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composição para paulo menten “um lugar dentro de você que consiga fazer
por wagner munhê silêncio”
11 entrevista com murilo hauser
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os documentários metafísicos de naomi kawase
por artur ianckievicz o cinema brasileiro já teve surrealismo?
14 por marcelo miranda
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espaço literário - as ruínas de sabáudia
por ygor raduy entrevista: stan brakhage “todas as coisas que
18 são luz, são luz”
por rodrigo garcia lopes & gary higgins
obsessão, obsessão, obsessão: o napoleão de 39
stanley kubrick
por josé de aguiar breve panorama breve: o curta-metragem no
21 cinema brasileiro contemporâneo
por artur ianckievicz e roberta takamatsu
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França era uma espécie de irmão mais velho para acabado: quando pequeno, ele se lembrava de
todos nós: alguém mais experiente e mais rigoro- quando sua mãe ia ao cinema, e depois lhe con-
so que todos os demais integrantes da Kinoarte. tava a história. Já adulto, ele adorava compartilhar
Uma das suas principais características às vezes o seu universo: “Ei, acabei de comprar um livro
assustava: era extremamente franco, direto, rejei- sobre os filmes que o Kafka viu”; “Olha só o que
tando qualquer espécie de condescendência e eu gravei ontem no Telecine: uma versão de Elec-
mediocridade. França tinha pressa: uma consci- tra, com a Irene Papas – Vê se devolve!!”; “Cinco
ência do tempo e uma clareza em suas relações horas de documentário sobre o Antunes: assiste
de afeto que até ele mesmo talvez não soubesse e me diz depois o que você achou”; “Toma esses
explicar como surgiu: CDs da Elis – vão te ajudar a sair da fossa”. Foi a
“Estava assistindo a um western agora há pouco partir desse amplo repertório, cheio de referências
enquanto comia uma banana. No filme, enquanto da literatura, música e teatro, que França criou seu
o mundo estava pegando fogo lá fora, um bando primeiro e único filme.
de gente querendo enforcar os mocinhos, alguns “Maria Angélica”, a partir de uma perspectiva mais
deles ficavam com picuinhas entre si. Resultado, pessoal, não era apenas um curta: “é projeto de
quem ficou de picuinha levou tiros. A gente tem vida”, ele dizia. Sua visão de como deveria ser a
um bando de gente lá fora sem entender o que a produção, a escolha de locações, a seleção de
gente quer fazer e dispostos a nos abater a tiros, elenco, os ensaios, as filmagens, era completa.
pq vez ou outra saimos no jornal, como se isso fos- Três meses antes de rodar a primeira cena França
se tudo. Então, véio, desamarra essa cara que to e equipe montaram um escritório no centro de Lon-
vendo daqui”. Esse conselho, presente em nossa drina e deram início à pré-produção. Sua visão do
última troca de e-mails, mostra um pouco do seu que seria o filme já estava expressa nos comentá-
espírito fraternal e ao mesmo tempo zombeteiro. rios relacionados à primeira seqüência do roteiro:
Admirador de Elis Regina, Antunes Filho, Nelson “Mundo feminino impera. Vozes, hino, menina, bo-
Rodrigues, Shakespeare, Clarice Lispector: Fran- necas, condução dos rituais.
ça vivia apaixonado. Quando Maria Rita veio a Filme começa com um ritual de passagem, mesmo
Londrina, ele se transformou: semanas antes do
show pensava em como seria esse encontro – ele
daria a ela uma foto que tinha do início dos anos
80, quando sua mãe se apresentara em Londri-
na. Em 2001, quando fomos a uma coletiva com
Fernanda Montenegro, França ficou em estado de
graça: toda a vitalidade, resistência e idealismo,
que marcavam sua personalidade, eram uma es-
pécie de reflexo desses artistas que ele admirava.
Profundamente religioso, ligado à doutrina espírita,
atraído por alguns elementos da crendice popular,
França gostava de analisar sonhos e antecipar o
destino. Sonhava em filmar histórias que lhe foram
apresentadas quando criança: os bastidores das
radionovelas, as histórias lendárias de uma Lon-
drina que em um certo momento histórico se viu
diante de uma manifestação pública conduzida
por prostitutas carecas. França queria filmar esse
mundo impalpável, que, de certa forma, não era
a sua realidade física, externa, e sim, a realidade
de um mundo antigo, ao qual ele se sentia ligado.
Sua infância na Vila Casoni, na verdade, não havia
sendo de brincadeira, resume o tom da propos- das Fases), admirador de críticos como Sábato
ta. Estranhamentos: brincadeira inusitada da filha Magaldi, Décio de Almeida Prado, Bárbara Helio-
(não tem medo da morte, convive com isso sem dora e Mariangela Alves de Lima, França se sen-
traumas, conhece os detalhes do ritual) optar pe- tia fascinado por diretores de cinema que man-
las bonecas expressivas. Cotidiano: ouve barulho tinham um forte laço teatral em sua linguagem:
de gente na pia, futebol no rádio, brincar na sala. realizadores como Bergman e Luiz Fernando Car-
Resumo do que é cinema: experiência visual e valho, por exemplo.
sonora (barulhos, futebol, hino cantado por vozes Em junho de 2006, em meio à programação do
femininas e à capela). Tanto as imagens precisam Festival Internacional de Londrina (Filo), o grupo
ser impactantes como o som tem muita força. Hino londrinense Boca de Baco encenou a primeira
resume: ou você muda de opinião agora ou será peça escrita por França: “Último Inverno”. Pouco
muito tarde. Relação com o divino já se inicia rapi- antes, ele havia ajudado o grupo em uma adapta-
damente. Diálogo da menina com a boneca: imer- ção de “Fando y Lis”, de Fernando Arrabal – dra-
sa naquela fantasia. 1a. seqüência é para dizer ao maturgo que França conheceu em 1998 em Nova
que o filme veio. Estado emocional da garota: livre, York, em um episódio inusitado, no qual mantive-
confortável, não se sente solitária, mesmo com a ram breve diálogo.
brincadeira com o enterro, ela transparece estar Nos últimos anos França também contribuiu para
tranqüila. a consolidação da Usina Cultural em Londrina, foi
Câmera reage de acordo com o subjetivo”. presença constante em tudo o que se referia ao
Admirador de Cartier-Bresson, França foi a primei- projeto do Teatro Municipal, e deu continuidade
ra pessoa a me mostrar fotografias de outro mestre a um diálogo que há anos mantinha com atores
- Haruo Ohara: “Aprenda com a sabedoria oriental. e alunos de cursos de artes cênicas na cidade.
