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_equipe taturana

editor-chefe coordenadoria de sustentabilidade


rodrigo grota bruno gehring
assistentes argel medeiros
artur ianckievicz assistentes
roberta takamatsu giovana tóffolo
isadora rara
coordenação gráfica nadine gatti
felipe augusto
assistente colaboradores
isadora rara gary higgins
editor de fotografia josé de aguiar
guilherme gerais marcelo miranda
projeto gráfico rodrigo garcia lopes
felipe augusto wagner munhê
guilherme gerais ygor raduy
estagiário
mark claus nunes foto capa
diagramação guilherme gerais
evelyssa sanches
ilustração realização
caio miguel kinoarte - instituto de cinema e vídeo de londrina
fábio augusto www.kinoarte.org.br
felipe augusto http://revistataturana.blogspot.com
guilherme gerais
revistataturana@gmail.com | kinoarte@gmail.com
isadora reimão
inverno 2009 | 2 mil exemplares

foto: felipe augusto


_índice
o cinema, o teatro, a vida: francelino frança ensaio fotográfico: the last hope
por rodrigo grota por guilherme gerais
4 24

composição para paulo menten “um lugar dentro de você que consiga fazer
por wagner munhê silêncio”
11 entrevista com murilo hauser
31
os documentários metafísicos de naomi kawase
por artur ianckievicz o cinema brasileiro já teve surrealismo?
14 por marcelo miranda
35
espaço literário - as ruínas de sabáudia
por ygor raduy entrevista: stan brakhage “todas as coisas que
18 são luz, são luz”
por rodrigo garcia lopes & gary higgins
obsessão, obsessão, obsessão: o napoleão de 39
stanley kubrick
por josé de aguiar breve panorama breve: o curta-metragem no
21 cinema brasileiro contemporâneo
por artur ianckievicz e roberta takamatsu
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cinema de extremos: gramado 2009


por rodrigo grota
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“O roteiro não apresenta um mistério que motive o arte: felipe augusto


surgimento de uma cena subseqüente. Não estou
falando de filme de mistério. Mas algo que só o pú-
blico saiba ou que seja de posse de algum perso-
nagem, para despertar o interesse. O espectador
precisa fazer algum questionamento interno quan-
do assiste a um curta”. Esse pensamento, extraído
de uma troca de e-mails realizada há quatro anos,
revela um pouco da posição que Francelino França
manteve diante da vida e do cinema. Para o jorna-
lista, crítico de teatro, ator, dramaturgo, roteirista, e,
principalmente, para França em sua face mais ínti-
ma, sempre haveria uma questão – nada seria tão
simples assim. A vida não perdoa, ele dizia.
Conheci Francelino França há pouco mais de dez
anos. Nosso encontro foi casual: ele estava em
busca de figurantes para um curta em super-8: “De
Repente numa Tarde” - eu ainda era estudante de
jornalismo na UEL e topei imediatamente integrar o
elenco do filme. Mesmo não comparecendo às fil-
magens, nos reencontramos: começamos a discutir
idéias para filmes que um dia faríamos.
França era, antes de tudo, uma espécie de pres-
ságio: quando ele falava com você parecia se co-
nectar a algo no futuro, que estava por acontecer.
Havia uma linha muito tênue entre o tom compreen-
sivo, amistoso, e a marca da ironia. Muito ligado ao
teatro, há algum tempo sonhava com a realização
de um filme em que pudesse expressar sua perso-
nalidade, seu ponto de vista diante de um mundo
nem sempre acolhedor. Foi com esse ímpeto que
ele me mostrou, ainda em 2001, a primeira versão
do curta “Maria Angélica”.
Extremamente bem escrito, o roteiro mostrava a re-
lação de uma mãe opressora dividida entre a culpa
e o descontrole emocional. Maria Angélica, sua fi-
lha, era cúmplice e ao mesmo tempo vítima de um
sentimento muito intenso. Apoiado em histórias que
colecionou ao longo de sua vida, França conseguia
algo raro: expressar em um roteiro de curta-metra-
gem (algo breve, portanto) uma série de conflitos
ancestrais de difícil orquestração. O cinema, nesse Still dos filmes “Saudade” e “Londrina em Três
caso, não seria apenas a construção controlada, Movimentos”
por meio de imagens e sons, de um mundo a ser
discutido – França estava disposto a um encontro
às escuras: havia ali algo que nem ele mesmo, dire-
tor e roteirista, saberia:
“O filme se coloca à espera dos sentidos dos per-
sonagens. De certa forma, diário do mundo interior
da mãe e da filha. Mundo interno do personagem
em 1o. Plano. Câmera: como se alguém entrasse
pela primeira vez na casa e estivesse olhando tudo
com espanto”.
Essa anotação, presente em uma das versões do
roteiro, mostra um pouco da abordagem que iria
permear todo o filme: um tom de estranhamento,
reforçado por uma paleta de cores influenciada por
Degas, e uma dramaturgia com traços próximos
a uma das grandes influências de França: Nelson
Rodrigues.
Foi, aliás, a partir de uma análise da obra de Nel-
son Rodrigues que França terminou seus estudos
de jornalismo e passou a trabalhar na Folha de
Londrina. Por alguns anos, ao lado de jornalistas
como Célia Musilli, Jackeline Seglin, Antônio Maria-
no Junior, Ranulfo Pedreiro e Nelson Sato, França
ajudou a consolidar um dos cadernos culturais mais
interessantes do País: a Folha 2. Muito apegado ao
jornal, são lendárias as situações em que França Sua primeira experiência no cinema começou
se sentiu ameaçado, achando que seria desligado na já citada oficina de super-8. Em 1999 e 2000,
da empresa. Houve um episódio, aliás, em que ele França foi assistente de produção de dois curtas
realmente fora demitido: inconsolável, França conti- em 35mm rodados em Londrina: “Saudade” e “Ci-
nuou freqüentando a redação como se nada tivesse ne-Paixão”, ambos dirigidos por Sérgio Concílio
acontecido. e Vera Senise. Em 2003, foi um dos fundadores
Criar uma trama ficcional em seu próprio dia-a-dia da Kinoarte, trabalhando como diretor de produ-
era um dos seus principais traços: adorava dar tro- ção no primeiro filme produzido pela instituição:
tes, incluindo amigos próximos, que não reconhe- “Londrina em Três Movimentos”. Entre 2005 e
ciam os personagens que ele criava ao telefone. 2006, ajudou na realização de oficinas com Hilton
Conversar por horas a fio: outra predileção que Lacerda, Ruy Guerra e Walter Lima Jr., além de
França mantinha, aliando episódios de sua vida e atuar como uma espécie de consultor nos filmes
idéias para peças e filmes. “O Quinto Postulado” e “Satori Uso”.

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França era uma espécie de irmão mais velho para acabado: quando pequeno, ele se lembrava de
todos nós: alguém mais experiente e mais rigoro- quando sua mãe ia ao cinema, e depois lhe con-
so que todos os demais integrantes da Kinoarte. tava a história. Já adulto, ele adorava compartilhar
Uma das suas principais características às vezes o seu universo: “Ei, acabei de comprar um livro
assustava: era extremamente franco, direto, rejei- sobre os filmes que o Kafka viu”; “Olha só o que
tando qualquer espécie de condescendência e eu gravei ontem no Telecine: uma versão de Elec-
mediocridade. França tinha pressa: uma consci- tra, com a Irene Papas – Vê se devolve!!”; “Cinco
ência do tempo e uma clareza em suas relações horas de documentário sobre o Antunes: assiste
de afeto que até ele mesmo talvez não soubesse e me diz depois o que você achou”; “Toma esses
explicar como surgiu: CDs da Elis – vão te ajudar a sair da fossa”. Foi a
“Estava assistindo a um western agora há pouco partir desse amplo repertório, cheio de referências
enquanto comia uma banana. No filme, enquanto da literatura, música e teatro, que França criou seu
o mundo estava pegando fogo lá fora, um bando primeiro e único filme.
de gente querendo enforcar os mocinhos, alguns “Maria Angélica”, a partir de uma perspectiva mais
deles ficavam com picuinhas entre si. Resultado, pessoal, não era apenas um curta: “é projeto de
quem ficou de picuinha levou tiros. A gente tem vida”, ele dizia. Sua visão de como deveria ser a
um bando de gente lá fora sem entender o que a produção, a escolha de locações, a seleção de
gente quer fazer e dispostos a nos abater a tiros, elenco, os ensaios, as filmagens, era completa.
pq vez ou outra saimos no jornal, como se isso fos- Três meses antes de rodar a primeira cena França
se tudo. Então, véio, desamarra essa cara que to e equipe montaram um escritório no centro de Lon-
vendo daqui”. Esse conselho, presente em nossa drina e deram início à pré-produção. Sua visão do
última troca de e-mails, mostra um pouco do seu que seria o filme já estava expressa nos comentá-
espírito fraternal e ao mesmo tempo zombeteiro. rios relacionados à primeira seqüência do roteiro:
Admirador de Elis Regina, Antunes Filho, Nelson “Mundo feminino impera. Vozes, hino, menina, bo-
Rodrigues, Shakespeare, Clarice Lispector: Fran- necas, condução dos rituais.
ça vivia apaixonado. Quando Maria Rita veio a Filme começa com um ritual de passagem, mesmo
Londrina, ele se transformou: semanas antes do
show pensava em como seria esse encontro – ele
daria a ela uma foto que tinha do início dos anos
80, quando sua mãe se apresentara em Londri-
na. Em 2001, quando fomos a uma coletiva com
Fernanda Montenegro, França ficou em estado de
graça: toda a vitalidade, resistência e idealismo,
que marcavam sua personalidade, eram uma es-
pécie de reflexo desses artistas que ele admirava.
Profundamente religioso, ligado à doutrina espírita,
atraído por alguns elementos da crendice popular,
França gostava de analisar sonhos e antecipar o
destino. Sonhava em filmar histórias que lhe foram
apresentadas quando criança: os bastidores das
radionovelas, as histórias lendárias de uma Lon-
drina que em um certo momento histórico se viu
diante de uma manifestação pública conduzida
por prostitutas carecas. França queria filmar esse
mundo impalpável, que, de certa forma, não era
a sua realidade física, externa, e sim, a realidade
de um mundo antigo, ao qual ele se sentia ligado.
Sua infância na Vila Casoni, na verdade, não havia
sendo de brincadeira, resume o tom da propos- das Fases), admirador de críticos como Sábato
ta. Estranhamentos: brincadeira inusitada da filha Magaldi, Décio de Almeida Prado, Bárbara Helio-
(não tem medo da morte, convive com isso sem dora e Mariangela Alves de Lima, França se sen-
traumas, conhece os detalhes do ritual) optar pe- tia fascinado por diretores de cinema que man-
las bonecas expressivas. Cotidiano: ouve barulho tinham um forte laço teatral em sua linguagem:
de gente na pia, futebol no rádio, brincar na sala. realizadores como Bergman e Luiz Fernando Car-
Resumo do que é cinema: experiência visual e valho, por exemplo.
sonora (barulhos, futebol, hino cantado por vozes Em junho de 2006, em meio à programação do
femininas e à capela). Tanto as imagens precisam Festival Internacional de Londrina (Filo), o grupo
ser impactantes como o som tem muita força. Hino londrinense Boca de Baco encenou a primeira
resume: ou você muda de opinião agora ou será peça escrita por França: “Último Inverno”. Pouco
muito tarde. Relação com o divino já se inicia rapi- antes, ele havia ajudado o grupo em uma adapta-
damente. Diálogo da menina com a boneca: imer- ção de “Fando y Lis”, de Fernando Arrabal – dra-
sa naquela fantasia. 1a. seqüência é para dizer ao maturgo que França conheceu em 1998 em Nova
que o filme veio. Estado emocional da garota: livre, York, em um episódio inusitado, no qual mantive-
confortável, não se sente solitária, mesmo com a ram breve diálogo.
brincadeira com o enterro, ela transparece estar Nos últimos anos França também contribuiu para
tranqüila. a consolidação da Usina Cultural em Londrina, foi
Câmera reage de acordo com o subjetivo”. presença constante em tudo o que se referia ao
Admirador de Cartier-Bresson, França foi a primei- projeto do Teatro Municipal, e deu continuidade
ra pessoa a me mostrar fotografias de outro mestre a um diálogo que há anos mantinha com atores
- Haruo Ohara: “Aprenda com a sabedoria oriental. e alunos de cursos de artes cênicas na cidade.
Para fotografar, deve-se criar uma relação harmo- Nos nossos últimos encontros, ele estava total-
niosa com a natureza. É ela quem dá o tempo da mente concentrado no que seria o filme “Maria
foto”, dizia. Angélica”. Em um jantar em seu apartamento, me
Ator de teatro nos anos 80, amigo íntimo do ator lembro de ele mostrar uma pilha de livros que
e diretor João Henrique Bernardi (do grupo Casa serviam de referência para a construção da per-

