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MAPEAMENTO COMO INSTRUMENTO PARA CONHECER A

COMUNIDADE
Sicilia M. M. de Araújo
“Escolhi a sombra desta árvore para repousar do muito que farei enquanto
esperarei por ti. Quem espera na pura espera vive um tempo de espera vã. Por isto,
enquanto te espero trabalharei os campos e conversarei com os homens(...)estarei
preparando a tua chegada como o jardineiro que prepara o jardim para a rosa que se
abrirá na primavera.” Paulo Freire

O Mapeamento Psicossocial consiste em um processo que tem por objetivo


o conhecimento da comunidade ou das comunidades de uma determinada
região. Ele possui um objetivo a ser alcançado e, ao mesmo tempo, seu próprio
processo é um de seus objetivos. É um momento de conhecimento e de
vinculação com a comunidade. Isto significa que mapear implica em conhecer
de perto a comunidade, caminhar pelas ruas, ver os movimentos, a
concentração de pessoas em determinadas atividades, conversar com
moradores, conhecer-lhes os saberes, adquirir noção do conhecimento local, das
representações sociais vigentes que direcionam as ações humanas, participar de
eventos da/com a comunidade, identificar a cultura local e os potenciais a
serem desenvolvidos no intuito de fortalecer grupos e indivíduos. Tal processo
demanda um apanhado histórico do local e do modo de vida das pessoas, da
rede de equipamentos e de relações, do material concreto e simbólico do lugar.
As atividades desenvolvidas, sejam vinculadas formalmente ou informalmente a
saúde, devem ser levadas em consideração: em muitas comunidades uma
rezadeira, por exemplo, é mais procurada e valorizada que um médico ou outro
profissional de nível “superior”.
Por outro lado, para realizar o mapeamento, faz-se necessário inserir-se
no contexto da comunidade. Se o intuito for desenvolver um trabalho, o
mapeamento segue paralelo ao movimento de elaboração de projetos de
atuação. Se este não for o caso, é preciso ter cautela, pois tanto o simples
mapeamento como o mapeamento seguido de um projeto de atuação(ambos
feitos pelas mesmas pessoas) implicam em estabelecer vínculos e gerar
expectativas. Pensando em um Mapeamento para uma posterior atuação o mais
interessante é que este seja realizado pelos profissionais que vão atuar na
comunidade e que estes se envolvam em um processo de inserção no local. Para
realizar o processo de inserção comunitária faz-se necessário conhecer a
comunidade, ir além da atuação técnica, conhecer e tornar-se conhecido, não
desenvolver uma relação assimétrica onde é privilegiado o saber do profissional,
mas estabelecer valores de mesmo peso para perspectivas diferentes de vida. A
forma da relação desenvolvida é um dos grandes diferenciais da psicologia
comunitária. Tal modo de conhecer a comunidade é de inspiração etnográfica,
que implica em um envolvimento com os códigos locais e compreensão deles,
pede momentos de troca e de reciprocidade. Não significa um encontro para
caridade, mas revela-se um encontro amoroso, humano,dialético, muitas vezes
com sujeitos que sofrem um longo processo de opressão social que provoca um
sofrimento ético-politico (SAWAIA, 2004), com repercussões em diversas
dimensões deste ser. Segundo Góis(1993), o método em psicologia comunitária
é o de análise e vivencia da atividade comunitária. Isto significa que ao mesmo
tempo em que há um distanciamento e problematização analítica sobre a
realidade da comunidade, há a afirmação de uma práxis dialógica.
Para que a equipe possa realizar de forma mais eficiente seu trabalho
deve partir minimamente de questões surgidas pelas pessoas da comunidade,o
que resulta em ações e projetos que, fazendo sentido para as pessoas, possam
contar com elas como colaboradoras. Faz-se necessário que a equipe conheça e
possa acionar no tecido social as entidades, instituições e grupos que possam
receber pessoas encaminhadas ou montar parcerias com os mesmos, no sentido
de atender a demanda do bairro. No entanto, o objetivo dessas visitas não se
restringe a isso. A prática de um psicólogo comunitário deve estar munida de
ações que possibilite a compreensão das atividades comunitárias, do modo de
vida local, das representações sociais que circulam no bairro, dentre outras
categorias que devem ser estudadas durante seu processo de inserção (Góis,
1993). É também através do conhecimento dos grupos locais e entidades da
comunidade que podemos compreender de que forma pode-se atuar para no
sentido de um maior participação social, favorecendo o fortalecimento do valor e
poder pessoal, do aprofundamento da consciência, do fortalecimento da
identidade e da saúde(Góis, 1993),estimulando que o próprio morador seja
também e principalmente sujeito cuidador de sua saúde. Através de visitas,
andanças e conversas “desinteressadas” podemos não somente conhecer o
modo de vida comunitário, mas também formar vínculos cada vez mais fortes
com os sujeitos, o que favorece a construção de parcerias com entidades e de
termos moradores como parceiros de reflexão sobre questões locais e de
trabalho, e, nesse sentido, podemos desenvolver projetos que não são somente
para a comunidade, mas COM a comunidade, como composta por sujeitos
construtores de sua história, percebendo e buscando desenvolver em sistema
de parceria as potencialidades pessoais e locais. Esta estratégia reflete bem o