Para fotografar, deve-se criar uma relação harmo- Nos nossos últimos encontros, ele estava total-
niosa com a natureza. É ela quem dá o tempo da mente concentrado no que seria o filme “Maria
foto”, dizia. Angélica”. Em um jantar em seu apartamento, me
Ator de teatro nos anos 80, amigo íntimo do ator lembro de ele mostrar uma pilha de livros que
e diretor João Henrique Bernardi (do grupo Casa serviam de referência para a construção da per-
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Força interna
Na Folha2 ele queria escrever sobre uma de suas paixões: o teatro.
França vinha munido de livros sobre dramaturgia, carregava sua biblio-
teca ambulante para a redação e pesquisava referências, entregando-
se completamente ao texto. Num período em que a crítica teatral
andava sumida dos jornais, ele quis resgatá-la. Poucas vezes convivi
com alguém tão frágil na aparência e com tanta força interna. Com ele
aprendi a lição da alegria à revelia das incertezas.
Célia Musilli, jornalista e escritora
Um menino brincalhão
Cotidianamente nos esbarrávamos na redação do jornal. Nós nos sabíamos. À noite
– quase todas as noites de Londrina – o telefone gritava. Horas. Muitas. Falávamos
de coisas tantas. Quando o França precisou se afastar das funções jornalísticas,
as ligações se intensificaram. Muitas horas, muitas horas, muitas horas. Cinema,
teatro, a vida real, cumplicidades permitidas por Deus. França sabia ouvir e falava
muito. Ironia fina, inteligência rara. Inscrevo a palavra saudade sobre o nome dele.
Sábado, manhã, plantão. Telefonaram dizendo que o França estava muito mal. Lar-
guei tudo, fui correndo. Cheguei ao quarto, gritei alto para ele acordar. Não acor-
dou. Foi de vez. Meu amigo, um dos meus amores fraternos, nunca mais haveria de
ligar. Solidão noturna! Nem sequer, danado, me mostrou suas composições: “Rap
do Beckett” e “Fado do Pessoa”. Francelino, meu querido, que falta você me faz...
Antônio Mariano Júnior, jornalista
Contador de histórias
Em qualquer ocasião, França tinha uma boa história para contar. Mergulhava suas
narrativas no universo de Nelson Rodrigues: mais que uma referência de dramatur-
gia, a obra do autor era uma experiência de crescimento. Amigos e parceiros no
jornal, encontramos no teatro uma outra cumplicidade. Como atento observador,
ele acompanhava meu trabalho de atriz no grupo Boca de Baco. Gostava de insti-
gar, fazer desafios. França fez uma primeira experimentação em dramaturgia e es-
creveu Campo Santo – texto que, por um bom tempo, manteve em sigilo. Exigente,
procurou caminhos para desenvolver sua dramaturgia com base nas histórias dos
atores. Foi nesse processo que, em 2005, França escreveu seu “Último Inverno”. O
tempo – um tesouro precioso para o França – corria mais que o normal.
Jackeline Seglin, atriz e jornalista
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arte: caio miguel, felipe augusto
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arte: caio miguel
as palavras proibidas de Sabáudia agora vão ser ditas. demorei a me pronunciar pois os guardiões de Sa-
báudia injetaram um gás tóxico nas minhas narinas. Sabáudia é translúcida e fala na língua dos ventiladores.
espectros em Sabáudia só pronunciam a palavra: pã. corri de Sabáudia pois estava sendo perseguido por
uma corja de beduínos. Sabáudia é cheia de grotas, cheia de becos, cheia de tocas de estranhos animais.
a vida em Sabáudia transcorre em vibração extraterrena. a cidade está contaminada pela radiação. os pi-
rulitos e as balas adquiriram uma coloração esverdeada. todos os bueiros de Sabáudia exalam um denso e
narcotizante vapor. as matronas de Sabáudia enlouqueceram e dançam pelos arredores no festim do deus.
a cidade está cheia de cadáveres que, aliás, não estão mortos, apenas putrefatos. Sabáudia é feita de pa-
ralelepípedos. ouve-se um cântico. há uma mariposa na lâmpada. alguém foi embalsamado. um antigo ritual
foi processado. o centro de Sabáudia está infestado de gatos. nas lojas de departamentos, as balconistas
pálidas murmuram frases ininteligíveis. Sabáudia é um filme de David Lynch. as salas da prefeitura são os lo-
cais de concubinato preferidos pelos forasteiros. Sabáudia vive uma vida aterradora. a radioatividade atingiu
níveis insuperáveis. a ninfomania nos playgrounds exibe seus membros curvados sob o lusco-fusco. saliva
nas engrenagens da maquinaria: Sabáudia com som de tambores, a cidade açoitada pelo vento, pestilência,
febre. as palavras proibidas de Sabáudia precisam ser ditas. a cidade é escorregadia. a cidade é arisca.
nuvens de percevejos atingem os novos condomínios do subúrbio. nos açougues se ouve apenas a palavra:
pã. nos templos da Igreja Universal uma desenfreada luxúria faiscou na espinha dorsal das fiéis. zoofilia. fist-
fucking. double penetration. Sabáudia vive uma vida que grita, nas varandas, nos halls de hotéis, no fosso
dos elevadores, no interior velado dos quartos, dos cômodos de motel. a orgia galopante. a descontrolada
sede. a única palavra permitida é: miklos. nikos. linkos. não posso continuar este relatório. as autoridades de
Sabáudia injetaram chumbo em minha uretra. os beduínos dançam em ritmo frenético. preciso fugir antes
que seja tarde demais.
