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RESUMO
Esta pesquisa é fruto dos diálogos realizados no interior da disciplina Teorias em Ciências
Sociais e Humanas, ministrada no curso de Mestrado em Ciências Sociais e Humanas. O
objetivo é fazer reflexões sobre o trabalho do líder comunitário e a política que acontece no
bairro, sob a perspectiva dos debates acerca do saber científico além dos moldes tradicionais,
abordando os conceitos do pensamento complexo, da Antropolítica e da Fraternidade como
categoria política, e as conexões que se dão entre os sujeitos, com suas subjetividades e a
participação de múltiplas vozes, na produção de saberes e no exercício de uma política mais
humana e planetária.
Para Harres (2006: p.133) “[...] recordar liga-se a subjetividade, recordamos sob a
forma de emoções, sentimentos e imagens. A memória depende de encadeamentos, elos são
condições para recordar”. Sob esta ótica, a história oral é registrar experiências e
lembranças dos indivíduos que unem à socialização de sua memória com o coletivo e que
de outra forma não conheceríamos. Dessa forma, consideramos o trabalho do Líder
Comunitário como um vislumbre desse novo fazer científico, que considera os saberes
adquiridos fora da academia; é a política sem os dogmas da Ciência Política, é a Ciência
Social acontecendo longe dos debates mais atuais da Sociologia, ainda, não distante das
transformações que são objeto de estudo, por que ele está onde as transformações acontecem.
O papel do líder comunitário é fundamental na dinâmica da vida em comunidade. Ele
aproxima as pessoas das figuras que detém o poder de resolver administrativamente e
politicamente, os problemas do bairro. Ele reúne pessoas em torno de um objetivo em
comum, que é o bem estar coletivo. Isso vai além das tratativas da política sistemática
(partidária), por que o foco é a promoção de melhorias na vida da comunidade, que afeta
diretamente o dia a dia dos moradores.
Nesta perspectiva, entende-se que a preservação da memória e a construção de uma
identidade coletiva, passa também pelo estudo mais criterioso sobre a comunidade, sobre
quem são seus sujeitos, quais suas necessidades, qual a realidade de vida, e pensar nos
elementos que levam em conta a percepção da comunidade acerca de sua própria História,
e a importância que essa percepção de fato, exerce no conceito de pertencimento dessas
pessoas.
Assim, a identidade do líder comunitário está fortemente atrelada à da comunidade,
sendo então, neste espaço geográfico, que se dão mudanças estruturais e onde as relações
sociais são construídas, caracterizando ali um fazer político e social próprio, tornando cada
morador, sujeito participante desse processo de construção social.
A figura do líder não existe independente deste espaço e das relações que emergem
dele. Essa comunidade, que representa um fragmento da sociedade, é o lugar de nascimento
do que BUBER (1987), denomina de “inter-humano.”
“O inter-humano é aquilo que acontece entre homens, em que estes tomam parte
como em um processo impessoal, aquilo que o indivíduo vivencia como seu agente
e paciente da ação; não se restringe, porém, exclusivamente a isto. O inter-humano
só pode ser concebido e analisado como síntese do agir e do suportar a ação de dois
ou mais homens. Este fazer e sofrer se entrelaçam mutuamente e encontram um no
outro oposição e equilíbrio. Dois ou mais homens vivem mutuamente, isto é, se
defrontam em relação recíproca, em ação recíproca. Cada relação, cada ação
recíproca entre eles, podem ser denominadas sociedade, A função da sociedade é o
social ou, mais concretamente, o inter-humano.” (BUBER, 1987. P.41)
Como esse entrelaçamento de identidades acontece? À medida que essa figura do líder
não está distante dos problemas dos moradores. O líder comunitário é a pessoa que resolve
desde o remédio até a construção de um canal. Ele intermedia conflitos pessoais de vizinhos,
ele se envolve com a questão da creche, do transporte, da limpeza urbana, do circo que chega
no bairro, do parque, das igrejas, (não importando a confissão de fé). Então o seu nome é
lembrado, referenciado, como alguém que representa a comunidade, e ao mesmo tempo, ele
se torna indivíduo parte dessa comunidade, por que assume para si o compromisso de
construir um ambiente mais justo, mais digno, para si e seus pares.
Longe de ser uma espécie de “salvador da pátria”, essa figura em sua prática, se
assemelha mais a esse sujeito inter-humano, que, nas palavras de BUBER (1987), “que
queiram a comunidade com toda a força de sua alma; que se interessem pela comunidade às
quais pertencem, do mesmo modo pelo qual se interessam por seus assuntos amorosos e por
suas amizades”[..]
