Anti-Édipo e em Mil Platôs Deleuze e Guattari falam reiteradamente de um regime de escrita que atinja
o limite da linguagem por escrever a (n-1), ou seja, uma totalidade sempre em aberto.
os limites dados pelo significado original do fragmento citado para abrir-lhe
sobre um plano de produção de sentido inesgotável porquê articulado à força
centrífuga própria a todo limiar. Assim pode-se considerar que não é uma
simples citação o procedimento de Torquato, já que dessa maneira teríamos
apenas forças centrípetas, guardando uma identidade com o sentido original
do fragmento – a paráfrase.
O vertiginoso procedimento de Torquato Neto é uma “ocupação do
espaço” em que as citações são os signos, as marcas territoriais que o autor
deixa ao longo de sua deambulação rumo ao FORA. A todo momento o que
encontramos na “Geléia Geral” é esse processo (pro-excesso) de citação, uma
tomada de espaço, um investimento da paráfrase que instala a tensão
característica do estilo de Torquato Neto que é a tensão acirrada entre a
interioridade de sua escrita e a maneira pela qual essa interioridade se
relaciona com o que lhe é exterior, com o que ou para quem ela se dirige. É o
próprio Torquato quem fixa estes pólos: “do lado de dentro” e “do lado de
fora”, já em sua primeira coluna, em agosto de 1971.

“[...]O pior de tudo é esperar apenas. O lado de fora é


fogo, igual ao lado de dentro. [...]
[...] ele deve saber, com certeza, que o princípio está
sempre no fim, e é por isso que ele deixa sangrar, do lado
de fora, do lado de dentro.”69

O “lado de fora” é o plano sobre o qual o fundamento de sua poética se


estabelece: “tomar espaço”. Dessa maneira, a primeira exterioridade que é

69
NETO, Torquato Neto. Cordiais Saudações, in Últimos Dias de Paupéria. São Paulo, Max Limoad, 1982
p.23.
alvo de Torquato Neto é o limiar próprio do jornalismo: regime de escrita que
se coloca tem em seus fundamentos o discurso poético, isto é, o rompimento
com a “norma”, o que é diametralmente o oposto à orientação do discurso
jornalístico. Enquanto a dimensão poética da linguagem amplifica os desvãos
pelos quais os sentidos deslizam para algo não estabelecido, isto é, de certa
maneira, toda poética é a experiência de desestabilização na redundância
própria à linguagem, o discurso jornalístico encontra-se no polo oposto, ou
seja, a referência ao estado de coisas é fundamental, e, para isto, a redundância
é que é investida. No jornalismo a produção de sentido deve ser controlada de
maneira que haja um limiar de referencialidade ao real. O jornalismo é uma
prática discursiva fundamentada pela informação, que pode ser entendida aqui
como unidade dessa referencialidade. Ao pensarmos o discurso poético nestes
termos, temos que a escrita poética é uma des-enformação, isto é, uma
desestabilização das formas, enquanto que à informação sobrepõe-se uma
formação: a recognição de um sentido estabelecido. São forças que atravessam
a linguagem em sentidos opostos: a “normalidade”, não só do jornalismo,
como de todo discurso dado por uma instituição, é centrípeta, ou seja, imprime
uma força ao discurso que o remete sempre a um centro de significação - o
discurso poético por sua vez é centrífugo porque, em seu movimento de
desestabilização desse centro de significação, dessa redundância de sentidos,
coloca-se à deriva e, dessa maneira, não há mais direções definidas, seu
movimento é intensivo, de outra natureza, daí ser descentrado, porquê a
exterioridade para a qual se encaminha está em crescimento contínuo,
indiferenciado. O movimento centrífugo do discurso poético que forma rizoma
em seu agenciamento com o jornalismo.
4. – Em busca da marginalidade
Uma das marcas que diferenciam Torquato Neto dentro da produção
jornalística brasileira é o caráter multifacetado de seus textos na Geléia Geral.
Um acirramento da literariedade dos signos que também desenvolveu em
outras árias como a poesia, música e o cinema. Tudo em relação a Torquato
Neto guarda essa indefinição quanto ao meio de expressão: há uma matéria
fluida por detrás das diferentes formas de expressão e isto não é diferente com
a prática jornalística que desenvolveu nos seus últimos dois anos de vida, nos
seus “últimos dias de paupéria”.
“Todo poeta é intersemiótico” escrevia Paulo Leminsky, num artigo
para o Folhetim dez anos após o suicídio de Torquato Neto. No mesmo artigo,
o poeta paranaense apontava a inventividade marcante da Geléia Geral:

“Em passado Folhetim, num ensaio “Forma é Poder”, denunciei a


suposta “objetividade” da linguagem jornalística, mostrando como esse
efeito é precipitado de uma codificação de linguagem, uma cristalização
canônica de recursos, que, estabilizando o discurso, transmita a sensação
de “realidade”. Jornalismo não tem “estilo”. Ora, o que há no mundo da
inteligência são as especificidades de cada consciência. Todas as
cabeças são “estilos”.
A linguagem jornalística é imposta por uma autoridade: um Poder. Mas
pode-se dinamitar essa tirania: por dentro, na linguagem. De pronto
lembro três momentos: os jornalismos de Oswald de Andrade, de seu
herdeiro, Paulo Francis, e o de Torquato.”

É esta dimensão inventiva sugerida por Paulo Leminsky que coloca o


jornalismo em conexão com uma dimensão estética que pode ser e, em alguns
momentos da história do jornalismo, foi explorada com resultados inusitados.
Dimensão estética que abre campo para transgressões da norma que dirige a
“automatização” da linguagem no jornalismo. Vide o exemplo do new
journalism nos EUA, quando a experimentação literária com o texto
jornalístico rendeu toda uma geração de figuras como Norman Mailler, Gay
Talese, Trumann Capote, Tom Wolf, e, principalmente Hunter Thompson e
seu Gonzo Journalism. No caso de Torquato Neto esta dimensão foi explorada
em seu limite, ou seja, a partir do máximo investimento na dimensão estética
das palavras: a instalação de uma poética dentro do jornalismo. Não que haja
uma relação direta entre o tipo de experiência levada a cabo pelo new
journalism e a poética de Torquato Neto. Do ponto de vista do jornalismo não
há nada que os possa colocar sobre um mesmo plano, no entanto, o espírito de
questionamento dos padrões da prática jornalística, suas potências fixas,
insinua essa linha que procura ampliar as fronteiras do jornalismo. “Instalação
de uma poética” porque o jornalismo de Torquato Neto, no caso, é tomado,
seduzido pela literatura, transformado através da contaminação de um germe
literário que vai fazê-lo proliferar cada vez mais em direção a este limiar. Um
jornalismo vampirizado pela literatura. As elipses apontadas por Leminsky são
as linhas de fuga traçadas por Torquato e que arrastam os textos da Geléia
Geral para um deserto, para um lugar sem demarcações, sem territórios
definidos - lugar onde todos os gêneros e diferentes formas de expressão se
encontram numa genial “Geléia Geral”.
E toda palavra traz em si um deserto que é o silêncio disparado de tudo
aquilo sobre o que ela se cala. Uma palavra é um rosto: exibe pelo que
dissimula. E nessa zona onde uma palavra é um deserto disfarçado é que se
encontram os domínios do não-dito. De toda propriedade a que se queira
definir uma palavra, seja em relação a uma pretensa homegeneidade de uma
língua, seja à singularidade de uma fala, este deserto afirma implacavelmente
seu silêncio devoluto, de não-pertença, onde apenas existem linhas que
marcam direções e não contornos. Um deserto é um espelho no escuro. O
silêncio é a imagem desse escuro refletida: um duplo de si mesmo, tal como o
vampiro.
A figura do vampiro sempre é retomada numa leitura das crônicas da
Geléia Geral porque é através dessa imagem que Torquato Neto deixa as
pistas de sua poética. Quando ele escreve sobre este personagem sempre há
uma discussão da relação que ele guarda com sua tática de “ocupar espaço”,
inspirada no Teorema de Pasolinni70 - em outros termos, o primeiro espaço
ocupado por Torquato Neto é o próprio jornalismo. E Torquato o ocupa assim
como um vampiro possui sua vítima, formando rizoma com ela.
O conceito de rizoma aparece na primeira obra conjunta de Gilles
Deleuze e Felix Guattari: “O Anti-Édipo”71. Tal como o nome sugere, o tema
sobre o qual Deleuze-Guattari iniciam sua parceria de pensamento é a
proposição de uma abordagem que imponha uma problematização da maneira
pela qual a psicanálise constituiu-se em torno do que Freud chamou de
complexo de Édipo. Na base desta concepção freudiana, o desejo é encarado
como falta, donde decorre toda uma série de pressupostos: a falta resulta de
um drama familiar básico no qual o desejo incestuoso pela mãe não pode ser
correspondido pelo tabu culturalmente imposto pela civilização; dessa maneira
desloca-se sempre o desejo em direção a uma compensação dessa falta,
através da produção de fantasmas que substituem o objeto original do desejo
suprimido. Surge assim uma triangulação edipiana que se estende a todas as
circunstâncias envolvidas pelo desejo. Sempre o que se deseja remete à

70
“Filmes”, de 30/11/71 – Últimos Dias de Paupéria p.180-181
71
op.cit.p.57.
compensação dessa falta original, e a maneira pela qual se responde a este
complexo determina a regulação dos processo psicológicos.
Deleuze-Guattari partem de um outro pressuposto para abrir este
complexo, colocando a seguinte questão: e se o desejo não é uma falta
original, mas produção? Para responder a interrogação é necessário que se
desenvolva o que seria esse conceito de produção. Deleuze-Guattari buscam
então definir o termo produção segundo o que este implica no próprio curso
histórico de contituição do capitalismo. A produção aqui é então entendida em
termos marxistas, como processo pelo qual algo é gerado, produzido. Dessa
maneira, existem diferentes modos de produção, que determinam então
diferentes políticas do desejo. É na esteira disto que Deleuze-Guattari
delineam o plano de sua empreitada com o subtítulo do Anti-Édipo -
“Capitalismo e Esquizofrenia - que será entendido como o projeto de toda sua
obra conjunta, estendendo-se às duas obras seguintes: “Kafka - por uma
literatura menor” e “Mille Plateaux”.
“Capitalismo e esquizofrenia” porque para Deleuze-Guattari o desejo
assume um modo de produção da mesma natureza que o modo de produção do
capitalismo. O termo que relaciona o modo de produção do desejo ao do
capitalismo é a esquizofrenia. O modo de produção do capitalismo é
esquizofrênico. Isto porque, assim como na esquizofrenia, o modo de
produção capitalista escapa a uma codificação, ou melhor, decodifica todos os
fluxos: fluxos de moeda assim como fluxos de desejo. A proposta de uma
vizinhança entre capitalismo e esquizofrenia vem do fato de que na própria
teoria freudiana o esquizofrênico ser colocado como um limite à
edipeinização. Segundo Freud, o esquizofrênico escapa à triangulação básica
do complexo de Édipo. É daí que Deleuze-Guattari partem. Tanto no
capitalismo quanto na esquizofrenia, algo escapa a uma codificação. E quando
se fala em desejo, tendo-se em mente a aventura do pensamento que é o Anti-
Édipo, temos sempre que encará-lo como produção: em outros termos, o
desejo, para Deleuze-Guattari, é a atualização de uma virtualidade, e não a
representação de um drama familiar básico. O esquizofrênico, dessa maneira,
vive a própria natureza como produção. Disto surgem máquinas. Máquinas
desejantes, porquetudo na esquizofrenia é produzido por máquinas. Não no
sentido metafórico, que poderia sugerir um mecanicismo. Não é esta a direção
assumida por Deleuze-Guattari, tampouco a nossa. Máquinas desejantes
porque uma categoria de máquina que encontra seu fundamento no desejo.
Máquina, jamais mecanismo.
O fundamento deste conceito é a consideração de que num processo
produtivo, seja de desejo ou de qualquer outra natureza, há sempre uma
conexão entre elementos distintos da qual resulta esta produção, isto é, há um
agenciamento entre elementos heterogêneos. Neste agenciamento um
elemento opera um corte sobre o fluxo de um segundo. Portanto, para
Deleuze-Guattari, uma máquina desejante é formada toda a vez em que há um
agenciamento entre elementos no qual um produz um corte sobre outro que
funciona como fluxo. Uma máquina desejante é formada pela conexão entre
uma máquina-corte e uma máquina-fluxo. O resultado desta operação será a
formação de um novo elemento que será um fluxo a ser cortado por outra
máquina, e assim ao infinito. Daí então o desejo como a atualização de uma
virtualidade - porque o infinito ao qual todo agenciamento remete é o próprio
plano dessa virtualidade. Os cortes são as atualizações. Neste sentido, seja no
desejo, seja no capitalismo, tudo é uma questão de conexão, de agenciamento
dessas máquinas.
4.1 - Adjacências

O tipo de investigação que Deleuze-Guattari propõem é então o


rastreamento dessas conexões a fim de observar como determinado
agenciamento é constituído em suas relações internas, a formação de suas
máquinas, e de como este mantém conexões com outros agenciamentos que
lhe são adjacentes72. Deleuze-Guattari chamam a este procedimento de
Esquizoanálise, para marcar a diferença de seu método em relação à
psicanálise. Esta última busca sempre um centro que sirva de elemento de
identidade num processo. É centrípeta, pois remete à estrutura do ego como
determinante na formação da psique. Na esquizofrenia, o que se rompe é
exatamente esta estrutura básica da psicanálise; o ego é fragmentado. A força
que espalha os estilhaços dessa estrutura é uma força centrífuga, de expansão
em todos os sentidos.
A esquizoanálise seria então uma prática de mapeamento dessa força
centrífuga. Seu protocolo é seguir o que escapa ao centro. É nesse sentido que
Gilles Deleuze e Félix Guattari podem ser chamados de pós-estruturalistas,
pois sua obra conjunta, com todos os conceitos decorrentes do que esses
autores chamaram de agenciamento maquínico do desejo, se dá no sentido de
fundamentar uma prática teórica balisada por um princípio diferencial ao de
estrutura, que vai no sentido inverso: as máquinas desejantes.
Alçado todo esse percurso, é possível delinear o contexto teórico no
qual Deleuze-Guattari traçam o conceito de rizoma. Este, diz respeito à esfera