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arte: fábio augusto e guilherme gerais
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documento da maior obsessão do diretor ameri- senvolveu protótipos de figurinos, armas, canhões
cano Stanley Kubrick: o roteiro escrito pelo próprio e equipamentos de todos os exércitos envolvidos
cineasta sobre a vida de Napoleão Bonaparte. nas batalhas, que depois seriam produzidos em
A obsessão é a necessidade de cumprir uma massa. Queria contratar 40 mil homens do exér-
ação que respeita um princípio, é uma prisão, uma cito romeno pra reproduzir cenas de batalhas na
coleção infinita do inútil. Dizia-se que o escritor então Iugoslávia e iria comandar pessoalmente a
francês levantava todas as manhãs e escrevia à logística de transporte dessas tropas de um país
mão ininterruptamente por pelo menos quatro ho- para o outro, prevendo inclusive as implicações di-
ras antes de fazer qualquer coisa, às vezes ficava plomáticas disso. Estava desenvolvendo o projeto
preso em um mesmo assunto durante semanas, de um laboratório que fosse capaz de dar conta
mesmo quando não queria. Kubrick, durante as fil- das especificações técnicas exigidas para revelar
magens de “O Iluminado”, pessoalmente desmon- os negativos sensibilizados com lentes capazes
tava e montava o projetor que usava para conferir de filmar em condições de baixa exposição de luz
o material filmado. Fazia isso a cada quinze dias, e também para desenvolver os efeitos especiais,
apenas para garantir que a imagem gerada por como o de front projection, que ele estava aprimo-
ele seria sempre a mesma. Ele passava duas ou rando em relação aos de “2001 - Uma Odisséia
três semanas repetindo o mesmo plano, a mesma no Espaço” (1968), filme que ele tinha acabado
ação, duzentas vezes. Garret Brown, o inventor de realizar. Construir um plano geral da Moscou
da steadycam, disse que Kubrick definia no set, divisada por Napoleão utilizando a mesma técnica
inclusive, a posição e a distância que cada trai- que reproduziu o espaço em “2001” era uma de
ler deveria ter, para que a relação entre os atores suas ambições.
respondesse a uma psicologia que favorecesse o “Napoleon” acabou sendo cancelado por razões
filme de uma certa maneira. Ele abria jornais tailan- que envolviam problemas com o estúdio e receio
deses no tapete da sala e media com uma régua de parte dos investidores, mas o fato dele nunca
os anúncios de seus filmes para ter certeza de que ter retomado o projeto parece falar de algo da na-
as medidas respeitavam os acordos contratuais. A tureza da própria relação do cineasta com o filme.
literatura francesa era para Sartre, no seu valor de Em entrevista, anos mais tarde, Kubrick chega a
ofício o que, em Kubrick, é o cinema. Explorar a admitir que o projeto era impossível de ser realiza-
arte através da vida de um homem foi uma tarefa do. A dimensão da vida do homem para cujas bio-
que os dois levaram às ultimas conseqüências. grafias o número supera as de Jesus Cristo, talvez
Kubrick queria narrar a maior história jamais conta- fosse algo que não pudesse ser contado por quem
da pelo cinema, fazer a versão definitiva da saga simplesmente não podia deixar escapar nada.
do Imperador. Ele pré-produziu o filme por dois Toda essa loucura a serviço de um cinema que
anos, contratou o maior especialista em Napoleão quase nunca foi digressivo não é um contra-senso.
da Inglaterra, montou uma biblioteca com milhares O valor da obra não está contido simplesmente
de livros sobre o assunto. Trezentos desses livros naquilo que nele aparece no resultado, é preciso
eram biografias do general. Desenvolveu um ban- entender o processo, é preciso entender porque
co de dados imenso, indexado por assunto, que um cinema tão sintético parece ter infinitas cama-
podia ter as suas informações cruzadas através de das, exija tantas revisões, pareça ser tantas coi-
um sistema de sinais complexo que compreendia sas. Sem dúvida, isso também tem na montagem
um catálogo de 15 mil fotos de objetos relaciona- uma explicação, mas a montagem em Kubrick é
dos ao período napoleônico, a vida de Napoleão uma outra coisa, é algo que desvia completamen-
fichada dia por dia e relacionada a um outro arqui- te a questão, porque caminha no sentido inverso
vo paralelo dos momentos relevantes da vida das desse processo alucinado de percorrer todas as
50 pessoas mais influentes para sua história. De- possibilidades do que se quer filmar.
Para Kubrick, cada filme é um universo do ponto
de vista de sua concepção, e como produto final
é a conseqüência racional e específica da esco-
lha do artista que mergulha em um infinito que ele
precisa criar antes. Para ele, no set, apenas o ato
de filmar é intuitivo, o resto não pode ser. “Napo-
leon” é uma obra de arte que permanece apenas
na possibilidade da pré-existência e por isso é
privilegiada no sentido de compreender Kubrick.
Irônico pensar que “Barry Lyndon” talvez seja ape-
nas o espólio que surgiu do fracasso de um filme
impossível.
A história do cinema pode ser contada de várias
maneiras e uma delas é a história do seu fazer.
Talvez só os ingênuos concordem, mas Kubrick
foi como Aristóteles: precisou percorrer todas as
linhas do fazer para descobrir suas obras. Cada
filme foi um grande épico sobre a descoberta de
uma vocação, cavando sempre mais fundo, per-
correndo séries mais longas.
O roteiro escrito por Kubrick para “Napoleon” (1969) pode ser lido gratuitamente no link:
http://www.donkeyontheedge.com/i/napoleon.pdf
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Nascido em Curitiba em 1981, Murilo Hauser é hoje ele também mantém no teatro. Ao realizar “Silêncio
um dos principais diretores de curta-metragem do e Sombras”, teve de lidar com alguns preconceitos
Paraná. Com experiência em teatro, música e foto- que desconhecia: “As pessoas ainda têm uma cer-
grafia, ele dirigiu nove curtas nos últimos dez anos, ta concepção de que tipo de temas as animações
obtendo atenção principalmente pelos três últimos devem tratar e como. Ainda existe um certo receio
trabalhos: “já estamos todos mortos” (2004, digi- das pessoas em entender que uma animação pode
tal), “Outubro” (2007, 35 mm) e a animação “Silên- tratar de temas como solidão, separação e morte de
cio e Sombras” (2008, 35 mm), o primeiro episódio uma maneira madura. Como opção para inscrição
de uma trilogia que ainda irá incluir “Meu Medo” de um filme em um festival normalmente existem
e “olhos mortos de sono”. Dividindo o seu tempo Ficção, Documentário ou Animação - como se a ani-
entre Curitiba, São Paulo e Berlim, Murilo recente- mação não pudesse ser um documentário e como
mente esteve nos sets do filme “Insolação” como se fosse um tipo definido de ficção, engraçado ou
primeiro assistente de Felipe Hirsch, parceria que infantil”. Confira mais trechos da conversa:
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Revista Taturana - O filme já apresenta muito da funcionando cada vez mais como guia emocional do
sua proposta logo pelo título: “Silêncio e Som- filme. Neste processo, entrou o trabalho de som do
bras”. Ao mesmo tempo em que você não tenta Alessandro Laroca e sua equipe em Curitiba. Isto foi
impor uma compreensão clara e única sobre o rito fundamental, foi o que mais impressionou quando
de passagem, há um certo mistério relacionado à vi o filme projetado pela primeira vez – a potência
narrativa como um todo. Me parece muito mais um do som e a capacidade que ele tem de tornar todas
filme a ser sentido, do que compreendido. Como aquelas imagens digitas em ‘reais’, ‘materiais’. Não
você avalia a linguagem desse filme? mais o resultado de um cálculo de computador, mas
Murilo Hauser - “Silêncio e Sombras” é um proje- personagens com pulsação, com medo, com peso.
to que foi desenvolvido ao longo de muito tempo.