Essa representatividade que o líder comunitário exerce, grita a natureza de seu serviço,
anuncia o significado do que é viver em comunidade e o que ela pode ensinar a respeito de
fraternidade, de respeito ao semelhante, de justiça e dignidade para todos, independente de
raça, credo ou gênero. A existência da figura do líder comunitário fala sobre o que é ser e
viver em comunidade, e a comunidade fala qual é a essência do serviço comunitário. As
representações, memórias, símbolos, a história oral, ajudam a entender essa dinâmica, em que,
numa simbiose, à medida que nasce uma comunidade, nasce a necessidade de uma liderança,
e essa necessidade faz surgir o protagonismo do líder comunitário. Um fala a respeito do
outro. O líder é concebido ao mesmo tempo indivíduo passivo (o que quis dizer? Ficou
contraditório com a ideia de liderança ativa?), participante do meio em que vive, e sujeito
ativo, que age para provocar mudanças nas estruturas do seu lugar.
1- O SERVIÇO COMUNITÁRIO COMO UMA EXPRESSÃO DA
ANTROPOLÍTICA
O líder Comunitário está mais próximo dos aspectos humanos da comunidade. Ele é
obrigado, pela natureza da sua função, a ver a face da fome, do luto, do abandono, do vício.
Esses elementos que, os políticos tradicionais (a política partidária) não são capazes de
enxergar além de possíveis eleitores. Na comunidade também se enxerga o riso dos idosos, a
satisfação das crianças nas creches, a promoção da saúde nos postinhos, a informação mediada
pelas agentes de saúde que conhecem a problema do seu Zé, de dona Maria. Esses elementos
humanos, não aparecem nas estatísticas. Embora não se negue a necessidade delas, e aqui é
onde encontramos o fundamento do pensamento de Edgar Morin, de não abandonar os critérios
da Ciência tradicional, aquela que mede, que conta, que analisa, mas, abraçarmos essa que lê o
humanismo presente no serviço comunitário.
“Assim, a política deve tratar da multidimensionalidade dos
problemas humanos. Ao mesmo tempo, como o desenvolvimento se
tornou um objetivo político maior e a palavra desenvolvimento
significa (certamente de forma pouco consciente e mutilada) a
incumbência política do devir humano, a política se incumbe, também
de forma pouco consciente e mutilada, do devir dos homens no
mundo. E o devir do homem no mundo traz em si o problema
filosófico, doravante politizado, do sentido da vida, das finalidades
humanas, do destino humano. A política, portanto, se vê de fato
levada a assumir o destino e o devir do homem assim como o do
planeta.” (MORIN, 2010.p 136)
Não se faz necessário muito esforço para que essa política aconteça no meio da
comunidade. Ela possui uma dinâmica própria, e o papel do líder comunitário é essencial pra
que haja esse movimento de inter-relação aconteça. Ainda hoje, quando a força do
movimento comunitário não é a mesma de anos passados, é possível perceber a grande
influência da liderança comunitária.
Para além das ferramentas da política, através das quais se chegam às conquistas que
melhoram a vida em comum da comunidade, existe a Fraternidade como categoria política.
Esse conceito, segundo TORRES (2010), nasceu na Revolução Francesa, ao lado de outros
dois conceitos, igualdade e liberdade, imprimindo a ideia de que nenhum ser humano é
superior ou inferior a outro, seja por questões culturais ou econômicas.
De acordo com TORRES (2010), a Fraternidade como categoria política é identificada
através do exercício da democracia participativa, quando ela se propõe a ser uma “
possibilidade de uma alternativa à democracia representativa, a alteridade em função do
reconhecimento do outro como alguém igual a mim e a diversidade que inclui a perspectiva
do multiculturalismo e, ainda, a construção da unidade a partir da diversidade.” (TORRES,
2010. p 70).
É paradoxal e revolucionário pensar uma forma de fazer política longe daquilo que
normalmente se conhece quando se fala nesse assunto. A política, segundo o senso comum,
nos remete ao jogo de interesses, dos lucros exacerbados, da ganância, da corrupção que
usurpa o direito do pobre, da viúva, do órfão e do estrangeiro.
No entanto, podemos refletir a partir dessa perspectiva da política comunitária, que é
possível exercer a política a partir de um novo molde, sob outros princípios, outras
prerrogativas, que não aquelas já conhecidas. O serviço comunitário é um vislumbre dessa
possibilidade, por permitir, através de sua dinâmica de representatividade, incluir a todos os
sujeitos e aproximar uns dos outros, através de ideários comuns, ou necessidades particulares,
que são capazes de unir vizinhos, e rivais políticos.