72
DELEUZE-GUATTARI. Anti-Édipo cap.01.
dos códigos. Um rizoma é uma mais-valia de código, ou seja, determinada
característica da produção de sentido acarreta numa formação peculiar dentro
do processo de agenciamento. Rizoma no sentido de algo que é produzido
entre os elementos de determinado agenciamento. Deleuze-Guattari extraem
esta referência da botânica para marcar mais uma vez a diferença de seu
pensamento com relação à força centrípeta de que falamos, aquela que assim
denominamos tendo-a em vista como uma modulação de pensamento que gira
em torno e é atraída por um centro organizador, um centro de poder. Rizoma,
porque diferente de raízes. Estas últimas sempre pressupõem uma série de
bifurcações que afunilam-se de par em par até a unidade de um tronco
principal. Deleuze-Guattari chamam isto de estrutura arborescente. O rizoma é
de outra natureza: caule intermediário entre as raízes e o tronco, parte dentro,
parte fora da terra, expande-se em ambos os sentidos. É uma força que foge ao
centro. Se a lei da arborescência é determinada pelo sentido inverso ao de uma
proliferação, que vai da multiplicidade das raízes rumo a um tronco central, o
rizoma se caracteriza pelo brotamento, pela expanção.
Um rizoma, nesse sentido, é sempre um ponto pelo qual as
multiplicidades advém, as séries proliferam, porque a força que lhe é
característica é de expansão, de brotamento pelo meio e em todos os sentidos.
Enquanto que a arborescência fundamenta toda uma hierarquia, ou seja, impõe
o poder de um tronco central, o rizoma é a abertura para o que escapa a um
centro organizador dessa hierarquia arborescente. Deleuze-Guattari falam de
rizoma a toda vez que se referem à escrita: seja com relação ao próprio
trabalho teórico que desenvolvem, seja com relação à literatura, filosofia ou
qualquer outra modalidade da escrita.
5. -Transando com o veneno
Paulo Leminsky coloca-se a seguinte pergunta: o que se sabe sobre
Torquato Neto?73 Nasceu em Terezina. Do Piauí foi para Salvador estudar, o
que o levou a conhecer Caetano Veloso e todo o grupo bahiano que mais tarde
deflagaria a Tropicália, da qual Torquato escreveu a canção manifesto Geléia
Geral. Sua poesia começa a ganhar projeção nas letras de músicas em
parcerias com Edu Lobo, CaetanoVeloso e, principalmente, Gilberto Gil.
Torquato irá se transformar num dos principais articuladores do movimento
tropicalista. O Rio de Janeiro é uma festa. O Brasil é uma festa.
A invenção e a experimentação encontram as condições ideais de
explosão na amplitude da arte de Hélio Oiticica. É 1968. “Tropicália” e “Cara-
de-Cavalo - Seja Herói Seja Marginal” - “Parangolés”: Todas obras de
Oiticica que irão marcar a arte brasileira para sempre. O Cinema Novo de
Glauber Rocha chega ao sublime com “ Terra em Transe”. Caetano Veloso e
Gilberto Gil explodem nos Festivais da Record. Mutantes. O Pasquim é um
nanico de tiragens gigantescas para a época e para o momento polítco
histórico do país. Tudo isto seria mesmo uma grande festa se este não fosse
também o ano em que foi baixado o Ato Institucional nº 5 e com ele
amordaçada toda e qualquer forma de liberdade de expressão no Brasil. A
festa acabou de modo brusco.
A repressão é acirrada. Caetano Veloso e Gilberto Gil vão para o exílio.
Torquato Neto resolve sair para um exílio voluntário e, com Ana, fixa-se em
Paris. Cada vez mais isolado Torquato começa a beber e, em 1971 retorna
para o Brasil. A festa continuou acabando durante o tempo em que esteve do
lado de fora. Em 71 havia um clima de exaustão frente à mão pesada da

73
LEMINSKY, Paulo. O último dos românticos. Folhetim, 10/11/1982.
ditadura. A luta armada dissolvera-se com a morte de Marighela e Lamarca. O
empastelamento dos jornais era freqüente. Os desaparecimentos e a tortura de
presos políticos também. Torquato começa tudo de novo procurando por
“brechas”. A Última Hora já não tinha mais a força dos tempos em que foi um
dos principais instrumentos que levaram Getúlio Vargas ao poder novamente
com a aprovação popular das urnas. Samuel Weiner já não estava mais na
condução do jornal desde o golpe de 64 que o levou para o exílio na França,
mesmo assim, a Última Hora continuava sendo um veículo da grande
imprensa. Torquato Neto desfolha sua bandeira na tentativa de encontrar
sinais para uma nova manhã. A tática é: OCUPAR ESPAÇO. Ele escreve
numa carta:

“ ... escute: não está na hora de transar derrotas. Eu digo


na porra da geléia: ocupar espaço, amigo. Estou
sabendo, como você, que não está podendo haver
jornalismo no brasil – e que – já que não deixam – o jeito
é tentar, não tem outro que não seja desistir, e eu
sinceramente acredito que não está na hora de desistir:
ou a gente ocupa e mantém a porra do espaço, pra
utilizá-lo, pra transar, ou a gente desiste”.74

Esta tática é a medula que sustenta a Geléia Geral. Há a constatação


direta da impossibilidade do exercício da liberdade de expressão e, com ela,
também de um jornalismo de fato. No entanto, se a interdição era
determinante quanto ao plano do conteúdo não só do jornalismo e, sobretudo,
da arte, alguma coisa poderia ser trabalhada quanto à forma de expressão que
74
Op. Cit. P.347.
se mantinha a mesma apesar desse silêncio imposto. A saída encontrada por
Torquato Neto foi então apostar no circuito de distribuição, no caráter de
difusão de informações que um jornal representa como espaço possível para a
concretização de sua poética. Esta forma de expressão se mostra como um
suporte alternativo para a poesia de Torquato. A Geléia Geral está para a
poesia assim como os Parangolés de Hélio Oiticica estão para as artes
plásticas. É uma questão de suporte. Nos Parangolés Oiticica encontrou a
possibilidade de romper com a passividade do público, transformando o
observador em elemento integrante de sua obra. Da mesma maneira Torquato
Neto assume o jornalismo como quem ocupa um espaço devoluto,
introduzindo um código clandestino, sua poética, como marca de pertença 75. O
jornalismo passa a ser um suporte dinâmico para sua poética, gerando uma
forma de discurso híbrida que resiste a gêneros definidos. Jornalismo E
poesia. As duas coisas ao mesmo tempo, indissociáveis e irreconhecíveis
segundo suas identidades próprias. Com a Geléia Geral Torquato inventa uma
nova maneira de se fazer jornalismo cultural, como observa o poeta Paulo
Leminsky, e, ao mesmo tempo, uma poética que se constrói segundo um
suporte não-tradicional – seguindo o primeiro momento de sua produção, que
encontrou nas letras de música sua forma de expressão, a Geléia Geral
inaugura um novo suporte ao trabalhar o texto jornalístico de uma perspectiva
poética.
Tem-se então na produção de Torquato Neto um momento decisivo no
qual poesia e jornalismo entram numa relação que os transforma segundo a
maneira pela qual esse encontro é promovido. Não são simplesmente
reproduzidos os maneirismos de uma forma de discurso de maneira
transplantada em outra froma de discurso. Não é escrever jornalismo COMO
75
“Um poeta desfolha a bandeira...”
se fosse poesia e, muito menos, vice-e-versa. Não é uma questão de imitação,
mas de devir. Algo nos textos da Geléia Geral é poesia acontecendo num
devir, isto é, num tornar-se jornalismo e, ao mesmo tempo, a forma de
jornalismo que Torquato cria a todo o momento abre para um plano poético –
o material factual, que guarda referencialidade com o real, é tratado segundo
uma lógica que não se deixa seduzir por essa referencialidade senão por
considerá-la como fato de linguagem. Assim Torquato mantém seu espaço.
Como ele mesmo afirma na carta para o amigo 76, a conquista desse
espaço na grande imprensa é uma necessidade para que se possa encontrar
uma saída. A Geléia Geral então é o espaço através do qual Torquato Neto irá
traçar uma linha de fuga que arrastará consigo tanto o jornalismo quanto a
poética de Torquato Neto. Linha de fuga aqui segundo Gilles Deleuze e Felix
Guattari. Como a dupla de filósofos define ao longo de sua obra conjunta 77,
uma linha de fuga é uma direção que determinado agenciamento pode assumir
quando seus elementos passam a provocar uma variação em relação ao que
define suas identidades fundamentais. Uma linha de fuga nasce de um
encontro que provoca um vazamento no sistema dominante das
representações. Por uma linha de fuga algo vaza de um sistema e provoca uma
proliferação, uma diferenciação que coloca em cheque a identidade do mesmo
ao fazer com que o sistema inteiro, isto é, o agenciamento entre em devir.
Relacionando este conceito à coluna de Torquato Neto, encontra-se um
agenciamento fundamental através do qual o Vampiro da Tropicália irá
montar sua máquina poética e fazê-la funcionar acoplada a uma máquina

76
ùltimos Dias de Paupéria – p.347-349
77
Esse conceito é retomado em vários momentos na obra que Gilles Deleuze e Felix Guattari produziram
juntos. Desde o Anti-Édipo, publicado em 1972, passando por “ Kafka – Por Uma Literatura Menor” e em
Mille Plateux o conceito de linha de fuga sempre é relacionado ao campo definido por outro conceito destes
filósofos: a desterritorialização.
jornalística. O agenciamento que Torquato Neto produz acontece quando ele
faz essa conexão entre o jornalismo e a poesia.

5.1 - Máquinas Desejantes

De todo agenciamento, segundo as proposições de Deleuze e Guattari,


forma-se uma máquina desejante. Os dois pensadores franceses utilizam o
termo “máquina” e “ desejante” para caracterizar uma produção de
subjetividade. Para Deleuze e Guattari toda e qualquer subjetividade é fruto de
um processo de produção, pois nasce de um corte que é produzido sobre um
fluxo que lhe serve de suporte – forma-se um agenciamento quando há um
encontro no qual um dos termos desempenha um corte sobre o outro. Um
agenciamento é formado por um corte e um fluxo que produzem alguma coisa
em seu encontro. Essa perspectiva tenta redirecionar, ou mesmo inverter, um
dos fundamentos da psicanálise: o desejo como sendo determinado por uma
falta, por uma carência. Para Deleuze e Guattari, o desejo é algo afirmativo,
ele produz algua coisa – para entender essa posição deve-se ter em mente o
momento em que o Anti-Édipo foi escrito.
As idéias de Maio de 68 estão ainda de alguma maneira fortes – o livro
foi publicado pela Gallimard em 1972. Na base desse fenômeno de
contestação cultural há uma influência muito forte do pensamento de
Friederich Nietzsche, que ressurgia no cenario pós-guerra recuperado pelas
leituras que o filósofo Alexander Kojéve propunha em seus seminários sobre
Heidegger. Estes seminários influenciaram sobremaneira toda uma geração de
pensadores: Deleuze, Guattari, Foucault, Derrida, entre outros. Deleuze havia
publicado “Nietzsche e a Filosofia” 78, livro que o coloca em evidência.
Guattari vinha das experiências como psicanalista na Clínica de La Borde e de
seu trabalho no Grupo de Estudos Sobre as Prisões. Assim como Deleuze
havia proposto em seu livro sobre Nietzsche, a filosofia desse pensador
pautava-se por uma física, uma reflexão sobre o conceito de força e os
desdobramentos deste em relação aos seus diferentes modos.
De acordo com a leitura que Deleuze faz da obra de Nietzsche, este
classifica dois tipos de forças que interagem em qualquer fenômeno: forças
ativas e forças reativas. Uma força ativa seria aquela em que a potência
afirma-se a partir de si mesma e não em relação a algo que lhe é exterior.
Uma força reativa é exatamente o contrário disto, ela depende de algo que se
lhe apresente como uma potência exterior, daí ser reativa, em função de sua
potência estar vinculada a algo que lhe é exterior.
A partir de um ponto de vista nietzscheano, o Anti-Édipo será uma
crítica insistente em relação a um conceito de desejo que seja construído a
partir da idéia de uma carência fundamental. Isto porque, segundo a
pespectiva nietzscheana adotada pelos dois pensadores, colocaria o desejo
como uma força reativa, dependendo sempre de um referente, uma potência
exterior a si mesmo. Quem explica essa concepção de desejo como produção é
Christian Descamps:

“O que é o desejo? É uma idéia bem simples, como todas


as grandes idéias. Ele ordena as coisas que virtualmente
já existiam, fazendo com que tenham acesso a uma

78
DELEUZE, Gilles, Nietzsche e a filosofia. Rio de Janeiro, Editora Rio de Janeiro, 1976.
realidade, a uma não-indiferença social, sesual, política...
[...]
[...] Inicialmente, os autores quebram a relação entre o
desejo e a carência. A tradição liga o desejo àquilo que
está ausente, à Lei, ao proibido. Ora, depende de um
arranjo no qual está incluída. Produtor, o desejo
estabelece conexões, relações que não param de
atravessar um real do qual jamais sente falta, já que se
alimenta dele.”79

Máquina desejante, portanto, será todo e qualquer agenciamento binário


entre termos que produz algo, que atualiza alguma virtualidade da potência
que se afirma no encontro desses dois termos. Uma máquina desejante
desempenha uma força ativa, um termo não serve de referência ao outro, como
uma força de reação. É uma força imanente, interior ao agenciamento, às
conexões estabelecideas entre os dois termos e, ao aproximá-los, este encontro
produz algo como a afirmação dessa potência. O desejo é uma força ativa de
atualização do virtual.

5.2 – Tática de guerrilha


Quando um agenciamento acontece entre dois códigos diferentes,
também é formada uma máquina desejante, de um tipo especial, que é
chamada por Deleuze e Guattari de rizoma. Um rizoma, como eles o definem,
é uma “ mais-valia de código”, uma “evolução a-paralela” pela qual os dois

79
DESCHAMPS, Christian. As Idéias Filosóficas Contemporâneas na França. Rio de Janeiro, Zahar, 1991.
pp. 19-21.
códigos transformam-se mutuamente, colocando-se ambos num devir mútuo
que os arrasta. Desde o Anti-Édipo, primeira obra conjunta de Deleuze e
Guattari, aparece este conceito. Deleuze e Guattari recorrem a um exemplo
que está presente em Vendredi80 de Michel Tournier: a evolução a-paralela
entre a vespa e a orquídia. Certo tipo de orquídia atrai a vespa pelo desenho
de seu órgão reprodutor – a vespa é atraída e dessa maneira passa a fazer parte
do ciclo reprodutor da planta por ser o agente que irá carregar seu pólem para
fecundar outra planta. Por sua vez, a orquídia provém a vespa de alimento,
tornando-se um elemento fundamental para a sobrevivência da vespa. Ambos
os elementos que compõem o agenciamento se transformam um em função do
outro. Eles tornam-se outra coisa em relação às suas identidades. Aqui o verbo
tornar é uma das traduções para o verbo devenir em francês, que também tem
o sentido de devir. Deleuze e Guattari dizem exatamente isto de um rizoma,
que tanto o termo do agenciamento que corta quanto o que serve de fluxo
entram em devir um em relação ao outro. A vespa assume um devir orquídia,
um tornar-se orquídia, ao mesmo tempo que a orquídia assume um devir
vespa.
A mesma coisa acontece entre o jornalismo e a literatura (poesia) na
Geléia Geral de Torquato Neto. Ambos transformam-se mutuamente e desse
devir que um produz no outro desenvolve-se uma proliferação que rebate
qualquer gênero que se queira aplacar sobre o processo. Torquato Neto monta
sua máquina literária de maneira que ela funcione conectada com uma
máquina jornalística que lhe garante um circuito de distribuição e circulação.
Com isto fundamenta um tipo de escrita que se furta tanto ao jornalismo como
em relação à poesia.

80
TOUNIER, Michel. Sexta-feira (ou os limbos do Pacífico). São Paulo, Círculo do Livro, 1990
A Geléia Geral é um rizoma. Segundo ainda Deleuze e Guattari, num
rizoma há uma desterritorialização de cada termo, daí o porque dos autores
mencinarem uma “mais-valia” de código, ou seja, se faz a linguagem dizer
não somente de forma diferente, mas algo diferente do que ela tinha dito até o
momento – um excedente da produção de sentido. Desterritorialização aqui
tem esse sentido de levar a linguagem e os códigos sejam quais forem para
uma dimensão onde ainda não haja uma demarcação dos sentidos. Essa idéia e
esses conceitos seguem a Lógica do Sentido, na qual Deleuze busca nos
estóicos um modelo para entender as proposições que considere o sentido
como uma entidade ausente 81.
O sentido é produzido pelos termos que compõem uma proposição, um
agenciamento portanto. Se a linguagem é, antes de tudo, um sistema de
classificação, de demarcação do real, ela não deixa de, em sua auto-
reflexividade, criar as condições para que seus códigos internos de produção
de sentido deixem que alguma coisa escape para um terreno ainda não
demarcado. Nesse sentido toda arte e toda a literatura de fato e de direito são
desterritorializantes, pois o artista é um nômade da forma de expressão, e que,
como tal, cria formas de expressão nas quais o sentido também é nômade
porque desliza sem parada sobre um deserto inclassificado, não codificado.
Quando Torquato Neto constrói sua poética agenciando seu fazer
poético à máquina social de informação, ele cria as condições para que se
forme um rizoma entre o código de sua poética do fragmento e da apropriação
e o circuito de difusão dessa máquina que o jornal projeta sobre a sociedade.
Há uma conexão deliberada da parte dele, planejada, como tática de guerrilha
cultural, na qual manter o espaço é uma questão fundamental.

