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Joanildo Burity
Fundação Joaquim Nabuco
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PSICANÁLISE, IDENTIFICAÇÃO
E A FORMAÇÃO DE ATORES COLETIVOS
Joanildo A. Burity
INTRODUÇÃO 5
1. Problemas Conceituais da Articulação: plurivocidade das noções de sujeito, linguagem, discurso e o social 29
Capítulo 4 57
1. Os movimentos sociais e a saga de uma nova concepção do sujeito da política: do preâmbulo ao epílogo and back
again 58
2. A formação de atores coletivos: uma narrativa dos caminhos da política no Brasil pós-1974 63
CONCLUSÃO 72
BIBLIOGRAFIA 76
INTRODUÇÃO
N
os anos 60 e 70 anunciou-se estrondosamente a “morte do sujeito”, em meio à descoberta
de que a liberdade soberana, autônoma, com que o iluminismo definia o agente humano,
era nada comparada à força da “estrutura”. Sistema, organização ou modo de produção, as
faces e nomes da estrutura apontavam todas para um conjunto de restrições e
balizamentos que condicionavam fortemente qualquer pretensão de movimentação, criação e
iniciativa dos agentes descoladas das teias de relações e posições definidas pela estrutura. Veio
1968, vieram os anos 80 e os chamados novos movimentos sociais puseram em xeque não
somente a noção de uma estrutura auto-centrada e invulnerável, mas também as tentativas de
compreendê-los à luz de marcos da ação coletiva desenvolvidos em moldes estruturais 1.
Manteve-se, no entanto, em larga medida, a expectativa de que os movimentos retomavam a
linha voluntarista e autonomista que marcava o conceito iluminista de sujeito. Sob a influência do
marxismo que predominava como modelo de análise, à figura do proletariado como sujeito
universal veio se somar, ou substituir, a dos movimentos. Se a classe não mais era suficiente
para dar conta da pluralidade interna de posições, lugares e formas da ação coletiva, os
movimentos surgiam como soluções para os impasses da política de classes, como novos atores
hegemônicos.
Sobreveio a crise dos movimentos, em fins dos anos 80, tanto no registro da política “real”
quanto no do imaginário: ante a decomposição do modelo socialista e a derrota das posições
mais à esquerda no cenário nacional (e continental), percebeu-se que se havia projetado demais
sobre os movimentos, incompreendendo seus limites (externos) e limitações (internas). Para
muitos, no entanto, tal constatação veio como uma segunda morte do sujeito: não só a classe
não podia ocupar o lugar do sujeito universal da revolução, mas também os movimentos haviam
fracassado no intento (entenda-se: intento que tais movimentos nunca formularam
explicitamente, senão pela boca dos militantes da esquerda organizada partidariamente ou dos
analistas sociais). Assim, não só a via movimentalista fora derrotada politicamente, como foi
2
dada por esgotada enquanto imaginário . Sobre suas cinzas reemergiria, supostamente
triunfante, o sujeito autônomo, narcisista, vindicado da estapafúrdia pretensão de subordinar a
"criatividade" e a "liberdade" a ditames coletivos ou comunitários! Os anos 90 trariam, então, de
volta à cena, o sujeito liberal, o sujeito hedonístico, o sujeito individualista-possessivo, o sujeito
associal - variantes nem sempre idênticas ou superpostas, mas todas signos de uma mutação: a
lógica do mercado teria enfim vencido a lógica coletivista, o mundo voltaria a ser o império dos
fragmentos e da individualização, regidos apenas pelos desígnios da competição e do interesse
próprio.
Noutra frente, acolheu-se a via movimentalista como única alternativa ao modelo totalizante de
política que, este sim, teria mostrado não somente seus limites mas sua perniciosidade. Não se
trataria de uma crise da subjetividade mudancista, mas da forma da política que a animava. Aqui
duas vertentes se colocaram, já na segunda metade dos anos 80 e, resolutamente, a partir da
constatação da crise “final” do socialismo real e dos efeitos perversos da maré liberalizante que
1
- A análise de classes marxista havia se beneficiado largamente da onda estruturalista para questionar o
individualismo ativo ou passivo da ideologia liberal que antes mascarava o caráter de classe desta última, e
preconizando a necessidade de uma política classista como forma de enfrentá-la e neutralizá-la.