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sonagem da mãe e sua filha, Maria Angélica. Havia


estudos sobre a criação de personagens femini- Francelino França no set
de filmagem; Jairo Ma-
nos em clássicos da literatura brasileira, momentos
tos e Juliana Galdino em
descontraídos de Clarice (França era fascinado
cena; Paula Delfiol no
pela personagem Macabéa, de “A Hora da Estre- papel de Maria Angélica
la”), análises da obra de Machado, Guimarães,
anotações sobre a linha emocional do filme:
“Estado emocional: mãe fora de controle, violência,
fúria, inconstante, extremamente nervosa, sufocan-
te. Mãe ligada à crendice popular (derramar sal dá
briga). Garota não tem voz. A mãe fala e não ouve
o pai. Pai figura que não se impõe. Violência físi-
ca e verbal, ao que tudo indica são cotidianos. O
sal, na verdade, é somente o estopim para algo de
mais grave que virá depois. Deve-se mostrar que
há algo por trás daquela cena do que simplesmen-
te um sal derramado no chão. “Não cruzem o meu
caminho porque eu destruo todos vocês”, diz a voz
interna do personagem. Câmera: acompanhando
os atores, buscando as reações deles. Câmera
também precisa sufocar, estar junto nesse estado
fora de controle da mãe.”
Em nosso derradeiro encontro, em agosto de 2006,
duas semanas antes de França falecer vítima de
um câncer, conversamos sobre as filmagens,
como tinha sido sua relação com os atores, com
a equipe, enfim – sua primeira experiência como
diretor de um filme: “É uma função quase mítica,
cheia de glamour, mas na real acho que só quem
faz cinema sabe o que faz um diretor” (ele havia
escrito pouco antes em um e-mail).
Naquele dia tivemos umas de nossas conversas
mais francas. Estávamos brigados, um pouco pela
minha incompreensão da sua habitual franqueza,
um pouco pela velocidade que ele estava impri-
mindo em tudo que fazia: “Esse era o seu último
gesto em vida – foi a última coisa que ele fez. Ele
dedicou a sua vida a realizar esse filme”, relembra-
va Bruno Gehring, produtor de “Maria Angélica”.
Sobre a montagem, acertamos, França e eu, que
seria um diálogo promissor - enquanto ele prioriza-
va o texto e os atores, em sua visão de cinema, eu
tinha uma predileção pela narrativa visual. Juntas,
as duas linguagens poderiam se tornar comple-
mentares, foi a nossa conclusão.
Pouco depois desse encontro, meu telefone toca
em uma manhã de sábado: era Carol, irmã do
França, dizendo que o médico havia sido cate-
górico – era para chamar os amigos pois daquele
dia ele não passaria. Tomei um táxi o mais rápido tanto pela mãe como pela filha. Mãe está carinho-
que pude e fui ao encontro do amigo, esperançoso sa, mas não arrependida. Revela um outro lado
por um último olhar. Quando cheguei ao Hospital, que não é só o da violência. É um auto-engano,
bati à porta do quarto indicado, e fui recebido por fingir que nada aconteceu como se não tivesse
uma Carol aos prantos: “Ele acabou de morrer”. sido responsável pela briga e discussão. Visual-
Entrei no quarto e observei o rosto do meu amigo: mente pode ficar interessante esse desenho da
ele estava muito magro, com um olhar seco de so- menina dormindo rodeada pelas bonecas. Elas
frimento. Seu pai me contou que o médico havia estão velando pelo sono da menina. Câmera:
confirmado alguns dias antes que dessa vez não acompanha os atores”.
haveria como França superar a doença. Inconfor- “Maria Angélica” chega agora à sua última etapa.
mado, França se debatia, argumentando que o Após a sua estréia, não será mais um filme da Ki-
médico estava desistindo dele – ele queria viver, noarte, um filme de Francelino França. “Maria An-
não iria desistir. gélica” ganha a sua independência – o filme se
Essa foi talvez a característica mais profunda que torna um questionamento interno, uma realidade
encontrávamos no nosso amigo – uma força inco- fora do nosso controle - algo como o último aceno
mum, constante, extremamente vitalista, um apego que o nosso amigo nos deixou.
ao que era real e verdadeiro. França não estava
disposto a ilusões, desistências, compensações. “É isso. qualquer dúvida. me ligue. estou traba-
A vida não iria perdoar – ele dizia. A vida não iria. lhando em casa. até tarde.
“Estado emocional: inversão total de sentimentos. Abçs.
Cena que deve transmitir acima de tudo carinho, França”

Força interna
Na Folha2 ele queria escrever sobre uma de suas paixões: o teatro.
França vinha munido de livros sobre dramaturgia, carregava sua biblio-
teca ambulante para a redação e pesquisava referências, entregando-
se completamente ao texto. Num período em que a crítica teatral
andava sumida dos jornais, ele quis resgatá-la. Poucas vezes convivi
com alguém tão frágil na aparência e com tanta força interna. Com ele
aprendi a lição da alegria à revelia das incertezas.
Célia Musilli, jornalista e escritora

Quando a saudade aperta


Pois é, Seu França, tua falta doeu em mim de um jeito muito forte hoje. Talvez a
gente acredite que você tá por aí e vai aparecer fazendo troça, contando histórias,
blaque–blaque, cantando Elis (...no 8º andar, onde tudo é um). Em novembro tem
“bodas de prata” da nossa turma, esse ano vai ser em casa e vamos comemorar
brindando com teu filme. Meu querido irmão, ainda guardo tua voz que é para dar
ritmo à minha cabeça e realizar quase tudo que a gente sonhou da vida e do amor.
Até, Joca
João Henrique Bernardi, diretor e ator de teatro
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Um menino brincalhão
Cotidianamente nos esbarrávamos na redação do jornal. Nós nos sabíamos. À noite
– quase todas as noites de Londrina – o telefone gritava. Horas. Muitas. Falávamos
de coisas tantas. Quando o França precisou se afastar das funções jornalísticas,
as ligações se intensificaram. Muitas horas, muitas horas, muitas horas. Cinema,
teatro, a vida real, cumplicidades permitidas por Deus. França sabia ouvir e falava
muito. Ironia fina, inteligência rara. Inscrevo a palavra saudade sobre o nome dele.
Sábado, manhã, plantão. Telefonaram dizendo que o França estava muito mal. Lar-
guei tudo, fui correndo. Cheguei ao quarto, gritei alto para ele acordar. Não acor-
dou. Foi de vez. Meu amigo, um dos meus amores fraternos, nunca mais haveria de
ligar. Solidão noturna! Nem sequer, danado, me mostrou suas composições: “Rap
do Beckett” e “Fado do Pessoa”. Francelino, meu querido, que falta você me faz...
Antônio Mariano Júnior, jornalista

Contador de histórias
Em qualquer ocasião, França tinha uma boa história para contar. Mergulhava suas
narrativas no universo de Nelson Rodrigues: mais que uma referência de dramatur-
gia, a obra do autor era uma experiência de crescimento. Amigos e parceiros no
jornal, encontramos no teatro uma outra cumplicidade. Como atento observador,
ele acompanhava meu trabalho de atriz no grupo Boca de Baco. Gostava de insti-
gar, fazer desafios. França fez uma primeira experimentação em dramaturgia e es-
creveu Campo Santo – texto que, por um bom tempo, manteve em sigilo. Exigente,
procurou caminhos para desenvolver sua dramaturgia com base nas histórias dos
atores. Foi nesse processo que, em 2005, França escreveu seu “Último Inverno”. O
tempo – um tesouro precioso para o França – corria mais que o normal.
Jackeline Seglin, atriz e jornalista

Vida intensa, repleta de sonhos


Humor afiadíssimo, ironia na medida, senso estético sensacional, solidário e sem-
pre alegre. Mesmo nos momentos mais difíceis, uma alegria ainda o deixava capaz
de fazer uma piada, um comentário picante: a alma sempre brilhava, pulsava e re-
verberava em quem estivesse por perto. Descobrimos muita coisa juntos: sua maior
generosidade consistia em estar sempre disposto a acrescentar alguma informa-
ção boa para a vida. Mesmo quando discordava, havia harmonia. Conversava com
todos, mas se abria com poucos. Tudo isso deu numa vida intensa e repleta de
sonhos. Foi curta, mas produtiva até o finalzinho.
Guto Rocha, jornalista e integrante do elenco do filme "Maria Angélica"
arte: isadora reimão
Paulo Menten é um artista único. Talvez seja re- existir fora da ficção.
dundante dizer isso, mas é raro encontrar artistas Para Paulo Menten, arte não é profissão. É neces-
verdadeiros. Únicos. sidade.
Quando jovem, Paulo Menten não sabia se seria É sacerdócio: o artista é para ele um criador de uni-
escritor ou artista plástico. Adorava jogar futebol, versos. Como aquele que primeiro colocou as mãos
mas não quis ser atleta profissional. A pergunta em concha para beber a água do rio.
para a qual ele não tinha resposta era se devia Quando o conheci, ele me perguntou se eu queria
escrever ou pintar. E essa resposta talvez nunca viver de artes plásticas. Logicamente respondi que
tenha sido encontrada, porque mesmo após ser sim, e ele logicamente me pediu para que esque-
reconhecido como artista plástico, nunca deixou cesse isso. Recomendou que eu me dedicasse ao
de escrever poemas e sonhar livros. Um sonho trabalho e lembrou que se eu fizesse algo de valor
que se tornou realidade quando, em 2005, publi- poderia ficar despreocupado porque o mundo natu-
cou seu “diário de bordo inseguro”. ralmente perceberia e valorizaria.
Apesar dos inúmeros prêmios que recebeu, Paulo Paulo não gosta de ficar admirando sua própria
Menten é um homem simples com quem podemos obra. Para ele, cada trabalho é apenas um degrau
manter horas de conversa sem que percebamos o para o próximo. Nenhum é perfeito.
passar do tempo. A cada momento ele nos surpre- Não há técnica que ele não conheça em detalhes.
ende com uma sabedoria que não imaginávamos Mas, apesar de seu vasto conhecimento, Menten