Neste trajeto todo a minha percepção e aproxima- Uma das coisas que mais impressiona ao longo
ção do trabalho mudaram muito. O rito de passagem do filme é a precisão do traço, da atmosfera, e seu
do garoto no filme acabou sendo um reflexo do meu respectivo diálogo com a música e o som ambien-
próprio processo de amadurecimento profissional e te. Há possivelmente um diálogo com as anima-
criativo. Na produção de um filme em animação 3D ções de Tim Burton e uma melancolia que nos
existe uma liberdade estranha, relativa. Você pode remete a seus filmes anteriores, principalmente
fazer virtualmente qualquer coisa com a câmera, “já estamos todos mortos” e “Outubro”. “Silêncio
mas a partir do momento em que toma certas de- e Sombras”, no entanto, se consolida como uma
cisões, é muito difícil voltar atrás, mudar os planos. evolução e síntese de tudo o que você já havia fei-
É um processo muito fragmentado, que exige uma to. Em que medida esse filme trouxe inovações ao
capacidade de visualização que nem sempre é fácil, seu trabalho?
ainda mais quando é um primeiro trabalho. Quando Os meus curtas anteriores foram processos muito
os primeiros frames ficaram prontos, percebi que mais individuais, em que eu trabalhei muito tempo
teria que mudar a minha decupagem. As imagens sozinho, e é muito difícil não se perder quando se
eram muito impressionantes, era um filme visualmen- está sozinho. Isso me fez aprender como é impor-
te muito poderoso, muito detalhista. O longo tempo tante ter alguém ao seu lado durante todo o tempo,
de trabalho também fez com que o filme ficasse cada que te ajude e proponha outras possibilidades. Na
vez mais sensorial. A nossa preocupação em ‘contar animação, você está o tempo inteiro com pessoas
uma história’ foi se afastando a cada passo que dáva- ao lado, não é um processo solitário nunca. O filme
mos e nos aproximando da idéia da poesia, a música me ensinou também a tomar decisões com mais cal-
ma, mesmo que elas sejam urgentes – acho que é eu comecei a não me preocupar tanto em fazer um
um aprendizado contínuo isso, o de como conseguir filme perfeito mas, antes, em fazer um filme pessoal,
se concentrar e pensar mesmo que você esteja com que só eu pudesse fazer, por mais errado que ele
todo mundo te olhando e esperando uma resposta. corresse o risco de ser. Porque afinal é assim que
Achar um lugar dentro de você que você consiga fa- você realmente tem que se olhar no espelho e tentar
zer silêncio. falar com a sua própria voz. Mesmo que essa voz
diga “eu não sei nada, mas eu estou tentando”.
Como você mesmo citou certa vez, Fellini dizia
que um filme é a soma de seus erros e acertos. Um segmento pouco desenvolvido no Brasil é o
Que limitações você veria em “Silêncio e Som- cinema de gênero. Há uma espécie de preconcei-
bras”? to que conduz a pauta de alguns editais: geral-
Todos os acertos e erros ocorridos durante a criação mente as comissões de avaliação aprovam filmes
deste filme estão com certeza na tela quando o filme sobre problemas sociais ou temas associados
é projetado, e eu acho isso incrível. Essas cicatrizes à determinada cultura regional. Seu filme vai na
que ele vai acumulando durante o processo e que contracorrente dessa exigência freqüentemen-
vão estar lá, a sua vida inteira, cada vez que você te implícita. Como você avalia essa aprovação?
assistir. Elas fazem você lembrar de quem é você, Está se tornando mais claro que o cinema de gê-
de como você reage a dúvidas e como tenta es- nero pode dialogar com a realidade tanto ou mais
conder as suas fraquezas. De um tempo pra cá, eu que um filme que se pretende realista?
tenho gostado cada vez mais de filmes imperfeitos, Eu espero que esteja se tornando mais claro sim,
filmes que ‘deram errado’, sabe? Filmes em que o que o cinema é maior do que os temas que ele
diretor não conseguiu chegar aonde queria, em que discute na superfície. Um filme deve se relacionar
a conexão se estabelece e se rompe. Isso deve ser com as pessoas e com o tempo em que se inse-
porque quando eu era mais novo, era fascinado por re independente de onde foi feito. Ele próprio tem
filmes nos quais todos os elementos se alinhavam que justificar sua existência, não o discurso que o
em perfeição, em que havia uma coerência interna. acompanha. Os filmes e livros menos engajados fo-
Por isso fui tão obcecado por Kubrick, por Tarkovski, ram os que mais mudaram a minha percepção de
por Bergman, por Billy Wilder, por Woody Allen, por identidade, de realidade e de sociedade, porque fil-
David Lynch. Porque eles tinham essa aura da obra mes são feitos por pessoas, e essas pessoas vivem
de arte, da perfeição. Mas depois eu percebi que dentro de um tempo, dentro de uma realidade e têm
a relação com eles era, na maioria das vezes, fria. uma percepção dela. Isto é o cinema, não? Essa tra-
Algo que você aprecia e que te toca, mas que ao dução de impressões que o cineasta tem do lugar
mesmo tempo está lá, completo em sua perfeição, onde vive. Tentar fazer com que a discussão gire em
dialogando com si mesma. Isto começou a me ente- torno de um único tema só empobrece o resultado
diar um pouco, essa falta de um sentimento humano e acaba sufocando iniciativas descentralizadoras,
mais básico, do erro, da dúvida. Isso cria um filme relatos mais pessoais. Já aprendemos que o cinema
muito mais pessoal, muito mais direto, muito since- não pode mudar o mundo, então não tem porque
ro. Essa mudança aconteceu durante o “Silêncio” e colocar esse peso nele de novo, é uma idéia antiga.