olhar sobre o sujeito,o qual seria um ser que se transforma pela atuação no
mundo, e este mundo transformado repercute em uma nova modificação do
sujeito, num movimento dialético(LEONTIEV, 1979).
O Conhecimento da história da cidade e do bairro, a participação em
eventos artísticos que promovam debates com a comunidade fundamenta-se na
ampliação de conhecimentos e na construção de uma consciência cada vez mais
crítica e aprofundada. Através destes eventos podemos exercitar a cidadania
promovendo um maior conhecimento de nossa história, promovendo a
manifestação de um valor intrínseco pessoal, de identificação local e de
valorização de questões pertinentes para a comunidade. Neste sentido, o sujeito
se fortalece através de sua construção no mundo(do mundo e de si através do
mundo). A opressão provoca muitas vezes o desenvolvimento de uma ideologia
de submissão e resignação(MARTIN-BARÓ, 1998) que enfraquece o sujeito
montando, inclusive, uma couraça caracteriologica que se manifesta no corpo,na
forma de viver e se relacionar, provocando por vezes adoecimento(GOIS,
1993;2005;2008). Por outro lado, quando o sujeito percebe-se como
co-construtor de sua realidade, age, vive e se relaciona de forma mais criativa e
confiante.
“Quando o oprimido passa a exercitar-se como sujeito,
descobre que suas mãos são construtoras de si mesmo e de
sua realidade. Começa a enfrentar a opressão com
entusiasmo e se fortalece com as ações de solidariedade e
luta.” (GÓIS, p. 52, 1993).
Um dos objetivos dos encontros com grupos na comunidade é o de que
seja criado um espaço tanto de diálogo em relação criação de temas
interessantes de serem trabalhados como, também, de realização de atividades
“práticas”, ou ainda, de campo, que possam tornar mais claro o que se deseja
transformar no bairro. Isto é o que pode-se conceituar como ações
instrumentais e comunicativas(GOIS, 1993). A proposta é que estes encontros
sejam atos de criação, elas devem não somente fazer sentido para os sujeitos,
mas que também não se restrinja a uma simples troca de idéias(FREIRE, 1983).
A atividade comunitária, como podemos considerar, é definida como um
momento em que o psicólogo comunitário pode estudar e intervir na
comunidade. A atividade deve contemplar não somente um aspecto de ações
instrumentais como também de ações comunicativas, ou seja, através de ações
comunicativas podemos dialogar, problematizar questões na comunidade, mas
essas ações devem estar aliadas a outras que, de alguma forma, possam
contribuir para mudanças concretas. Discutir e agir, dessa forma, não devem ser
ações desligadas uma da outra, mas integradas(GÓIS, 1993).
O conhecimento do modo de vida local e o fortalecimento de vínculos não
pode se dar de outra maneira senão através da convivência comunitária.
Compreender o modo de vida local para que o trabalho decorrente deste sirva a
própria comunidade implica em um “inserir-se com profundidade e compromisso
na realidade da população e junto com ela definir caminhos de investigação e
transformação de sua realidade social”(GÓIS, p. 65, 1993). A compreensão da
dinâmica comunitária exige do psicólogo comunitário uma presença ativa na
comunidade, buscando experimentar seu cotidiano, compreender seus códigos e
formas de relação, sendo necessário fazer-se periodicamente presente em
momentos importantes, além de estar atento a aspectos do cotidiano do bairro.
“Sem a interação e convivência a vida do lugar é apreendida de modo estranho
e superficial, por isso, de pouca valia.”(GÓIS, p. 63, 1993). Neste sentido, a
participação no cotidiano da comunidade é útil tanto na compreensão da
dinâmica local, como também, no estreitamento de laços com as pessoas da
comunidade e uma aproximação mais intensa como seu modo de vida.
No âmbito do conceito de saúde mental positiva esta consiste em uma
concepção que varia de acordo com o contexto em que o individuo está
inserido,seria um atributo pessoal e situacional, diferenciando-se de acordo com
a cultura e com as expectativas do grupo social(VIDAL,1996),
tornando-se,portanto, um conceito “vulgar”, ou seja, não existe nenhuma fonte
definida de saber que transforme a doença em discurso pronto para ser lido e
interpretado pelo olhar clínico(CANGUILHEM, 2007). Tal perspectiva aponta para
uma proposta de atuação que envolva a participação comunitária, buscando a
criação de modos e condições de vida que favoreçam o fortalecimento da saúde
(MARTINEZ et al, 1993 apud CASTRO;CAVALCANTE, 2007), através de diversas
formas de cuidado que promovam a emergência do sujeito em um território
interdisciplinar, comunitário e participativo, tendo como base formas de
acolhimento e vínculo que estabeleçam um compromisso ético-político,
desenvolvendo um olhar para o individuo em seu contexto sócio-historico, criar
espaços de participação e resignificação de relações e experiências vividas de
forma menos ideologizada e preconceituosa (BOCK et al,2009).
Desta maneira, foram criadas políticas públicas cujas propostas buscam
estar coerentes com o conceito de desisntitucionalização no intuito de enfrentar
o desafio de trabalhar com dimensões subjetivas e psicossociais. De onde a
psicologia comunitária emerge em sua contribuição a partir de um olhar sobre
um sujeito sócio-historicamente constituído capaz de resignificar e construir
idéias transformando, assim, as praticas individuais e coletivas pautados por
novos horizontes éticos.