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nunca impôs seu jeito de executá-las ou mesmo dizer que exis-


tiam. Paulo sempre esperava primeiro pela pergunta. Se ela não
viesse, ele nada dizia.
Quando pedia sua opinião sobre algum trabalho que estava de-
senvolvendo, sua resposta sempre se resumia a questões objeti-
vas como linhas terminando em cantos ou questões de composi-
ção. Ele nunca dizia se gostava ou não. Uma vez forcei para que
ele dissesse se gostava ou não de um trabalho que eu estava
fazendo. E ele simplesmente respondeu que todo trabalho feito
por mãos humanas é bonito.
Paulo Menten só não gosta de cópias, de artistas que se repe-
tem, de modismos. Assim como Tolstoi, acredita que para ser
universal é necessário cantar a própria aldeia. O oposto disso é
arte construída pela mídia e pela indústria.
A simplicidade e capacidade, síntese de Paulo Menten, não po-
deriam ficar restritas a seu ateliê do bairro Califórnia em Londri-
na, disponíveis aos poucos que por ali passavam. Paulo tinha
poucos alunos, a quem ele preferia chamar de parceiros de
trabalho. Quando após o nosso primeiro contato, precisava se
certificar da minha intenção de estudar com ele, sua pergunta
não foi se eu queria aprender com ele, mas se queria trabalhar
com ele. Para Paulo Menten, quanto mais ele se anulasse como
professor, melhor professor seria.
Menten recebeu seu primeiro prêmio em 1958 no Salão Bancá-
rios de Arte. Na verdade, foram dois prêmios: um de melhor de-
senho e outro de menção honrosa em pintura. A partir daí foram
dezenas de salões e exposições e dezenas de outros prêmios,
inclusive um prêmio aquisição Itamaraty de gravura na 10ª Bie-
nal Internacional de São Paulo, em 1969.
Seu estilo não é inconfundível apenas nas suas gravuras, pin-
turas e poesia, mas principalmente pela universalidade de seu
pensamento, ao mesmo tempo radical e delicado. Um pensa-
mento que precisava ser registrado. No começo a idéia era es-
crever um livro ou algo parecido. Sucederam-se, então, diversas
entrevistas gravadas em áudio ao mesmo tempo em que come-
çava a se formar a idéia de um curta-metragem – algo que co-
meçava a se tornar mais próximo de minha realidade. Nada de
biografias cheias de datas, lugares e amigos dando depoimen-
tos. Era preciso registrar um pensamento, um universo interior.
Paulo deveria aparecer em seu dia-a-dia. Queria ele varrendo o
chão do ateliê porque para ele qualquer trabalho artístico come-
ça organizando o ambiente. Queria mostrar o cansaço porque
imprimir dezenas, centenas de gravuras requer suor físico. Or-
gânico.
Seus poemas seriam a narrativa de fundo. As entrevistas seriam
seu aspecto mais visível e elaborado.
Os elementos estavam prontos. Mas não havia uma metodolo-
gia para transformar tudo isso em filme. Resolvemos então fazer
uma primeira gravação como teste.
Paulo estava trabalhando na série “Serra Pelada” na época, uma
coleção de gravuras em metal que ele preparava para uma expo-
sição que ele pretendia organizar. Em seu ateliê estavam pilhas de
alumínio velho que ele coletara das ruas ou ganhara de amigos.
Esse primeiro filme ficou guardado vários anos esperando por con-
clusão. Isso foi em 2005. A partir daí foram muitos ensaios para
continuar. Ensaio no sentido de pensar em gravar, mas não exe-
cutar. Não saber como. As dúvidas eram muitas e atrapalhavam a
ação. Queria que o filme tivesse um aspecto de gravura, técnica
à qual Paulo Menten dedicava talvez a maior parte de seu tempo
e pensamentos. Mas não conseguia transformar isso em cenas.
Uma vez, perguntando ao Paulo como desenvolvia seus trabalhos,
respondeu que ele analisava o tema que queria trabalhar por muito
tempo. Depois, de tanto observar, observar e observar, o tema se
transformava em algo plástico. Transformava-se em essência na
qual todos os detalhes supérfluos foram eliminados. Só então ele
começava o trabalho.
O mesmo acontecia com o curta-metragem que queria produzir.
Ainda não tinha conseguido sintetizar o universo menteniano. E
mais. Faltava a técnica para conseguir o resultado visual que que-
ria. Mesmo assim, gravamos algumas cenas e entrevistas em seu
ateliê.
Quando em 2007 rodamos um curta-metragem numa oficina con-
duzida pela Kinoarte sobre a passagem de Booker Pittman por
Cornélio Procópio, surgiu a solução: a luz. Uma luz fortemente di-
recional e rasante permitiria planos com alto contraste, exatamen-
te como na xilogravura. Era o componente técnico que faltava. E
foram precisos dois anos desde a primeira gravação para chegar
até esse ponto.
Agora era uma questão de organizar a equipe e começar a gravar
com mais freqüência. Mas não havia recursos para isso: o filme
foi então todo rodado por amigos. Os mesmos que conduziram
a oficina em Cornélio Procópio e se juntaram ao projeto comigo.
Terminamos com oito horas de material gravado, mais um DVD,
resultado da primeira tentativa e do qual utilizamos apenas uma
cena – a de Paulo Menten martelando uma placa de alumínio na
escadaria rústica de seu ateliê. Agora restava mais um dilema:
construir um filme de dez minutos a partir de todo aquele mate-
rial. Novamente foi preciso mais um tempo. Até que em 2009, com
apenas um dia de trabalho concentrado, surgia o primeiro corte
do filme.
O corte final foi um processo que demorou quatro anos. Ou me-
lhor, dez anos, porque foram precisos seis anos de convivência
com Paulo Menten antes de poder ligar a câmera e gravar o pri-
meiro plano em 2005.

Wagner Munhê, 52, nascido em São Paulo, radicado em Cornélio


Procópio, é diretor dos curtas “Morre um Nome”, “Play” e “Paulo
Menten”

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arte: caio miguel, felipe augusto

filmografia de Naomi, mas é em seus documentários


em média-metragem que esses aspectos se mani-
festam mais evidentemente.
Em 1988, como estudante da então Escola de Fo-
tografia de Osaka (hoje Escola de Artes Visuais de
Osaka), Naomi Kawase teve o primeiro contato com
a câmera de 8 mm, que lhe proporcionou a estréia
O pai biológico de Naomi Kawase abandonou sua em um curta de cinco minutos, batizado como uma
família e, após o divórcio, a pedido da mãe, a garota espécie de carta de princípios que norteia todo o
foi adotada por seus tios-avós. Um ponto de partida seu cinema até hoje: “I Focus on That Wich Interests
como esse poderia render filmes nos quais as idios- Me” (Eu me concentro naquilo que me interessa).
sincrasias e falibilidades de cada membro da família Sua carreira enquanto estudante foi completada
transformam-se em fantoches de roteiro ou em mo- com os filmes “The Concretization of These Things
tivos para o futuro insucesso de uma vida social. A Flying Around Me”, “My J-W-F”, “Papa’s Ice Cream”,
abordagem utilizada pela diretora, no entanto, é uma de 1988; “My Solo Family”, “Presently”, “A Small
investigação em primeira pessoa (incluindo planos Largeness”, de 1989, e “The Girl’s Daily Bread”, de
da própria cineasta com a câmera em frente ao es- 1990.
pelho). Essa estratégia, muito próxima da maiêutica Em “Embracing” (Ni tsutsumarete), de 1992, as ima-
de Sócrates, se concentra nos mais elementares gens de paisagens e flores ambientam exatamente
dados das relações interpessoais que se desenvol-
vem dentro da família, e que, conseqüentemente,
orientam a relação com o resto das pessoas. Uma
curiosidade de se entender como ser e uma vonta-
de que este ser seja reconhecido e validado pelos
outros. A proeminência do papel da família e a aten-
ção aos pequenos gestos têm destaque em toda a
o que se esperaria de uma casa em algum vilarejo um homem que faz cerâmica; “Shara” (Sharasojiu)
do Japão, enquanto uma gravação do áudio de uma de 2003, no qual um garoto sofre com o desapareci-
chamada telefônica tenta desencorajar a busca da mento de seu irmão mais novo. Outro premiado em
cineasta por seu pai biológico. Em “Katatsumori”, Cannes, dessa vez com o Grande Prêmio do Júri, foi
de 1994, as fotos de infância da diretora atuam não “Floresta dos Lamentos” (Mogari no Mori), de 2007,
como uma tentativa de parar o tempo, mas sim de no qual a culpa e o luto dão lugar à catarse em meio
respeito a ele. A foto, enquanto preserva o tempo, à natureza. “Nanayomachi”, de 2009, troca a am-
torna-se também a prova inconteste de sua marcha bientação de Nara pela Tailândia.
e de seus efeitos. Enquanto “Embracing” é permea- Mesmo com todo o reconhecimento e projeção de
do por sombras, espaços vazios e uma câmera in- seus longas, a produção dos médias continuou, e
quisidora, que não raro se endereça às costas dos o mesmo registro pessoal que documentou a vida
entrevistados, “Katatsumori” (cujo primeiro plano é passou a encarar e investigar também a morte. “Sky,
uma carta escrita à mão pela mãe biológica da ci- Fire, Wind, Water, Earth” (Kya Ka Ra Ba A) , de 2001,
neasta) é banhado em luz, e a câmera tateia o rosto é um filme no qual Naomi recebe a notícia por tele-
de Uno Kawase, a quem Naomi sempre chama de fone do falecimento de seu pai biológico. Ela decide
“Vovó”. então, além de retomar a busca por seus vestígios
Seu primeiro longa-metragem: “Suzaku” (Moe no iniciada em “Embracing”, fazer uma tatuagem em
suzaku) valeu à diretora o prêmio Camera d’Or no homenagem a ele, transformando o elo orgânico em
Festival de Cannes em 1997. Os longas seguintes imagético. Em “Letter From a Yellow Cherry Blos-
foram “Hotaru” (Firefly), de 2000, que mostra o re- som” (Tsuioku no dansu), de 2003, a diretora expli-
lacionamento entre uma dançarina de strip-tease e ca, em voice over, que foi incumbida de registrar os

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16

últimos dias de seu amigo, o fotógrafo e crítico de


cinema Kazuo Nishii, atendendo a um pedido dele.
A câmera testemunha a vida se esvaindo e, apesar
do detalhadamente gráfico sofrimento do terminal
Nishii, o tom do filme nunca chega ao sombrio. Seja
inscrita na película ou na pele, a imagem atua como
um tipo de documento da própria existência.
Em “Tarachime” (2005), a câmera aponta em close
diretamente para as rugas e dobras do corpo da
tia-avó em uma banheira. A incisão e a frontalidade
não se limitam à imagem: “Por que a senhora me
adotou?” é a primeira, mas nem de longe a mais
contundente das frases ditas pela diretora. O con-
tracampo ocorre na metade final do filme, quando o
nascimento de Mitsuki, filho da cineasta, transforma-
se em uma cena que encapsula todo o cinema da
diretora japonesa. Uma afirmação de permanência
e renovação da vida, com a câmera intermediando
várias instâncias de humanidade. Nas palavras da
própria: “Eu ouvi a frase ‘sentindo bem’ (kimochi-
ii) de uma mulher que teve parto normal na clínica
obstétrica do Dr. Yoshimura. Ela estava ali, deitando
seu bebê recém-nascido em seu abdômen, abenço-
ando o mundo todo, sem limpar nenhuma lágrima.
Seu rosto era como o de uma deusa, irradiando luz
celestial. Aquela visão era a visão de uma “mulher”
chamada “mãe”*.
Acompanhando os filmes da cineasta, fica difícil
conceber uma solidão maior que a de um órfão. A
gênese da relação de alguém com todo o universo
é o laço que une mãe e filho, sendo esse um vazio
que ecoa em todas as instâncias do trabalho da di-
retora, mas a inadequação e a incompletude, apesar
de flagrantes, não culpabilizam. Sem apelar para o
choque gratuito ou para uma doçura exagerada, os
filmes de Naomi Kawase são espaços onde os ex-
tremos co-habitam. Em uma ponta está o documen-
tário; na outra, a metafísica, o real é testemunhado
como milagre, a natureza que envolve, engole, per-
doa e purifica serve também de sustento, adorno e
principalmente testemunha das vidas dos habitantes
da idílica Nara. Cada plano desse cinema se coloca
como um canal, e não como um espelho. Como uma
busca por afirmação de identidade através não so-
mente de recortes de um passado pessoal, mas de
um compromisso com o registro do presente, usan-
do o cinema como ferramenta de autodescoberta e
maneira de estabelecer uma existência mais subs-
tancial.
*depoimento extraído da sétima edição (6 a 9 de Julho de 2009) do Paris Project – Projects Book para projetos em desenvolvimento. Disponível em: http://74.125.47.132/
search?q=cache:LR6qxIWOJcIJ www.pariscinema.org/data/document/projects-book09.pdf
Os temas continuam os mesmos (identidade, família, altruísmo, alteridade, natureza) e no que
diz respeito à linguagem, “Nanayomachi”, de 2008, mostra uma Naomi Kawase no auge da
forma, utilizando a duração de cada plano, a maneira como eles se comunicam uns com os
outros, um emprego bastante expressivo do som e da luz artificial para registrar uma espécie
de limpeza de espírito.
O trem que carregava os retirantes para a metrópole nos anos 50 (como em “Canção da Es-
trada”, de Satyajit Ray, e “Viagem a Tóquio”, de Yasujiro Ozu, para se ater a dois exemplos
vindos do mesmo lado do mundo que Kawase), transformando-os em protagonistas de um
mundo em formação, é também o trem do qual a protagonista e a câmera têm de desviar ao
chegarem à Tailândia. Depois de frustradas tentativas de comunicação em um inglês precá-
rio, Saiko (Kyoko Hasegawa) vai parar nas proximidades de um monastério. Ambiente esse
que, circundado pela mata, lembra bastante as paisagens de Nara e, naturalmente, é lá que a
cineasta vai se sentir mais à vontade para colocar seus personagens interagindo em estados
emocionais diferentes – indo de inocentes brincadeiras a discussões e agressões generali-
zadas.
O longa é falado em japonês, francês e tailandês, inserindo então um elemento que vai fazer
companhia aos temas já habitualmente caros à cineasta japonesa: a compreensão. Não são
poucas as vezes em que um personagem precisa reduzir uma inflamada confissão de vários
minutos a duas ou três palavras para seu ouvinte. A epifania se reduz a um discurso vazio
quando não é apreendida por alguém, quando não causa reação.
Ao longo de pouco mais de uma hora e meia, culpas são expiadas, destinos são definidos e,
ao mesmo tempo, em um braço de rio logo ao lado, a vida transcorre tranqüilamente, tão rica
e tão digna de ser transformada em cinema. Cinema sobre o real. Sur réel. Surréel. Surreal.