2
Estou usando o termo "imaginário" aqui no sentido de um horizonte em que se inscrevem diferentes percepções ou
discursos sobre o social, o indivíduo, a história, a política, a cultura, etc. a partir do compartilhamento, não tanto de
conteúdos idênticos, mas de regras de produção de sentido e da utilização de alguns significantes comuns. Na
terminologia lacaniana que aparecerá em outras partes do texto, o imaginário diz respeito a um dos registros da
subjetividade através do qual se dão as identificações pelas quais o sujeito tenta administrar sua falta, sua
incompletude constitutiva.
acompanhou e seguiu-se àquela. Ambas as vertentes retomaram o voluntarismo autonomista da
concepção moderna de sujeito por meio da categoria de identidade. Uma primeira, à esquerda,
assumiu definitivamente a fratura do sujeito-classe em inúmeras posições de sujeito, e iniciou a
articulação de políticas da diferença. Política de afirmação de identidades particulares,
irredutíveis à política de classe ou do individualismo possessivo, ao mesmo tempo coletivas e
localizadas, que atuariam de forma direta nas brechas abertas em ou ensejadas pelo sistema
(especialmente no domínio dos direitos e das instâncias de representação não-parlamentar da
esfera estatal). Uma segunda vertente, à direita, tomou a afirmação de identidades não apenas
como uma forma de resistência, mas principalmente como negação dos valores universalistas
adotados a partir do trauma das guerras mundiais e do fenômeno totalitário - valores que tinham
nos direitos humanos sua expressão mais acabada -, afirmando a diferença (étnica, moral,
religiosa, regional, nacional, etc.) como critério de apartação, como forma de vida atormentada
pela presença das demais. Xenofobia, moralismo e intolerância tornam-se moeda corrente
dessas políticas de identidade3.
Em todo este movimento - que é simultaneamente prático e teórico, envolvendo ações concretas
e dilemas conceituais - permaneceu intacta, em larga medida, a figura do sujeito como
fundamento seguro da ação social. Seja como agente individual, seja como ator coletivo (e a
própria ambiguidade das categorias de sujeito, agente, ator e indivíduo faz parte do problema),
assume-se sem maiores problemas que ao sujeito corresponde uma identidade própria e plena.
Se esta não se afirma inteiramente ou coerentemente num dado momento, isto se daria por
constrangimentos externos (do estado, da sociedade, de outros sujeitos) ou por um
desconhecimento de si próprio e de seu lugar na história (alienação, falsa consciência). Em
ambos os casos tratar-se-ia apenas de afastar o bloqueio e a identidade viria à luz em toda sua
cintilância e vigor.
4
Este jogo da identidade - pelo qual se postula um outro que a ameaça, constrange ou impede, e
se propõe a afastá-lo, neutralizá-lo ou mesmo exterminá-lo como condição para ser “de fato”
quem já se é "de direito" - está no centro da problemática da ação coletiva hoje. E, no entanto,
as perspectivas predominantes têm perdido de vista precisamente o que a configuração deste
jogo revela sobre a inconsistência constitutiva do sujeito. Não no sentido banal de
contraditoriedade ou malformação, mas no sentido de uma heterogeneidade interna, plástica e
sobretudo inconstante, provisória, que estaria na base da formação de todo sujeito - individual ou
coletivo. Pois o jogo da identidade, longe de expressar um choque de entes positivos, objetivos,
plenamente constituídos previamente ao conflito mútuo, exprime ao mesmo tempo a relação
imaginária que se estabelece entre os contendores e a relação identificatória pela qual o que se
é está presente/ausente no outro. Em ambos os casos, a identidade não é um bem, um objeto
positivo que se possua, mas só existe na relação com o outro. Se o outro apresenta
características emuláveis, quer-se ser como ele/a. Se o outro repugna de algum modo, quer-se
ser contra ele/a. Mas isto significa que não existem identidades em estado puro, nem jamais se
chega a concluir a formação de uma identidade. O sujeito é um precipitado de práticas
identificatórias, a identidade é um momento instável da prática da identificação.
Chegamos, assim, ao cerne de uma formulação para a qual cremos ser a psicanálise um
referencial extremamente importante de reflexão e construção teórico-prática. A categoria de
identificação é fundamental à concepção do sujeito da psicanálise, pois traduz o caráter
3
Uma certa oscilação será permitida ao longo deste trabalho em relação ao uso da expressão "política de identidade".
Como ela é bastante usada na literatura pós-estruturalista de forma genérica, em muitos casos recobre o que chamei
de políticas da diferença. Neste caso, seu significado será mais neutro ou analítico. Em outros momentos, a
expressão designará estritamente esta variante conservadora ou, se quiserem, fundamentalista, associada a
movimentos racistas, moralistas ou politicamente reacionários. Confio que o contexto, em cada caso, não deixará o
leitor em dúvida atroz.