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Você trabalhou em diversas montagens da Sutil, da primeira vez que você a escuta. É assim que eu
integrou orquestras de música erudita, escreve tento conduzir o trabalho - procurando me surpreen-
bem, além de ter uma relação muito forte com der, tentando não aceitar o primeiro impulso, ir mais
quadrinhos, fotografia e música pop. Que contri- fundo, ser mais pessoal.
buições essas linguagens trouxeram para o tipo
de filme que você faz? Há propostas hoje, no cinema brasileiro, com as
O que aprendi é que devemos sempre ser fiéis à quais você dialoga?
idéia. Ela deve ser o mais importante. Nenhuma Eu sempre achei que eu não estava dialogando
complicação ou dificuldade pode ficar no caminho, com nenhuma proposta presente no cinema brasi-
pode reger uma decisão, porque isso só faz com leiro, mas percebi que estava errado. Isso começou
que se escolha um caminho já trilhado, uma fórmu- quando eu terminei o “Outubro” - porque eu pensa-
la. É claro que é um processo diferente montar uma va que estava falando sozinho, sabe? E quando eu
peça de preparar um concerto, escrever um roteiro, comecei a viajar com o filme me surpreendi porque
montar uma exposição, fotografar ou montar uma percebi que tem muita coisa sendo produzida que
ópera; mas, no fundo a concentração necessária, a dialoga com a maneira que eu penso o cinema, e
clareza que o artista busca na tomada de decisões, isso foi como uma sensação de conexão. Conheci
a impressão que fica marcada no trabalho de cada gente produzindo este ‘outro’ cinema de todos os
uma dessas decisões tomadas, tudo isto está sem- lugares do Brasil e percebi que existe mesmo uma
pre lá. Quando eu penso em um filme, ele está qua- ligação, que não está na temática, mas na lingua-
se sempre ligado a uma sensação, muito mais do gem, no ponto de vista. Tem uma certa melancolia
que a uma idéia de roteiro. Essa sensação é como nestes filmes que parece ser comum a essa faixa
uma música, tem uma forma que desperta a minha etária de diretores, não sei. Em um festival fizemos
curiosidade, minha vontade de conhecer outras ca- um levantamento, por brincadeira, e ficamos surpre-
madas. Porque uma boa música nunca se esgota sos como quase todos tínhamos a mesma idade.
arte: felipe augusto
O crítico e jornalista Marcelo Miranda propôs à pesquisadora e doutora
Laura Cánepa um bate-papo virtual cujo ponto de partida fosse o “surre-
alismo no cinema brasileiro”. A conversa, reproduzida abaixo, provoca em
alguns pontos, esclarece em vários e permite que outros debates surjam:
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Nem mesmo nos curtas, tipo Dennison Ramalho também podem ser mencionados. Já no caso do
ou Fernando Severo? Tim Burton, além de ele não ser propriamente um
O Dennison faz filmes de horror. Não vejo porque surrealista, o tipo de cinema que ele faz exige orça-
dar outro nome ao que ele faz. Já o Severo tem uma mentos que não estão ao alcance do cinema bra-
obra um pouco mais extensa e bem mais variada, sileiro. No máximo, encontra-se algo no cinema in-
com filmes de fantasia, experimentais e até docu- fantil, mas com roteiros bem mais “comportadinhos”,
mentais, então talvez seja possível apontar momen- como no “Castelo Rá-Tim-Bum”.
tos surrealistas, mas não dá para rotular o conjunto.
Surreal é a gente falar de um filme infantil num
Será que o Brasil absorveu alguma lição de gente papo sobre surrealismo!
como Luis Buñuel, David Lynch ou mesmo Tim Todas as vanguardas do começo do século XX ti-
Burton? nham um enorme interesse pelo trabalho artístico de
Certamente, mas talvez não da forma que a crítica crianças, que lhes pareciam expressões totalmen-
espera. Um cineasta que chegou a ser comparado te livres do imaginário. É só lembrar de um artista
com o Buñuel foi o José Mojica Marins, mas num re- como o Miró (que chegou a passear pelo surrealis-
gistro mais popular e explícito, totalmente ligado aos mo) para perceber que o universo infantil interessa
elementos do gênero horror (que nunca fizeram par- muito a toda a arte moderna.
te do projeto do Buñuel ou de outros surrealistas).
Os cineastas chamados de marginais também tra- O Buñuel já trabalhou com questões ligadas ao
zem essa influência. Acho bacana lembrar de filmes universo do terror e do suspense, como em “En-
como “Prata Palomares”, do André Faria Jr. e “Os saio de um Crime”. E vamos admitir que filmes
Monstros do Babaloo”, do Elyseu Visconti. O David como “Tristana” e “O Anjo Exterminador” têm lá
Lynch é mais influente entre cineastas jovens, es- suas características de terror!
pecialmente os curta-metragistas. Mas longas como Sim, mas seria forçadíssimo dizer que ele era um
“O Corpo”, de Rossana Foglia e Rubens Rewald, cineasta de horror, ao contrário do Mojica!
Mojica ou Ivan Cardoso têm alguma coisa surre-
alista?
Do Mojica, sem dúvida “O Despertar da Besta” é um
filme comprometido com o surrealismo, embora o
cineasta talvez não tivesse total consciência disso.
O próprio fato de descrever devaneios dos perso-
O surrealismo e o terror podem caminhar juntos? nagens sob supostos efeitos de drogas parte de um
Em que sentido e sob quais aspectos? princípio surrealista, que é o da expressão livre dos
Podem, principalmente pela presença da agressi- processos inconscientes. Outro filme dele que se
vidade, do grotesco e dos elementos que não se relaciona mais diretamente com o surrealismo é “A
adaptam à visão que temos do “mundo natural” Praga”. No caso do Ivan Cardoso, tem muito mais
(como a presença do sobrenatural). Mas, em geral, influência das chanchadas e do besteirol. Mas “Um
o horror pressupõe que os personagens da história Lobisomem na Amazônia”, com a viagem de daime
reajam a esses elementos com estranhamento, en- dos personagens, talvez possa ser considerado um
quanto, no surrealismo, o elemento estranho é con- parente distante, mas seria exagero.
textualizado pela atmosfera onírica. Não são tantos
os cineastas que conseguem misturar bem o surre- Será que nas comédias populares – no que se re-
alismo com horror. Entre eles, podemos citar o chile- fere aos anos 70 e 80 - a gente também pode falar
no Alejandro Jodorowski, o italiano Dario Argento, o de pirações meio surrealistas?
estadunidense David Lynch e o Mojica. “Comédias populares” é um termo muito genérico.
