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Revista Interdisciplinar da Universidade Veiga de Almeida

ISSN: 14148846

Ética e Sobrevivência: The Walking Dead e a construção


de identidades em um mundo pós-apocalíptico

Paula Gomes de Farias Soares1

Resumo

Este artigo é derivado da minha monografia de especialização em Língua Inglesa, intitulada


“Ética, Identidade e Sobrevivência em “The Walking Dead”: uma análise de discurso crítica”. O
problema nasceu justamente pela popularidade dos zumbis na mídia e por eles, seres
desprovidos de consciência, serem usados para explorar as relações humanas. O objetivo desta
pesquisa é analisar, através da Análise de Discurso Crítica, como a ética pós-moderna é
abordada na série e como esse conceito ajuda a (re)construir a identidade da personagem
principal, Rick Grimes.

Palavras-chave: ética, identidade, pós-modernidade, análise de discurso crítica, the


walking dead.

Abstract

This article is originated from my final paper in the Especialization course in English Language,
entitled “Ethics, Identity and Survival on “The Walking Dead”: a critical discourse analysis.”
The problem was born from the popularity of zombies in the media and the use of these
creatures, beings without conscience, to explore human relationships. The objective of this
research is to analyze, through Critical Discourse Analysis, how postmodern ethics is
approached in the series and how this concept helps to (re)construct the identity of the main
character, Rick Grimes.

Keywords: ethics, identity, postmodernity, critical discourse analysis, the walking dead.

1
Mestranda em Estudos de Linguagem na UFF. Especialista em Língua Portuguesa e Literatura
Brasileira pela UCAM. Concluindo especialização em Língua Inglesa na Universidade Veiga de Almeida.
Graduada em Letras pela UniMSB. Técnica em Assuntos Educacionais na UFF - paulagfs@hotmail.com.

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Introdução
Depois de bruxos, lobisomens e vampiros, os zumbis têm sido figuras de destaque
em filmes, séries, histórias em quadrinhos e videogames. Atualmente, uma das
principais produções com o tema é a série de televisão estadunidense “The Walking
Dead”. A personagem principal, Rick Grimes, acorda só, em um hospital, e começa sua
jornada em busca da esposa e do filho. O mundo que ele conhece não existe mais e os
mortos não estão tão mortos. Durante as temporadas escolhidas (primeira e segunda), o
foco de Rick é a dedicação que tem pela família e pelas pessoas que ele se sente no
dever de proteger.

O presente trabalho visa analisar a ética nas situações de sobrevivência. Embora


seja uma história fictícia, a ética é um tema atual, uma das questões mais debatidas na
série e um conceito que afeta todas as sociedades. Afinal, a era pós-moderna
caracteriza-se pela incerteza e mudança. Se a ética já é um tema relevante por si só, em
situações de sobrevivência, representa um desafio. A ética coloca-se em âmbito social e
individual e nessa individualidade, surge a questão da identidade.

A pesquisa é classificada como qualitativa (GUBA; LINCOLN, 2006), pois


trabalha com a interpretação de textos e cuida dos objetos de interpretação de uma
maneira crítica e dedutiva. Os diálogos foram traduzidos e adaptados, e os transcrevi
utilizando o modelo de Paulo Gago (2002) que se encontra em anexo.

Como base teórico-metodológica, usei a Análise de Discurso Crítica (doravante


ADC), uma abordagem transdisciplinar, como Resende e Ramalho (2011) a descrevem,
visto que é uma forma de aplicar teorias diversificadas, transgredindo os limites do
conhecimento e transformando essas teorias em favor de uma abordagem
sociodiscursiva.

2. Ética e Identidade na Pós-Modernidade

Antes de discutir a ética pós-moderna, é preciso entender o que é determinado


como pós-modernidade. Alguns fatores a caracterizam, tais como a crise do
racionalismo, das instituições sociais, da industrialização e de mercado; a massificação

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dos meios de comunicação, além da mudança nos papéis sociais, entre muitos outros
(BARTH, 2007). No tempo pós-moderno, a ruptura dos antigos padrões torna-se uma
tradição:

É um tempo de mudança, de crise, de morrer ao tradicional, de


abandonar o velho e abraçar o novo, de quebrar paradigmas e
estabelecer novas formas de vida e valores. (...) Do “ser do contra”
passamos a “amar o contrário” e, hoje, somos “neutros diante das
diferenças” (BARTH, 2007, p. 94).