4
- “Outro” que pode ser múltiplo: quer um indivíduo, quer um pequeno grupo social, quer um campo onde se
colocariam diferentes grupos em oposição ao campo “de cá”, quer toda uma cultura ou forma de organização social. É
antes do lugar ou dimensão do outro que se trata, e não tanto deste ou daquele ente no mundo.
descentrado da subjetividade individual, o lugar do desejo na “afirmação” da identidade do
indivíduo (este termo mesmo se torna contraditório, pois o que é próprio do sujeito é ser dividido
em si mesmo) e o vazio impreenchível que o impele para a frente e que é outro nome para sua
“vida”. Constituído num lugar que não é o seu próprio, mas do Outro (simbólico, cultural, social),
ao mesmo tempo em que "perde" algo que lhe caracterizava num antes ao qual não pode
remontar objetivamente, e que buscará permanentemente reencontrar, o sujeito emergirá a cada
momento em que o(s) objeto(s) em que "depositou sua confiança", por meio da identificação,
revelam-se aquém da expectativa. O sujeito emerge na falha da estrutura (do Outro) de garantir
a estabilidade da identidade até então vigente. Heterogêneo no plano mais singular de sua
"individualidade", diferente de si mesmo, o sujeito tampouco poderá alcançar a identidade a si, a
homogeneidade e completude, no plano coletivo: os atores coletivos são construtos compósitos,
mobilizados em torno de uma exterioridade que, como disse acima, os ameaça ou desafia, ou
seja, os desloca, fornecendo-lhes as condições de aglutinarem grupos e pessoas díspares em
torno de uma "preocupação" ou "demanda" comuns, mas ao mesmo tempo lhes impedindo de se
apresentarem como identidades sólidas e naturais, dado que o que são depende
irrecusavelmente do outro a quem "elegeram" como objeto de sua agressividade ou do seu
amor.
O argumento aqui desenvolvido, desta maneira, procura responder a algumas questões: como a
categoria da identificação poderia servir a uma reflexão sobre a ação coletiva? Seria possível
utilizá-la num contexto em que não é um indivíduo e sua trajetória de vida que está em questão,
sem forçar uma transposição artificiosa? Não se estaria de volta à “morte do sujeito” e, assim,
fechando a porta pela qual as energias da resistência à hegemonia neo-capitalista poderiam se
expressar? Que diferença faz se a identidade dos atores coletivos é una, plural ou imaginária
(identificatória)? O importante não seria como eles se articulam estrategicamente para atingir
5
objetivos específicos?
No campo da ciência política, não se tem dado muita atenção a este aspecto. O vezo positivista
que marca a disciplina reserva apenas aos excêntricos preocupações desta ordem. Fica-se,
então, no nível descritivo, acumulando hipóteses externas sobre as condicionantes e influências
materiais, históricas, e institucionais na formação de atores coletivos; ou submete-se a ação
destes sujeitos coletivos a modelos normativos, para em geral achá-los em falta, incapazes de
perceber as demandas do momento (estruturais ou conjunturais) ou incompetentes para se
5
É bom lembrar que há autores que abordam a temática dos movimentos sociais precisamente por meio desta
distinção heurística entre identidade e estratégia (cf. Cohen, 1985; Krischke, 1993). Outros defendem que, no caso de
grupos marginalizados, a reconstrução da dignidade e assertividade próprias exigiriam uma certa tolerância para um
momento de "essencialismo estratégico".
6
- Neste último caso, um enfoque do processo de articulação que se beneficie de hipóteses tomadas à psicanálise e à
análise do discurso poderia ser perfeitamente integrado - e mesmo requerido - pela investigação que nos propomos a
fazer. Tentei elaborar sobre o assunto em Burity, 1994.
adaptarem às tendências percebidas. O argumento aqui desenvolvido pretende ser uma
contribuição para o rol da ex-centricidade em ciência política, ao mesmo tempo em que quer se
situar no coração das preocupações da disciplina: a ação política (institucionalizada ou
movimentalista, para usar uma distinção clássica).
Ademais, uma melhor compreensão do problema da identidade e do sujeito ensejaria uma nova
perspectiva sobre a pluralidade, o conflito e a promessa de emancipação que são constitutivos
do imaginário democrático, relativizando pretensões essencialistas e apontando caminhos de
atuação em que a consciência dos limites surge como condição para a liberdade. Pode-se
continuar lutando para “ser”, até porque a estrutura não tem a palavra f inal, é fraturada e
limitada. Saber-se incompleto e provisório também reduz pretensões megalomaníacas, de
projetos salvadores, ou totalitárias, de grupos que pretendem reduzir a dificuldade da vida a
saídas fáceis que operam sempre pela exclusão do que “não interessa” ou “não cabe” em seus
esquemas discriminatórios. Relativizar as pretensões de monolitismo e auto-transparência dos
atores coletivos não significa negar a possibilidade de sua existência, mas dimensionar seus
limites e possibilidades num contexto em que se não podem tudo, tampouco o inimigo o pode.