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arte: caio miguel

as palavras proibidas de Sabáudia agora vão ser ditas. demorei a me pronunciar pois os guardiões de Sa-
báudia injetaram um gás tóxico nas minhas narinas. Sabáudia é translúcida e fala na língua dos ventiladores.
espectros em Sabáudia só pronunciam a palavra: pã. corri de Sabáudia pois estava sendo perseguido por
uma corja de beduínos. Sabáudia é cheia de grotas, cheia de becos, cheia de tocas de estranhos animais.
a vida em Sabáudia transcorre em vibração extraterrena. a cidade está contaminada pela radiação. os pi-
rulitos e as balas adquiriram uma coloração esverdeada. todos os bueiros de Sabáudia exalam um denso e
narcotizante vapor. as matronas de Sabáudia enlouqueceram e dançam pelos arredores no festim do deus.
a cidade está cheia de cadáveres que, aliás, não estão mortos, apenas putrefatos. Sabáudia é feita de pa-
ralelepípedos. ouve-se um cântico. há uma mariposa na lâmpada. alguém foi embalsamado. um antigo ritual
foi processado. o centro de Sabáudia está infestado de gatos. nas lojas de departamentos, as balconistas
pálidas murmuram frases ininteligíveis. Sabáudia é um filme de David Lynch. as salas da prefeitura são os lo-
cais de concubinato preferidos pelos forasteiros. Sabáudia vive uma vida aterradora. a radioatividade atingiu
níveis insuperáveis. a ninfomania nos playgrounds exibe seus membros curvados sob o lusco-fusco. saliva
nas engrenagens da maquinaria: Sabáudia com som de tambores, a cidade açoitada pelo vento, pestilência,
febre. as palavras proibidas de Sabáudia precisam ser ditas. a cidade é escorregadia. a cidade é arisca.
nuvens de percevejos atingem os novos condomínios do subúrbio. nos açougues se ouve apenas a palavra:
pã. nos templos da Igreja Universal uma desenfreada luxúria faiscou na espinha dorsal das fiéis. zoofilia. fist-
fucking. double penetration. Sabáudia vive uma vida que grita, nas varandas, nos halls de hotéis, no fosso
dos elevadores, no interior velado dos quartos, dos cômodos de motel. a orgia galopante. a descontrolada
sede. a única palavra permitida é: miklos. nikos. linkos. não posso continuar este relatório. as autoridades de
Sabáudia injetaram chumbo em minha uretra. os beduínos dançam em ritmo frenético. preciso fugir antes
que seja tarde demais.

PUBLICADO EM 14/09/08 ÀS 06:14 POR BEETHOVEN


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arte: fábio augusto e guilherme gerais

O “Idiota da Família” é um livro inacabado de três mil páginas


que Sartre escreveu sobre a vida de Flaubert. Trabalhou sob
o efeito de anfetaminas e ficou cego durante o processo. Al-
guém chamou essa obra de monumento à memória, de luta
contra o esquecimento, de um desejo vão de permanecer
acordado. Sartre queria continuar consciente, queria reviver
a literatura francesa através de Flaubert nos seus últimos de-
talhes, para que nada fosse deixado para trás. Espanta poder
ver nesse livro a idéia de que uma obra de arte possa ser um
universo, ou, pelo menos, que o artista pretenda que ela seja
isso, uma coisa impossível.
Em 1994 foi encontrado pelo executivo da United Artists, Jeff
Kleeman, numa mina de sal próximo à cidade de Hutchison,
no estado de Kansas (onde estúdios têm mantido seus arqui-
vos há várias décadas), parte de uma obra inacabada, um

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documento da maior obsessão do diretor ameri- senvolveu protótipos de figurinos, armas, canhões
cano Stanley Kubrick: o roteiro escrito pelo próprio e equipamentos de todos os exércitos envolvidos
cineasta sobre a vida de Napoleão Bonaparte. nas batalhas, que depois seriam produzidos em
A obsessão é a necessidade de cumprir uma massa. Queria contratar 40 mil homens do exér-
ação que respeita um princípio, é uma prisão, uma cito romeno pra reproduzir cenas de batalhas na
coleção infinita do inútil. Dizia-se que o escritor então Iugoslávia e iria comandar pessoalmente a
francês levantava todas as manhãs e escrevia à logística de transporte dessas tropas de um país
mão ininterruptamente por pelo menos quatro ho- para o outro, prevendo inclusive as implicações di-
ras antes de fazer qualquer coisa, às vezes ficava plomáticas disso. Estava desenvolvendo o projeto
preso em um mesmo assunto durante semanas, de um laboratório que fosse capaz de dar conta
mesmo quando não queria. Kubrick, durante as fil- das especificações técnicas exigidas para revelar
magens de “O Iluminado”, pessoalmente desmon- os negativos sensibilizados com lentes capazes
tava e montava o projetor que usava para conferir de filmar em condições de baixa exposição de luz
o material filmado. Fazia isso a cada quinze dias, e também para desenvolver os efeitos especiais,
apenas para garantir que a imagem gerada por como o de front projection, que ele estava aprimo-
ele seria sempre a mesma. Ele passava duas ou rando em relação aos de “2001 - Uma Odisséia
três semanas repetindo o mesmo plano, a mesma no Espaço” (1968), filme que ele tinha acabado
ação, duzentas vezes. Garret Brown, o inventor de realizar. Construir um plano geral da Moscou
da steadycam, disse que Kubrick definia no set, divisada por Napoleão utilizando a mesma técnica
inclusive, a posição e a distância que cada trai- que reproduziu o espaço em “2001” era uma de
ler deveria ter, para que a relação entre os atores suas ambições.
respondesse a uma psicologia que favorecesse o “Napoleon” acabou sendo cancelado por razões
filme de uma certa maneira. Ele abria jornais tailan- que envolviam problemas com o estúdio e receio
deses no tapete da sala e media com uma régua de parte dos investidores, mas o fato dele nunca
os anúncios de seus filmes para ter certeza de que ter retomado o projeto parece falar de algo da na-
as medidas respeitavam os acordos contratuais. A tureza da própria relação do cineasta com o filme.
literatura francesa era para Sartre, no seu valor de Em entrevista, anos mais tarde, Kubrick chega a
ofício o que, em Kubrick, é o cinema. Explorar a admitir que o projeto era impossível de ser realiza-
arte através da vida de um homem foi uma tarefa do. A dimensão da vida do homem para cujas bio-
que os dois levaram às ultimas conseqüências. grafias o número supera as de Jesus Cristo, talvez
Kubrick queria narrar a maior história jamais conta- fosse algo que não pudesse ser contado por quem
da pelo cinema, fazer a versão definitiva da saga simplesmente não podia deixar escapar nada.
do Imperador. Ele pré-produziu o filme por dois Toda essa loucura a serviço de um cinema que
anos, contratou o maior especialista em Napoleão quase nunca foi digressivo não é um contra-senso.
da Inglaterra, montou uma biblioteca com milhares O valor da obra não está contido simplesmente
de livros sobre o assunto. Trezentos desses livros naquilo que nele aparece no resultado, é preciso
eram biografias do general. Desenvolveu um ban- entender o processo, é preciso entender porque
co de dados imenso, indexado por assunto, que um cinema tão sintético parece ter infinitas cama-
podia ter as suas informações cruzadas através de das, exija tantas revisões, pareça ser tantas coi-
um sistema de sinais complexo que compreendia sas. Sem dúvida, isso também tem na montagem
um catálogo de 15 mil fotos de objetos relaciona- uma explicação, mas a montagem em Kubrick é
dos ao período napoleônico, a vida de Napoleão uma outra coisa, é algo que desvia completamen-
fichada dia por dia e relacionada a um outro arqui- te a questão, porque caminha no sentido inverso
vo paralelo dos momentos relevantes da vida das desse processo alucinado de percorrer todas as
50 pessoas mais influentes para sua história. De- possibilidades do que se quer filmar.
Para Kubrick, cada filme é um universo do ponto
de vista de sua concepção, e como produto final
é a conseqüência racional e específica da esco-
lha do artista que mergulha em um infinito que ele
precisa criar antes. Para ele, no set, apenas o ato
de filmar é intuitivo, o resto não pode ser. “Napo-
leon” é uma obra de arte que permanece apenas
na possibilidade da pré-existência e por isso é
privilegiada no sentido de compreender Kubrick.
Irônico pensar que “Barry Lyndon” talvez seja ape-
nas o espólio que surgiu do fracasso de um filme
impossível.
A história do cinema pode ser contada de várias
maneiras e uma delas é a história do seu fazer.
Talvez só os ingênuos concordem, mas Kubrick
foi como Aristóteles: precisou percorrer todas as
linhas do fazer para descobrir suas obras. Cada
filme foi um grande épico sobre a descoberta de
uma vocação, cavando sempre mais fundo, per-
correndo séries mais longas.

O roteiro escrito por Kubrick para “Napoleon” (1969) pode ser lido gratuitamente no link:
http://www.donkeyontheedge.com/i/napoleon.pdf

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Nascido em Curitiba em 1981, Murilo Hauser é hoje ele também mantém no teatro. Ao realizar “Silêncio
um dos principais diretores de curta-metragem do e Sombras”, teve de lidar com alguns preconceitos
Paraná. Com experiência em teatro, música e foto- que desconhecia: “As pessoas ainda têm uma cer-
grafia, ele dirigiu nove curtas nos últimos dez anos, ta concepção de que tipo de temas as animações
obtendo atenção principalmente pelos três últimos devem tratar e como. Ainda existe um certo receio
trabalhos: “já estamos todos mortos” (2004, digi- das pessoas em entender que uma animação pode
tal), “Outubro” (2007, 35 mm) e a animação “Silên- tratar de temas como solidão, separação e morte de
cio e Sombras” (2008, 35 mm), o primeiro episódio uma maneira madura. Como opção para inscrição
de uma trilogia que ainda irá incluir “Meu Medo” de um filme em um festival normalmente existem
e “olhos mortos de sono”. Dividindo o seu tempo Ficção, Documentário ou Animação - como se a ani-
entre Curitiba, São Paulo e Berlim, Murilo recente- mação não pudesse ser um documentário e como
mente esteve nos sets do filme “Insolação” como se fosse um tipo definido de ficção, engraçado ou
primeiro assistente de Felipe Hirsch, parceria que infantil”. Confira mais trechos da conversa:

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Revista Taturana - O filme já apresenta muito da funcionando cada vez mais como guia emocional do
sua proposta logo pelo título: “Silêncio e Som- filme. Neste processo, entrou o trabalho de som do
bras”. Ao mesmo tempo em que você não tenta Alessandro Laroca e sua equipe em Curitiba. Isto foi
impor uma compreensão clara e única sobre o rito fundamental, foi o que mais impressionou quando
de passagem, há um certo mistério relacionado à vi o filme projetado pela primeira vez – a potência
narrativa como um todo. Me parece muito mais um do som e a capacidade que ele tem de tornar todas
filme a ser sentido, do que compreendido. Como aquelas imagens digitas em ‘reais’, ‘materiais’. Não
você avalia a linguagem desse filme? mais o resultado de um cálculo de computador, mas
Murilo Hauser - “Silêncio e Sombras” é um proje- personagens com pulsação, com medo, com peso.
to que foi desenvolvido ao longo de muito tempo.
Neste trajeto todo a minha percepção e aproxima- Uma das coisas que mais impressiona ao longo
ção do trabalho mudaram muito. O rito de passagem do filme é a precisão do traço, da atmosfera, e seu
do garoto no filme acabou sendo um reflexo do meu respectivo diálogo com a música e o som ambien-
próprio processo de amadurecimento profissional e te. Há possivelmente um diálogo com as anima-
criativo. Na produção de um filme em animação 3D ções de Tim Burton e uma melancolia que nos
existe uma liberdade estranha, relativa. Você pode remete a seus filmes anteriores, principalmente
fazer virtualmente qualquer coisa com a câmera, “já estamos todos mortos” e “Outubro”. “Silêncio
mas a partir do momento em que toma certas de- e Sombras”, no entanto, se consolida como uma
cisões, é muito difícil voltar atrás, mudar os planos. evolução e síntese de tudo o que você já havia fei-
É um processo muito fragmentado, que exige uma to. Em que medida esse filme trouxe inovações ao
capacidade de visualização que nem sempre é fácil, seu trabalho?
ainda mais quando é um primeiro trabalho. Quando Os meus curtas anteriores foram processos muito
os primeiros frames ficaram prontos, percebi que mais individuais, em que eu trabalhei muito tempo
teria que mudar a minha decupagem. As imagens sozinho, e é muito difícil não se perder quando se
eram muito impressionantes, era um filme visualmen- está sozinho. Isso me fez aprender como é impor-
te muito poderoso, muito detalhista. O longo tempo tante ter alguém ao seu lado durante todo o tempo,
de trabalho também fez com que o filme ficasse cada que te ajude e proponha outras possibilidades. Na
vez mais sensorial. A nossa preocupação em ‘contar animação, você está o tempo inteiro com pessoas
uma história’ foi se afastando a cada passo que dáva- ao lado, não é um processo solitário nunca. O filme
mos e nos aproximando da idéia da poesia, a música me ensinou também a tomar decisões com mais cal-
ma, mesmo que elas sejam urgentes – acho que é eu comecei a não me preocupar tanto em fazer um
um aprendizado contínuo isso, o de como conseguir filme perfeito mas, antes, em fazer um filme pessoal,
se concentrar e pensar mesmo que você esteja com que só eu pudesse fazer, por mais errado que ele
todo mundo te olhando e esperando uma resposta. corresse o risco de ser. Porque afinal é assim que
Achar um lugar dentro de você que você consiga fa- você realmente tem que se olhar no espelho e tentar
zer silêncio. falar com a sua própria voz. Mesmo que essa voz
diga “eu não sei nada, mas eu estou tentando”.
Como você mesmo citou certa vez, Fellini dizia
que um filme é a soma de seus erros e acertos. Um segmento pouco desenvolvido no Brasil é o
Que limitações você veria em “Silêncio e Som- cinema de gênero. Há uma espécie de preconcei-
bras”? to que conduz a pauta de alguns editais: geral-
Todos os acertos e erros ocorridos durante a criação mente as comissões de avaliação aprovam filmes
deste filme estão com certeza na tela quando o filme sobre problemas sociais ou temas associados
é projetado, e eu acho isso incrível. Essas cicatrizes à determinada cultura regional. Seu filme vai na
que ele vai acumulando durante o processo e que contracorrente dessa exigência freqüentemen-
vão estar lá, a sua vida inteira, cada vez que você te implícita. Como você avalia essa aprovação?
assistir. Elas fazem você lembrar de quem é você, Está se tornando mais claro que o cinema de gê-
de como você reage a dúvidas e como tenta es- nero pode dialogar com a realidade tanto ou mais
conder as suas fraquezas. De um tempo pra cá, eu que um filme que se pretende realista?
tenho gostado cada vez mais de filmes imperfeitos, Eu espero que esteja se tornando mais claro sim,
filmes que ‘deram errado’, sabe? Filmes em que o que o cinema é maior do que os temas que ele
diretor não conseguiu chegar aonde queria, em que discute na superfície. Um filme deve se relacionar
a conexão se estabelece e se rompe. Isso deve ser com as pessoas e com o tempo em que se inse-
porque quando eu era mais novo, era fascinado por re independente de onde foi feito. Ele próprio tem
filmes nos quais todos os elementos se alinhavam que justificar sua existência, não o discurso que o
em perfeição, em que havia uma coerência interna. acompanha. Os filmes e livros menos engajados fo-
Por isso fui tão obcecado por Kubrick, por Tarkovski, ram os que mais mudaram a minha percepção de
por Bergman, por Billy Wilder, por Woody Allen, por identidade, de realidade e de sociedade, porque fil-
David Lynch. Porque eles tinham essa aura da obra mes são feitos por pessoas, e essas pessoas vivem
de arte, da perfeição. Mas depois eu percebi que dentro de um tempo, dentro de uma realidade e têm
a relação com eles era, na maioria das vezes, fria. uma percepção dela. Isto é o cinema, não? Essa tra-
Algo que você aprecia e que te toca, mas que ao dução de impressões que o cineasta tem do lugar
mesmo tempo está lá, completo em sua perfeição, onde vive. Tentar fazer com que a discussão gire em
dialogando com si mesma. Isto começou a me ente- torno de um único tema só empobrece o resultado
diar um pouco, essa falta de um sentimento humano e acaba sufocando iniciativas descentralizadoras,
mais básico, do erro, da dúvida. Isso cria um filme relatos mais pessoais. Já aprendemos que o cinema
muito mais pessoal, muito mais direto, muito since- não pode mudar o mundo, então não tem porque
ro. Essa mudança aconteceu durante o “Silêncio” e colocar esse peso nele de novo, é uma idéia antiga.

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Você trabalhou em diversas montagens da Sutil, da primeira vez que você a escuta. É assim que eu
integrou orquestras de música erudita, escreve tento conduzir o trabalho - procurando me surpreen-
bem, além de ter uma relação muito forte com der, tentando não aceitar o primeiro impulso, ir mais
quadrinhos, fotografia e música pop. Que contri- fundo, ser mais pessoal.
buições essas linguagens trouxeram para o tipo
de filme que você faz? Há propostas hoje, no cinema brasileiro, com as
O que aprendi é que devemos sempre ser fiéis à quais você dialoga?
idéia. Ela deve ser o mais importante. Nenhuma Eu sempre achei que eu não estava dialogando
complicação ou dificuldade pode ficar no caminho, com nenhuma proposta presente no cinema brasi-
pode reger uma decisão, porque isso só faz com leiro, mas percebi que estava errado. Isso começou
que se escolha um caminho já trilhado, uma fórmu- quando eu terminei o “Outubro” - porque eu pensa-
la. É claro que é um processo diferente montar uma va que estava falando sozinho, sabe? E quando eu
peça de preparar um concerto, escrever um roteiro, comecei a viajar com o filme me surpreendi porque
montar uma exposição, fotografar ou montar uma percebi que tem muita coisa sendo produzida que
ópera; mas, no fundo a concentração necessária, a dialoga com a maneira que eu penso o cinema, e
clareza que o artista busca na tomada de decisões, isso foi como uma sensação de conexão. Conheci
a impressão que fica marcada no trabalho de cada gente produzindo este ‘outro’ cinema de todos os
uma dessas decisões tomadas, tudo isto está sem- lugares do Brasil e percebi que existe mesmo uma
pre lá. Quando eu penso em um filme, ele está qua- ligação, que não está na temática, mas na lingua-
se sempre ligado a uma sensação, muito mais do gem, no ponto de vista. Tem uma certa melancolia
que a uma idéia de roteiro. Essa sensação é como nestes filmes que parece ser comum a essa faixa
uma música, tem uma forma que desperta a minha etária de diretores, não sei. Em um festival fizemos
curiosidade, minha vontade de conhecer outras ca- um levantamento, por brincadeira, e ficamos surpre-
madas. Porque uma boa música nunca se esgota sos como quase todos tínhamos a mesma idade.
arte: felipe augusto
O crítico e jornalista Marcelo Miranda propôs à pesquisadora e doutora
Laura Cánepa um bate-papo virtual cujo ponto de partida fosse o “surre-
alismo no cinema brasileiro”. A conversa, reproduzida abaixo, provoca em
alguns pontos, esclarece em vários e permite que outros debates surjam:

Marcelo Miranda - A expressão “surrealismo no presente no cinema brasileiro do que o surrealismo.


cinema brasileiro” te remete a alguma coisa? A diferença entre as duas é que, enquanto o surre-
Laura Cánepa - Quando falamos em cinema brasi- alismo traz o elemento estranho pela via do onírico,
leiro, vem à mente o longa-metragem de ficção, mas o realismo-maravilhoso aceita o elemento estranho
creio que o surrealismo possa ser encontrado de como fazendo parte da “paisagem natural” (como
maneira muito mais disseminada nos curtas de fic- em “Saramandaia”, de Dias Gomes). Isso pode ser
ção e experimentais, que têm menos compromisso justificado à própria cultura latino-americana, muito
com exibição comercial e, por isso, podem se arris- mais aberta ao sobrenatural do que a européia.
car mais em conceitos transgressores, como muitos
dos que definem o surrealismo. Outra ressalva: se O elemento estranho aceito como sendo da “pai-
estivermos falando simplesmente na presença de sagem natural” significa que, no surrealismo eu-
elementos oníricos, a lista de filmes brasileiros de ropeu, o elemento estranho seria um “invasor”?
ficção será enorme. Porém, se levarmos em conta Não! Significa que, no surrealismo, a idéia do onírico
os aspectos transgressores preconizados pelo mo- é central, enquanto que, no realismo-maravilhoso,
vimento surrealista, além das idéias de associação ela não é necessária.
livre e a influência do pensamento de Freud, aí o es-
copo diminui bastante. E mais uma ressalva: o sur- Se fosse pra falar em um cineasta surrealista no
realismo é um movimento estético europeu que tem Brasil, em qualquer época, existiria algum?
um “primo” na narrativa realista-maravilhosa latino- No sentido de um cineasta comprometido com o
americana do século XX, que me parece muito mais surrealismo, que eu saiba, não.