81
DELEUZE, Gilles. Lógica do Sentido. São Paulo, Perspectiva, 1974.
Uma desterritorialização produzida por um rizoma é também chamada
por Deleuze e Guattari de linha de fuga 82 – uma direção à qual se voltam os
devires dos termos que formam um rizoma e pela qual o sistema todo é
arrastado para fora das identidades de seus termos que o constituem. Uma
pura desterritorialização, sem parada possível, é a própria esquizofrenia,
condição na qual todos os sentidos deslizam por dissociação. E este é o
problema com as linhas de fuga: sempre há o perigo de que elas se
transformem em “paixão pela abolição” : suicídio (abolição de si mesmo) ou
em micro-fascismos (abolição do outro). Há a necessidade de que se efetuem
cortes portanto, como condição para que os sentidos não deslizem. Há,
também, a necessidade de reterritorializações.

5.3 – A linha de fuga do vampiro

A trajetória de Torquato Neto na cena cultural brasileira traçou uma


linha de fuga que começou no tropicalismo e terminou com o seu suicídio.
Tudo o que desta linha de fuga se aproximou entrou em devir ao produzir um
corte – daí a pluralidade, a multiplicidade de leituras possíveis da obra de
Torquato Neto: compositor+jornalista+poeta+ator+defensor do cinema
marginal+vampiro+cronista das dunas do barato... +o mito do poeta cult +
suicídio. Ao provocar uma forte desterritorialização, Torquato Neto deixou
que sua linha de fuga arrastasse tudo o que se colocasse em sua frente. Da

82
In DELEUZE-GUATTARI. Mil Platôs V. 3. Rio de Janeiro, 34, 1996. p78-79:
“[...] Quanto às linhas de fuga, estas não consistem nunca em fugir do mundo, mas antes em fazê-lo fugir,
como se estoura um cano, e não há sistema social que não fuja/escape por todas as extremidades, mesmo se
seus segmentos não param de se endurecer para vedar as linhas de fuga. Nada de imaginário nem de
simbólico em uma linha de fuga. [...]
[...] Contudo, de modo mais freqüente, um grupo, um indivíduo funciona ele mesmo como linha de fuga; ele a
cria mais do que a segue, ele mesmo é a arma viva que ele forja, mais do que se apropria dela.”
Geléia Geral do tropicalismo para a Geléia Geral da Última Hora o
movimento é o de um transbordamento que irá apagar todas as demarcações,
abolir todos os limites na formação de um plano que se coloca como um
FORA absoluto para o qual a navilouca de Torquato deveria derivar. Esse
plano já é anunciado em sua parceria com Edu Lobo – a letra de Veleiro diz
“sei que vou/ vou prá não voltar”.
Todos estes componentes fazem da Geléia Geral uma coluna única na
história da imprensa no Brasil – é um caso particular no qual o jornalismo
surge como possibilidade para o desenvolvimento de uma poética. Cria-se
então uma evolução a-paralela entre as duas formas diferentes de se habitar a
linguagem e a escrita. Forma-se uma máquina desejante na maneira pela qual
Torquato produz um corte sobre o fluxo de circulação de informações da
imprensa. Essa máquina desejante tem um nome: GELLETE – fusão entre
Geléia (fluxo) e Gillete (corte). Sua coluna é escrita numa forma particular de
texto que corta para os dois lados. Waly Salomão diz o seguinte:

“GELLETE que corta dos dois lados, da banda do


jornalismo crônico da prosa do mundo e da banda da
poesia dos estilhaços da rebordosa. Corta dos dois lados:
de um lado, o desespero de não poder manter acesa a
chama do bordão oswaldiano “a alegria é a prova dos
nove”; doutro lado, a necessária denúncia do coro dos
fariseus contentes. LOMBRA. Dois lados: maçãs
prateadas da lua / maçãs douradas do sol.”83

83
SALOMÃO, Waly. Armarinho de Miudezas. Salvador, Fundação Casa de Jorge Amado, 1993. p. 71
A pista portanto de onde Torquato Neto inicia a montagem de sua
máquina literária está no poema visual GELETTE 84. É com esta forma de
escrita que corta para os dois lados – jornalismo e poesia - que Torquato traça
uma linha de fuga, isto é, cria um um estilo que se coloca no meio, que brota,
em certo sentido, nos desvãos entre as diferentes experiências da escritura das
quais ele se cerca. Como resultado de um código híbrido que passa a proliferar
do encontro de dois códigos heterogêneos forma-se o que Deleuze e Guattari
chamam de Rizoma. Este conceito aparece pela primeira vez em Anti-Édipo.
O poeta e amigo Waly Salomão é quem indica esta obra como sendo
convergente com a estética de Torquato Neto. Na coletânea de seus ensaios
publicada pela Fundação Jorge Amado ele escreve:

“- Então, doutor, não é possível tentar “L´Anti-Oedipe”?

- Não vai adiantar nada. É tarde. A Livraria Leonardo


Da Vinci ainda não recebeu nem o exemplar
encomendado pelo General Golbery por ser uma
edição muito recente. Les ditions Minuit acabam de
dar à luz neste ano da graça de 1972. Agora é
cinza.”85

O tom irônico de Salomão é direto. O Anti Édipo é lançado no mesmo


ano da morte de Torquato e algo desta obra, na opinião do poeta, está presente
na poética construída pelo vampiro da Tropicália. A ironia fica por conta da
coincidência do lançamento desta obra acontecer no mesmo ano do suicídio de

84
Op.cit.
85
SALOMÃO, Waly. Armarinho de Miudezas. Salvador, Fundação Casa de Jorge Amado, 1993. p. 73.
Torquato. Subentende-se que a partir das proposições básicas do Anti-Édipo
pode-se encontrar uma chave para decodificar a fluidez dos sentidos da Geléia
Geral.
Explorando a indicação feita por Waly chega-se de fato a considerações
precisas quanto à poética de Torquato e a posição que o jornalismo vai
assumir dentro dela. A primeira dessas considerações é sobre a própria
trajetória de vida do vampiro da Tropicália. De maneira geral, O Anti-Édipo
tenta construir uma crítica à psicanálise enquanto alicerçada numa concepção
de desejo enquanto falta. Segundo Deleuze e Guattari, o desejo não pode ser
fundamentado por uma falta originária porque isto reduz o inconsciente à uma
instância de mera encenação de dramas familiares básicos. Esta postura da
psicanálise tem o teatro como metáfora para o inconsciente. Cabe, segundo
este princípio, unicamente ao inconsciente a tarefa de suprir através de
fantasmas o objeto do desejo suprimido. Dar conta da falta básica que
fundamenta a lei do desejo. Para Deleuze e Guatarri o que fundamenta o
desejo é exatamente o contrário. O inconsciente é produtivo. O desejo é uma
força de atualização, uma força produtivo. Neste sentido, o real é desejado,
isto é, produzido pelo inconsciente através das atualizações promovidas pelo
desejo. Assim , segundo Deleuze e Guattari, o desejo jamais pode ser
interpretado como vinculado a uma noção de falta primordial. Tudo isto
parece distante da obra de Torquato, mas só aparentemente.
O fundamento da idéia de um inconsciente funcionando segundo uma
lógica de produção tem como princípio o conceito de máquina desejante, isto
é, uma produção do desejo que se dá segundo um agenciamento de termos
heterogêneos, isto é, um cumprindo o papel de servir de corte para o segundo
termo que é cortado enquanto fluxo. Sempre o inconsciente opera cortes num
fluxo amorfo que é a virtualidade própria do desejo enquanto fundamento de
todo o real. O real é produzido, portanto, pela ação do desejo. O desejo é o
princípio da produção que se rebate sobre todo e qualquer agenciamento entre
dois termos heterogêneos. O inconsciente torna-se assim o princípio do real
segundo uma lógica de produção. A força que percorre um agenciamento é
que é o desejo. Todo desejo portanto remete à condição de um agenciamento
que produz algo a partir do encontro de seus elementos heterogêneos – fluxo /
corte.
Em termos práticos isto pode ser entendido da seguinte forma: para
Deleuze e Guattari, quando uma criança suga o seio da mãe, isto não acontece
única e exclusivamente segundo uma idéia de carência enquanto princípio de
todo o desejo. A criança forma uma máquina desejante com o seio de sua mãe
– ela opera um corte num fluxo de leite. Não só porque ela sente a fome como
falta, como um desconforto provocado pela ausência de alimento no
estômago, mas porque a criança produz algo que prolifera para além do fluxo
de leite (o seio da mãe) e o corte operado pela boca que suga o seio.
Desse encontro passa a proliferar um devir que vai nas duas direções.
Daí um agenciamento – sempre uma conexão. Esta é a primeira das sínteses
seguindo o Anti-Édipo. A síntese conectiva do desejo. Sob este ponto de vista,
o da primeira síntese do desejo, o agenciamento coloca-se num plano que
pode proliferar em qualquer direção. A boca E o seio E... produzindo
máquinas que operam cortes sobre fluxos que funcionam a partir de outros
cortes e assim sucessivamente, ao infinito. Um agenciamento é antes de tudo
uma proliferação de conexões.
Mas um processo não acontece sem um fim. Se o desejo é um processo
de atualização de uma virtualidade, então em algum momento os
agenciamentos devem parar de proliferar. É quando acontece a segunda
síntese do desejo. A síntese disjuntiva é uma pausa improdutiva na
proliferação das máquinas desejantes. Isto se dá no momento em que se forma
uma identidade entre o produzir e o produto desse processo desencadeado pelo
desejo. Em algum momento do processo tudo para em função de um
suplemento que é exterior ao processo e que sobre ele se aplaca, assim como o
capital – decorrente do modo de produção capitalista e que, segundo Marx, se
mostra como sua causa e não como, em verdade, conseqüência direta. Essa
idéia de inspiração marxista é um dos momentos mais importantes na análise
do desejo empreendida no Anti-Édipo. Ela dá conta da pulsão de morte, em
termos freudianos.
Deleuze e Guattari tratam esse elemento suplementar e que impõe uma
parada ao processo do desejo de corpo-sem-órgãos – numa alusão direta a
Antonin Artaud. Como identidade entre o produto e o produzir podemos
entender que é por esta pausa improdutiva que se reconhece um agenciamento
- que sua totalidade, mesmo que relativa e instável, deixa-se mostrar. Um
processo extendido ao infinito, isto é, uma síntese conectiva sem esta parada
seria a própria esquizofrenia. Para que o desejo atualize algo, para que ele
cumpra sua essência produtiva, é necessário que haja essa parada que lhe dê
um contorno reconhecível do conjunto de termos heterogêneos que o formam.
Mas essa totalidade se dá ao lado do agenciamento, rebatendo-se sobre ele.
Segundo Deleuze-Guattari, qualquer idéia de totalidade sempre é exterior aos
termos de um agenciamento. Daí o conceito de corpo-sem-órgãos, porque
dentro da obra de Artaud essa idéia fundamenta o reconhecimento da própria
subjetividade que se produz como um todo e que se aplaca sobre o conjunto de
órgãos. Corpo-sem-órgãos porque é assim que a experiência da própria
subjetividade se dá – não como o somatório do funcionamento de todos os
órgãos, mas como uma totalidade que se rebate sobre eles. Produzida pelo
agenciamento de todos os termos que formam o conjunto, o organismo, mas
enquanto resultado deste agenciamento, coloca-se como algo de outra natureza
– em essência diferente e estrangeira a qualquer idéia de um funcionamento
orgânico. Segundo Deleuze e Guattari o corpo-sem-órgãos é o elemento
neutro de todo e qualquer agenciamento. Ele também não se dá por uma
negação, mas por um limite pelo qual a proliferação da síntese conectiva tende
a uma parada.
Sempre produzindo a partir do agenciamento entre cortes e fluxos, as
máquinas desejantes são responsáveis pela produção de subjetividade. Há
portanto, dois extremos entre os quais esse processo oscila: um polo
esquizofreneizante, de uma conectividade sem parada, sem a possibilidade de
um corte significante e que produza um sentido como recognição do processo
e um outro polo neurotizante onde todo corte fecha-se sobre si mesmo, numa
produção de sentidos que sempre gravita e para sobre um mesmo centro.
Proliferação sem parada e parada sem proliferação são as duas situações limite
a que o desejo pode tender86.
Não que a esquizofrenia e a neurose sejam excludentes, antagônicas.
Deleuze e Guattari colocam o problema em outros termos, trata-se de abrir o
inconsciente, assim como ele é entendido por certa ortodoxia psicanalítica, de
uma dimensão individual, para uma esfera social e política. Segundo os dois
pensadores, a psicanálise insiste no polo neurotizante para o qual o desejo
tende, isto é, relaciona-o demasiadamente ao indivíduo em detrimento das
forças políticas e históricas que produzem as subjetividades de um
determinado momento histórico.
A crítica central do Anti-Édipo diz respeito à uma reorientação do
conceito de inconsciente para o plano coletivo, não em termos Jungnianos,

86
Inspiração reichiana que é retomada ostensivamente como uma das bases da argumentação presente no
Anti-Édipo.
que não equacionam sua dimensão política, mas numa perspectiva Reichiana.
As massas desejam a própria história. A história como resultado de um
processo de produção coletiva. E para atingir essa dimensão político coletiva
do insconsciente, Deleuze e Guattari propõem um direcionamento para o polo
esquizofreinizante, para onde os sentidos deslizam para um corpo-sem-órgãos,
para uma totalidade que se dá sempre em aberto, porque é nesta direção que o
desejo produz algo, atualiza algo que coletivamente dispersava-se numa
virtualidade. Uma máquina miraculante que produz um corpo-sem-órgãos,
uma totalidade paralela ao agenciamento e que se coloca sobre o mesmo de tal
maneira que faz parecem com que o processo de produção fosse efeito e não
causa da formação desta máquina – daí ela ser “miraculante”, por essa
gravidade e atração. Mas ao mesmo tempo forças colocam-se no interior do
agenciamneto como dispersão - fruto dessa segunda síntese do desejo: a
síntese disjuntiva. Nela pode acontecer das máquias desejantes serem
arrombadas sobre o corpo-sem-órgãos e passarem a ser decodificadas como
clandestinas, como uma ameaça à própria subjetividade: é quando se forma
uma máquina paranóica. Rompe-se a possibilidade de uma recognição dos
termos do agenciamento. A anorexia (hesitação entre um orifício que serve
para a entrada de alimentos e outro que cumpre a função de expelir o resultado
da digestão dos mesmos) – curto-circuito no sistema todo.
A essas duas sínteses, Deleuze e Guattari acrescentam uma terceira e
última, uma síntese conjuntiva, que forma uma máquina celibatária. Isto no
sentido de que ao seguir o agenciamento maquínico do desejo chega-se a uma
linha de pura abstração, a uma máquina abstrata para qual todo o desejo tende
e que é a própria virtualidade que percorre o processo todo. É por essa
máquina abstrata que se chega à esquiza – outro conceito delineado em O
Anti-Édipo. A esquiza é essa linha abstrata que serve de linha de fuga para
todo o sistema englobado no agenciamento maquínico. Linha de fuga porque é
por essa possibilidade aberta pela esquiza de que algo escape em direção ao
polo esquizofreneizante. De que o agenciamento seja percorrido por um fluxo
esquizo. Para Deleuze e Guattari “fluxo-esquiso” é o contrário da
esquizofrenia. Nesta, todos os sentidos deslizam sem a possibilidade de um
corte significante. O “fluxo-esquizo” é a possibilidade assegurada de trânsito
com essa linha de fuga, com e através da esquiza. Pela abstração o
agenciamento escapa aos sentidos codificados. Há, como chamam Deleuze e
Guattari, uma desterritorialização, isto é, um apagamento da delimitação dos
sentidos dados. Na esquizofrenia os limites impostos pelo sentido são
completamente apagados, sem a possibilidade de uma de que um corte possa
gerar um novo sentido. Tudo desliza num puro fluxo em direção ao FORA da
linguagem – a um puro campo de sentidos em aberto. O “ fluxo-esquizo” não
se comporta dessa maneira. Ele é um investimento do desejo sobre o campo
imediatamente social político e econômico. É o fluxo esquizo que faz com que
algo escape aos códigos. Ele desterritorializa. Sempre.
A arte trabalha basicamente com fluxos-esquizo. Com a literatura não é
diferente. Em certo sentido, uma poética nada mais é do que a montagem de
uma máquina de escrita com um plano de se atingir a esquiza, a linha de fuga
pela qual toda a linguagem assume um devir minoritário. Isto é, a linguagem
passa a dar voz ao que lhe é menor, aos sentidos que são uma virtualidade em
seu interior mas que ficam obstacularizados pelas codificações e
territorialidades do estabelecido, do já codificado. Se a poesia é, antes de tudo,
um processo de construção de novos sentidos, de produção portanto, ela
trabalha necessariamente com uma desterritorialização da linguagem.
6. Agenciamento jornalismo-literatura
Toda esse percurso levado aqui sobre o agenciamento maquínico do
desejo tal como ele é exposto no O Anti-Édipo se dá em função de fixar as
bases sobre as quais os dois pensadores constrõem um conceito que irá está
presente em toda sua obra conjunta e que é tratado aqui como fundamental
para entender o agenciamento que Torquato Neto produz entre jornalismo e
literatura: o rizoma.
Um rizoma é um agenciamento de um tipo muito especial. Ele aparece
pela primeira vez formulado ainda no Anti-Édipo, na página 57 da tradução
brasileira. Um rizoma surge da evolução a-paralela como resultado do
encontro, do agenciamento, entre dois códigos heterogêneos. Segundo
Deleuze e Guattari, um rizoma é uma estrutura que se forma quando dois
códigos exercem uma desterritorialização mútua, ou seja, de seu encontro
forma-se uma terceiro termo neutro, um corpo-sem-órgãos, pelo qual ambos
os códigos agenciados transmutam-se mutuamente.Um rizoma é uma
desterritorialização que um código provoca sobre outro em reciprocidade. O
exemplo apontado por Deleuze e Guattari é o da vespa e da orquídia:

“ [...] Cada cadeia captura fragmentos de outras cadeias


de que tira uma mais-valia, como o código da orquídea „
tira‟ a figura de uma vespa: fenômeno de mais-valia de
código.”87

Por mais-valia entende-se um sentido suplementar, um excedente na


produção de sentido. Um rizoma também pode ser entendido como uma
hibridização de códigos. Sempre que há um encontro entre dois códigos e a
87
Op. Cit. P57
formação de um rizoma, ambos os códigos engendram um código mestiço,
desterritorializado.
Na literatura, segundo Deleuze e Guattari, isto acontece ao longo de
uma uma linha quebrada, que se interrompe durante um longo período para
reaparecer repentinamente em um dado momento em condições
completamente diferentes. Hölderlin, Beckett, D.H.Lawrence, Hoffmansthall
– todos com perfis heterogêneos, mas que possuem como linha que os une o
fato de em algum momento suas obras se colocarem como uma
desterritorialização dos sentidos dados. O exemplo mais caro a Deleuze e
Guattari será o do escritor checo Franz Kafka. Tanto que o segundo livro de
Deleuze e Guattari será inteiramente dedicado à análise dos problemas
lançados em O Anti-Édipo do ponto de vista da literatura de Kafka.
Deleuze e Guattari localizam na obra de Kafka um fenômeno particular
que será marcante na construção dos conceitos que estes pensadores dedicam
à literatura. De origem judaica e morando em Praga, Kafka construiu sua obra
imerso numa conjunção de línguas diferentes marcada pela heterogeneidade
de códigos. A língua oficial falada nas repartições públicas era o alemão. Mas
um alemão desterritorializado pelo ídiche – língua minoritária. Ao mesmo
tempo Kafka fora educado na segundo as tradições de sua família, tendo como
língua em seu espaço privado o hebraico. A leitura que Deleuze e Guattari
propõem sobre a obra de Kafka é pautada pelo resultado do encontro desses
dois códigos provenientes de territorialidades bem marcadas. Segundo estes
pensadores, Kafka produz com sua maneira de escrever uma literatura menor.
Não no sentido de uma literatura fraca, de valência diminuída. Tampouco uma
literatura de minoria, mas uma literatura que se produz como estrangeira
dentro de uma língua. Uma maneira particular de escrita que imprime uma
dicção outra aos códigos territorializados da língua. Uma dicção que dá voz
aos sentidos minoritários, moleculares, à virtualidade que percorre uma língua
e que abre a possibilidade deque ela sofra uma desterritorialização.
Segundo Deleuze e Guattari, uma literatura menor sempre começa pela
formação de um rizoma. Neste sentido, uma literatura menor só é possível
quando se provoca com a escrita uma desterritorialização da linguagem e de
seus sentidos dados. Há um encontro entre códigos heterogêneos e, deste
encontro, define-se uma evolução a-paralela na qual um código captura algo
do outro mutuamente. Dessa maneira Kafka é um exemplo de literatura menor
por libertar os sentidos numa linha de fuga que transforma o alemão por
imprimir-lhe uma dicção minoritária.
Seguindo a citação de Proust à qual Deleuze e Guattari recorrem, “os
mais belos livros parecem ser escritos numa língua estrangeira”. Essa não é
uma característica exclusiva da obra de Kafka. Samuel Beckett também
produz uma literatura menor, não só pelo fato de ser um irlandês que produziu
em francês a maior parte de sua obra, mas principalmente porque o francês e o
inglês saem transformados, atingem uma dimensão que antes não atingiam.
Ambas as línguas são desterritorializadas e reterritorializam-se segundo um
devir minoritário, ou seja, segundo as vozes menores, à virtualidade dos
sentidos que lhes são interiores.
Isto não se restringe ao modo pelo qual Kafka monta sua máquina
literária. Diferentes tipos de elementos podem compor um agenciamento e
formar com isto também uma estrutura em rizoma. Isto pode acontecer no
cruzamento entre quaisquer tipos de códigos em que haja uma
desterritorialização mútua na qual um elemento produz no outro um devir
segundo a sua ordem. Pode-se entender este devir produzido pela formação de
um rizoma como a mais-valia de código da qual falam Deleuze e Guattari. Um
excedente que é produzido e passa a proliferar de maneira independente (a-
paralela) aos termos que o formam em seu agenciamento, provocando com
isto uma desterritorialização em ambos os códigos que lhe deram origem.
Considerando que Torquato Neto agencia jornalismo e poesia como o
fundamento de toda a sua poética pós-tropicalista, pode-se entender essa
articulação como a montagem de uma máquina de escrita que irá produzir uma
das poéticas mais singulares da recente história literária e jornalística
brasileira. Colocam-se ambas as designações em conjunto porque ambas se
amalgamam de tal forma que separá-las seria perder uma dimensão
fundamental do que as sustenta, que é exatamente a indissolubilidade de seu
encontro. O corpus torquatiano é rarefeito 88. Fragmentado, é composto pelos
estilhaços de uma explosão programada. Um assalto aos códigos e uma
expropriação dos sentidos. A guerrilha deflagrada pelo poeta que desfolha a
sua bandeira é uma guerrilha dentro da própria linguagem e seus limites.
O limite mais clara pelo qual essa guerrilha avança é a fronteira entre o
jornalismo e a literatura. A obra de Torquato surge postumamente na
coletânea que Waly Salomão, seu amigo, e Ana Duarte Araújo, sua viúva,
organizam principalmente com o material publicado da Geléia Geral. Últimos
Dias de Paupéria é um retrato cubista de um vampiro, um ser d´entre-mundos.
Na relação jornalismo literatura Torquato Neto colocou-se sobre o hífem, não
como sinal de subtração, como se ambas as práticas de escrita fossem
excludentes, mas como índice de uma conjunção indissociável. Entender sua
poética passa necessariamente por uma apreciação do significado de sua
coluna na história do jornalismo brasileiro.
Da conexão entre literatura e jornalismo surge a máquina, isto é, o
modo de produção de sentidos da escrita de Torquato Neto. Nem jornalismo,
nem poesia, mas ambas as coisas ao mesmo tempo e potencializadas segundo
88
Leminski
a valência dos códigos que se transformam mutuamente. Em outras palavras, a
Geléia Geral foi um espaço dentro do jornalismo brasileiro em que foi
produzido um rizoma. Uma desterritorialização de códigos. E, segundo
Deleuze e Guattari, toda vez que isto acontece tem-se um devir menor que se
manifesta através da literatura. É significante que no Brasil tenha acontecido
um fenômeno na recente história do jornalismo que receba exatamente o nome
de imprensa nanica – o que aponta para um devir menor da imprensa também,
não pela coincidência do campo semântico do nome, mas por essa imprensa
nanica dar voz a um discurso que se queria apagado, amordaçado.
Como bem explicam Deleuze e Guattari em seu livro sobre Kafka,
menor aqui nada tem a ver com um decréscimo da potência literária de um
texto, senão a capacidade de que determinado estilo tem de provocar um
curto-circuito na linguagem que passa a dar voz ao que os sentidos
estabelecidos segundo os códigos dominantes e instituídos encobriam, a um
sentido menor encoberto pelo funcionamento ordinário, normal da linguagem
mesma89. Tomando como base este conceito de literatura menor de Deleuze e
Guattari fica claro a picada que Torquato Neto abre na selva de signos de
pindorama. Entradas e bandeiras desfolhadas numa terra sem fronteiras.
Encarar a linguagem como um continente que se acaba de descobrir.
Desfolhar a bandeira para ocupar espaço – construir uma máquina desejante
que do jornalismo produza poesia. Subverter o uso – Torquato Neto, o
vampiro bricoleur.

89
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix. Kafka – por uma literatura menor. Rio de Janeiro, Imago, 1976.
6.1 A Geléia Geral

O nome da música que depois se transformou numa das experiências


mais radicais no jornalismo brasileiro foi um empréstimo que Torquato fez do
poeta Décio Pignatari90. A expressão “geléia geral” traz em si originalmente
os sentidos de indefinição, inconcistência, estado transitório, e todo o campo
semântico que pode ser desdobrado a partir destes sentidos. Foi utilizada por
Pignatari para nomear o “coro dos contentes” da indefinição generalizada e
passiva na qual se encontrava a poesia brasileira que não tinha potência para
romper com com o estabelecido. Pignatari propunha a imagem de “medula e
osso” como antítese para a “geléia geral que aí está” , ou seja, de que uma
proposta legítima numa perspectiva estética moderna deveria ser algo que se
afirma de si mesmo, de sua própria concretude e que assuma uma posição de
resistência em relação à ordem estabelecida. Para Torquato Neto é esta
exatamente a imagem do “poeta que desfolha a bandeira/ na Geléia Geral
brasileira/ que o jornal do Brasil anuncia”. O poeta deve conquistar novos
espaços numa atitude de resistência ativa à ordem estabelecida, seja ela no
contexto político com a interdição à liberdade de expressão ou em relação a
clichês e maneirismos no plano estético.
A expressão que nasceu num artigo que Pignatari publicou na revista
“Invenção” tornou-se um nome-síntese para toda a trajetória de Torquato. É a
partir dessa expressão-síntese que se torna possível pensar o silêncio que há
entre a tropicália e o “desbunde” pós-tropicalista de Torquato. Silêncio
“silencifrado”91 do auto-exílio de 69 a 71 entre a França e a Inglaterra. De

90
O termo aparece num texto de Pignatari publicado na revista Invenção.
91
Do verso “ ... os brazas e os brazões silencifrados...”, numa apropriação de “... as armas e os brazões
assinalados” -Do poema de Torquato “ arena a: festivaia – gb” (Últimos Diasde Paupéria p.372.)
volta ao Brasil no começo de 71, Torquato ocupa espaço na Última Hora e
Geléia Geral passa a ser o nome da sua coluna. “O poeta desfolha a sua
bandeira”. O jornal é sua bandeira, não como símbolo mas como marca de um
território do qual se toma posse. Esse território, no caso é o espaço de
exposição que a circulação de um jornal da grande imprensa da época tinha a
oferecer. Tomada a posse, ocupado o espaço, a Geléia Geral torna-se o
principado do Nosferatu Brasileiro. Um vampiro apropria-se de um sistema de
circulação, sempre. E com Torquato não seria diferente. A Geléia Geral passa
então a ser o plasma que alimenta a sua produção a partir do circuito garantido
pelo Última Hora. É como na maldição de um vampiro, que transforma em
sua igual toda e qualquer vítima. Um vampiro apropria-se do que lhe é
essencial, sua identidade. Quando então um vampiro como Torquato Neto
procura um grande sistema circulatório como o de um jornal, além de extrair
um fluxo vital ao cravar suas presas também apropria-se da identidade desse
sistema circulatório. O jornal passa a cumprir uma função outra da que lhe era
própria. Torquato Neto captura o jornal como um elemento fundamental de
sua estética pós-tropicalista.
O jornalismo passa então a assumir outro estatuto, principalmente em
suas relações com a literatura, pois o seu princípio está justamente neste fim
outro que lhe é dado pelo poeta que desfolha a bandeira. Entender qual é esse
novo fim ao qual o jornalismo passa a servir na produção de Torquato Neto é
a tarefa que será perseguida aqui. Essa readequação tal como Torquato Neto a
empreende é própria do processo do bricoleur – uma subversão do uso.
Torquato Neto participou diretamente do tropicalismo como
compositor. Amigo do artista plástico Hélio Oiticica, ficou conhecido como o
“Nosferato Brasileiro”, por sua atuação no filme de Ivan Cardoso rodado em
super-8. O tom de sua coluna no Última Hora é, muitas vezes, confessional,
dada a proximidade com as figuras sobre as quais escreve: Caetano Veloso,
Glauber Rocha, Gilberto Gil e o próprio Oiticica. Em paralelo à atitude destes
amigos e artistas, Torquato vai imprimir em sua coluna uma maneira
“tropicalista” de construção do texto jornalístico. Como em suas poesias,
trabalhará com uma profusão de citações, subvertendo-as a todo momento; um
trabalho antropofágico de bricolage que resultará num estilo de texto que tem
no fragmento o seu princípio constituitivo.
O bricolage92 é uma subversão do uso, a descontextualização da função
original de algo que passa a cumprir um novo sentido na totalidade da qual
passa a ser um dos fragmentos. Mas também ainda há no bricolage o sentido
de montagem de fragmentos heterogêneos, como em certa medida também se
faz no cinema. A montagem é uma maneira de articular um discurso
polifônico e é um dos fundamentos da arte moderna. Esse processo de
montagem, que como Décio Pignatari93 observa, fundamenta um
construtivismo da linguagem de Torquato Neto na Geléia Geral, é o seu
elemento principal. A Geléia Geral na Última Hora foi o espaço de fundação
de um discurso híbrido que transita entre o poético e o factual, assim como
observou o poeta Paulo Leminsky.
A maneira pela qual Torquato Neto constrói sua experiência nas páginas
da Última Hora transforma ao mesmo tempo sua poesia e sua maneira de fazer
jornalismo. Poesia e jornalismo são duas formas de se habitar a linguagem
com diferenças marcantes. São dois reinos assim como um vampiro se coloca
entre o mundo dos vivos e o dos mortos. Um vampiro é por definição um ser
marginal. A estética marginal de Torquato Neto desenvolve-se num espaço
assim, entre-margens. A Geléia Geral mantem-se num trânsito constante entre

92
DELEUZE-GUATTARI.Anti-Édipo, p-15: “ É por isto que somos todos bricoleurs, cada um suas
pequenas máquinas
93
in “Torquato Neto – o anjo torto da Tropicália, de Ivan Cardoso.
estas duas margens. Daí a radicalidade da sua experiência fundadora de uma
estética singular. A Geléia Geral e a terceira margem do rio que separa o
jornalismo da poesia.