Assim, um contexto em que os atores, por um lado, assumem sua parcialidade e a precariedade
da articulação que os trouxe à luz, e por outro, reconhecem que não têm que estar juntos ou
separados por força de leis históricas ou materiais, é benéfico a uma democracia plural, embora
seja problemático para atores políticos tradicionais, questionando suas pretensões de dirigir e
manipular os grupos em nome de objetivos maiores ou de uma espera pelo "momento certo".
Uma nota de advertência é necessária, a esta altura: o território das relações entre psicanálise e
política não está inteira ou satisfatoriamente pavimentado para visitas livres de acidentes por
parte de especialistas ou "turistas" eventuais. Há desconfianças, temores, polícia de fronteiras e
reservas de domínio de parte a parte, que precisam ser de certa forma "violadas" para que um
diálogo mais gozoso ou ao menos franco surja. Tornar porosa e ondulada a fronteira, ao invés
do traçado contínuo da linha que separa os dois mundos, é uma tarefa difícil e não-autorizada.
Mas sempre que aventureiros vindos das duas províncias se encontram a sensação é sempre a
mesma: é preciso ironizar as pretensões de incomunicabilidade e de pureza virginal das
províncias, rindo-se da sisudez da polícia do saber que vigia as fronteiras; e é preciso ousar
colocar-se questões impertinentes mutuamente. Não as questões afinal decisivas, mas outras
questões, que nos permitam experimentar para além da repetição, com o que não é óbvio,
evidente, patente, para talvez poder dizer ou fazer diferentemente e mais produtivamente.
É certo que se corre amiúde o risco de, a propósito de uma articulação entre psicanálise e
política, estabelecer-se um diálogo de surdos entre, de um lado, cientistas ou ativistas sociais
que ignoram sobranceiramente a hipótese do inconsciente e do sujeito da falta/do desejo/das
pulsões, e, do outro lado, psicanalistas que se recusam a falar de política senão nos termos da
própria psicanálise (seja da política da psicanálise, seja da política tal como é tematizada na
psicanálise) - deixando-se de avançar na direção de uma contaminação mútua das fronteiras.
Compreendido o espírito desta reserva quanto à articulação - a preocupação em não colonizar
um campo pelo outro -, não se pode deixar de anotar que a alternativa não é adotar um polícia
de fronteira entre os dois territórios, nem se permitir heterodoxias controladas, por meio de uma
recepção subordinada ("aplicada") de questões de um campo pelo outro. O que se propõe aqui é
que, respeitada até onde possível a particularidade de cada um - o que já implica na
impossibilidade de uma absorção ou superposição integrais - se constitua um terceiro espaço,
em que as preocupações do cientista político se encontrem com as do psicanalista e ensejem
um efeito de interlocução construtivo, que não pertença rigorosamente a nenhum dos domínios.
O trabalho está organizado da seguinte maneira: após um primeiro capítulo, em que traço as
linhas básicas da concepção psicanalítica da identificação, prossigo tematizando o terreno em
que a preocupação dos dois campos pode encontrar um espaço de diálogo e reconstrução, para
chegar ao capítulos três e quatro, em que rediscuto a questão da identidade - que perpassa todo
o esforço anterior - tal como se coloca no debate político hoje, mobilizando uma série de motivos
(como o da crise do político, da fragmentação dos atores sociais e das articulações possíveis,
bem como as realmente existentes, entre eles, e a questão da liberdade do sujeito face às
condicionantes da "organização", além do lugar referencial dos movimentos sociais
contemporâneos para o avanço dessa problemática). Oferecem-se, em seguida, algumas
reflexões sobre a política nacional nas últimas décadas, no que diz respeito às questões aqui
discutidas. Apesar da tentativa de manter o argumento num ritmo progressivo e controlado, não
é possível evitar certas reiterações ou retomadas que assegurem a "amarração" necessária entre
momentos distintos do percurso e que, acredito, serão compreendidas e quiçá apreciadas
pelo(a) leitor(a). Em se tratando de uma exploração analítica, um experimento de idéias, não se
encontrará no percurso descrições de casos concretos, embora se tenha mantido até onde
possível na companhia de interlocutores a quem se pode remeter para investigações mais
empiricamente orientadas.