Provavelmente um pesquisador de surrealismo vá
Aqui a gente esbarraria no conceito do realismo- encontrar diversos exemplos dispersos, mas creio
maravilhoso? Se esse conceito pressupõe uma que o realismo-maravilhoso esteja muito mais pre-
aceitação do elemento estranho na realidade sente, especialmente pelo tom alegórico que ele
apresentada, ele não teria, então, algo muito per- freqüentemente permite. Lembro, por exemplo, dos
to do que você disse de surrealismo como “con- filmes d’Os Trapalhões, da “A Árvore do Sexo” ou
textualizado pela atmosfera onírica”? mesmo de “Dona Flor e Seus Dois Maridos”.
Não. Nesse universo que foge do realismo, é natural
que as possibilidades sejam muitas. Para você ter Um filme como “Bacalhau”, do Adriano Stuart,
uma história de horror, os personagens devem es- com todo aquele deboche típico dos anos 70,
tranhar e ter medo de qualquer elemento que fuja à poderia se encaixar numa noção de realismo-
natureza conhecida. No realismo-maravilhoso, eles maravilhoso?
encaram esses elementos com naturalidade como No caso dele ou dos filmes do Mazzaropi como “O
se fizessem parte da natureza conhecida. Quem Jeca contra o Capeta”, prefiro achar que são paró-
estranha somos nós. Já no surrealismo, há uma at- dias do “Tubarão”, no primeiro caso, e de “O Exor-
mosfera mais complexa de elementos oníricos, que cista” e “Jesus Cristo Superstar” no segundo: é tirar
deve nos levar a perceber que não há uma linha de uma onda com os filmes estrangeiros, apelando ao
causa e conseqüência entre os fatos, mas de asso- que for mais engraçado (na opinião dos realizado-
ciação livre e de metáfora por deslocamento ou con- res).
densação, que remete a conceitos de Freud sobre
o inconsciente.
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O cinema brasileiro pós-retomada, com um certo dades” foram ignorados ou francamente atacados
tom anódino que o caracteriza, pode ser chama- pela crítica e pela academia na época em que foram
do de surrealista – no sentido de ser tão distinto feitos. No caso do filme do Mojica, não é que eu não
do que o país já foi capaz de fazer? goste, mas acho que os realizadores não consegui-
Não sei se o cinema da pós-retomada é tão distinto ram recuperar o Zé do Caixão original e nem apro-
do que já fomos capazes de fazer, mas certamente veitar a figura divertida que ele se tornou. Quanto
não é surrealista. O que se percebe, no máximo, é ao surrealismo nesse filme, a gente pode encontrar
um gosto pelo fantástico e pelo onírico, num registro alguns momentos, mas é filme de horror típico, inclu-
muito pouco transgressor. Por exemplo, nas produ- sive, assumindo essa linha bem contemporânea do
ções da Globo Filmes, como “O Coronel e o Lobiso- “torture porn” (da qual Mojica foi um dos precurso-
mem”, “A Mulher Invisível”, “Se Eu Fosse Você”, “O res!). Já o filme do Christian, se eu tivesse que clas-
Homem que Desafiou o Diabo”, “Fica Comigo Esta sificar (o que é complicadíssimo e polêmico!), eu
Noite”... o colocaria na linha do realismo-maravilhoso, pela
presença de figuras do folclore nacional misturadas
O uso que fiz da palavra “distinto” é porque, à paisagem urbana.
surreal ou não, a utilização dos tais “elementos
estranhos” no passado do cinema brasileiro era Marcelo Miranda é repórter de cultura, crítico de cine-
bem mais arriscado do que hoje. Esses filmes ma no jornal O Tempo (Belo Horizonte-MG) e integran-
que você citou são quase infantis, no mau senti- te da revista eletrônica Filmes Polvo (www.filmespolvo.
do, e parecem ter medo de levar para longe as no- com.br)
ções das quais elas partem. Você acha que nem
o Mojica, com o “Encarnação do Demônio”, tirou
Laura Cánepa é mestre em Ciências da Comunicação
um pouco o marasmo? E “O Fim da Picada”, do
e doutora em Multimeios com a tese “Medo do Quê?
Christian Saghaard, onde entra? Uma História do Horror nos Filmes Brasileiros”. Integra
Não sou saudosista com o cinema do passado, pois a revista eletrônica Cinequanon (www.cinequanon.art.
noto que muitos filmes dos quais hoje “sentimos sau- br)
arte: caio miguel e guilherme gerais
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“Uma obra de arte é feita pelo mais pessoal dos explosão de fosfenos e imagens que se vê quando
motivos: é uma expressão de amor”. Essa frase iso- esfregamos os olhos. Tento trazer para meus filmes
lada, talvez, já justificasse uma espiada na imensa o hipnagógico, as imagens que vemos durante o es-
obra do cineasta norte-americano Stan Brakhage tado de vigília antes do sono e que são provocadas
(1933-2003), poeta visual que ao longo de 50 anos pela excitação do nervo óptico, vistas na forma de
de pesquisa dirigiu 373 filmes. Mais do que um ar- partículas de luz. Há todo um universo de luzes e
tista consciente de sua linguagem, Brakhage foi um padrões de movimento que geralmente não perce-
autor preocupado em expressar um pensamento vi- bemos.
sual a partir do movimento, do ritmo, da pulsação da
película. A entrevista que a taturana reproduz par- Por que essa obsessão pela luz e pelo ato de
cialmente a seguir foi publicada pela primeira vez olhar, expressa em filmes como “The Text of Li-
no Brasil em 1996. A conversa, que também inclui ght” e “The Art of Vision”?