Anteriormente, a ética era marcada pelo imperativo categórico e pela religião, e


agora, no mundo pós-moderno, ela está livre de obrigações exteriores. É tentador pensar
que a moral não existe mais ou que estamos em uma época amoral, mas os valores
apenas estão mudando.

Segundo Bauman (2003), no processo de mutação social, ao tentarmos corrigir os


erros de ontem, cometemos novos erros que também serão corrigidos. Esse ciclo é
contínuo e imprescindível para um progresso moral. A incerteza pós-moderna torna-se
um trunfo para a ética, pois a ajuda a evoluir.

Morin (2007) revela que o sujeito precisa de autoconsciência e autocrítica para


desenvolver uma autoética e praticar uma socioética, assegurando uma antropoética. A
autoética é individual, mas precisa do outro e da sociedade. Para o autor, “ser sujeito é
associar egoísmos e altruísmos” (MORIN, 2007, p. 21), ou seja, o egocentrismo pode
favorecer o desenvolvimento altruísta.

A ética está em construção, já que “tudo é projeto, não existe nada acabado”
(BARTH, 2007, p. 99). Bauman (2003) explica que os homens e mulheres pós-
modernos são lançados na posição de indivíduos, “dotados de identidades ainda-não-
dadas, ou dadas mas esquematicamente  confrontando-se, dessa maneira, com a
necessidade de ‘construí-las’, e fazendo escolhas no processo”. E a responsabilidade
moral é um ato de autoconstituição.

Os conceitos de identidade pessoal, social e coletiva, desenvolvidos por David


Snow (2001), auxiliam em um melhor entendimento dessas construções e
reconstruções. De acordo com o autor, as identidades sociais são atribuídas para situar
as pessoas na sociedade, são papéis profissionais (professor, policial etc.), familiares
(mãe, pai, sogra etc.) e até mesmo de gênero e étnicos. Já as identidades pessoais são

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colocadas pelo próprio sujeito, são papéis e características que atribuímos a nós
mesmos. As identidades pessoais e sociais estão em constante interação.

Enquanto a identidade coletiva costuma ser caracterizada pelo senso de pertença a


um grupo, como a um agente coletivo. A identidade coletiva torna-se parte essencial da
identidade pessoal. O “senso de nós” faz o grupo agir em prol de um objetivo comum,
“mobilizando cognitivamente, emocionalmente e, às vezes, até moralmente” ações no
interesse da coletividade (SNOW, 2001, p. 3).

Um estudo de identidades associado a uma perspectiva filosófica ajuda a


responder a indagações contemporâneas, neste caso, à ética pós-moderna. Moita Lopes
(2006) ressalta a importância de investigações inter/transdisciplinares na Linguística
Aplicada, a fim de estudar como os sujeitos agem e para trabalhar com identidades
múltiplas como uma forma de entender essas questões.

3. Análise de Discurso Crítica

Os estudos de Fairclough (2001) sobre as relações da linguagem, do poder e da


sociedade, posicionam a linguagem como prática social, e o discurso (a linguagem em
uso) como um modo de ação e de representação.

O discurso é a prática que trabalha na representação e significação de mundo


colaborando para a construção das identidades sociais. A prática discursiva pode ajudar
na reprodução das relações e identidades sociais, mas também pode cooperar para
transformá-las.

Em uma ADC, a relação entre discurso e estrutura social deve ser vista de maneira
dialética, equilibrando o determinismo social com a construção social do discurso. Se o
foco estiver apenas na determinação social do discurso, pode haver uma diminuição do
papel do mesmo e, no caso de um enfoque na construção social, o discurso acaba sendo
idealizado.