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Nem mesmo nos curtas, tipo Dennison Ramalho também podem ser mencionados. Já no caso do
ou Fernando Severo? Tim Burton, além de ele não ser propriamente um
O Dennison faz filmes de horror. Não vejo porque surrealista, o tipo de cinema que ele faz exige orça-
dar outro nome ao que ele faz. Já o Severo tem uma mentos que não estão ao alcance do cinema bra-
obra um pouco mais extensa e bem mais variada, sileiro. No máximo, encontra-se algo no cinema in-
com filmes de fantasia, experimentais e até docu- fantil, mas com roteiros bem mais “comportadinhos”,
mentais, então talvez seja possível apontar momen- como no “Castelo Rá-Tim-Bum”.
tos surrealistas, mas não dá para rotular o conjunto.
Surreal é a gente falar de um filme infantil num
Será que o Brasil absorveu alguma lição de gente papo sobre surrealismo!
como Luis Buñuel, David Lynch ou mesmo Tim Todas as vanguardas do começo do século XX ti-
Burton? nham um enorme interesse pelo trabalho artístico de
Certamente, mas talvez não da forma que a crítica crianças, que lhes pareciam expressões totalmen-
espera. Um cineasta que chegou a ser comparado te livres do imaginário. É só lembrar de um artista
com o Buñuel foi o José Mojica Marins, mas num re- como o Miró (que chegou a passear pelo surrealis-
gistro mais popular e explícito, totalmente ligado aos mo) para perceber que o universo infantil interessa
elementos do gênero horror (que nunca fizeram par- muito a toda a arte moderna.
te do projeto do Buñuel ou de outros surrealistas).
Os cineastas chamados de marginais também tra- O Buñuel já trabalhou com questões ligadas ao
zem essa influência. Acho bacana lembrar de filmes universo do terror e do suspense, como em “En-
como “Prata Palomares”, do André Faria Jr. e “Os saio de um Crime”. E vamos admitir que filmes
Monstros do Babaloo”, do Elyseu Visconti. O David como “Tristana” e “O Anjo Exterminador” têm lá
Lynch é mais influente entre cineastas jovens, es- suas características de terror!
pecialmente os curta-metragistas. Mas longas como Sim, mas seria forçadíssimo dizer que ele era um
“O Corpo”, de Rossana Foglia e Rubens Rewald, cineasta de horror, ao contrário do Mojica!
Mojica ou Ivan Cardoso têm alguma coisa surre-
alista?
Do Mojica, sem dúvida “O Despertar da Besta” é um
filme comprometido com o surrealismo, embora o
cineasta talvez não tivesse total consciência disso.
O próprio fato de descrever devaneios dos perso-
O surrealismo e o terror podem caminhar juntos? nagens sob supostos efeitos de drogas parte de um
Em que sentido e sob quais aspectos? princípio surrealista, que é o da expressão livre dos
Podem, principalmente pela presença da agressi- processos inconscientes. Outro filme dele que se
vidade, do grotesco e dos elementos que não se relaciona mais diretamente com o surrealismo é “A
adaptam à visão que temos do “mundo natural” Praga”. No caso do Ivan Cardoso, tem muito mais
(como a presença do sobrenatural). Mas, em geral, influência das chanchadas e do besteirol. Mas “Um
o horror pressupõe que os personagens da história Lobisomem na Amazônia”, com a viagem de daime
reajam a esses elementos com estranhamento, en- dos personagens, talvez possa ser considerado um
quanto, no surrealismo, o elemento estranho é con- parente distante, mas seria exagero.
textualizado pela atmosfera onírica. Não são tantos
os cineastas que conseguem misturar bem o surre- Será que nas comédias populares – no que se re-
alismo com horror. Entre eles, podemos citar o chile- fere aos anos 70 e 80 - a gente também pode falar
no Alejandro Jodorowski, o italiano Dario Argento, o de pirações meio surrealistas?
estadunidense David Lynch e o Mojica. “Comédias populares” é um termo muito genérico.
Provavelmente um pesquisador de surrealismo vá
Aqui a gente esbarraria no conceito do realismo- encontrar diversos exemplos dispersos, mas creio
maravilhoso? Se esse conceito pressupõe uma que o realismo-maravilhoso esteja muito mais pre-
aceitação do elemento estranho na realidade sente, especialmente pelo tom alegórico que ele
apresentada, ele não teria, então, algo muito per- freqüentemente permite. Lembro, por exemplo, dos
to do que você disse de surrealismo como “con- filmes d’Os Trapalhões, da “A Árvore do Sexo” ou
textualizado pela atmosfera onírica”? mesmo de “Dona Flor e Seus Dois Maridos”.
Não. Nesse universo que foge do realismo, é natural
que as possibilidades sejam muitas. Para você ter Um filme como “Bacalhau”, do Adriano Stuart,
uma história de horror, os personagens devem es- com todo aquele deboche típico dos anos 70,
tranhar e ter medo de qualquer elemento que fuja à poderia se encaixar numa noção de realismo-
natureza conhecida. No realismo-maravilhoso, eles maravilhoso?
encaram esses elementos com naturalidade como No caso dele ou dos filmes do Mazzaropi como “O
se fizessem parte da natureza conhecida. Quem Jeca contra o Capeta”, prefiro achar que são paró-
estranha somos nós. Já no surrealismo, há uma at- dias do “Tubarão”, no primeiro caso, e de “O Exor-
mosfera mais complexa de elementos oníricos, que cista” e “Jesus Cristo Superstar” no segundo: é tirar
deve nos levar a perceber que não há uma linha de uma onda com os filmes estrangeiros, apelando ao
causa e conseqüência entre os fatos, mas de asso- que for mais engraçado (na opinião dos realizado-
ciação livre e de metáfora por deslocamento ou con- res).
densação, que remete a conceitos de Freud sobre
o inconsciente.

37
38

O cinema brasileiro pós-retomada, com um certo dades” foram ignorados ou francamente atacados
tom anódino que o caracteriza, pode ser chama- pela crítica e pela academia na época em que foram
do de surrealista – no sentido de ser tão distinto feitos. No caso do filme do Mojica, não é que eu não
do que o país já foi capaz de fazer? goste, mas acho que os realizadores não consegui-
Não sei se o cinema da pós-retomada é tão distinto ram recuperar o Zé do Caixão original e nem apro-
do que já fomos capazes de fazer, mas certamente veitar a figura divertida que ele se tornou. Quanto
não é surrealista. O que se percebe, no máximo, é ao surrealismo nesse filme, a gente pode encontrar
um gosto pelo fantástico e pelo onírico, num registro alguns momentos, mas é filme de horror típico, inclu-
muito pouco transgressor. Por exemplo, nas produ- sive, assumindo essa linha bem contemporânea do
ções da Globo Filmes, como “O Coronel e o Lobiso- “torture porn” (da qual Mojica foi um dos precurso-
mem”, “A Mulher Invisível”, “Se Eu Fosse Você”, “O res!). Já o filme do Christian, se eu tivesse que clas-
Homem que Desafiou o Diabo”, “Fica Comigo Esta sificar (o que é complicadíssimo e polêmico!), eu
Noite”... o colocaria na linha do realismo-maravilhoso, pela
presença de figuras do folclore nacional misturadas
O uso que fiz da palavra “distinto” é porque, à paisagem urbana.
surreal ou não, a utilização dos tais “elementos
estranhos” no passado do cinema brasileiro era Marcelo Miranda é repórter de cultura, crítico de cine-
bem mais arriscado do que hoje. Esses filmes ma no jornal O Tempo (Belo Horizonte-MG) e integran-
que você citou são quase infantis, no mau senti- te da revista eletrônica Filmes Polvo (www.filmespolvo.
do, e parecem ter medo de levar para longe as no- com.br)
ções das quais elas partem. Você acha que nem
o Mojica, com o “Encarnação do Demônio”, tirou
Laura Cánepa é mestre em Ciências da Comunicação
um pouco o marasmo? E “O Fim da Picada”, do
e doutora em Multimeios com a tese “Medo do Quê?
Christian Saghaard, onde entra? Uma História do Horror nos Filmes Brasileiros”. Integra
Não sou saudosista com o cinema do passado, pois a revista eletrônica Cinequanon (www.cinequanon.art.
noto que muitos filmes dos quais hoje “sentimos sau- br)
arte: caio miguel e guilherme gerais
40

“Uma obra de arte é feita pelo mais pessoal dos explosão de fosfenos e imagens que se vê quando
motivos: é uma expressão de amor”. Essa frase iso- esfregamos os olhos. Tento trazer para meus filmes
lada, talvez, já justificasse uma espiada na imensa o hipnagógico, as imagens que vemos durante o es-
obra do cineasta norte-americano Stan Brakhage tado de vigília antes do sono e que são provocadas
(1933-2003), poeta visual que ao longo de 50 anos pela excitação do nervo óptico, vistas na forma de
de pesquisa dirigiu 373 filmes. Mais do que um ar- partículas de luz. Há todo um universo de luzes e
tista consciente de sua linguagem, Brakhage foi um padrões de movimento que geralmente não perce-
autor preocupado em expressar um pensamento vi- bemos.
sual a partir do movimento, do ritmo, da pulsação da
película. A entrevista que a taturana reproduz par- Por que essa obsessão pela luz e pelo ato de
cialmente a seguir foi publicada pela primeira vez olhar, expressa em filmes como “The Text of Li-
no Brasil em 1996. A conversa, que também inclui ght” e “The Art of Vision”?
o poeta e escritor londrinense Rodrigo Garcia Lo- Eu vejo tantas qualidades e tipos de luz, e vejo mais
pes e o fotógrafo americano Gary Higgins, integra à medida que envelheço. Luz é a condição essen-
a coletânea Vozes & Visões: Panorama da Arte e cial do olhar. Entre os muitos presentes que recebi
Literatura Norte-Americana Hoje, de Garcia Lopes, de Ezra Pound está sua tradução de um ditado de
publicação lançada pela Iluminuras. Confira a seguir Scottus Erigena: All the things are, are light (“Todas
trechos desse raro encontro entre um escritor, um as coisas que são, são luz”). Essa frase foi muito
fotógrafo e um cineasta em busca do “nascimento significativa para meu trabalho. Ela expressa de um
da imagem”: modo muito bonito a condição do cineasta no
momento em que está filmando. Nós sa-
Rodrigo Garcia Lopes & Gary Higgins: Em plena bemos que existe uma luz que emana
era do vídeo, programas de realidade virtual e de todos os seres, e sabemos que
evoluções tecnológicas na área da imagem, você as partículas que Reich viu exis-
continua trabalhando com o filme super-8. Por tem realmente. Mas como não
quê? posso filmar essas
O filme de 8 mm me oferece mais vantagens cria- luzes que vejo
tivas, me possibilita trabalhar com mais liberdade, a olho nu, ou
muitas vezes ao sabor do acaso. Para mim, depois
desses anos todos, o super-8 se tornou uma discipli-
na artística. Como a câmera é mais leve, posso levá-
la comigo a qualquer lugar. Eu costumava trabalhar
com câmeras usadas, quebradas ou com algum
defeito, para conseguir certos efeitos, às
vezes incríveis. O filme de 8 mm permi-
te uma certa granulação da imagem
que é fundamental para o tipo de
filme que faço, uma granulação
que não se encontra num filme
de 16 mm, muito menos em
vídeo. Digamos que fui in-
fluenciado pelos pintores
impressionistas: durante
anos tenho tentado tra-
zer aquela qualida-
de da visão, ou da
visão que temos
quando fechamos
os olhos, toda a
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de olhos fechados, tenho de encontrar equivalentes espectador da passividade que ele se encontra num
que possam expressar a qualidade do que vejo. E filme de Hollywood, por exemplo. Precisa romper
isso nos leva ao começo de tudo, porque tudo o que com qualquer lógica ou com qualquer retórica, com
temos sido capazes de fazer é criar – por intermédio a idéia de que a imagem é apenas um receptáculo
do filme ou de outra arte – um equivalente das coi- de algo notável. Stein rompeu com as tradições da
sas que vemos. escrita descritivo-linear, e eu tento fazer o mesmo
em filme. “A rose is a rose is a rose”, ela escreveu.
Como você definiria seus filmes? Cinema poéti- Mas cada vez que repetimos esta frase em voz alta,
co, fanopéia, filme abstrato? obtemos significados diferentes.
O conceito que se encaixaria melhor seria “processo
mental”, ou “rememoração”, porque o filme procura Você diria que toda arte aspira chegar à condição
chegar próximo do processo da mente, do olhar e de música?
da memória. Sim. Não é à toa que “música” vem da palavra
“musa”. A música é a mais universal das artes,
Uma vez você recusou o termo “filme abstrato”, aquela que mexe com todo o nosso sistema nervo-
preferindo usar “nascimento da imagem”. Por so, além de conseguir tocar as lógicas mais finas da
quê? mente. Cinema e música são artes de continuidade,
Primeiro porque existe uma idéia de que a imagem, temporais. Cada uma excita um sentido específico.
normalmente, é um conjunto de coisas reconheci- Mas as duas são parecidas em relação ao tom, de-
das, familiares, arranjadas num quadro. Isso é o que pendem muito do ritmo e do compasso. As varia-
ainda ocorre quando as pessoas pensam em cine- ções de tom das harmonias da música são similares
ma, em filme. Mas não é dessa maneira que nossas às cores em meus filmes. Desde quando comecei a
mentes pensam, e eu quero ser verdadeiro a esses filmar, descobri que as cores também são intrinse-
aspectos da visão como o hipnagógico, que reflete camente melódicas e que deveriam dialogar umas
mais diretamente a fisiologia interna do que pensa- com as outras em algum tipo de esquema melódico.
mos. A coisa mais maravilhosa que um filme pode O “x” da questão é que as duas dependem muito
conseguir, acredito, é exteriorizar o pensamento vi- do ritmo. Para mim, tudo começou com o espanto
sual em movimento. do ser humano ao perceber as próprias batidas do
coração, seu pulsar. Quando certo dia ele bateu no
Um de seus trabalhos mais recentes é o grupo de peito e retirou sons dali, descobriu que podia enviar
quatro filmes “Visions of Meditation”, uma leitu- ritmos e sons a outras pessoas, por mais distantes
ra do poema Stanzas in Meditation, de Gertrude que pudessem estar. Então, as artes vêm da neces-
Stein. Fale um pouco desse trabalho. sidade de exteriorizar algo.
A dramaturgia digital tradicional, como a conhece-
mos, sofreu pouquíssimas alterações no Ocidente, É curioso isso porque, apesar de você explorar
e Stein foi uma de suas maiores inovadoras. Ela é o esse ritmo da visão, é raro um filme seu que te-
Giotto do drama. Eu fui muito influenciado por sua nha som e música.
obra. Stein lançou em 1932 a Autobiografia de Ali- Acho que adicionar música à pura contemplação de
ce B. Toklas e, ao mesmo tempo, este poema épico um filme distrai mais o espectador do que realmente
que é Stanzas in Meditation. Essa obra, mais do que interessa. Todo som que acontece ao mesmo tem-
qualquer outra, influenciou todos os meus filmes. po que uma imagem ou, como ocorre mais freqüen-
Cada linha é uma surpresa, com todas as conjun- temente, numa inter-relação som/imagem, tende a
ções e disjunções da sintaxe do vocabulário que distrair a visão. A opção de trabalhar com filme sem
Stein consegue em seu texto, sem a menor necessi- som ou música tem a ver com o fato de que algu-
dade de se referir, em palavras, a alguma realidade mas particularidades da minha visão tendem a se
específica, a alguma história. Porque é da natureza perder quando acompanhadas de som. Quer dizer,
da imagem o fato de ser percebida como um ca- se outros filmmakers consideram a música indispen-
cho de formas, cores e luzes. E o filme, se formos sável para “dar o clima”, ok, mas para mim isso não
considerá-lo um tipo de literatura, precisa retirar o é fundamental. Eu vou sempre ao cinema, adoro,
mas esse tipo de uso grandioso da música, tipo música incidental, não me
chama a atenção: como nas óperas, que são basicamente histórias que têm
interesse para um compositor. Agora, de vez em quando, alguém consegue
produzir grande arte até mesmo na tradição dramático-narrativa comum,
como ocorre com a ópera. Mas existem milhares de óperas para cada Don
Giovanni, do mesmo modo como há milhares de filmes para um do Tarko-
vski, do Orson Welles, do Kurosawa. Tenho enorme respeito por cineastas
que conseguem atingir um alto nível artístico dentro do cinema comercial,
apesar das limitações de ter de contar uma história que todo mundo quer
ver ou de trabalhar com um grande número de pessoas. Mas, convenha-
mos, esses cineastas não são o que chamamos de mainstream do cinema
produzido hoje. Esses caras são exceções, até mesmo aberrações na evo-
lução estética dos filmes. A maioria das pessoas nunca viu seus filmes.