Gostaria de registrar, de início, meu agradecimento ao colega João Rego, cientista político e
psicanalista, com quem esta pesquisa foi iniciada, mas que infelizmente teve que abandonar sua
preciosa colaboração a meio caminho das discussões. Embora a redação do texto seja de minha
inteira responsabilidade, alguns dos arroubos comparativos foram devidamente contidos dada a
cautelosa “desconfiança” de João. Creio que ele saberá reconhecer onde seus cuidados
tornaram o restante do trabalho, levado a termo já longe dos seus olhares, menos incerto ou
impreciso. No que não se alcançou, debite-se tudo à minha teimosia.
CAPÍTULO 1 - A TEORIA PSICANALÍTICA DA IDENTIFICAÇÃO
A
percepção de que o ser dos indivíduos e grupos sociais não está simplesmente dado pela
natureza dos processos de socialização tradicionais 7 ou por sua posição na estrutura de
classes sociais, tem contemporaneamente trazido à tona toda uma revalorização do tema da
identidade. Não estando fadados a descobrir nosso lugar e assumi-lo resignadamente, vimos
nos acostumando (ou resistindo) a uma insistente fala a respeito da necessidade de nos
afirmarmos autonomamente, de construirmos e sermos senhores de nosso próprio destino, não
aceitando que se prescrevam modelos acabados para toda época e lugar e que desconsiderem
nossas aspirações e forma singular de ser e viver. Ter a sua própria identidade, construir a sua
identidade, afirmar sua identidade são todas maneiras de destacar uma sensibilidade anti-
totalizante e uma valorização da diferença como constitutiva da dinâmica social e pessoal 8.
Ora, o termo identidade tem sido usado em filosofia para referir-se a duas questões distintas -
uma, sobre o que confere a algo ou alguém sua natureza ou essência, ao abrigo das variações
de tempo e lugar (a problemática grega da forma ou eidos); outra, sobre o que permite afirmar
que duas pessoas ou coisas são iguais (cf. Zaretsky, 1995:199-200). Assim largamente descrita
na tradição ocidental, a noção de identidade é correlata de oposição ou diferença, embora esta
tenha que ser pensada como algo externo e em grande medida perturbador. Ser algo é não ser
outra coisa. Ou, na direção contrária, não saber o que se é implica em estar alienado de sua
verdadeira natureza, destituído de sua identidade própria, deslocado. A experiência da
identidade traduziria uma invariância (o que significa que, em diferentes tempos e lugares, é
preciso reconhecer a forma ou essência por trás ou por baixo da diversidade, das aparências e
dos acidentes) e uma “missão” (a origem comanda o destino a trilhar ou assumir, desvela-se ao
longo da trajetória do sujeito, serve de critério de julgamento sobre o grau de aproximação em
relação ao seu potencial/ideal de auto-desenvolvimento) que seriam perturbadas pela presença
do outro, da exterioridade.
Ora, esta representação da identidade tem sido submetida a uma tenaz problematização nas
últimas décadas, na esteira de uma série de intervenções intelectuais e políticas fortemente
referenciadas na tradição francesa e no que através desta se deram a pensar os acontecimentos
do final dos anos 60 em vários países do mundo. Através dela se tem argumentado que “a
identidade pressupõe diferenças, que ela envolve a supressão da diferença, ou que ela acarreta
um interminável processo de adiamento de sentido” (Zaretsky, 1995:200). Para estas correntes,
normalmente enfeixadas sob o rótulo de pós-estruturalismo, as políticas de identidade
contemporâneas - progressistas ou reacionárias - têm que ser confrontadas com um elemento
complicador, que desestabiliza as pretensões essencialistas de posse de uma identidade
definida previa e naturalisticamente à entrada na cena social onde outras já se encontram. Assim
é que a noção de identidade passa a ser substituída (ou suplementada) pela de identificação,
que pressupõe um caráter inacabado, processual e habitado constitutivamente pela diferença. A
noção de identificação, por sua vez, aparece, nas referidas intervenções intelectuais
frequentemente referida ao discurso psicanalítico, razão porque julgo conveniente situar a
discussão a que se propõe este trabalho no contexto da concepção psicanalítica da constituição
do sujeito por meio de atos identificatórios sempre precários e parciais.