6.2 - Estética marginal

Várias são as origens da estética marginal na arte brasileira da Segunda


metade do século. A primeira delas certamente está na obra “Bólide Caixa 18
– homenagem a Cara de Cavalo” do artista plástico Hélio Oiticica – um
grande estandarte com a figura do famoso fora-da-lei estampada logo acima
da frase “ Seja Herói – Seja Marginal”, durante uma festa de “lançamento” do
tropicalismo, também foi o motivo suficiente para a repressão baixar as portas
da boate Sucata no Rio de Janeiro.
Outro momento importante na composição da estética marginal foi o
filme “O Bandido Da Luz Vermelha”, de Rogério Sganzerla. O filme é uma
colagem de citações que cruzam as experiências da nouvelle vague de
Goddard a algo já presente no cinema de Nelson Pereira dos Santos dirigindo
Boca de Ouro, de Nélson Rodrigues. “Quando a gente não pode nada, a gente
se avacalha e se esculhamba”, afirma o protagonista da trama que, assim como
“O Boca de Ouro”, é pontuada pela narração jornalística de uma voz em off.
Essa marginalidade é alegórica - é a condição do Brasil e do terceiro mundo
frente aos países desenvolvidos.
Tal estética surge como um prolongamento da “estética da fome‟ de
Glauber Rocha, mas se há uma relação com o Cinema Novo, esta é uma
relação de ruptura. Em Glauber ainda há uma utopia, uma redenção marcada
para “o dia em que o sertão vai virar mar e o mar virar sertão”. O cinema
marginal, que sucede ao Cinema Novo, já se investe de um ceticismo
corrosivo, onde o alvo é si mesmo, ou seja, a própria condição de se fazer
cinema no Brasil - o que isto significa. Este ter como alvo a si mesmo é
figurado pelo próprio “Luz”, protagonista e anti-herói (assim como no
estandarte de Hélio Oiticica; “seja herói, seja marginal”) do filme de
Sganzerla que se suicida à maneira de um pierrot le fou, de Godard, enrolando
um fio elétrico pelo corpo e causando um curto-circuito que o fulmina tanto
quanto ao delegado canastrão que o perseguia. Tática kamikase.
Da mesma maneira, Torquato Neto tinha como protocolo este “curto-
circuito-kamikaze”. Sabotagem das grandes estruturas; introdução de um
fluxo codificado de modo a fazer as engrenagens da grande máquina
jornalística rangerem, emitindo um som, uma voz que não lhe é própria -
produzir um curto circuito nesta máquina técnica, nem que para isto seja
necessário consumir a si próprio neste processo. Cravar os dentes, extrair
vitalidade e transformar a vítima. Suicida, “estourou todas as pontes que
poderiam ser um retorno”, palavras de Waly Salomão.
A “Geléia Geral” tem como característica fundamental ser um espaço
onde emergiu um tipo de discurso sem gênero definido, supra-genérico, onde
crônica, poesia, jornalismo e literatura se misturam numa indistinção
provocada por um procedimento de montagem (técnica de cinema e que
instaura um discurso formado por vozes heterogêneas que se cruzam no
campo da intertextualidade 94). Um espaço marginal.
O Bandido da Luz Vermelha, uma das figuras-síntese do cinema
marginal. remete em perspectiva ao próprio Macunaíma de Mário de Andrade
94
Característica já apontada por Celso Favaretto em seu estudo sobre a Tropicália.
, na eleição de “um herói sem caráter”, de um anti-herói, de um trickster como
figura central de uma obra. Isto também está na letra de Torquato, “marginália
II”: eu, brasileiro, confesso / minha culpa meu pecado/ meu sonho
desesperado/ meu bem guardado segredo/ minha aflição...” . No caso,
Torquato Neto elegeu a si mesmo como anti-herói de seu drama.
O ponto de partida dessa atitude que assume a marginalidade como
condição primeira de uma arte legítima é a tomada de consciência do
desencanto que este gesto de deserção significa. A arte marginal é uma arte de
desertores, e como tal, impõe seu preço. A pesquisadora Heloísa Buarque de
Hollanda avalia o momento no qual a “Geléia Geral” aconteceu da seguinte
maneira:

“A marginalidade é tomada não como saída alternativa,


mas no sentido de ameaça ao sistema; ela é valorizada
exatamente como opção de violência, em suas
possibilidades de agressão e transgressão.”95

É uma arte que não se entrega, como diria Adorno, à “felicidade


fraudulenta da arte afirmativa”96. O nome de Torquato Neto é evocado como
o grande precursor da geração da “poesia marginal” que lhe seguiu, talvez
porque ela tenha sido o mais marginal de todos ao eleger como anti-herói a si
mesmo.

95
HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Op.cit.p.68.
96
in MATTELART, Armand e Michele. História das teorias da comunicação. São Paulo, Edições Loyola,
1999. p.76-77.
Ao analisar “Bandido da Luz Vermelha”, o crítico Ismail Xavier 97
observa a citação que Sganzerla faz de “Pierrot Le Fou”, de Goddard. Em
ambos os filmes há uma concordância: a um anti-herói só resta a morte como
desfecho de seu drama. Em ambos também esta morte é um suicídio – recusa
radical, linha de fuga que se transforma em paixão pela abolição. Haverá um
limte maior para a deserção?
Um anti-herói é um ser trágico por definição. Tudo indica, portanto, que
a marginália de Torquato Neto foi um ato de deserção e que a Geléia Geral foi
o seu diário. Com ela, Torquato desenvolveu uma forma de escrita que
também deserta de categorias e gêneros que venham se colocar como formas
pré-estabelecidas, como margens que definam os limites de seu estilo. Uma
estética marginal, portanto, seria aquela então que teria como marca
fundamental a impossibilidade de uma classificação. A marginalidade de
Torquato reside na constatação de que ele a atingiu como fato de linguagem.
A Geléia Geral está à margem do discurso poético e do discurso jornalístico
ao mesmo tempo – ela serve de meio pelo qual brotam ao mesmo tempo as
duas formas de discurso. A Geléia Geral é um rizoma. Ela é uma mestiçagem
destas duas formas de discurso. A deserção está no aspecto furtivo aos gêneros
que o tipo de discurso que povoa a Geléia Geral.
O verbo desertar tem como primeiro sentido a ação de tornar deserto,
abandonar, fugir, retirar-se. Há uma tripla deserção na Geléia Geral: a poesia
deserta de si mesma, da mesma maneira o jornalismo deserta do que lhe é
próprio e Torquato Neto serve-se de sua coluna como o registro do seu
processo de deserção do mundo. É nesse sentido que a deserção é uma fuga.
Esse abandono do que é próprio é um colocar-se em devir, um tornar-se outro.

97
XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento – cinema novo, tropicalismo, cinema marginal. São
Paulo, Brasiliense, 1993. p.71-97.
Nem poesia, nem jornalismo. Seja Herói – Seja marginal. Há a afirmação
paradoxal ao mesmo tempo de valores tidos como antagônicos – certamente
uma influência direta do tropicalismo, no qual o novo e o arcaico eram
trabalhados da mesma maneira. Em nenhum momento esta articulação de dois
termos em princípios antagônicos é vista como excludente. Ambos os sentidos
afirmam-se ao mesmo tempo. Este procedimento na Geléia Geral torna-se um
disfarce pelo qual Torquato Neto constrói sentidos fluídos, insuspeitados,
através de uma linguagem fragmentada e poliédrica.
Esta forma construtivista de lidar com a linguagem já está na letra da
música que deu nome à coluna de Torquato Neto. A letra de Geléia Geral é a
seguinte

Um poeta desfolha a bandeira


E a manhã tropical se inicia
Resplandente cadente fagueira
Num calor girassol com alegria
Na geléia geral brasileira
Que o jornal do brasil anuncia

Ê bumba iê, iê boi


Ano que vem mês que foi
Ê bumba iê, iê, iê
É a mesma dança, meu boi

“ a alegria é a prova dos nove”


e a tristeza é teu porto seguro
minha terra é onde o sol é mais limpo
e mangueira é onde o samba é mais puro
tumbadora na selva-selvagem
pindorama, país do futuro

Ê bumba iê, iê boi


Ano que vem mês que foi
Ê bumba iê, iê, iê
É a mesma dança, meu boi

É a mesma dança na sala


No canecão na TV
E quem não dança não fala
Assiste a tudo e se cala
Não vê no meio da sala
As relíquias do brasil:
Doce mulata malvada
Um elepê de sinatra
Maracujá mês de abril
Santo barroco baiano
Superpoder de paisano
Formiplac e céu de anil
Três destaques da portela

Carne seca na janela


Alguém que chora por mim
Um carnaval de verdade
Hospitaleira amizade
Brutalidade jardim

Ê bumba iê, iê boi


Ano que vem mês que foi
Ê bumba iê, iê, iê
É a mesma dança, meu boi
Plurialva contente e brejeira
Miss linda brasil diz bom dia
E outra moça também carolina
Da janela examina a folia
Salve o lingo pendão dos seus olhos
E a saúde que o olhar irradia

Ê bumba iê, iê boi


Ano que vem mês que foi
Ê bumba iê, iê, iê
É a mesma dança, meu boi

Um poeta desfolha a bandeira


E eu me sinto melhor colorido
Pego um jato viajo arrebento
Como roteiro dosexto sentido
Foz do morro, pilão de concreto
Tropicália, bananas ao vento

Ê bumba iê, iê boi


Ano que vem mês que foi
Ê bumba iê, iê, iê
É a mesma dança, meu boi

Nota-se esse procedimento de bricoleur com as palavras na estrofe que é


recitada: “É a mesma dança na sala /No canecão na TV /E quem não dança
não fala / Assiste a tudo e se cala /Não vê no meio da sala /As relíquias do
brasil: /Doce mulata malvada /Um elepê de sinatra /Maracujá mês de abril /
Santo barroco baiano /Superpoder de paisano /Formiplac e céu de anil/ Três
destaques da portela... Essa enumeração das “relíquias do Brasil” já é a marca
do construtivismo, da colagem como elemento fundamental na escrita de
Torquato Neto.
A disposição de elementos que não possuem uma relação entre si cria
toda uma rede de significações em aberto. Os sentidos são construídos pelo
contágio que um verso provoca no outro, assim como um vampiro engendra
sua descendência. O vampirizado se torna um vampiro que transformará sua
vítima em um outro vampiro e assim por diante. É uma síntese conectiva.
Nosferatu no Brasil faz os sentidos se vampirizarem.
Mas por geléia, ou gel, entende-se um estado intermediário entre o
sólido e o líquido. Um estado fluído e denso ao mesmo tempo assim como o
poeta-artista herói & marginal. Herói porque intermediário, como para os
gregos, entre os deuses e os homens. Marginal pelo assalto aos sentidos dados.
O poeta é aquele que rouba à linguagem algo que ela escondia nas dobras de
suas redundâncias. Marginal também porque inclassificável, como toda uma
linha quebrada de inclassificáveis na história das artes e da literatura e do
pensamento: Artaud, Rimbaud, E. A. Poe, Nietzsche e o próprio Hélio
Oiticica, todos figuras às quais qualquer rotulação deixa a desejar. Mais uma
vez reafirma-se a marginalidade de Torquato Neto à deserção, a uma atitude
que procura desvincular-se de qualquer sentimento de pertença a uma margem
que lhe sirva de limite, a um rótulo que o classifique. A qualquer coisa que se
coloque como um ponto de parada a Geléia Geral responde com a fluidez que
lhe é própria. Algo sempre escapa. Fluxos fogem em todas as direções. Os
sentidos deslizam.
Italo Calvino escolheu como a primeira de suas seis proposições para o
próximo milênio a leveza. Este conceito, segundo o autor italiano, é
fundamental na literatura e na arte, pois ele é a concretização da possibilidade
de que algo fuja dentro da obra, de que algo possa alçar vôo. Line of flight
(literalmente linha de võo) em inglês significa linha de fuga – o que remete ao
conceito de desterritorialização de Deleuze e Guattari. Neste sentido há uma
leveza de uma qualidade muito delicada na escrita de Torquato Neto. A leveza
de uma sombra que se projeta através de uma superfície translúcida. A sombra
como transparência seria uma condição em que o olhar deixa de incidir sobre
o mundo para incidir sobre a pópria possibilidade de um olhar, a prospecção
do ego que lhe anima. Um olhar que é o fundamento de uma escrita que serve
como desdobramento de si mesmo. Desdobrar-se é emitir um duplo – projetar
uma imagem de si mesmo de maneira a reconhecê-la como tal. É uma ilusão,
um efeito como no conhecido verso de Rimbaud “Eu é um outro”. O primeiro
de todos os duplos é a própria sombra assim como o sujeito é um efeito que se
projeta quando se escreve. Se Torquato Neto é o Nosferato no Brasil, então
não há limites que dividam a sua vida de sua obra. Como escreve o filósofo
Clement Rosset, “o vampiro não tem duplo porque ele é o duplo de si
mesmo”98.

98
ROSSET, Clement. Op.cit.
6.3 - Cordiais Saudações

Torquato Neto inaugura a Geléia Geral na Última Hora carioca com o


mesmo ritmo intenso e em forma de colagem que já está presente em sua
canção em parceria com Gilberto Gil. Há um mesmo andamento e uma forma
própria de enumerar as “ relíquias do Brasil” que dá o tom da colagem com
que a coluna de Torquato abre suas “Cordiais Saudações” em 19 de agosto de
1971:

“Ligue o rádio, ponha discos, veja a paisagem, sinta o


drama: você pode chamar isso tudo como bem quiser. Há
muitos nomes à disposição de quem queira dar nomes ao
fogo, no meio do redemoinho, entre os becos da
tristíssima cidade, nos sons de um apartamento apertado
no meio de apartamentos.”99

O tipo de construção fragmentada, marca própria do processo de


colagem é similar à canção Geléia Geral, como no seguinte trecho:
“ É a mesma dança na sala
No Canecão, na TV
E quem não dança não fala
Assiste a tudo e se cala
Não vê no meio da sala
As Relíquias do Brasil:
Doce mulata malvada

99
Últimos Dias de Paupéria, p.23.
Um LP de Sinatra
Maracujá, mês de abril
Santo barroco baiano
Superpoder de paisano
Formiplac e céu de anil (...)”100