Quem dentro do cinema comercial está fazendo (ou fez) filmes nesse
nível estético?
No começo do cinema, David Wark Griffith era um cineasta comercial, mas
em muitos momentos, Griffith foi um artista formidável, alguém que soube fa-
zer o cinema evoluir como arte de um jeito muito bonito. O russo Eisenstein é
outro daqueles cineastas raros. Dreyer também. E Jean Cocteau, com certe-
za: ele me deu a noção de que o filme podia ser uma forma de arte. Fui muito
influenciado por todos eles: formam uma tradição no cinema experimental
que procuro seguir. Mas, ultimamente, quem mais tem feito sentido para
mim, em termos de cinema, é o falecido Andrei Tarkovski. Sempre que reve-
jo seus filmes, absorvo e aprendo mais. Sinto neles aquelas possibilidades
permanentes de toda grande obra de arte. “O Espelho” é uma obra-prima.
Também gosto muito do trabalho do cineasta armênio Parajanov. O cine-
asta em cujo trabalho mais acredito nesse país é Martin Scorsese, embora
eu acho sua produção bastante desigual. Esses autores, considerando a
enorme produção cinematográfica norte-americana, são raros. No entanto,
conheço trabalhos de cineastas poéticos, independentes e quase totalmen-
te desconhecidos que têm muito mais chances de perdurar como obras de
arte do que a grande maioria dos filmes de Hollywood. É uma vergonha que
exista essa competição entre o cinema independente e o cinema comercial,
quase como se as pessoas, ao se envolverem com cinema poético, tives-
sem medo de perder os “seus filmes”. Eu sou uma prova viva disso. A po-
esia não é mais importante do que a prosa; nos grandes períodos literários
uma está sempre inspirando a outra

Como você vê o fato do vídeo estar obtendo cada vez mais espaço e
circulação comercial?
A questão do cinema é que se trata de uma arte muito nova, tem menos
de 100 anos. Parece que não tivemos bastante tempo para saber se vai
sobreviver ou não. Os defensores do vídeo com certeza vão insistir que o
cinema está morto e acabado. Mas o interessante é que as pessoas conti-
nuam indo ao cinema e isso ocorre, na minha opinião, porque elas têm uma
intuição do que o filme pode proporcionar como arte. Vídeo é algo diferen-
te. Não sou contra ele, como algumas pessoas pensam. É um meio como
qualquer outro, mas para mim o filme está mais próximo da música e da
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pintura. O vídeo não tem cor: a cor é qualquer coisa que a máquina
apresenta. Pode-se mudar de canal. Por isso eu, como um colorista,
não consigo me envolver com ele. Suas possibilidades rítmicas são
endurecidas, abafadas. Fica muito caro filmar em vídeo e colocar
as cores em filme, e eu teria que fazer isso, pois seria o único modo
de manter minha integridade como colorista. Para aqueles que não
estão envolvidos com certas particularidades da visão como eu, tudo
bem. O problema essencial do vídeo é o de ser hipnótico. Fica-se
olhando diretamente para uma luz, uma luz prejudicial à saúde e
que chapa as pessoas, o que é um meio ótimo para propaganda,
mas extremamente difícil como meio estético. Por isso mesmo que
encontro maneiras maravilhosas e não-hipnóticas de utilizar o vídeo.
Há outros que usam o vídeo com integridade: Stan Vanderbeek e
Bruce Bailey têm trabalhos incríveis em vídeo.

Em seu livro Metaphors on Vision, você cita o poeta alemão Ri-


lke com freqüência, e uma frase me chamou a atenção: “Mais
verdadeiro e invisível dentro de nós”. Seus filmes são bastante
subjetivos, cheios de conteúdos simbólicos. É possível comu-
nicar o que é tão pessoal, aquilo que é “verdadeiro e invisível”?
Como artista, não estou de modo algum envolvido com isso que se
entende por “comunicação”. Não digo isso no sentido de “torre de
marfim”, mas comunicação, no entendimento comum da palavra,
como transferência de uma informação, não é bem o meu objetivo.
As artes existem tradicionalmente por causa do mistério. Eu prefiro
mostrar minha visão do que explicá-las. “Aperte o gatilho primei-
ro, faça perguntas depois”. Tanto no Ocidente quanto no Oriente,
as artes têm estado muito mais interessadas em inspirar e instigar
as pessoas a viver, o que é bem diferente de influenciá-las. Para
inspirá-las, é preciso criar um ambiente onde cada pessoa seja res-
peitada como um indivíduo, em sua particularidade, e não como
integrante de um rebanho. Embora eu considere que uma obra de
arte deva ter vida na sociedade. Uma vez que o artista terminou de
filmar, aquilo pertence aos outros. Nunca produzo um filme com a
intenção de levá-lo à apreciação da sociedade. Qualquer cara que
decida encontrar uma garota apenas para mostrá-la aos pais e ami-
gos, jamais se apaixonará por ela. Qualquer um que decida fazer
um trabalho para o público, jamais irá criar uma obra de arte. Uma
obra de arte é feita pelo mais pessoal dos motivos: é uma expressão
de amor.
arte: felipe augusto

O curta-metragem é considerado hoje um espaço leiros em festivais e mostras ao redor do mundo,


relevante de experimentação de linguagens, forma- percebemos que, em número, há a hegemonia dos
tos e narrativas. Com o advento das novas tecnolo- curtas. Visto, porém, muitas vezes como “etapa para
gias – principalmente o formato digital – o número o próximo estágio”, os curtas carregam consigo o
de produções cresceu. No Festival de Gramado, estigma de serem encarados como uma parte da
por exemplo, o aumento foi de 80%, com 287 títulos depuração do talento de seus realizadores rumo ao
inscritos. Já o Festival Internacional de Curtas Me- longa. “É comum a idéia de que um filme de longa-
tragens de São Paulo apresenta esse ano 150 filmes metragem deva ser mais preciso, mais ‘amarrado’,
selecionados a partir de 700 inscrições. Com o au- mais ‘bem-feito’, mais estruturado”, afirma Christian
mento do número de produções, o questionamento Saghaard, que há mais de 15 anos trabalha em
que surge então é: como avaliar a produção de cur- mostras, festivais e projetos de exibição.
tas no Brasil hoje? Sem se ater à preocupação do que funciona ou não
Se analisarmos a receptividade dos curtas brasi- comercialmente, há, nos curtas-metragens, uma ní-

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tida investigação estética para traduzir ao espectador


as potencialidades de elementos visuais e sonoros.
Essa preocupação reflete a busca por parte dos re-
alizadores por características estéticas próprias. No
entanto, “se a grande quantidade é um ótimo ponto de
partida e se existe uma grande diversidade estética
na produção, os pontos baixos se multiplicam, sem
uma necessária multiplicação na mesma proporção
dos momentos altos”, ressalta Cléber Eduardo, rea-
lizador, curador e crítico de cinema.
A produção contemporânea, no entanto, é motivo, se
não para euforia, para gerar ainda mais expectativas
sobre o futuro. Crescem os Estados brasileiros que,
além do sempre prolífico eixo Rio-São Paulo, mantêm
uma produção de destaque nos últimos anos como
Pernambuco, Minas Gerais e Ceará, em que transpa-
recem “pesquisas e experimentações consistentes
que permeiam narrativas verdadeiramente audiovisu-
ais, em que a imagem e o som são fiéis à gramática
clássica dos cinemas autoral e de vanguarda, desde
o primitivo até os grandes autores contemporâneos do
impacto digital”, aponta o curador Dellani Lima. Para
o realizador e curador Sávio Leite, Minas Gerais tem
se destacado com uma produção singular: “Os curtas
feitos em Minas Gerais carregam uma certa melanco-
lia, uma nova forma de olhar e um jeito muito distinto
de mostrar as nuances da realidade”, avalia.
Além disso, o barateamento do equipamento trazido
pela democratização (embora relativa) do acesso aos
equipamentos de captação e finalização digital tem
favorecido a multiplicação de visões periféricas tan-
to em temas quanto em abordagens, e gerado várias
tentativas de superar as limitações do suporte com
experimentações estéticas e utilizando-se da internet
como ferramenta de difusão de filmes neste formato.
Outro canal importante de discussões e exibições do
formato curta-metragem são os festivais e mostras
que se espalham em quase todos os estados repre-
sentando um verdadeiro circuito exibidor, assim como
a ação dos cineclubes. William Hinestrosa, curador
e realizador, comenta que “de modo geral, o curta-
metragem está na pauta da produção e difusão do
nosso audiovisual, o que é enriquecedor e relevante
para construção da história do cinema brasileiro”. A
liberdade que permite uma maior ousadia e diversi-
dade estética serve como um lembrete de que todos
os filmes em todos os formatos podem ser inventivos
e contribuir para enriquecer essa história, completa
Saghaard.
20º Curta Kinoforum promove estréias e retrospectivas