Segundo MORIN (2011), isso também é algo inerente à Fraternidade. A superação das
rivalidades, das individualidades, que são parte, igualmente, das subjetividades humanas, mas
algo a ser vencido, a fim de que possamos enxergar no semelhante, um irmão. Ainda de
acordo com MORIN (2011), não se trata de uma forma ilusória de resolver problemas, mas
resistir à crueldade e ao horror que impera nas relações humanas, e neste caso, principalmente
na política.
A Fraternidade faz seu apelo, para que os homens lembrem do que são feitos, de como
são iguais, sendo diferentes. Lembra do quanto se pode fazer, pelo seu semelhante, se forem
vencidas as questões que os separam, em nome de uma unidade, ainda que não uniformidade.
“O evangelho dos homens perdidos e da Terra-Pátria nos diz: sejamos irmãos, não por que
seremos salvos, mas por que estamos perdidos” “(MORIN, 2010)
Por vezes, esta categoria na política comunitária, é o que a fará subsistir. Recursos
financeiros são não suficientes para se fazer política comunitária. Não há como atender à
todas as solicitações que surgem. Nem sempre o representante é recebido pela autoridade
competente. Depende da época, e do que se ganha em troca. A união dos sujeitos na
comunidade é o que irá prevalecer nas reivindicações. Eles precisarão enxergar no outro o seu
próximo, trabalhar para que o interesse coletivo seja alcançado, independente da vontade
individual, e acima da sua identificação pessoal partidária.
Eles se percebem iguais, por que as condições de moradia, os iguala. Outras vezes é a
tristeza, advinda de infortúnios da vida. Na individualidade de cada um, a união de objetivos e
interesses comuns. Por isto mesmo, a vida em comunidade é desafiadora. Daí a figura e o
protagonismo do líder não ser um fenômeno solitário.
Segundo ROPELATO (2008, P 105) “No que diz respeito a esse ponto, a
fraternidade aparece como elação de pertencimento recíproco, baseada na igual dignidade dos
sujeitos, decorrente da referência a um quadro unitário... que aceita o dinamismo da
composição dos interesses, garante as diversas identidades pessoais que não desvaloriza, mas
antecede e fundamenta com base na afirmação de uma identidade coletiva comum. (apud
TORRES 2010, p. 84)
A Fraternidade como categoria política do serviço comunitário, portanto, se manifesta
na presença da coletividade, da representatividade, e na existência da alteridade. A
democracia exercida de forma mais concreta, no espaço local, com proximidade entre
representante e representados.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Humanizar” tornou-se um verbo presente nas práticas que lidam com o ser humano.
Fala-se em “parto humanizado”, “atendimento humanizado” etc; sugerindo que, em algum
momento parece que deixamos de ser “seres” humanos.
E o que dizer da Política? Cada vez mais afastada do ideal original, que busca promover
o bem estar da coletividade, ela tem se distanciado cada vez mais do seu propósito. Buscamos
assim, separar a política partidária, aliada à burocracia e ao sistema partidário, da política
comunitária, que ocorre em menor escala, e leva em consideração a relação mais próxima
entre representantes e representados.
Essa política comunitária também passa por um “saber fazer”, que caminha de mãos
dadas com um modo de fazer Ciência que não considera apenas os números e gráficos, mas,
antes de tudo, aquilo que é inerente ao ser humano, que é o seu pensar, o sentido da vida que
ele carrega, e o que move a interrelação com o semelhante e o que eles podem fazer juntos em
prol de melhores condições de vida.
Partindo desse pressuposto, é possível aplicar o conceito de Antropolítica na política
comunitária, pois é na comunidade que ela acontece na sua forma mais humana; por que
dentre outras coisas, lida-se diretamente com pessoas e seus problemas.
Aliado à isso, o conceito do pensamento complexo, nos permite compreender como
pessoas simples, sem uma educação formal, exercem uma certa forma de ciência, e a sua
prática política, é considerada como um saber científico, ainda que não conforme os critérios
tradicionais daquilo que conhecemos como Ciência, daquilo que é inerente ao humano, e
suas implicações na construção do conhecimento.
Considerar essa política do bairro e pensá-la como um fazer científico é romper com
paradigmas solidificados ao longo da história, acerca do que é ou não científico. É o modo
de fazer ciência, que se relaciona com os fenômenos, incluindo também, como objeto de
estudo, suas subjetividades.
Sob essas perspectivas, vemos também na política comunitária, a Fraternidade como
categoria política presente na democracia representativa que acontece no bairro. Dessa forma,
o protagonismo de uma liderança comunitária não é um fenômeno solitário, mas construído
através de conexões, interações e compreensões profundas das necessidades da comunidade.