A principal preocupação é o exercício do discurso como prática política e


ideológica:

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O discurso como prática política estabelece, mantém e transforma as


relações de poder e as entidades coletivas (classes, blocos,
comunidades, grupos) entre as quais existem relações de poder. O
discurso como prática ideológica constitui, naturaliza, mantém e
transforma os significados do mundo de posições diversas nas
relações de poder. Como implicam essas palavras, a prática política e
a ideológica não são independentes uma da outra, pois a ideologia são
os significados gerados em relações de poder como dimensão do
exercício do poder e da luta pelo poder (FAIRCLOUGH, 2001, p. 94).

O foco na análise de um discurso é a conexão “entre os modos de organização e


interpretação textual (...), como os textos são produzidos, distribuídos e consumidos em
um sentido mais amplo, e a natureza da prática social em termos de sua relação com as
estruturas e as lutas sociais” (FAIRCLOUGH, 2001, pp. 99-100). Para atingir esse
propósito, “a ADC assenta-se, primeiro, em uma visão científica de crítica social,
segundo, no campo da pesquisa social crítica sobre a modernidade tardia e, terceiro, na
teoria e na análise linguística e semiótica” (RESENDE; RAMALHO, 2011, p. 23).

Por conseguinte, a Análise de Discurso Textualmente Orientada (termo usado por


Fairclough, 2001), considera o discurso como texto, prática discursiva e prática social.
A prática discursiva é uma prática social e, às vezes, a prática social é totalmente
discursiva, mas em outros casos pode conter elementos não discursivos.

PRÁTICA SOCIAL

PRÁTICA DISCURSIVA

TEXTO

Figura 1 - A tríade do discurso de Fairclough (2001).

Na análise do discurso como texto, a forma e o sentido são estudados,


encontrando-se quatro categorias: o vocabulário (análise de cada palavra), a gramática
(orações e frases), a coesão (a conexão entre as orações e frases) e a estrutura textual (o
modo como os textos são organizados e como os elementos são combinados). Ao
analisar as palavras, o sentido, o uso de metáforas e as lexicalizações alternativas são
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examinados, principalmente, nos seus contextos e implicações políticos e ideológicos.

O discurso como prática discursiva envolve a produção, distribuição e consumo


do texto, além da intertextualidade (os textos que se apresentam em um texto). A
intertextualidade tem valor para outros aspectos da prática discursiva: na produção,
situam-se historicamente os textos; na distribuição, ajuda-se a entender como os textos
mudam de um tipo para outro e, em relação com o consumo, mostra-se que a
interpretação dos textos sofre influência dos textos trazidos por quem o interpreta. Já na
prática social, os pontos ideológicos e hegemônicos devem ser analisados.

4. Discurso, Mídia e “The Walking Dead”

Van Djik (2010) argumenta que, para compreender o poder do discurso da mídia,
é necessário relacionar as estruturas da mídia atual, a utilização dessa mídia e como essa
utilização pode influenciar as pessoas. Mesmo que os espectadores se tenham tornado
mais críticos e independentes com as mídias alternativas, as análises críticas são
essenciais para investigar se as tecnologias e mídias estão informando o cidadão e
tornando-o capaz de resistir à manipulação ou se, na realidade, elas estão ajudando a
propagar as ideologias dominantes.

A ilusão de liberdade e diversidade pode ser uma das melhores


maneiras de produzir a hegemonia ideológica que servirá aos
interesses dos poderes dominantes na sociedade, incluindo as
empresas que fabricam essas próprias tecnologias e seus conteúdos
midiáticos e que, por sua vez, produzem tal ilusão (VAN DJIK, 2010,
p. 21).

O poder na mídia é exercido nas formas de produção e reprodução de discursos


em jornais, nas TVs, em todos os meios de comunicação, “especificamente em termos
de sua produção material, articulação, distribuição e influência” (VAN DJIK, 2010, p.
45). Assim, as elites simbólicas (jornalistas, escritores, diretores e outros) possuem um
poder parcial para decidir sobre “a agenda da discussão pública, influenciar a relevância
dos tópicos, controlar o quantidade e o tipo de informação, especialmente quanto a
quem deve ganhar destaque publicamente e de que forma” (VAN DJIK, 2010, p. 45).

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Enquanto Van Djik (2010) enfatiza a influência negativa da mídia, Gonçalves


(2008) enxerga a mídia como produtora de subjetividade e com efeitos de serialização e
individualização. As diversas individualidades integram-se por intermédio do consumo
de alguns tipos de programas, como quem assiste a um programa matinal ou à série
Arquivo X, em outras palavras: o que se consome reflete o que se é.