Quando se coloca em contiguidade dois trechos de diferentes registros


de Torquato Neto como os apresentados acima, percebe-se um princípio
subjacente a ambos que é próprio do estilo que vai estar presente em toda a
sua produção. Este princípio que imprime seu ritmo característico na
construção de imagens fragmentadas é a heterogeneidade dos códigos que são
tomados como base de sua poética. A mesma coisa acontece com a série de
verbos no imperativo que abre o texto inaugural de sua coluna. Há uma
velocidade própria que é sua característica fundamental, seja nas letras de suas
canções, seja na sua produção na Geléia Geral e até mesmo nos registros de
seu diário quando interno de hospitais psiquiátricos. No plano da poesia este é
um procedimento construtivista que sugere relações com a técnica de
montagem cinematográfica. Diferentes planos são articulados de maneira a
provocar uma ligação discursiva entre elementos que entre si são díspares,
como na enumeração das “ relíquias” – esta é uma marca do tropicalismo que
está presente também na letra de Alegria, Alegria, de Caetano Veloso. O
próprio termo “relíquia” traz em sua carga semântica a noção de raridade, de
singularidade radical. Uma enumeração portanto, de relíquias, é uma ação que
estabelece um sentido comum a uma série de termos heterogêneos.
Quando Torquato Neto transpõe esse procedimento característico de sua
poética para o jornalismo, essa heterogeneidade de elementos não é tão clara
100
RENNÓ, Carlos (org.). Gilberto Gil – todas as letras. São Paulo, Companhia Das Letras, 1996. P.97.
assim. É uma diferença de códigos mais sutil ainda, que não reside tão
somente no aspecto da referencialidade que o discurso jornalístico tem como
um de seus fundamentos. Não é simplesmente um procedimento de reunir
elementos que pelo senso comum não tem uma ligação imediata sob uma linha
discursiva que lhes dê relativamente uma unidade segundo os sentidos que são
produzidos a partir de sua articulação. A heterogeneidade da qual Torquato
Neto se serve não é somente em relação aos referentes dados, mas a
articulação, o agenciamento entre códigos heterogêneos sobretudo. É que a
todo momento Torquato Neto faz funcionar em conjunto códigos que não
mantém uma relação direta entre si. Sua poética nasce desse nomadismo de
códigos. Como um vampiro, sua escritura está sempre se metamorfoseando e
assumindo diferentes códigos – diferentes registros.
No caso da letra de Geléia Geral, o resultado desse procedimento é uma
colagem vertiginosa de signos que constrõem um sentido metafórico da
fragmentação característica da cultura de massa. A mesma preocupação com a
cultura de massa está no parágrafo que abre sua coluna na Última Hora: “
Ligue o rádio, ponha discos, (...) (...) Isso aí eu li uma vez no Pasquim”.
Torquato Neto lida com essa fragmentação levando-a para dentro da própria
linguagem. A maneira pela qual a poesia é agenciada ao jornalismo que
Torquato Neto pratica cria uma mestiçagem entre códigos completamente
heterogêneos. Uma mistura monstruosa segundo o jornalista Karl Krauss 101. O
poeta e o jornalista assim como o médico e o monstro. É que toda a força da
poética que está nas letras de Torquato Neto também está em sua coluna na
Última Hora. Para ele mesmo não havia essa separação. Escrever era um
impulso onívoro de deglutição do mundo segundo a inspiração antropofágica
do movimento tropicalista, do qual Torquato foi um dos principais
101
KRAUSS, Karl. Ditos e Desditos. São Paulo, Braziliense, 1988.
articuladores. Tanto que ele próprio planejava incluir em seu primeiro livro
que nunca foi publicado - “Do Lado de Dentro” – o material publicado na
Última Hora. Torquato não separava jornalismo e poesia, vida e arte – vida e
morte. Vampiro trikster, mestre em apagar fronteiras e demarcações por onde
passou, a velocidade própria de seu estilo acontece na medida dos interstícios
e desvãos resultantes da conexão entre esses códigos tão diferentes. Viver dois
anos a dois mil anos-luz de casa102 – ir muito longe numa linha sem volta e
arrastando consigo para essa linha tudo o que se lhe aproximasse.
A velocidade é uma característica fundamental do texto de Torquato na
Geléia Geral. É através dela que se organizam os enunciados como um jogo de
disfarces para a enunciação que lhes subjaz. Um exemplo disto é a maneira
pela qual se passa de uma construção fragmentada no início do texto em
“Cordiais Saudações” para logo em seguida propor a leitura dos significados
estéticos e, principalmente, políticos do programa que Caetano Veloso
apresentou na TV com João Gilberto e Gal Costa em 1971. Subitamente
Torquato Neto envereda para uma linguagem já não tanto fragmentada e passa
a avaliar o momento histórico e as possíveis saídas que a atitude de Caetano
Veloso apresentando-se na TV sugerem. O tom de seu texto se torna cada vez
mais confessional e, se no início da coluna Torquato ironicamente se dirige ao
leitor no imperativo, no parágrafo final torna-se explícita a crítica à
passividade do leitor. A série de verbos no imperativo é uma série de
comandos, de palavras de ordem, como se a produção cultural e sua
assimilação pelo público fossem resultantes de uma ordem imposta
verticalmente. Torquato Neto ironiza assim a condição imposta pela censura à
produção cultural no país. Além disto, coloca ainda o próprio leitor de sua
coluna como personagem desse drama ao parodiar uma forma de discurso
102
“2000 light-years from home” – Their Satanic Majesty Request – Rolling Stones - 1968
autoritário exatamente para chamar a atenção para a necessidade de uma
postura ativa e crítica em relação à ordem estabelecida. Para Torquato a
apresentação de Caetano na TV sintetiza a necessidade de procurar “brechas”
para que a produção cultural no país fosse retomada segundo princípios da
liberdade de expressão e, ao mesmo tempo, apela para seu leitor uma posição
crítica do momento histórico:

“ É que enquanto você curte lá o seu tempo de espera,


enquanto você espera um dilúvio que apague o fogo, seu
ídolo, nosso ídolo, vem reafirmar tranqüilamente, para o
Brasil inteiro, que estar vivo significa estar tentando
sempre, estar caminhando entre as dificuldades, estar
fazendo as coisas, e sem a menor inocência. Os inocentes
estão esperando enquanto aproveitam para curtir
bastante conformismo disfarçado em lamúrias, ataques
apocalípticos e desespero sem fim. (...)
(...) Está na batalha. Não está nessa aí de esperar
sentado, chorando, curtindo à moda conformista como
fazem os inocentes (inocente é sempre útil) do meu
país.”103

Fica evidente então a ironia também do título “Cordiais Saudações”,


que contrasta imediatamente com a série de verbos no imperativo que abre a
coluna. Não há como ser “cordial” quando se dá ordens e é exatamente assim
que Torquato abre seu texto. Muito menos ainda, considerar-se inocente
simplesmente pelo fato de se assumir uma postura passiva em relação à ordem
103
Ibdem p.24.
estabelecida. O texto de Torquato revela a angústia e o impasse vivido por
quem produzia cultura num segundo momento da ditadura militar no país,
quando a luta armada já havia sido desmontada pela repressão. O exílio de
grante parte dos produtores culturais por questões ideológicas, o triunfalismo
do “milagre brasileiro” e o acirramento da censura traçavam um quadro de
desesperança e falta de alternativas. Também havia um fenômeno em igual
intensidade mas com direção oposta , as “patrulhas ideológicas” que só
reconheciam como legítimas formas convencionais de contestação, com um
discurso ortodoxo e conservador – assim como eram chamados, os “
esquerdofrênicos”. Daí sua cobrança em relação ao leitor de um rompimento
com o “ tempo de espera” e a “inocência”. Não de uma maneira convencional
e direta, mas o questionamento da ordem estabelecida vai passar a procurar
novos espaços de manifestação, e uma coluna num jornal da grande imprensa
certamente era este tipo de espaço para Torquato. Cumprindo a máxima de
que “não existe arte revolucionária sem forma revolucionária” não poupou
fogo em seus ataques kamikazes à linguagem.
As “Cordiais Saudações” do título não são as mesmas que fecham o
texto. Só então depois de chamar a atenção do leitor para a necessidade de
uma postura crítica e ativa e, sobretudo, transversal, em relação aos destinos
políticos do país é que as “cordiais saudações” do título deixam de ser irônicas
para estabelecer no final do texto um elo de simpatia entre o colunista e seu
leitor:
“ (...) E, por falar nisso, vocês ouviram direito De Noite
na Cama e Você Não Entende Nada? Bom, não é?
Cordiais saudações.”104

Na primeira Geléia Geral Torquato Neto trabalha no plano formal das


relações entre enunciado e enunciação o mesmo problema que o significado
político da apresentação de Caetano Veloso coloca – não é uma simples
apresentação em clima “cordial” com o regime militar. Naquele momento a
apresentação de Caetano indicava a possibilidade da retomada de uma
contestação da ordem estabelecida por outras vias que não as convencionais.
A cordialidade aqui é uma estratégia nada inocente. A contestação se mostra
possível a partir da afirmação de uma diferença radical.
Logo de início em “Cordiais Saudações” já se percebe a posição política
característica do período que ficou conhecido como “desbunde”. As
possibilidades de contestação já não são mais vistas em seus espaços
convencionais. É um eco do “é proibido proibir” colado de Caetano a partir de
uma pichação feita por estudantes em Maio de 68 na França. Toda forma de
contestação passa a ser reconhecida como legítima e o próprio cotidiano passa
a ser visto como o espaço para essa contestação. O sentido de contestação
política mesmo passa por uma transformação a partir do momento em que se
reconhece a necessidade de se resgatar o espaço público das limitações
impostas pela ordem vigente. É uma radicalização do “é proibido proibir”, o
desbunde foi a contestação do próprio sentido de contestação. Um curto-
circuito desejante.
Todos esses elementos estão presentes nessa primeira crônica de
Torquato Neto e marcam um prolongamento em relação à proposta estética do
104
Ibdem p.24
tropicalismo do qual ele fez parte. No “desbunde” colocam-se justapostas duas
posições que em sua base são contraditórias: uma decepção e descrença em
relação à contestação segundo suas formas convencionais e ao mesmo tempo
uma aposta exatamente nas formas vistas pela ortodoxia como alienadas – “a
alegria é a prova dos nove/ e a tristeza é meu porto seguro” 105. No caso de
Torquato Neto a mesma contradição é vivida a partir de sua escritura, na qual
convivem o discurso poético e o jornalístico. Torquato narra o fluxo dos
acontecimentos de seu tempo numa linguagem pautada pela referencialidade
ao real e ao mesmo tempo investe nos interstícios dos sentidos que sua poética
trabalha a partir da fragmentação como elemento constituitivo. Como Laura
Beatriz Fonseca de Almeida afirma em seu trabalho sobre a poesia de
Torquato Neto: “Dizendo sim a todos os exercícios experimentais livres e
alternativos, faz da linguagem a notícia da Geléia Geral Brasileira”.106 Isto
coloca a Geléia Geral como um momento muito especial do jornalismo
brasileiro. Quando é a própria linguagem que se torna notícia expõe-se algo
para o qual a professora Mayra Rodrigues Gomes chama a atenção:

“Há algo negligenciado nas reflexões sobre jornalismo.


Antes de registrar, informar, antes de ser colocado pelas
condições que o caracterizam, por exemplo,
periodicidade, universalidade, atualidade, difusão,
categorias que nos são dadas por Otto Groth, o
jornalismo é ele próprio um fato de língua.”107

105
Letra de Geléia Geral
106
ALMEIDA, Laura Beatriz Fonseca de. Um Poeta na Medida do Impossível (Trajetória de Torquato Neto),
tese de doutorado apresentada ao Departamento de Teoria literária e Literatura Comparada da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. p.113.
107
GOMES, Mayra Rodrigues. Jornalismo e Ciências da Linguagem. São Paulo, Haker Editores / Edusp,
2000. P.19.
Logo, a coluna de Torquato Neto é um documento adequado para se
pensar o jornalismo como fato de língua porque a todo momento essa
dimensão é trabalhada. Desde esta primeira crônica fica patente a total falta de
inocência de Torquato Neto no trato com a palavra. A linguagem é a notícia
de sua coluna. Daí a forma de jornalismo que Torquato pratica ser uma
extensão de sua poética. Não há como separar os códigos. Eles se amalgamam
numa “geléia” polifônica que produz um caldo espesso de sentidos que
escorrem por todos os lados. A Geléia Geral é a manifestação de uma escrita
refratária à categorização em gêneros. Ela surge da química entre o código
poético e o jornalístico que Torquato coloca em reação.
A velocidade do Vampiro da Tropicalia vem da fluidez de seu estilo,
que não para nunca de se transformar. Um vampiro é um ser em devir, ser
d´entre mundos – assim como no mito de Orfeu. Torquato Neto é o jornalista
vampiro e o poeta Orfeu encarnados ao mesmo tempo sob o signo do conflito
entre a meia-noite e o meio-dia. Uma forma de escrita que ao mesmo tempo
encobre e revela. Escrita hermética – o mito de Hermes como o deus
mensageiro entre o mundo dos deuses e dos mortais, o deus da aurora e do
arrebol: “Onde se vê noite, veja-se dia”108. “ Uma palavra: Deus e o
Diabo.”109 . A arte de Torquato Neto é uma arte de afirmação de extremos. A
contradição como fundamento já fazia parte do programa estético do
tropicalismo, com a mistura de materiais nobres x pobres que marca, por
exemplo, a obra de Hélio Oiticica, ou ainda o convívio do novo com o arcaico
que, segundo Celso Favaretto 110, é o elemento fundamental do “procedimento

108
Letreiro do filme “Nosferatu no Brasil”, do cineasta Ivan Cardoso, do qual Torquato faz o papel principal
que o associará à imagem do vampiro.
109
Op.cit.p.98 “Marcha à Revisão”
110
FAVARETTO, Celso. Tropicália Alegoria Alegria. São Paulo, Ateliê Editorial, 1996.
cafona” no disco coletivo do movimento quando então Caetano Veloso grava
um dramalhão de Vicente Celestino 111. Essa proposta estética do tropicalismo
subjaz na construção em que Torquato Neto joga com a tensão provocada
pelos sentidos opostos que uma mesma expressão pode tomar ao ser colocada
como título de sua crônica e, ao mesmo tempo, marcar o fim da mesma:
cordiais saudações.

6.4 - Palavra de Torquato

Em paralelo à volatilidade dos códigos que se amalgamam no estilo


mantido por Toquato Neto em sua coluna, há também uma estética da citação-
apropriação - característica que trouxe da poética de suas letras do
tropicalismo. Cada letra de música permite uma leitura do intertexto que a
cruza pela maneira com que Torquato se apropria do que cita. Na Geléia Geral
acontece o mesmo. A todo momento Torquato Neto inscreve sua escritura
numa rede de intertextualidade.
O segredo da Geléia Geral é que ela nunca se fecha – como literatura
ela pode ser lida como uma verdadeira obra aberta112. Como jornalismo ela
significa uma maneira completamente diferente de se trabalhar o discurso
indireto. Como afirma Waly Salomão, Torquato Neto “esqueceu as aspas”113.
É assim que Torquato Neto se transforma num vampiro – apropriando-se da
fala do outro. Isto acontece quando logo na Segunda crônica Torquato faz um
recorte de uma entrevista de Glauber Rocha para a revista de Andy Warhol,

111
O nome da canção é “Coração Materno”. A faixa é a segunda do disco, ficando entre Miserere Nóbis, de
gilberto Gil e Capinan e Panis et Circenses, De Gil e Caetano gravada pels Mutantes.
112
ECO, Humberto. A Obra Aberta. São Paulo, Perspectiva, 1989.
113
SALOMÃO, Waly.
Interview. O nome da crônica neste dia (20/08/1971) é “Palavra de
Glauber”114. A maneira pela qual Torquato edita a entrevista do cineasta já
abre campo para uma interpretação mais primitivista do modo de se fazer
cinema – tendência que mais tarde será desenvolvida diretamente na
campanha que Torquato levou como sua bandeira desfolhada na Última Hora
– a defesa do cinema marginal – uma ruptura radical com todo o Cinema
Novo, inclusive Glauber Rocha.
Em outros momentos esse tipo de recurso será utilizado novamente,
chegando mesmo a Torquato abrir seu espaço na Geléia Geral para textos
inteiros de Hélio Oiticica, Waly Salomão, Chacal, Pedro Kilkerry, Augusto de
Campos. A relação com a poética que Torquato Neto desenvolveu durante os
anos do tropicalismo é direta. Assim como nas letras de Geléia Geral,
Marginália II, Let´s Play That e outras, existem apropriações de origens
heterogêneas: Carlos Drummond de Andrade, Oswald de Andrade, Beatles e
frases de para-choques de caminhão – tudo amalgamado numa mesma geléia.
Ao apropriar-se da fala do outro, Torquato subverte os sentidos – imprime sua
marca de vampiro e transforma a fala apropirada em algo do qual aquele de
quem a fala fora expropriada já não mais a reconheceria como sua.
Outra origem desta maneira de se produzir jornalismo está intimamente
ligada à estética tropicalista, especialmente em relação às canções compostas
por Toquato. O crítico Charles Perrone chama a atenção para a ligação da
poética das canções do tropicalismo com a poesia concreta a partir da leitura
que Celso Favaretto faz do movimento em “Tropicália Alegoria Alegria”.