Dizer que a psicanálise é tomada como referencial desta nova concepção de identidade como
processo interminável de atos identificatórios, pelos quais os sujeitos buscam confirmar ou
retificar suas imagens de si bem como distinguir entre objetos de satisfação do seu desejo e
dirigir suas expectativas de gozo a uns ou outros desses objetos, e que assim vão construindo
agrupamentos e territórios marcados por uma zona de comun(al)idade em meio a suas
diferenças, não resolve o problema. Antes abre o flanco para outros, uma vez que não é ponto
pacífico que a "pátria" psicanalítica desta noção de constituição do sujeito seja compatível com
as novas políticas de identidade. A localização da problemática da formação de atores coletivos
no solo psicanalítico está sujeita ao ataque tanto de posições que valorizam a iniciativa e a
autonomia como condição para a auto-assertividade de grupos sociais historicamente vitimizados
ou excluídos, quanto de posições que incluem a própria psicanálise entre as formas de
9
Uma das implicações desta opção é que, a despeito de ter trabalhado com uma série de textos de Freud e Lacan
sobre o tema, serei econômico na exposição deste material, privilegiando um tom mais sintético e recorrendo apenas
eventualmente à "palavra autorizada" dos pais fundadores.
pensamento de matriz essencialista com que cumpre romper para liberar uma experiência plural
e indeterminada da identidade.
Zaretsky, por exemplo, chama a atenção para o repúdio da psicanálise (como do marxismo)
pelos partidários das políticas de identidade ou de diferença (1995:201-02). E admite que o fato
destas formas de pensamento compartilharem uma postura universalista e retirarem conclusões
definitivas sobre o que não seria senão uma fase na história do capitalismo, a industrialização,
tornou-as vulneráveis às mudanças subsequentes. No caso do capitalismo, tanto o marxismo
como a psicanálise teriam emergido no contexto da passagem da produção doméstica à fabril e
da divisão entre uma esfera pública (identificada com o mercado e o estado) e uma privada
(identificada com a família e o indivíduo). É fácil de verificar em que campos se situaram o
marxismo e a psicanálise ao longo desta divisória. A idéia de que subjacente às diferenças
pessoais ou contextuais pode-se encontrar uma identidade comum a todos e passível de ser
analisada, inscreve a ambas as tradições na linhagem do universalismo iluminista que,
começando com o romantismo no século passado 10, é novamente fustigado a partir dos anos 70
como responsável por terríveis mazelas da sociabilidade em nosso século.
Esta marca de origem abrigaria, assim, a possibilidade de que a despeito de todo o criticismo
freudiano da idéia de sujeito associal e soberano do iluminismo, uma leitura domesticada da
psicanálise brotasse, especialmente nos Estados Unidos. Por outro lado, o caráter crítico do
discurso freudiano ensejaria outras tantas releituras que se situariam nos antípodas do projeto
de ajustamento/normalização que evoluiu na psicanálise norte-americana. De forma que será
preciso explicitar qual orientação prevalecerá na leitura da psicanálise que informa esta
retematização da questão do sujeito. Este é o tópico do próximo capítulo, cumprindo, por
enquanto, apenas recusarmos a primeira das possibilidades mencionadas neste parágrafo e nos
aproximarmos da formulação psicanalítica sobre os processos de identificação como
constitutivos da subjetividade.
Não é possível separar as categorias do sujeito e da sociedade no discurso freudiano, pois aí "o
sujeito é imediatamente representado no campo da intersubjetividade, implicando sempre outros
sujeitos" (Birman, 1994:128). A oposição não pode ser feita entre indivíduo e sociedade como no
discurso clássico das ciências sociais, mas, como diz Freud em Psicologia das massas e análise
do eu, entre relações interpessoais que podem ser consideradas fenômenos sociais e "alguns
outros processos, por nós descritos como „narcisistas‟, nos quais a satisfação dos instintos é
parcial ou totalmente retirada da influência de outras pessoas" (1976:91-92). Desta forma, o que
há é a tensão entre "atos mentais sociais e narcisistas" (Idem:92) no interior do próprio sujeito,
11
que o constituem sempre já como individual e social . O trabalho sobre a pulsão, transformando-
a em desejo dirigido a objetos parciais, se faz pela simbolização, pela inscrição do que o sujeito
sente (pulsão) e o que quer (objeto do desejo) ou deve fazer (ideal de eu) no domínio linguístico,
social e político. O sujeito se constitui identificando-se - pela "inversão no contrário", o "retorno
sobre a própria pessoa", o "recalque" e a "sublimação" (Birman, 1994:169), como também pela
transferência.
10
Cf. a este respeito as iluminadoras contribuições incluídas na obra organizada por Critchley e Dews (1996).