Não seria manipulação ou alienação, mas produção de existência das pessoas no


espaço social. Aliás, os meios de comunicação podem ser críticos e fugir da
normatização da grande mídia, que é, em parte, controlada. O poder da mídia está
relacionado “à produção de individualidade, de subjetividades serializadas, de
subjetividades singulares” (GONÇALVES, 2008, p. 147), dessa forma, o poder pode ser
considerado plural.

Mazetti (2008) complementa que as funções dos meios de comunicação são


interpretadas de várias formas. Para o autor, a mídia consegue ser vista como inimiga
(sendo usada para fugir da realidade e reproduzir as relações econômicas, políticas e
sociais vigentes), como instrumento (uma forma de dominar, sem coagir, buscando o
consenso) ou como causa específica (para uma sociedade democrática é necessário uma
democratização da mídia).

É preciso “considerar a mídia tanto em termos de conteúdo veiculado quanto em


termos da própria forma e organização material dos meios para uma boa compreensão
do poder que a mídia exerce” (GONÇALVES, 2008, p. 154).

Estudos que enfocam séries de TV observam o uso das palavras e frases nas
situações roteirizadas, assim como nas relações de identidades e como elas são
representadas. O interesse não é apenas a gramática ou os textos, mas o que esses textos
nos mostram e que modelos de sociedade eles representam. Várias pessoas acham-se
envolvidas em tais programas, atores e espectadores, sendo que os espectadores
constroem e reconstroem suas identidades e práticas sociais pela apropriação dos textos,
por isso a importância da análise dos conteúdos das séries (MORA, 2006).

A série “The Walking Dead” foi baseada na história em quadrinhos homônima


escrita por Robert Kirkman. Ela é produzida nos Estados Unidos pela AMC e chegou ao
Brasil pelos canais Fox (dois dias após a exibição do primeiro episódio nos EUA, em
2010) e Band (três anos depois do início nos EUA).

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No Brasil, um exemplo de atenção ao consumo e ao contexto do público foi a


dublagem do terceiro episódio da primeira temporada na Fox, no qual a personagem
Daryl diz que um zumbi é extremamente feio. Ao dublar-se dita fala, fizeram a
adaptação para: “Credo. Você é mais feia que a bruxa do 71.” Fato inegável é a grande
idolatria do público brasileiro ao programa mexicano “Chaves” e, embora isso não
tenha a ver com o contexto americano, a adaptação visou a agradar o público a que se
dirigia.

No primeiro episódio, a personagem principal, Rick Grimes, é um policial que


acorda do coma em um hospital e não sabe o que aconteceu com o mundo ao seu redor;
afinal, tudo o que ele encontra no caminho até sua casa são mortos e mortos-vivos. Ele
parte, então, em busca da sua família e, ao encontrá-la, Rick depara-se com um grupo de
sobreviventes que deposita muita confiança nele. Entretanto, não foram só os mortos
que mudaram, não há mais governo e a sobrevivência está acima de tudo.

O medo e as situações extremas levam as personagens a constantes dilemas éticos.


Robichaud (2012) esclarece que o grande mérito de “The Walking Dead” é justamente o
formato em série que permite aos espectadores acompanhar a evolução moral dos
personagens em um apocalipse zumbi.

Bauman (2008) considera que a angústia e a frustração são inevitáveis quando


ficamos sem uma ordem social. Se cada um precisa ser responsável por sua própria
segurança, os grupos podem-se desagregar ou estagnar, devido ao peso psicológico de
tal obrigação. Os sentimentos de perda e abandono desestabilizam e nada assusta mais
do que as certezas destruídas:

Há também aquela terceira zona, talvez a mais aterrorizante, uma zona


cinzenta, entorpecente dos sentidos e irritante, até agora sem nome,
por onde se infiltram medos cada vez mais densos e temíveis,
ameaçando destruir nossos lares, empregos e corpos com desastres:
naturais, mas nem tanto; humanos, mas não de todo; ao mesmo tempo
naturais e humanos, embora diferentes de ambos. (...) A zona em que
redes de energia saem do ar, barris de petróleo secam, bolsas de
valores entram em colapso, companhias todo-poderosas desaparecem
juntamente com dezenas de serviços com os quais costumávamos
contar (...) e onde se formam (ou talvez são formadas?) quaisquer
outras catástrofes imagináveis ou inimagináveis, prontas a esmagar da
mesma forma o prudente e o imprudente (BAUMAN, 2008, pp. 11-
12).