“Todo esse relacionamento, assim como o do grupo


baiano com o grupo paulistano é analisado a nível
114
Op.cit. p.25.
teórico por Celso F. Favaretto em Tropicália: alegoria
alegria. Enfatizando objetos artísticos afins (revisão
crítica de cultura nacional, ânimo de renovação) em vez
de falar em influências diretas, Favaretto esclarece que
no tropicalismo há “um emprego reduzido dos
procedimentos típicos da poesia concreta (sintaxe não-
discursiva, verbi-voco-visualidade, concisão verbal)”.115

Esta é uma das matrizes da poética de Torquato Neto. Das letras do


tropicalismo para as páginas da Última Hora o que será levado adiante como
marca de seu estilo, além da estética de apropriação (inspirada na antropofagia
de Oswald de Andrade) será principalmente a sintaxe não-discursiva herdada
da influência da poesia concreta. A montagem e o fragmento são os elementos
básicos dessa sintaxe. A concisão verbal também, um dos elementos que dão
velocidade ao estilo da Geléia Geral. A letra da composição homônima de
Torquato reconhece já em seu título a dívida para com o grupo Noigandres:

“Uma outra ressonância direta do grupo concreto neste


disco-manifesto está na canção “Geléia Geral” (Gil-
Torquato Neto), cujo título foi extraído duma exclamação
de Décio Pignatari que aparece na introdução do número
5 da revista Invenção.”116

115
PERRONE, Charles. Poesia Concreta eTropicalismo. São Paulo, Revista da USP, 1990. P.56.
116
Ibdem.P.57.
Pode-se entender esta opção por uma “sintaxe não-discursiva” como
uma opção pelo não-dito como princípio. Uma estética do silêncio 117. É pelos
intervalos que a poética de Torquato Neto brota. Intervalo tanto no sentido de
espaço intermediário como no sentido musical mesmo do termo: diferença
entre alturas, diferença de registros portanto.
Convencionalmente o jornalismo é uma prática de afirmação do que
Gilles Deleuze e Félix Guattari definiram como palavra de ordem. Isto no
sentido de que existe uma dimensão da linguagem que sempre remete à sua
imanência. Diz-se alguma coisa sobre o que é dito. A linguagem jamais adere
ao real, mas se aplaca sobre ele:

“Se a linguagem parece sempre supor a


linguagem, se não se pode fixar um ponto de partida
não-lingüístico, é porque a linguagem não é
estabelecida entre algo visto (ou sentido) e algo dito,
mas vai sempre de um dizer a um dizer. Não
acreditamos, a esse respeito, que a narrativa
consista em comunicar o que se viu, mas em
transmitir o que se ouviu, o que um outro disse.
Ouvir dizer. Nem mesmo basta evocar uma visão
deformante vinda da paixão. A “ primeira”
linguagem, ou, antes, a primeira determinação que
preenche a linguagem, não é o tropo ou a metáfora,
é o discurso indireto”.118

117
Como fundamenta a crítica norte-americana Susan Sontag no primeiro capítulo de sua obra “A Vontade
Radical”, há em toda a arte produzida pela modernidade a presença marcante do silêncio como uma potência
que define a possibilidade de um discurso estético.
118
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil Platôs. Rio de Janeiro, 34, 1995, v.2, p.13.
A ordem em questão colocada pelos autores franceses é aquela já
antevista por Roland Barthes em sua aula inaugural no Colége de France,
quando este autor afirma que “a língua é fascista”. Isto quer dizer que a
linguagem impõe-se a partir de suas regras de produção de sentido. Portanto,
para que a linguagem “comunique” algo, antes é necessário que os sentidos
tornem-se comuns segundo suas regras imanentes. Antes de tudo a linguagem
dialoga consigo mesma, para além de qualquer ato de fala. É neste sentido que
existe, portanto, uma palavra de ordem:

“ Uma regra de gramática é um marcador de poder,


antes de ser um marcador sintático. A ordem não se
relaciona com significações prévias, nem com uma
organização prévia de unidades distintivas, mas sim o
inverso. A informação é apenas o mínimo estritamente
necessário para a emissão, transmissão e observação das
ordens consideradas como comandos.”119

Deleuze e Guattari afirmam dessa maneira que o fundamento da


linguagem é antes o discurso indireto do que a metáfora ou a metonímia. É só
a partir do discurso indireto que a linguagem pode se colocar no lugar de algo,
tropo, ou então recortar o real ao estabelecer relações entre fundo e forma,
parte e todo e assim por diante. Nesta perspectiva Deleuze e Guattari se
aproximam de Mikhail Bakhtin - teórico que na primeira metade do século
XX já via na intertextualidade o fundamento de toda a linguagem. Os autores
franceses creditam sua dívida ao soviético em sua obra Marxismo e Filosofia
119
Ibdem. P.12.
da Linguagem, em Mille Plateaux120, colocando-o ao lado de Pier Paolo
Pasolini com seu livro A Experiência Herética como inspiração para o
conceito de palavra de ordem. Dessa liga é possível retomar o procedimento
de citação-apropriação de Torquato Neto quando ele escreve em 30/11/1971:

“O que eu chamo de “ocupar espaço” está, de certa


maneira, naquele Teorema de Pasolini. Também não
seria aquilo, se a gente quiser assim, uma transa de
vampiro, um filme de terror? Melhor: uma história de
terror?
Ocupar espaço, num limite de “ tradução”, quer dizer
tomar o lugar. Não tem nada a ver com subterrânea (num
sentido literal), e está mesmo pela superfície, de noite e
com muito veneno. Com sol e com chuva. Dentro de casa,
na rua.”121

A apropriação para Torquato Neto é sua tática de guerrilha instalada


dentro da linguagem: “ocupar espaço”. Se, como afirmam Deleuze e Guattari,
todo enunciado é uma palavra de ordem, a poesia seria então um rompimento
com esta. A poesia torna impróprio o uso da linguagem que o poeta faz. O
poeta abusa da linguagem e, no seu excesso, a empurra para fora dos trilhos,
dos sulcos pelos quais se produz sentido segundo a ordem das redundãncias.
Dessa maneira é que se “ocupa espaço”, insuflando a linguagem para que ela
diga segundo um excesso. Toda poesia é uma produção desejante

120
Ibdem. P.13. nota 4.
121
Últimos Dias de Paupéria, p. 180 – “Filmes”.
desencadeada dentro da linguagem. Produção no sentido marxista mesmo,
segundo uma lógica do produto excedente como fundamento que gera um
valor. Desejante porque atualiza uma virtualidade que já percorre a linguagem.
“Ocupar espaço” na linguagem é fazer com que ela vá além de seus limites
convencionais. É fazer com que a própria linguagem passe a “ocupar um
espaço” que antes não lhe pertencia. Daí a apropriação na poética de Torquato
Neto ser oposta à redundância. Quando algo é citado na Geléia Geral, assim
como nas letras de Torquato, diretamente essa citação é “vampirizada”. Isto é,
há uma apropriação do sentido do enunciado, que passa a cumprir um novo
estatuto dentro do fluxo de sentidos que o estilo de Torquato produz. Torquato
Neto constrói com isto uma poética que se utiliza do discurso indireto como
forma de romper com a palavra de ordem. Se a linguagem impõe uma ordem
que lhe é imanente, essa ordem é assumida por Torquato Neto como uma
fronteira a ser apagada. Mas como fazer para se colocar fora da ordem da
linguagem se ela já se impõe antes mesmo de qualquer pensamento e de
qualquer enunciado?
Exatamente numa sintaxe não-discursiva. Uma poética rica em silêncios
enquanto potências de sentido como forma de “ocupar espaço” frente ao
estrangulamento da liberdade de expressão com a imposição da censura. Um
silêncio é um deserto na linguagem – um não-lugar porque ainda não
demarcado, agrimensurado. Ocupar espaço portanto é apropriar-se também
desse silêncio que repousa na potência da linguagem. Silêncio como não-
lugar. Como terra de ninguém. Deserto. Silêncio utópico de toda a poesia.
6.5 - Perder a fé

Ocorre também que ao dirigir-se para o deserto da linguagem na


tentativa de conquistá-lo uma parada brusca pode acontecer. Todos os sentidos
assumem uma velocidade sem parada sobre a superfície lisa do silêncio.
Todos os sentido se afirmam ao mesmo tempo já que a ordem dos mesmos
está na potência da linguagem. Isto pode levar a uma outra situação, com
outras conseqüências para quem procura por desertos dentro da linguagem.
Chega-se a uma situação em que, exatamente por apostar na virtualidade dos
sentidos que percorre a linguagem, acaba-se por não afirmar nenhum em
especial - é um silêncio fundamental à linguagem porque é a própria condição
para que algo possa ser dito. No caso de Torquato Neto a parada brusca se deu
com uma perda da “fé nas palavras” - a expressão é de sua própria autoria. É
nesse momento que os sentidos fogem para o FORA da linguagem com as
redundâncias que a fundamentam. É nesse momento que sua poética conquista
um contorno reconecível. No momento em que Torquato Neto perde sua fé na
palavra como poeta ele também “perde as ilusões” no jornalismo.
Algum tempo depois de admitida a perda dessa fé ele reconhecerá de
público em sua coluna que quem o ajudou a recuperá-la foi Waly Salomão.
Waly dirigiu o show de Gal Costa “A Todo Vapor”, que contou com uma
projeção de poesias e imagens durante as apresentações. Torquato reconheceu
na força da expressão conseguida por Waly o indício de que necessitava para
repensar sua posição e reabilitar sua a “ fé nas palavras”.
A poesia visual projetada durante o show de Gal foi idealizada por
Waly Salomão e por Rogério Duarte – uma série de palavras que com
alterações na grafia passavam a designar um sentido em aberto, como por
exemplo “VIOLETO”, escrito sobre a imagem de um por do sol na bahia de
Guanabara122. O jogo entre o sentido direto das expressões e neologismo de
VIOLETO colocam em interação a pura sensação das cores com a pura
materialidade dos sons que compõem as palavras – ao incidir sobre estas
articulações, o efeito sugere uma aproximação com a “nova objetividade” da
qual falava Hélio Oiticica em sua estética construtivista. Se nas artes plásticas
uma nova possibilidade de fruição se abria em função do sensorial, no plano
das palavras aconteceria o mesmo nos poemas visuais de Waly Salomão e
Rogério Duarte. Através de recursos gráficos se trabalhava com as
possibilidades sonoras que a palavra escrita abria a partir de sua materialidade
sígnica. Waly e Rogério Duarte colocam em relação tanto o sentido material
(isto é, visual e sonoro, sensorial portanto) da palavra quanto o sentido
enquanto processo de significação. Duplos sentidos, sentidos dobrados. Só
assim Torquato pôde reconsiderar uma “fé” nas palavras.
Quando então Torquato Neto afirma ter reestabelecido sua fé nas
palavras, isto quer dizer estas passam a cumprir uma outra função que não
apenas “imitar” o real, porque todas as ilusões já foram perdidas. A linguagem
deixa de ser entendida como um mero reflexo direto do real. “A linguagem é
um vírus”123 – isto é, uma forma não orgânica de vida, já que ela se reproduz a
si mesma ao se servir da fala de alguém. E ela também se reproduz por
contágio, por contigüidade de códigos. Foi isto que Torquato viu no show de
Gal Costa quando sons e cores foram agenciados de maneira a criar uma
“violência” no plano da linguagem para articular e produzir sentidos. À
coerção primeira da língua (langue), que obriga a quem quer produzir sentido

122
Acrescida à imagem também as palavras que jogam com o sentido entre o verbo ver e a cor verde: “VER
DE NOVO/ VER DE NOVO/ VIOLETO/ VEJO VIOLETO”.
123
William Burroughs.
a falar a partir de seu interior, é possível responder com uma outra forma de
“violência” que tem como objeto as próprias palavras e seu processo de
significação. O poeta é quem responde à coerção da língua de forma a
provocar um excesso que a faça transbordar sentidos que antes ela estancava.
Perder a fé nas palavras, portanto, seria fatal a quem, por paixão pela
linguagem, deixasse de apostar na possibilidade de concretização desse
excesso. No entanto, do ponto de vista do jornalismo este é um imperativo já
que o seu trato com a palavra pauta-se pela depuração da linguagem. A fé
perdida e a fé resgatada portanto são as duas faces do conflito entre o poeta e o
jornalista Torquato Neto.
O mesmo conflito está na obra de Hoffmansthal que é citada por Deleuze e
Guattari em Mil Platôs para definir o conceito de devir-anima – „ A Carta a
Lord Chandos”. Há uma convergência entre essa obra capital da literatura
moderna e a poética de Torquato Neto. Quando Torquato Netoem 03/11/1971
agradece ao poeta Wally Salomão o reestabelecimento na fé em relação às
palavras, isso indica que ele tinha experimentado um processo de inércia com
relação à elas que foi o mesmo experimentado pelo narrador que escreve a
carta na ficção de Hofmannsthal: uma : perda da “fé nas palavras”124. Essa
inércia discursiva parece ser uma marca da modernidade – a linguagem
dobrada ao indizível, isto é à experiência direta. Se por intermédio da
linguagem teremos sempre uma duplicação do real, ou seja, uma experiência
indireta, podemos então pensar em pelo menos uma modalidade de
experiência que seja direta: a experiência da própria linguagem. Em outras
palavras, quando a linguagem torna-se auto-referente, realizamos uma
experimentação ao mesmo tempo em que escrevemos sobre este processo.

124
Nessa obra marcante da modernidade, o escritor austríaco narra ficticiamente um drma similar ao de
Torquato, explicando os motivos de um afastamento da vida literária exatamente por uma “perda na fé das
palavras”.
Neste sentido os textos jornalísticos de Torquato Neto afirma-se por sua
modernidade, pois a todo momento demonstra-se a habilidade em lidar com
este plano de delusão em relação à linguagem. Não esqueçamos que Torquato
Neto se vale da figura estética do vampiro para articular sua poética na Geléia
Geral e, como sabemos, todo vampiro “não tem uma imagem de si mesmo”.
Essa imagem inexistente pode ser entendida aqui como a condição da
linguagem quando esta se auto-referencia. Dessa maneira não há a formação
de um duplo porque a própria natureza de duplicação que a linguagem opera
sobre o real é revelada. Não há mais mímese, isto é, imitação. Neste sentido é
fundamental pontuar o que significa essa “perda da fé nas palavras” de que
Torquato fala em sua coluna e Hofmannsthal em sua carta fictícia.
Ao descarnar o texto, o jornalismo impõe uma forma sóbria às palavras,
primando pela exatidão. É uma forma de escrita que tem como base o caráter
redundante da linguagem. Por princípio, em nenhum momento o jornalismo se
deixa seduzir pelas forças que atraem os sentidos para fora da linguagem.
Parte-se sempre de um plano no qual a linguagem é tratada segundo as suas
redundâncias em relação aos sentidos. É um tipo de texto que não joga com os
sentidos dados, até porque tem como princípio de legitimidade seu
compromisso fundamental com a correspondência para com a realidade. O
efeito de verdade é necessário e sempre presente num texto jornalístico
convencional. A referencialidade portanto sempre acompanhará essa
modalidade de textos. Pode-se então categorizar o texto jornalístico como uma
forma de escrita que incide sobre o eixo denotativo da linguagem, em
detrimento do conotativo. A ordem deve ser sempre direta portanto. Isto para
que haja precisão e uma referencialidade ao real legítima.
A literatura e, num contraste ainda mais intenso, a poesia, apostam no
polo oposto do que o jornalismo em relação à linguagem. Não a redundância
dos sentidos dados pelo senso comum, mas a ruptura com essa forma de texto.
Tanto na literatura como na poesia joga-se com os limites da linguagem. Daí
toda literatura e toda a poesia assumirem uma força que empurra a linguagem
para o seu FORA. Enquanto numa forma de produção de texto se trabalha uma
busca de referencialidade através do investimento na redundância dos
sentidos, na outra aposta-se tudo na diferença, no rompimento com os sentidos
dados. O jornalismo está ao lado da linguagem científica e a das leis, do lado
da razão. A literatura e a poesia do lado dos sonhos e dos mitos, da
imaginação. E essa era a divisão da linguagem para os gregos: logos, a face da
linguagem que explica as coisas de maneira racional e mythos, a outra face da
linguagem que narra os acontecimentos e que para isto se vale da imaginação.
Uma obra literária encena esse drama dos polos opostos da linguagem que por
algum motivo são forçados a um encontro: “As Ilusões Perdidas”, de Balzac.
Entender como esta obra relaciona de maneira diferente estes polos da
linguagem pode dar margem a uma melhor compreensão de como Torquato
Neto viveu este conflito em sua produção.