11
É preciso dizer que isto, entretanto, não está inteiramente resolvido para Freud, para quem parece tratar-se, neste
trabalho, antes de uma certa subsunção do social ao individual, na medida em que o instinto social seria, não
primitivo, mas derivado de processos que ocorreriam no âmbito da subjetivação, e que teriam início no círculo estreito
da família (cf. 1976:92). Obviamente, uma vez redesenhada a fronteira entre individual e social, de uma oposição
entre interior e exterior para outra entre duas formas de pensar a relação interior/exterior, a leitura apresentada acima
não apenas se torna possível, mas adequada à intuição freudiana (cp. 1976:156-57).
compreender - e que ao mesmo tempo a distingue de imitação, compreensão, empatia ou
projeção - é que o sujeito é constitutivamente marcado pelo Outro, pelo heterogêneo, pelo plural
em relação ao mesmo, ao si-mesmo. A pluralidade aponta, desta forma, para o que está em jogo
na identificação. Estabelecendo três momentos do percurso de Freud, o autor destaca como na
primeira fase, em que Freud descobre o inconsciente articulado com o sexual (Correspondência
com Fliess, A interpretação dos sonhos, Psicopatologia da vida cotidiana, Fragmento de análise
de um caso de histeria e O chiste e suas relações com o inconsciente), a identificação adquire
tanto um caráter romanesco quanto implica em questões de transferência e mesmo na
suspensão, por um átimo, dos recalques ou censuras criando uma comunidade de sujeitos,
como no caso dos chistes e do humor.
No primeiro caso, o caráter romanesco refere-se à entrada do sujeito numa cena onde pre-existe
um conjunto de relações entre personagens que o afetam e estilhaçam: "jogo dramático, uma
vez que o desejo se põe em cena, difratado em uma série de personagens de empréstimo, de
aspectos contraditórios" (Idem:119). Fissão e ficção constituem-se portanto em dois traços
estruturais do sujeito, acrescendo-se-lhes as condensações de que fala A interpretação dos
sonhos. No caso dos chistes, um novo elemento se apresenta, que é a possibilidade de uma
identificação-relâmpago, sem recurso à fantasia, por meio do jogo de palavras estabelecido no
"trabalho espirituoso" do humor. Em suma, "a identificação não é somente o caminho da
formação de um elo sonhado ou fantasiado com o objeto do desejo, mas também a condição
para a instauração de um elo social, e isso duplamente: no plano 'cômico' da relação imaginária
com o mesmo, e no plano 'espiritual' da troca simbólica, que não é de estrutural dual, mas
ternária, por conta da mediação significante" (Idem:125).
O segundo Freud (Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, o ensaio sobre o narcisismo,
Totem e Tabu e Luto e melancolia) traz à tona a paixão deste pelas origens 12. Daí vem a idéia de
que o infantil corresponde não apenas a um momento inicial do desenvolvimento humano, mas
como um "'momento' estrutural permanente da organização subjetiva", de modo que a
identificação passa a ter o caráter tanto genético quanto estrutural (Idem:126). Há aqui uma
hipótese segundo a qual a emergência do sujeito corresponde à experiência de uma perda que
instaura-lhe (nostalgicamente?) o desejo, o qual migra (isto é, identifica-se) de objeto para objeto
em vista da sua satisfação, somente para descobrir que isto não foi possível ("não há figuração
objetiva desse 'objeto perdido'; todo o trabalho do desejo consiste precisamente em perdê-lo
como tal!" – Idem:127). Nessas condições, o ensaio sobre o narcisismo salienta como o sujeito
faz as suas escolhas de objeto segundo duas modalidades que a todo instante consagram a sua
divisão (e a do objeto): uma narcísica e outra "por apoio" nas pulsões de auto-conservação.
A esta altura, Florence sintetiza o percurso de Freud em dois modelos, cada um com sua versão
normalizadora e patologizante. No primeiro modelo, oriundo do Freud I, ter-se-ia a identificação
espiritual (chistes) e a histérica (sonhos, sintoma). No segundo modelo, indicado há pouco a
12
Paixão que, segundo Florence, transparece no grande número de palavras em Ur- (radical alemão de origem, proto,
pré, etc.), ou no uso de termos como "primitivo", "originário", “pré-histórico".
propósito do Freud II, ter-se-ia a identificação narcísica (a mais primitiva e mais importante em
seus efeitos), com suas variantes totêmica e melancólica.
Além disso, Birman observa, Freud ajunta à distinção entre eu ideal e ideal de eu como fundante
do processo identificatório a problemática do narcisismo das pequenas diferenças. Esta diz
respeito ao estabelecimento de oposições entre os corpos, seja para se demarcarem como
singularidade e diferença, seja para constituírem relações de dominação. Oposições que indicam
tanto a pulsão à realização integral do gozo (mesmo que pela extorsão ou extermínio do outro)
quanto o obstáculo interposto pelos outros, seja porque fazem o mesmo, seja porque se
recusam a ser assujeitados. Para Freud, porém, esta guerra latente ou aberta pode ser trazida a
uma razoável estabilidade, e efetivamente o faz intermitentemente (com intervalos variáveis de
vigência), ante a emergência de um líder cujo carisma produz um relativo ou temporário
apagamento da singularidade dos sujeitos (isto é, do narcisismo de seu eu ideal), por intermédio
de sua participação em movimentos de massa. O reconhecimento mútuo é outra contrapartida
da relação com o líder, pela qual as pessoas identificadas em/com o movimento "se tornam
capazes de realizar atos para os quais estariam incapazes se estivessem sozinhas" (Birman,
1994:133).