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A primeira cena do primeiro episódio mostra a personagem principal em seu


uniforme de xerife a atirar em uma garotinha loira vestida com um pijama rosa e
segurando um ursinho de pelúcia. Ela tinha virado um zumbi e, caso o xerife não
atirasse, ela o comeria vivo. O que mais assusta, segundo Robichaud (2012), não são os
zumbis, mas o fato de que garotinhas se transformam em monstros que precisam ser
eliminados e que, após tantas mortes, o ser humano é capaz de acostumar-se com isso.

5. Rick Grimes e os dilemas de um mundo pós-apocalíptico

No universo fictício da série “The Walking Dead”, os personagens encontram-se


diante de uma nova organização de papéis, mas continuam presos a antigos valores e
ordens sociais.

O uso da figura de um policial como protagonista tem grande força simbólica,


pois parte do pressuposto de que eles são, ou deveriam ser, seguidores da lei e
responsáveis pela segurança da população. As pressuposições, “proposições que são
tomadas pelo produtor(a) do texto como já estabelecidas” (FAIRCLOUGH, 2001, p.
155), permeiam o discurso da série. Essa primeira pressuposição é demonstrada nos
fragmentos 1 e 2:

Fragmento 1

12 Rick
>Você deveria ser educado com um homem armado.< É senso comum. (3.0)

13 Merle
°Você não faria isso. Você é um policial.° (2.0)

14 Rick
ºTudo o que sou agora é um homem procurando pela esposa e pelo filho. (.)
15
Qualquer um que ficar no meu caminho vai perder.

Fragmento 2

27 Rick
Por que você não leva?

28 Andrea
Tem um policial me encarando. (3.0) Isso seria considerado roubo? (2.0)

29 Rick
Eu não acho que essas regras se aplicam mais. E você?

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No fragmento 1, existem duas pressuposições: é perigoso contrariar um homem


armado e um policial não atiraria em alguém desarmado. E no fragmento 2, a
pressuposição de que não se deve roubar, principalmente se você estiver na presença de
um policial.

Um aspecto da pressuposição é o contexto, praticamente em qualquer lugar do


mundo, ninguém enfrentaria uma pessoa armada, entretanto, a visão da população não é
sempre a mesma quando se refere à polícia. Na mídia brasileira, são constantes as
denúncias de corrupção e até mesmo assassinatos cometidos por policiais, e, se um
policial prende um cidadão por tentativa de suborno, é destaque na mídia como exemplo
de policial honesto. No cinema brasileiro, por exemplo, o filme “Vai que dá certo”
(2013) mostra dois policiais que não perdem a oportunidade de roubar, ameaçar e
receber propina.

Destaco que a personagem Rick Grimes quebra as pressuposições da ficção


estadunidense, país onde a figura policial é estrela de diversos filmes e séries,
comumente retratada lutando contra pessoas e instituições corruptas.

Nas situações anteriores, há um conflito entre a identidade pessoal da personagem


e a identidade social. Logo após brigar com Merle, Rick joga fora a droga que
encontrou com o adversário, ou seja, ele ainda reconhece que drogas são ilegais. O ato
de “jogar fora” é uma resposta à ironia contida na linha 18: “O que você vai fazer? Me
prender?”. O que o torna contraditório é usar o uniforme de xerife, buscar a segurança
do grupo e constantemente negar seu antigo lugar de defensor da lei. A negação é um
recurso bastante utilizado nos diálogos da série, tanto para renegar antigas identidades
quanto para afirmar as novas. Afirmar na linha 14 que ele é apenas um homem é uma
forma de negação de seu dever para com a polícia.