‘‘Escritas do Cinema’ é o tema da 20a edição do Curta Kinoforum – Fes-


tival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo. As formas de se
escrever o cinema, refletindo o papel do filme curto na produção audiovi-
sual contemporânea, surgem como foco num espaço de cruzamento de
linguagens, formatos e gêneros. Com abertura para convidados no dia
20, no SESC Pinheiros, o evento acontece de 21 a 28 de agosto, sempre
com entrada gratuita. O festival exibe em 2009 por volta de 400 curtas-
metragens e conta com patrocínio da Petrobras. A direção é da produtora
Zita Carvalhosa e realização da Associação Cultural Kinoforum.
Na Mostra Internacional o destaque é o curta português “Arena”, de João
Salaviza (vencedor da Palma de Ouro da categoria no Festival de Cannes
2009). Merecem atenção também o curta-metragem experimental “Con-
tra-Luz”, de Matthias Müller em co-direção de Chistoph Giardet; e o inglês
“Depois de Amanhã”, de Emma Sullivan. A animação “Por Favor, Diga
Alguma Coisa” e filmes de Apichatpong Weerasethakul também estão na
programação.
Já a Mostra Latino-Americana, com 27 títulos de 11 países, apresenta
como destaques o argentino “Túneis no Rio”, de Igor Galuk, o paraguaio
“Homem do Norte”, de Marcelo Martinessi, e o documentário “Rebeca”,
co-produção Peru/Alemanha do diretor Gonzalo Rodriguez. A animação
“Jaulas”, do mexicano Juan José Medina, também comparece ao evento.
A programação brasileira traz mais de 150 filmes selecionados a partir de
700 inscrições. Estão incluídas produções de Caetano Gotardo (“O Me-
nino Japonês”), Gilberto Scarpa (“O Filme Mais Violento do Mundo), Vera
Egito (“Elo”), Victor-Hugo Borges (“O Menino Que Plantava Invernos”), a
dupla Juliana Rojas e Marco Dutra (“As Sombras”), Júlia Zakia (“Pedra
Bruta”), Gregório Graziosi (“Mira”) e a estréia na direção de um dos

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fundadores da Kinoarte, Francelino França (“Maria


Angélica”). Aposta da nova geração de realizadores
pernambucanos, Tião assina o denso e impactan- colaboração de Jean Cocteau. “A Mala” (1963), de
te “Muro”. Completam a programação brasileira as Raúl Ruiz, teve sua cópia dada por perdida duran-
seções Cinema em Curso, com filmes oriundos de te anos e recentemente foi localizada, tendo sido
cursos audiovisuais; KinoOikos, com produções re- restaurada pelo próprio diretor. Também de Ruiz
alizadas em projetos de inclusão sócio-cultural atra- haverá o clássico “As Solidões” (1992), uma visão
vés do audiovisual; e Oficinas Kinoforum, reunindo delirante baseada nas tradições narrativas do sul
os resultados dessa iniciativa. “Fim da Linha”, curta do Chile. Entre os demais filmes do programa mere-
produzido em uma Oficina de Realização em Cine- cem atenção “Trinta Anos” (Nicolas Lasnibat, 2006),
ma promovida pela Kinoarte na Lapa, interior do Pa- premiada ficção sobre o retorno de um exilado da
raná, integra a seção KinoOikos. ditadura chilena depois de três décadas, e “Operá-
No Panorama Paulista, mostra que traz 27 curtas, rias Saindo da Fábrica” (2004), de José Luis Torres
destacam-se estréias como “3”, de Paola Siqueira, Leiva, diretor do longa “O Céu, a Terra e a Chuva”.
“A Maçã de Botero”, de Marina Weis e Moira Toledo, Entre as atividades paralelas está o projeto Crítica
“Enfim Dois”, de Thiago Vieira, “O Imaginante Quarto Curta: colóquio que irá reunir os franceses Jacques
da Vovó”, de Marcela Arantes, e “Zigurate”, de Car- Kermabon (da Bref) e Bernard Payen (Semana da
los Eduardo Nogueira. Crítica de Cannes) e os cineastas e críticos brasilei-
Os Programas Especiais oferecem obras raras dos ros Eduardo Valente e Kleber Mendonça Filho.
cineastas Alejandro Jodorowsky e Raúl Ruiz, incluí- Todos os realizadores brasileiros com filmes na pro-
das na retrospectiva Curta Chile. Jodorowsky assina gramação e diretores participantes da Mostra Inter-
o surrealista “A Gravata” (1957), obra baseada em nacional e da Mostra Latino-Americana irão integrar
conto do escritor alemão Thomas Mann e que teve os debates após as sessões de seus curtas. Os de-
talhes da programação e outras informações podem
ser acessadas no website www.kinoforum.org. (RT)
arte: felipe augusto

Assim como o cinema brasi- sete dias.


leiro contemporâneo, o 37o Fes- Entre tantos extremos, uma
tival de Cinema de Gramado este- discreta surpresa ocorreu na
ve repleto de contradições. Realizado projeção de um filme produzido a
na Serra Gaúcha entre 9 e 15 de agosto, partir do DocTV do Rio Grande do
o festival mais conhecido do País contou com Sul: “Morro do Céu” (72 min, 2009),
diretores autorais (Ruy Guerra, Walter Lima Jr.), fil- documentário que Gustavo Spolidoro
mes discutíveis na seleção oficial, homenagens a rodou por alguns meses em uma pequena
estrelas de TV, debates sobre obras restauradas, cidade do interior. O filme é modesto: equipe re-
encontros entre organizadores de festivais e críticos, duzida, poucos personagens, uma história simples.
além de bons filmes entre os curtas. Convidado para Essa redução, no entanto, não compromete em
integrar o júri oficial da Mostra de Curtas Gaúchos, nada a proposta estética de Spolidoro: pelo con-
não pude acompanhar boa parte da programação trário – graças a essa equipe enxuta ele consegue
oficial – esse relato será, portanto, apenas uma vi- se tornar uma espécie de testemunha oculta dos
são reduzida do que o festival ofereceu ao longo de personagens que registra.

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Essa idéia remete diretamente a um dos princípios


cada vez mais presentes na produção contemporâ-
nea. Um diretor como Jia Zhang-ke, por exemplo,
acredita que a logística de um filme irá repercutir
de forma decisiva na linguagem de seu filme. Em
“Morro do Céu”
“Morro do Céu”, além de roteirista e diretor, Gusta-
vo também operou a câmera e foi responsável pela
captação de som direto. O que temos, nesse caso,
é um filme parcialmente construído sob o estilo de
cinema direto dos anos 60, no qual o documentaris-
ta apenas registra as falas, as ações, e não interfere
com perguntas diretas aos personagens. No caso
de “Morro do Céu”, no entanto, a proposta parece ir
além – o filme se assemelha muito ao estilo de Ray-
mond Depardon, fotógrafo e cineasta francês (“A
Vida Moderna”, 2008), cujos filmes apresentam um
absoluto respeito ao tempo e à forma de vida dos
personagens que estão sendo documentados.
Dois aspectos aproximam o documentário de Spo-
lidoro do registro ficcional: a composição da luz e
o desenho de som. Incrivelmente o filme tem uma
luz mais sofisticada do que os outros filmes ficcio-
nais que Gustavo dirigira – há uma tonalidade su-
ave, que ressalta as formas, privilegia as sombras,
impregnando toda a narrativa de uma atmosfera de
mistério e encantamento. Em relação à trilha, há um
acúmulo de sonoridades que não estariam presen-
tes no momento em que as cenas foram gravadas,
gerando, assim, um registro muito mais próximo de
uma narrativa ficcional.
“Morro do Céu” é ambientado em uma pequena
comunidade de descendentes de italianos. Bruno
Storti, personagem principal, se divide entre o tra-
balho, os amigos e a busca por um primeiro amor.
Próximo ao registro de Gus Van Sant em “Elefante”
e “Paranoid Park”, Spolidoro cria talvez seu filme
mais maduro, flertando com outros gêneros, novas
influências e apresentando um domínio absoluto da
narrativa a que se propõe.
Sobriedade similar pôde ser vista no filme uruguaio
“Gigante” (90 min, 2009), primeiro longa de Adrián
Biniez, vencedor de três prêmios no 59o Festival
de Berlim: Urso de Prata (Grande Prêmio do Júri),
Prêmio de Obra estreante e Prêmio Alfred Bauer
(de inovação cinematográfica). Em Gramado, o fil-
me conquistou também mais três prêmios: melhor
ator para Horacio Camandule, melhor roteiro para
Biniez, além do prêmio de Melhor Filme segundo
o Júri da Crítica. A história, assim como “Morro do
“Gigante”

Céu”, é muito simples: um grandalhão bondoso, que rios de TV. Mas assim como ocorria em “Muito Além
trabalha como segurança de um supermercado em do Jarim”, o protagonista mantém sua inocência e
Montevideo, se apaixona por uma jovem faxineira. A adquire conhecimento a partir de sua relação com
relação entre os dois, no entanto, só ocorre por meio um meio de comunicação de massa, que em princí-
de monitores de vigilância do mercado. pio seria anti-educativo por excelência.
A trama já apresenta o aspecto metalingüístico que “Gigante” pode ser considerado, dessa forma, uma
permeia o filme: mais do que um comentário sobre fábula moral sobre as relações contemporâneas.
uma sociedade cada vez mais imagética, “Gigan- Há uma tentativa contínua de fugir do encontro
te” é um estudo sobre a natureza da contemplação. concreto, do diálogo palpável, daquilo que ocorre
Com uma maturidade notável, Biniez constrói, de a partir de uma aproximação realmente física en-
forma lenta e gradual, a personalidade dos perso- tre duas pessoas. Seus personagens se movem e
nagens centrais em pequenas atitudes. Tudo o que agem como aqueles que vimos a partir de janelas,
precisamos saber sobre os personagens chega até câmeras de vigilância, reality shows e outras peças
nós, espectadores, de forma aparentemente direta, do gênero. A grande diferença é que Biniez articula
sem passar por um filtro de explicação psicológica, todas essas informações a partir de uma óptica da
a partir de cenas sem diálogos e com economia descontrução – ele retira, subtrai, esvazia qualquer
visual. O protagonista vive a partir de sua relação possibilidade de romantização da narrativa até que
com a imagem: ele controla e manipula a realidade temos, ao final do filme, um singular desfecho ro-
a partir de câmeras posicionadas estrategicamente mântico.
no seu local de trabalho. No descanso em casa, al- Entre os curtas destacaram-se a homenagem de
terna períodos entre videogame e programas aleató- Pedro Freire a dois grandes atores – Paulo José e

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Juliana Carneiro da Cunha, em “O Teu Sorriso”, filme agraciado


com o Prêmio da Crítica. Com uma cumplicidade avassaladora, “O Teu Sorriso”
os dois atores/personagens compartilham momentos de afeto e
intimidade diante de uma câmera próxima. Na Competitiva Gaú-
cha, além da reflexão de Spolidoro em “De Volta ao Quato 666”
(uma releitura muito rica do estudo “Quarto 666”, de Win Wen-
ders), um filme de estudantes chamou a atenção: “Sobre um dia
Qualquer” (16 min, 2008), do jovem Leonardo Remor.
Produzido por alunos da Unisinos, o filme apresenta o dia-a-dia
de uma fábrica cinzenta, quase monocromática, com destaque
para uma operária que irá romper com o seu cotidiano. Cons- “De Volta ao Quarto 666”
truído sob um clima surreal, com referências a estéticas varia-
das (Chaplin, Tati e Lynch, para citar algumas), “Sobre um dia
Qualquer” apresenta uma maturidade em relação à construção
dos planos, na montagem, na criação das ambiências, que nos
surpreende pensar que o filme foi feito por estudantes. Há um
clima sombrio, misterioso, que percorre todo o filme e que se
potencializa a partir do sorriso cativante da personagem vivida
por Sissi Venturin. Ao final, após uma animação que apresen-
ta o conflito interno da protagonista, temos um plano sublime,
daqueles que ficam em nossa mente por um bom tempo. Um
plano-seqüência que possui muitas camadas e significados,
mostrando que Leonardo Remor e equipe atingem uma maturi-
dade que já pode ser reconhecida como grande cinema. O júri,
do qual participei, agraciou “Sobre um dia Qualquer” com cinco
prêmios: Melhor Direção, Fotografia (Matheus Massochini), Dire-
ção de Arte (Guilherme Pacheco), Montagem (Marcos Lopes) e
“Sobre um dia Qualquer”
Atriz (Sissi Venturin).

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