o poeta e escritor londrinense Rodrigo Garcia Lo- Eu vejo tantas qualidades e tipos de luz, e vejo mais
pes e o fotógrafo americano Gary Higgins, integra à medida que envelheço. Luz é a condição essen-
a coletânea Vozes & Visões: Panorama da Arte e cial do olhar. Entre os muitos presentes que recebi
Literatura Norte-Americana Hoje, de Garcia Lopes, de Ezra Pound está sua tradução de um ditado de
publicação lançada pela Iluminuras. Confira a seguir Scottus Erigena: All the things are, are light (“Todas
trechos desse raro encontro entre um escritor, um as coisas que são, são luz”). Essa frase foi muito
fotógrafo e um cineasta em busca do “nascimento significativa para meu trabalho. Ela expressa de um
da imagem”: modo muito bonito a condição do cineasta no
momento em que está filmando. Nós sa-
Rodrigo Garcia Lopes & Gary Higgins: Em plena bemos que existe uma luz que emana
era do vídeo, programas de realidade virtual e de todos os seres, e sabemos que
evoluções tecnológicas na área da imagem, você as partículas que Reich viu exis-
continua trabalhando com o filme super-8. Por tem realmente. Mas como não
quê? posso filmar essas
O filme de 8 mm me oferece mais vantagens cria- luzes que vejo
tivas, me possibilita trabalhar com mais liberdade, a olho nu, ou
muitas vezes ao sabor do acaso. Para mim, depois
desses anos todos, o super-8 se tornou uma discipli-
na artística. Como a câmera é mais leve, posso levá-
la comigo a qualquer lugar. Eu costumava trabalhar
com câmeras usadas, quebradas ou com algum
defeito, para conseguir certos efeitos, às
vezes incríveis. O filme de 8 mm permi-
te uma certa granulação da imagem
que é fundamental para o tipo de
filme que faço, uma granulação
que não se encontra num filme
de 16 mm, muito menos em
vídeo. Digamos que fui in-
fluenciado pelos pintores
impressionistas: durante
anos tenho tentado tra-
zer aquela qualida-
de da visão, ou da
visão que temos
quando fechamos
os olhos, toda a
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de olhos fechados, tenho de encontrar equivalentes espectador da passividade que ele se encontra num
que possam expressar a qualidade do que vejo. E filme de Hollywood, por exemplo. Precisa romper
isso nos leva ao começo de tudo, porque tudo o que com qualquer lógica ou com qualquer retórica, com
temos sido capazes de fazer é criar – por intermédio a idéia de que a imagem é apenas um receptáculo
do filme ou de outra arte – um equivalente das coi- de algo notável. Stein rompeu com as tradições da
sas que vemos. escrita descritivo-linear, e eu tento fazer o mesmo
em filme. “A rose is a rose is a rose”, ela escreveu.
Como você definiria seus filmes? Cinema poéti- Mas cada vez que repetimos esta frase em voz alta,
co, fanopéia, filme abstrato? obtemos significados diferentes.
O conceito que se encaixaria melhor seria “processo
mental”, ou “rememoração”, porque o filme procura Você diria que toda arte aspira chegar à condição
chegar próximo do processo da mente, do olhar e de música?
da memória. Sim. Não é à toa que “música” vem da palavra
“musa”. A música é a mais universal das artes,
Uma vez você recusou o termo “filme abstrato”, aquela que mexe com todo o nosso sistema nervo-
preferindo usar “nascimento da imagem”. Por so, além de conseguir tocar as lógicas mais finas da
quê? mente. Cinema e música são artes de continuidade,
Primeiro porque existe uma idéia de que a imagem, temporais. Cada uma excita um sentido específico.
normalmente, é um conjunto de coisas reconheci- Mas as duas são parecidas em relação ao tom, de-
das, familiares, arranjadas num quadro. Isso é o que pendem muito do ritmo e do compasso. As varia-
ainda ocorre quando as pessoas pensam em cine- ções de tom das harmonias da música são similares
ma, em filme. Mas não é dessa maneira que nossas às cores em meus filmes. Desde quando comecei a
mentes pensam, e eu quero ser verdadeiro a esses filmar, descobri que as cores também são intrinse-
aspectos da visão como o hipnagógico, que reflete camente melódicas e que deveriam dialogar umas
mais diretamente a fisiologia interna do que pensa- com as outras em algum tipo de esquema melódico.
mos. A coisa mais maravilhosa que um filme pode O “x” da questão é que as duas dependem muito
conseguir, acredito, é exteriorizar o pensamento vi- do ritmo. Para mim, tudo começou com o espanto
sual em movimento. do ser humano ao perceber as próprias batidas do
coração, seu pulsar. Quando certo dia ele bateu no
Um de seus trabalhos mais recentes é o grupo de peito e retirou sons dali, descobriu que podia enviar
quatro filmes “Visions of Meditation”, uma leitu- ritmos e sons a outras pessoas, por mais distantes
ra do poema Stanzas in Meditation, de Gertrude que pudessem estar. Então, as artes vêm da neces-
Stein. Fale um pouco desse trabalho. sidade de exteriorizar algo.
A dramaturgia digital tradicional, como a conhece-
mos, sofreu pouquíssimas alterações no Ocidente, É curioso isso porque, apesar de você explorar
e Stein foi uma de suas maiores inovadoras. Ela é o esse ritmo da visão, é raro um filme seu que te-
Giotto do drama. Eu fui muito influenciado por sua nha som e música.
obra. Stein lançou em 1932 a Autobiografia de Ali- Acho que adicionar música à pura contemplação de
ce B. Toklas e, ao mesmo tempo, este poema épico um filme distrai mais o espectador do que realmente
que é Stanzas in Meditation. Essa obra, mais do que interessa. Todo som que acontece ao mesmo tem-
qualquer outra, influenciou todos os meus filmes. po que uma imagem ou, como ocorre mais freqüen-
Cada linha é uma surpresa, com todas as conjun- temente, numa inter-relação som/imagem, tende a
ções e disjunções da sintaxe do vocabulário que distrair a visão. A opção de trabalhar com filme sem
Stein consegue em seu texto, sem a menor necessi- som ou música tem a ver com o fato de que algu-
dade de se referir, em palavras, a alguma realidade mas particularidades da minha visão tendem a se
específica, a alguma história. Porque é da natureza perder quando acompanhadas de som. Quer dizer,
da imagem o fato de ser percebida como um ca- se outros filmmakers consideram a música indispen-
cho de formas, cores e luzes. E o filme, se formos sável para “dar o clima”, ok, mas para mim isso não
considerá-lo um tipo de literatura, precisa retirar o é fundamental. Eu vou sempre ao cinema, adoro,
mas esse tipo de uso grandioso da música, tipo música incidental, não me
chama a atenção: como nas óperas, que são basicamente histórias que têm
interesse para um compositor. Agora, de vez em quando, alguém consegue
produzir grande arte até mesmo na tradição dramático-narrativa comum,
como ocorre com a ópera. Mas existem milhares de óperas para cada Don
Giovanni, do mesmo modo como há milhares de filmes para um do Tarko-
vski, do Orson Welles, do Kurosawa. Tenho enorme respeito por cineastas
que conseguem atingir um alto nível artístico dentro do cinema comercial,
apesar das limitações de ter de contar uma história que todo mundo quer
ver ou de trabalhar com um grande número de pessoas. Mas, convenha-
mos, esses cineastas não são o que chamamos de mainstream do cinema
produzido hoje. Esses caras são exceções, até mesmo aberrações na evo-
lução estética dos filmes. A maioria das pessoas nunca viu seus filmes.