A negação também é usada para reforçar mensagens e necessidades da sociedade


atual:

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Fragmento 3

4 Merle
>Quem diabos é você?< = ((Merle xingou e bateu em uma personagem negra))

5 Rick
= O policial camarada. (2.0) Olha aqui, Merle. As coisas estão diferentes
6
agora. Não há mais negros. >Nem nenhuma merda de lixo branco que se acha
7
superior.< Só carne preta (.) e carne branca. Só nós (.) e os mortos. Nós sobrevivemos a
8
isso ficando juntos, <não separados>

A mensagem “somos todos iguais” é revelada pela negação da divisão por cor de
pele e pela afirmação de que agora eles são apenas “comida”. A pressuposição de que
todo ser humano, de forma genérica, é igual em direitos e deveres é fundamental para o
exercício da ética: negar isso seria negar a pluralidade, uma característica da pós-
modernidade.

Enquanto há mensagens positivas de que “drogas são ilegais” e “somos todos


iguais”, não há, porém, a mensagem de que “roubar é errado”, aliás, aparece justamente
o oposto. Creio que isso é uma justificativa para as ações das personagens que precisam
roubar comida, água, medicamentos e armas para sobreviver. Andrea rouba, contudo,
um colar, objeto sem valor útil para sobrevivência. É possível visualizar assim, a
contradição da pós-modernidade.

A proibição de drogas é questionável, pois a série descreve um mundo em caos,


sem esperanças e sem lei (roubar não é mais proibido). Obviamente, é o tipo de
mensagem que não seria social e moralmente aceita, principalmente por grupos que
supervisionam e censuram a televisão nos Estados Unidos.

É interessante observar que enquanto alguns paradigmas são quebrados (policiais


não tão corretos), outros continuam em busca de tornar-se hegemônicos (somos todos
iguais na diferença).

Um exemplo de intertextualidade, ironia e conexão com a sociedade anterior, só


que em um plano de ideologia religiosa é verificado no seguinte trecho:

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Fragmento 4

309 Rick
>Você é um homem de Deus. Tenha fé.<

310 Hershel
Eu não posso dizer que entendo o plano de Deus, (1.0) mas Cristo prometeu
311
312 a ressurreição dos mortos. (2.0) Eu só achei que ele tinha alguma coisa (0.5) um
pouco diferente em mente.

Hershel é uma personagem fortemente influenciada pela religião e uma das


poucas personagens que ainda possui algum otimismo, ou seja, ele é, praticamente,
antagônico ao sujeito pós-moderno. Para ele, toda a situação será superada, no momento
em que alguém descobrir uma cura. Ele, assim, torna-se referência para Rick. Quando
suas crenças são destruídas e Rick precisa de um ponto de apoio e não o tem mais, ele o
interpela a ter fé, invertendo os papéis que víamos ao longo da série.

Rick usa a expressão “um homem de Deus”, em vez de “crente” ou “religioso”. A


pressuposição é simples: se você crê em Deus, você deve ter fé. A utilização das
palavras é um espelho das próprias crenças de Rick e enfatiza o papel de Deus e não de
alguma religião. As crenças estão sendo continuamente abaladas, então “crente”
tampouco teria tanto sentido.

A resposta de Hershel, baseada na crença cristã de que os mortos serão


ressuscitados para o julgamento final, é um exemplo de intertextualidade com os textos
bíblicos. Primeiro, ele nega que entende os planos de Deus, e depois, afirma que eles se
concretizaram, mesmo que de maneira inesperada. A ironia dá o tom para a “piada”. A
cena é um reflexo da própria sociedade pós-moderna, na qual a religião não dita mais as
regras de comportamento, ela não é mais o centro da sociedade, lugar ocupado pela
família, pelo emprego, entre outras prioridades.

Apesar disso, a ética constitui uma das principais preocupações do protagonista.


Além disso, Rick sofre as pressões ideológicas, referentes às pressuposições sobre suas
identidades pessoal, social e coletiva como pai, marido, policial e líder.

Na cena a seguir, os personagens estão ao redor de uma fogueira na floresta após


um ataque de zumbis à fazenda na qual se sentiam seguros.

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Fragmento 5

323 Rick
A última coisa que precisamos é de todo mundo correndo no escuro. (0.5)
324
Nós não temos carros. Ninguém vai sair por aí a pé.