Sugestão de roteiro de inserção e ação comunitária(Góis, 1993, p.


88-89)
Escolha e entrada na comunidade
1. Contato e observação;
2. Interação e confiança;
3. Identificação com a comunidade;
4. Definição e uma relação de cooperação;
5. Conhecimento das lideranças;
6. Levantamento das fontes de informação;
7. Conhecimento dos problemas e das necessidades;
8. Caracterização da comunidade;
Diagnostico-ação
1. Estudo da atividade comunitária, considerando as categorias de
análise:atividade,identidade, caráter oprimido,representação social,
consciência,linguagem, pensamento, valor pessoal, poder pessoal e
ideologia de submissão e resignação.
2. Estudo,formação e fortalecimento de pequenos grupos;
3. Reuniões com uma pessoa,duplas e pequenos grupos;
4. Treinamento em processo grupal e ação comunitaria;
5. Organização e integração de diversos tipos de grupos;
6. Encontros existenciais
7. Pesquisa participante;
Auto-sustentação
1. Treinamento de lideranças;
2. Fortalecimento de lideranças democráticas;
3. Avaliação da atividade comunitária e dos resultados, considerando
as categorias de analise:atividade, identidade e caráter
oprimido,representação social,consciência,linguagem e pensamento,
valor pessoal e poder pessoal, ideologia de submissão e resignação.
Continuidade e ampliação
1. Manutenção melhorada das atividades consideradas necessárias
2. Definição de novas necessidades;
3. Ampliação do campo comunitário;
4. Integração com outras comunidades;
5. Articulação com outros movimentos sociais
Desligamento progressivo
1. Avaliação da ação
2. Encontros periódicos
3. Visitas periódicas com espaçamento progressivo
4. Despedida e manutenção de vínculos.

Considerando a saúde como possibilidade de participação social e


criatividade do sujeito no campo relacional, esta poderia ser promovida através
de uma retirada dos sujeitos de práticas automatizadas, vivenciadas no
cotidiano, para a valorização de práticas criativas, inovadoras que “apontam
para a saúde” (MECCA;CASTRO, 2007, p. 381),praticas que promovam o valor
pessoal e poder pessoal(GÓIS, 1993;2005;2008) o fortalecimento(MONTERO,
2003) através da disponibilidade e o convite a inovar, a participar, a co-construir
como um sujeito dotado de um saber próprio digno de valor(FREIRE,1979).
Dessa forma, utilizando-se das idéias de Ayres (2004), entendemos
cuidado com saúde como o estar sempre exercendo o cuidado sobre sua
própria existência, não como ato inteiramente consciente, intencional ou
controlável, mas resultado de uma autocompreensão e ação
transformadoras,um não-exercício de poder ou um saber sobre o outro (FREIRE,
2003). A psicologia comunitária atuaria neste campo como uma dentre outras
novas tecnologias necessárias para o rompimento o discurso hegemônico da
racionalidade médica tradicional, buscando dar conta da demanda por uma
integralização da assistência(PINHEIRO;GUIZARDI,2005).

“O operário olhava e refletia, mas o que via o


operário, o patrão nunca veria. O operário via as casas e
dentro das estruturas, via coisas objetos, produtos,
manufaturas...via tudo o que fazia o lucro do seu patrão,
e em cada coisa que via misteriosamente havia a marca
da sua mão. E o operário disse “Não!”. –“loucura!”Disse
o patrão. –“Não vês o que te dou eu?”. –“Mentira!”Disse
o operário. –“Não podes dar-me o que é meu!”
Operário em Construção.Vinicius de Moraes,
“O Pirambu é um bairro que tem que ser próprio,
ele não pode dar sua luta para ninguém.”
D. Maria Gzemar Brito de Oliveira, líder comunitária
ligada á Sociedade da Redenção, em uma declaração
dada durante a marcha do Pirambu de 25 de maio de
2006.

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