Quem dentro do cinema comercial está fazendo (ou fez) filmes nesse
nível estético?
No começo do cinema, David Wark Griffith era um cineasta comercial, mas
em muitos momentos, Griffith foi um artista formidável, alguém que soube fa-
zer o cinema evoluir como arte de um jeito muito bonito. O russo Eisenstein é
outro daqueles cineastas raros. Dreyer também. E Jean Cocteau, com certe-
za: ele me deu a noção de que o filme podia ser uma forma de arte. Fui muito
influenciado por todos eles: formam uma tradição no cinema experimental
que procuro seguir. Mas, ultimamente, quem mais tem feito sentido para
mim, em termos de cinema, é o falecido Andrei Tarkovski. Sempre que reve-
jo seus filmes, absorvo e aprendo mais. Sinto neles aquelas possibilidades
permanentes de toda grande obra de arte. “O Espelho” é uma obra-prima.
Também gosto muito do trabalho do cineasta armênio Parajanov. O cine-
asta em cujo trabalho mais acredito nesse país é Martin Scorsese, embora
eu acho sua produção bastante desigual. Esses autores, considerando a
enorme produção cinematográfica norte-americana, são raros. No entanto,
conheço trabalhos de cineastas poéticos, independentes e quase totalmen-
te desconhecidos que têm muito mais chances de perdurar como obras de
arte do que a grande maioria dos filmes de Hollywood. É uma vergonha que
exista essa competição entre o cinema independente e o cinema comercial,
quase como se as pessoas, ao se envolverem com cinema poético, tives-
sem medo de perder os “seus filmes”. Eu sou uma prova viva disso. A po-
esia não é mais importante do que a prosa; nos grandes períodos literários
uma está sempre inspirando a outra
Como você vê o fato do vídeo estar obtendo cada vez mais espaço e
circulação comercial?
A questão do cinema é que se trata de uma arte muito nova, tem menos
de 100 anos. Parece que não tivemos bastante tempo para saber se vai
sobreviver ou não. Os defensores do vídeo com certeza vão insistir que o
cinema está morto e acabado. Mas o interessante é que as pessoas conti-
nuam indo ao cinema e isso ocorre, na minha opinião, porque elas têm uma
intuição do que o filme pode proporcionar como arte. Vídeo é algo diferen-
te. Não sou contra ele, como algumas pessoas pensam. É um meio como
qualquer outro, mas para mim o filme está mais próximo da música e da
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pintura. O vídeo não tem cor: a cor é qualquer coisa que a máquina
apresenta. Pode-se mudar de canal. Por isso eu, como um colorista,
não consigo me envolver com ele. Suas possibilidades rítmicas são
endurecidas, abafadas. Fica muito caro filmar em vídeo e colocar
as cores em filme, e eu teria que fazer isso, pois seria o único modo
de manter minha integridade como colorista. Para aqueles que não
estão envolvidos com certas particularidades da visão como eu, tudo
bem. O problema essencial do vídeo é o de ser hipnótico. Fica-se
olhando diretamente para uma luz, uma luz prejudicial à saúde e
que chapa as pessoas, o que é um meio ótimo para propaganda,
mas extremamente difícil como meio estético. Por isso mesmo que
encontro maneiras maravilhosas e não-hipnóticas de utilizar o vídeo.
Há outros que usam o vídeo com integridade: Stan Vanderbeek e
Bruce Bailey têm trabalhos incríveis em vídeo.
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Céu”, é muito simples: um grandalhão bondoso, que rios de TV. Mas assim como ocorria em “Muito Além
trabalha como segurança de um supermercado em do Jarim”, o protagonista mantém sua inocência e
Montevideo, se apaixona por uma jovem faxineira. A adquire conhecimento a partir de sua relação com
relação entre os dois, no entanto, só ocorre por meio um meio de comunicação de massa, que em princí-
de monitores de vigilância do mercado. pio seria anti-educativo por excelência.
A trama já apresenta o aspecto metalingüístico que “Gigante” pode ser considerado, dessa forma, uma
permeia o filme: mais do que um comentário sobre fábula moral sobre as relações contemporâneas.
uma sociedade cada vez mais imagética, “Gigan- Há uma tentativa contínua de fugir do encontro
te” é um estudo sobre a natureza da contemplação. concreto, do diálogo palpável, daquilo que ocorre
Com uma maturidade notável, Biniez constrói, de a partir de uma aproximação realmente física en-
forma lenta e gradual, a personalidade dos perso- tre duas pessoas. Seus personagens se movem e
nagens centrais em pequenas atitudes. Tudo o que agem como aqueles que vimos a partir de janelas,
precisamos saber sobre os personagens chega até câmeras de vigilância, reality shows e outras peças
nós, espectadores, de forma aparentemente direta, do gênero. A grande diferença é que Biniez articula
sem passar por um filtro de explicação psicológica, todas essas informações a partir de uma óptica da
a partir de cenas sem diálogos e com economia descontrução – ele retira, subtrai, esvazia qualquer
visual. O protagonista vive a partir de sua relação possibilidade de romantização da narrativa até que
com a imagem: ele controla e manipula a realidade temos, ao final do filme, um singular desfecho ro-
a partir de câmeras posicionadas estrategicamente mântico.
no seu local de trabalho. No descanso em casa, al- Entre os curtas destacaram-se a homenagem de
terna períodos entre videogame e programas aleató- Pedro Freire a dois grandes atores – Paulo José e
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