325 Hershel
°Sem pânico.° (1.0)

326 Meg
Eu não- >Eu não vou ficar sentada aqui, esperando outra horda atacar.< Nós
327
temos quer ir, agora. =

328 Rick
= Ninguém vai a lugar nenhum. (3.0)

329 Carol
Faça alguma coisa.

330 Rick
Eu estou fazendo alguma coisa! (.) >Eu estou mantendo esse grupo unido,<
331
332 vivo. Eu estive fazendo isso o tempo todo, a qualquer custo. Eu não pedi por isso.
333
(0.5) Eu matei meu melhor amigo >por vocês, pelo amor de Deus!< hhh (8.0) <Vocês
334
335 viram como ele era, (.) como ele me provocava, (0.5) como ele nos comprometia,
336
(1.0) como ele nos ameaçava.> (3.0) Ele armou a fuga do Randall para atirar pelas
337
338 minhas costas. Ele não me deu escolha. (1.0) Ele era meu amigo, mas veio atrás de
339
mim. (6.0) ((Carl começa a chorar)) Minhas mãos estão limpas. (11.0) Talvez vocês
340
341 fiquem melhor sem mim. (1.0) Vão em frente. (2.0) Eu acho que há um lugar pra
342
gente, mas talvez - °talvez seja só um sonho. Talvez° - talvez eu esteja me enganando
343
344 de novo. Por que vocês – Por que vocês não saem e descobrem por vocês mesmos?
Me mandem um cartão postal. (2.0) Vão lá, a porta é logo ali. (1.0) Vocês podem fazer
melhor? Vamos ver até onde vocês chegam. (5.0) Ninguém? Ótimo. Mas vamos
esclarecer uma coisa... (3.0) vocês estão ficando. (1.0) Isso não é mais uma
democracia. ((Hershel sorri discretamente))

O questionamento da autoridade é um movimento natural de qualquer grupo,


principalmente, quando o grupo está perdido entre sentimentos de angústia, frustração,
perda e abandono (BAUMAN, 2008), contudo Rick não lida bem com isso, devido aos
sacrifícios feitos em prol do grupo. No início do diálogo, ele dá ordens reforçadas por
negações: “não” (324), “ninguém” (324 e 328) e “nenhum” (328). Ele frisa que foi
obrigado a matar Shane (335), mas que sua consciência está limpa (337). Ele oscila

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entre momentos de ilusão ética e autocrítica: “talvez seja só um sonho. Talvez – talvez
eu esteja me enganando de novo” (338 e 339).

Rick desabafa (330-331): “Eu estou estou fazendo alguma coisa! Eu estou
mantendo esse grupo unido, vivo. Eu estive fazendo isso o tempo todo, a qualquer
custo.” Ele desafia o grupo com uma ironia (340-341) e se aproveita da força de uma
ameaça, recursos que eram utilizados por Shane: “Por que vocês não saem e descobrem
por vocês mesmos? Me mandem um cartão postal.” E conclui: “Isso não é mais uma
democracia.” De certa maneira, ele culpa o grupo e a responsabilidade que recaiu sobre
ele pelas suas tragédias pessoais. Uma solução seria que apenas a opinião dele fosse
válida, evitando os conflitos. As identidades social e coletiva confundem-se, trazendo
contradição à personagem:

Quando se trata de obedecer a um dever simples e evidente, o


problema não é ético, mas ter a coragem, a força e a vontade de
realizar seu dever. O problema ético surge quando dois deveres éticos
antagônicos se impõem. Assim como o pensamento complexo, a ética
não escapa ao problema da contradição. Não há imperativo categórico
único em todas as circunstâncias. Imperativos antagônicos surgem,
com frequência, de maneira simultânea e determinam conflitos de
deveres; as grandes dificuldades éticas estão menos numa
insuficiência do que num excesso de imperativos (MORIN, 2011, p.
47).

Rick tem a coragem para realizar seu dever com a coletividade, só que o seu papel
pessoal e social com a família são prejudicados em alguns momentos pelo dever com o
coletivo. A partir do momento em que Rick diz que não estão mais em uma democracia,
ele se comporta como Shane, impondo sua vontade. Apesar de Shane estar morto, agora
ele faz parte de Rick. Nesse momento, nascem semelhanças entre Rick e Shane.