6.5.1 – As ilusões perdidas


O jornalismo assim como o que se tem hoje nasceu no século passado e,
segundo José Miguel Wisnik, “As Ilusões Perdidas” de Balzac, escrito entre
1835 e 1843, foi o momento em que pela primeira vez o jornalismo e sua
essência na modernidade tornava-se objeto de uma obra literária. Como este
autor observa, “ a imprensa vem a ser assunto da literatura depois que a
literatura já é assunto da impresa” 125. O ensaio que Wisnik dedica à obra de
Balzac parte das considerações do teórico Georg Lukács, que via em “As

125
WISNIK, José Miguel. Ilusões Perdidas in NOVAES, Adauto (org) Ética. Cia das Letras, São Paulo, 1992.
p.321 – 343.
Ilusões Perdidas” a obra síntese da “capitalização do espírito” – problema que
no século seguinte vai marcar grande parte das discussões sobre o estatuto da
cultura na sociedade contemporânea.

“Lukács, para quem o confronto com o rebaixamento dos


valores “autênticos” origina o gênero, viu neste roance o
próprio paradigma da destruição, pelo capitalismo, do
humanismo revolucionário das primeiras concepções
burguesas da sociedade e da cultura, assim como em D.
Quixote o mundo dos ideais feudais cavaleirescos fora
destruído pela sociedade burguesa em via de
formação”126

Em linhas gerais, “ As Ilusões Perdidas” tem como tema as desventuras


de Lucien de Rubempré, personagem principal do livro. O drma se passa
numa França experimentando a gradativa dissolução dos ideais que inspiraram
os levantes populares e que, já em 1948, com a Comunca de Paris, chegariam
finalmente à derrocada. O significado dessa ruptura segundo o crítico de arte
Mário de Michelli é fundamental para se entender o que estava em jogo no
período em que Balzac escreveu sua obra dedicada ao jornalismo:

“ De qualquer maneira, é essa “unidade” histórica,


política e cultural das forças burguesas-populares por
volta de 1848 que nos interessa sobretudo destacar neste
momento, pois é exatamente a partir da “crise” dessa
unidade, e, portanto, da ruptura” desta unidade, que
126
Ibdem.
nasce, como dissemos, a arte de vanguarda e grande
parte do pensamento contemporâneo. [...] O dissídio
entre os intelectuais e a sua classe torna-se agudo, as
rachaduras subterrâneas afloram – o fenômeno
generaliza-se, a ruptura da unidade revolucionária do
século XIX já é um fato consumado. Durante longos
anos, até a nossa época, as suas conseqüências
dominarão os problemas da cultura e da arte”127

Tal conflito é o centro da obra de Balzac, assim como o reconhece


Lukács, “ a transformação do espírito em mercadoria” 128. Não há mais
espaço para as “ilusões” do humanismo que levara à frente das manifestações
populares os intelectuais do século XIX. Tanto o jornalismo quanto a literatura
vêem-se envolvidos com uma nova dimensão que os transformará: o mercado
editorial de grande escala.
Lucien de Rubempré é um jovem provinciano que vai tentar a sorte na
metrópole munido de seu talento poético e de todas as ilusões possíveis que
serão desmontadas uma a uma em Paris. O mundo das letras lhe mostra o quão
insignificante é seu intento. Na voz de outro personagem, Daniel de Arthez –
primeiro amigo que Rubempré conquista no meio intelectual parisiense: “ [...]
sua história é a minha e a mesma de mil a mil e duzentos jovens que todos os
anos chegam da provícia a Paris”.
Em paralelo a esta desilusão, há também a do amor que foi a principal
causa de sua vinda para a capital. Enquanto estavam na província, Rubempré e
a Sra. De Bargeton se envolveram nos saraus que aconteciam na casa desta.

127
MICHELLI, Mário de. As Vanguardas Artísticas. São Paulo, Martins Fontes, 1991, p. 14-15.
128
Wisnik. Op. Cit, p323.
Apaixonaram-se mas sequer chegaram a alguma proximidade que não fosse
lícita para a moral da época. O caso dos dois acaba por se consumar apenas na
boatagem. A Sra de Bargeton resolve se afastar do marido de vez, levando
para Paris Rubempré como seu protegido e amante. Lá chegando, o
provincianismo de ambos acaba por diluir subitamente a paixão frente os
valores da sociedade parisiense. A primeira ilusão de Lucien de Rubempré já
está perdida, e os dois acabam por terminar com o caso que sequer iniciaram.
Desabonado de sua protetora, com a qual contava para se manter, além
das economias que sua mãe e seu cunhado, David Séchard, o haviam dado,
Rubempré tenta vender seus dons da escrita a algum livreiro. Mais uma
tentativa frustrada. O jornalismo surge então como a alternativa redentora.
Rubempré aprende todas as técnicas e expedientes da profissão. Neste ponto
do livro, Balzac faz uma listagem dos métodos que os jornalistas de então
empregavam para sustentar toda uma rede de tráfego de influências e troca de
favores com editores, casas de espetáculos, políticos, etc.
Balzac empreende um ataque caudaloso por todos os flancos que pode.
Se há um mal no mundo esté é a imprensa. De espírito conservador, o escritor
francês defendia a monarquia e chegou a apregoar o controle prévio sobre os
jornais, no entanto, apesar da sua ira contra a imprensa, Balzac conseguiu
articular questões cruciais sobre as quais o jornalismo se constituiu durante as
grandes transformações engendradas pela Revolução Industrial. Como observa
Wisnik:

“E como Balzac abrangeu, com vontade de potência de


sua visão inaugural, nada menos que todo o arco
histórico do problema, pode-se dizer também que a sua
questão é a do destino problemático da cultura diante da
insústria da cultura”.129

Para o escritor francês, o jornalismo seria uma degeneração da


literatura, os jornalistas, “comerciantes de frases”. Isto reforça a tese de Mário
de Michelli já citada sobre a quebra da unidade espiritual do século XIX no
sentido de que, como propõe este historiador da arte, quando os intelectuais
deixaram as linyhas de frente dos movimentos populares, criou-se uma poética
da evasão. Balzac se inscreve dentro desta perspectiva pela assimilação do
mito do bom selvagem, do culto a uma virtude perdida e que deve ser
recuperada. Para ele a província, portanto onde se tem uma situação
marcadamente anacrônica em relação ao cosmopolitismo e à industrialização
de Paris, é o espaço depositário dos “verdadeiros” e “bons” valores. A
república seria a corrupção instituída. Dilatações do romantismo que Balzac
assimilou de Walter Scott e Hoffmann.
Daí a imprensa ser um mal na visão de Balzac. A nova sociedade
desencadeada pelas transformações da Revolução Industrial se impunha aos
que queriam conservar um mundo já extingüido, forçando a “perda total das
ilusões”. Às idéias totalizantes da literatura de então, o jornalismo vai se opor
em sucessivas fragmentações. Balzac quer levar a cabo uma luta entre “duas
maneiras de representar o mundo”: o jornal e o livro. A pureza, para ele, está
toda com a segunda.
A aproximação entre o drama da obra de Balzac e a trajetória de
Torquato Neto é irresistível. Há em ambos um movimento do jovem poeta que
parte da província para o grande centro. Há uma desilusão muito grande
também. O desejo que promove o movimento é obstacularizado. Interrompido
129
Op.cit.
pelos limites da “capitalização do espírito”. A imagem dessa capitalização é o
próprio jornal. Tanto Rubempré quanto Torquato perdem sua fé nas palavras a
partir do seus contato com a prática jornalística. O jornalismo torna como que
vampirizada a escrita, desvitalizada de sua potência. Há um desinvestimento
do desejo enquanto motor principal da escritura. Assim como já colocado
anteriormente, o jornalismo opera um descarnamento da linguagem. Enquanto
fato de linguagem, ele a despe da afirmação das diferenças para apostar tudo
nas redundâncias. Toda repetição fundamenta uma lei, e toda lei é um
instrumento de coerção. Um dos polos da linguagem consiste exatamente
neste tipo de coerção imposta segundo as regras gramaticais e sintáticas que
regem a produção de sentido dentro de determinada língua. É um ponto ao
qual se chega por uma força centrípeta que fundamenta a linguagem, um polo
que diz respeito à interioridade da linguagem que, pela observância de suas
regras de produção de sentido garante sua estabilidade enquanto sistema de
classificação e demarcação do real. Na outra direção está o polo centrífugo da
linguagem, que constitui um plano em aberto referente ao uso que, ao mesmo
tempo, legitima as coerções do sistema e as transforma pela particularidade
com que são forçadas as infrações deste código.
7 – Conclusão - Os signos do vampiro

“Todo poeta é marginal, desde que foi expulso da República de


Platão”
Roberto Piva
O mito de um ser intermediário entre vivos e mortos e que se alimenta
de sangue tem sua origem perdida no tempo. Várias são as culturas que
desenvolveram narrativas sobre este mito. É através do cinema que ele vai
assumir sua forma canônica na contemporaneidade. A força de um espectro
que ronda o mundo dos vivos e dos mortos é potencializada pelo
acontecimento da reprodução do movimento na grande tela. A origem dessa
imagem está no livro do irlandês Bram Stocker, publicado no final do século
passado e que reflete o puritanismo da era vitoriana.
O livro de Stocker é um tributo à paixão pelas diferentes formas que um
relato pode assumir: o personagem principal, o Conde Drácula, nunca fala em
primeira voz, a não ser a partir da reprodução que um terceiro, um narrador.
Também proliferam os diferentes suportes e tecnologias de registro de relatos:
recortes de jornais, bilhetes, gravações, diários, etc. Tem-se então que Drácula
surge do cruzamento de todas essas formas diferentes de relatos. Um vampiro
é um acontecimento – incorporal que insiste ao longo de todo o livro.
Da mesma maneira Torquato Neto transita numa zona comum a várias
formas de expressão. Todos os procedimentos de sua poética são híbridos,
advindos de sua posição como vampiro – ser d´entre mundos. É uma
atualização do mito de Orfeu, tão caro à inspiração romântica. Ao vincular seu
nome a esta imagem, Torquato Neto marcou definitivamente sua poética como
uma forma de expressão fluída, furtiva aos gêneros e interpretações que dela
se aproximem com uma estaca. Entre vida e morte, biografia e obra,
jornalismo e literatura, Torquato Neto optou por resolver conflitos inflando-os
ao excesso. Sua poética tem na interface jornalismo-literatura um espaço de
proliferação sem parada. É neste espaço marginal, fluído e não limitado que é
possível uma aproximação do vampiro. É só nesse espaço que se torna
possível penetrar nos segredos de sua poética. E se toda poética é construida a
partir dos traços que lhe imprimem sua singularidade, que lhe dão gênese ao
seu estilo, de antemão isto coloca um problema em relação à produção de
Torquato Neto. Como a poesia pode conviver com o jornalismo se este é,
basicamente, um tipo de escrita sem estilo, assim como escreve o poeta Paulo
Leminski em seu artigo sobre Torquato Neto:

“ Em passado Folhetim, num ensaio “Forma é Poder”,


denunciei a suposta “objetividade” da linguagem
jornalística, mostrando como esse efeito é precipitado de
uma codificação da linguagem, uma cristalização
canônica de recursos, que, estabilizando o discurso,
transmita a sensação de “realidade”. Jornalismo não tem
“estilo”. Ora, o que há no mundo da inteligência são as
especificidades de cada cosciência. Todas as cabeças são
“estilos”.
A linguagem jornalística é imposta por uma autoridade:
um Poder. Mas pode-se dinamitar essa tirania: por
dentro, na linguagem. De pronto, lembro três momentos:
os jornalismos de Oswald de Andrade, de seu herdeiro,
Paulo Francis, e o de Torquato.”130

A principal guerrilha então levada adiante por Torquato Neto em sua


coluna foi contra este poder que legitima as fronteiras entre o discurso
jornalístico e outras formas de discurso. Assim como Leminski escreve, esse

130
LEMINSKI, Paulo. Os Últimos Dias de Um Romântico. Folha de São Paulo, Folhetim nº 303, 07/11/1982.
p.7.
conflito sobre o “estilo” é uma questão fundamental do jornalismo. Há toda
uma história dos assaltos empreendidos às fronteiras que este poder demarca.
Escrever um pequenocapítulo dessa história foi um dos objetivos aqui
perseguidos.
Isto acontece toda vez em que se trabalha o jornalismo enquanto fato de
linguagem - condição necessária para a criação de uma poética que faça o
poder que legitima estas fronteiras implodirem. O poder do qual fala Leminski
é o poder da forma. Que forma é esta? A do discurso automatizado no
jornalismo, de inspiração naturalista, isto é, que estabelece uma forma
“natural” de conteúdo em detrimento de outras. No artigo anterior 131, também
publicado no Folhetim, Leminski faz uma análise do problema do estilo no
jornalismo. Leminski retoma essa discussão. O artigo coloca em questão
princípios que são diretamente reconhecíveis na produção de Torquato Neto
na Geléia Geral.. Neste artigo Leminski começa falando sobre esta idéia de
“naturalidade da expressão”, que em literatura, segundo o artigo, está ligada a
uma idéia de forma eleita como padrão que melhor corresponderia à realidade
à qual se reporta. É a partir dessa “forma natural” que se estabelece um poder
dentro da linguagem. Assim como em relação à ordem econômica, de
produção de riquezas, também há uma ordem da significação na produção dos
sentidos. A poesia trabalha exatamente colocando em questão essa ordem
vigente na produção de sentido. De acordo com os conceitos de Deleuze e
Guattari no Anti-Édipo, a poesia se encontra no polo esquizo-revolucionário
da linguagem. Em essência, ela não reafirma os sentidos dados, mas resulta de
uma força que arrasta esses sentidos para uma zona ainda não decodificada. A
poesia desterritorializa os sentidos da linguagem. É então por uma linha
poética que se implodem os sentidos automatizados das palavras:
131
LEMINSKY, Paulo. Forma É Poder. Folha de São Paulo, Folhetim nº 288, 04/07/1982.
“Poesia é apenas um outro nome para essa linguagem
desautomatizadora. Mais ligada ao não-verbal (artes
plásticas, música, cinema, mímica), ela se afasta, coloca-
se longe ou fora do alcance do discurso naturalista, de
origem jornalística”. 132

A partir das considerações de Leminski pode-se entender o discurso


poético como um discurso de afirmação de sentidos marginais que são
abrigados pela linguagem mas que não encontram voz. A poesia nasce no
momento em que essa voz é dada aos sentidos marginais que são clivados
pelas regras da normalidade na produção de sentido. Daí a percepção precisa
do poeta Roberto Piva de que “todo poeta é marginal desde que foi expulso da
República de Platão”133. A poesia acontece toda vez em que se joga com os
limites da linguagem e dos sentidos. Dessa maneira, “perder a fé nas palavras”
não significa necessariamente assumir uma via negativa em relação aos
sentidos, mas a experiência fundamental que faz com que se perceba e se
questione a “normalidade” e a “naturalidade” dos sentidos segundo a ordem
vigente. De certa maneira é cumprir a máxima de Maiakovski: “não existe arte
revolucionária sem forma revolucionária”. Perder a fé nas palavras, portanto, é
romper com a forma dominante de produção de sentido. É tornar-se marginal
dentro da linguagem por colocar-se nos limites, na fronteira entre os discursos
e entre a linguagem e sua exterioridade, o não-sentido. Assim é possível ler
uma coluna jornalística como uma manifestação poética. Foi esta a lógica pela

132
Ibdem.
133
PIVA, Roberto. O jogo gratuito da poesia. Folha de São Paulo, Folhetim, 28/02/1982.
qual Torquato Neto produziu um verdadeiro acontecimento na história do
jornalismo brasileiro.

BIBLIOGRAFIA

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Madrid, Paraninfo, 1992.

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