Considerações Finais

A ética é um conceito histórico e mutável através dos tempos, e é pessoal e


mutável ao longo das experiências pessoais: essa é a jornada pela qual passam muitas
personagens da série. A ética transforma-se e, com ela, a própria identidade do sujeito.

A identidade de Rick está em constante construção por meio de seus

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questionamentos e dúvidas, fato que é refletido no seu discurso, cheio de negações e


perguntas. Nesse aspecto, ele não é diferente das outras personagens que estão em
constante mutação.

Ao mesmo tempo em que Rick não é real, ou seja, a sua identidade é fabricada
pela mídia e consumida, muitos de seus conflitos têm origem no real. O consumo
constrói e desconstrói identidades reais e fabricadas.

As constantes ironias, negações, pausas longas e metáforas são recursos utilizados


por tratar-se de uma obra de entretenimento audiovisual, que precisa manter o interesse
do público. As pausas longas são um claro exemplo de algo que não é muito comum em
conversas cotidianas, mas funciona para prender a atenção do telespectador.

Independente da visão da função da mídia, como inimiga, instrumento e/ou causa


específica (MAZETTI, 2008), há uma necessidade de consumir criticamente o que nos é
apresentado por ela.

No fim, este trabalho é um gesto de interpretação de algo que me incomodava e


ainda incomoda. Considero a ADC fascinante por sua teoria e por fornecer as
ferramentas para uma análise crítica, seja para refletir sobre a mídia (como inimiga,
instrumento e/ou causa), seja para refletir sobre qualquer discurso.

Referências
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Alegre, v. 37, n. 155, p. 89-108, mar. 2007.
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Estudos Linguísticos, Juiz de Fora, v. 6, n. 2, p. 89-113, jul./dez. 2002.
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et al. (Orgs). Mídia e Poder: Ideologia, Discurso e Subjetividade. Rio de Janeiro:
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abordagens. Porto Alegre: Artmed, 2010.
MAZETTI, H. Mídia e questionamento do poder. In: COUTINHO, E. G. et al. (Orgs).
Mídia e Poder: Ideologia, Discurso e Subjetividade. Rio de Janeiro: Mauad X, p.
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MOITA LOPES, L. P. (Org.) Por uma Lingüística Aplicada Indisciplinar. São Paulo:
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Case of “Friends”. Disponível em: http://eric.ed.gov/?id=ED512734. Acesso em 17 mar.
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MORIN, E. O Método 6: Ética. Porto Alegre: Sulina, 2011.
RESENDE, V.; RAMALHO, V. (2011) Análise de Discurso Crítica. São Paulo:
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ROBICHAUD, C. The Walking Dead and Philosophy. New Jersey: Wiley, 2012.
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http://www.escholarship.org/uc/item/2zn1t7bj. Acesso em 17 mar. 2013.
VAN DJIK, T. A. Discurso e Poder. São Paulo: Contexto, 2010.

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ANEXO: Modelo de transcrição

[colchetes] fala sobreposta

(0.5) pausa em décimos de segundo

(.) micropausa de menos de dois décimos de segundo

continuidade entre as falas de um mesmo falante ou de dois falantes


=
diferentes

. descida de entonação

? subida de entonação

, entonação contínua

?, subida de entonação mais forte que a , e menos forte que o ?


: alongamento de som
- autointerrupção
sublinhado acento ou ênfase de volume
MAIÚSCULA ênfase acentuada
° fala mais baixa imediatamente após o sinal
°palavras° trecho falado mais baixo
palavra: descida entoacional inflexionada
palavra: subida entoacional inflexionada
↑ subida acentuada na entonação, mais forte que os : sublinhados
↓ descida acentuada na entonação, mais forte que os : precedidos de sublinhado
<palavras> desaceleração da fala
>palavras< fala comprimida ou acelerada
<palavras início acelerado
hhh aspirações audíveis
(h) aspirações durante a fala
.hhh inspiração audível
((comentário)) comentários do analista
(palavras) transcrição duvidosa

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( ) transcrição impossível
th estalar de língua

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