A crença no carisma do líder, que mantêm juntos os seus seguidores, pode ser "arranhada" por
deslizes ou insucessos daquele, quer produzindo um fratura da organização, quer causando a
queda do líder. Em ambos os casos, o processo é acompanhado pela reemergência do elemento
centrífugo e desordenador do narcisismo das pequenas diferenças. Se contornado, o frisson
causado pela perda do elemento articulatório se reequilibra; se não, um dos dois destinos
apontados tem lugar. O reequilíbrio, entretanto, depende para sua durabilidade da forma como a
autoridade do líder é refeita. Pois, se esta se impõe pela força, a submissão tornar-se-á
essencialmente frágil e terá seus dias contados, pois estará condicionada à promessa de gozo
pleno feita pelo líder e transformada num processo de referendo sempre sujeito a resultados
adversos.
É também em Psicologia de Massas que aparecem três formas de identificação retomadas por
Lacan em seu seminário sobre o tema: (1) a identificação primária, com o pai primordial, da pré-
história individual, pela qual ao querer ser o pai e instaurá-lo como ideal, o menino prepara-se
para adentrar o complexo de Édipo, onde organizará suas pulsões; (2) as múltiplas identificações
que são "a apropriação (Aneignung) de qualidades, e até de sintomas, do objeto da rivalidade ou
do amor" do sujeito (Birman, 1994:135), caracterizadas por estarem limitadas a um único traço
do objeto, introjetado por regressão 14; e, por último, (3) a identificação por meio do sintoma, que
13
Para Florence, este seria o Freud que dá continuidade à temática de Totem e Tabu (Psicologia das massas e análise
do eu; Moisés e o monoteísmo; Mal-estar na civilização), bem como o que concentra-se sobre a estrutura do eu e suas
subdivisões (Além do princípio do prazer; O eu e o isso; A divisão do eu como mecanismo de defesa; Inibição, sintoma
e angústia).
14
Ou seja, a escolha de objeto, que é posterior à primeira identificação (com a figura paterna, que dá origem ao
supereu), retroage e assume o lugar da identificação: o eu assume assim as características do objeto, embora nunca
deste como um todo.
não pressupõe um investimento de objeto ligando o sujeito à pessoa “copiada”, aparecendo no
exemplo das garotas de pensionato, em que um ponto em comum significativo entre dois sujeitos
pode levar ao surgimento de novos laços sociais (amizade, camaradagem, competição, simpatia,
etc.) - cf. Freud, 1976:133-36. Freud dá a entender que esta terceira é a que está em questão no
caso do laço mútuo que se desenvolve entre membros de um grupo, em cujo caso, a relação
com o líder teria a natureza deste ponto em comum, assinalado pelo sintoma 15.
Insatisfeito, porém, com a exaustividade desta classificação, Freud retoma em seguida dois
outros casos em que analisara a homossexualidade masculina e a melancolia (no ensaio sobre
Leonardo da Vinci e em Luto e Melancolia), e mostrara a possibilidade de que a identificação não
se fixe apenas sobre um dos traços do objeto, mas que (1) assuma o próprio lugar do objeto,
recusando-se a abandoná-lo; ou (2) seja a tal ponto intrusiva e trágica que cinda profundamente
o sujeito entre a culpa e a vingança pela perda do objeto, ou ainda entre o eu e o ideal de eu.
Uma última nota do capítulo VII de Psicologia das Massas, que praticamente se constitui num
apêndice ou num último parágrafo, aponta mais uma possibilidade: a de que a identificação surta
o efeito de reduzir a agressividade mútua entre as pessoas com as quais se compartilha, dando
entrada a uma dimensão especificamente social do processo (cf. Freud, 1976:139, n. 1;
1984b:377).
É significativo, como observa David-Ménard, que antes de explorar a questão do vínculo social,
da relação entre líder e massas, Freud se detenha, neste trabalho, a comparar o amor, por um
lado, e a hipnose e as massas, por outro. E nisto ele muda de critério e aponta para uma
alternativa, que é "saber se o objeto é colocado no lugar do eu ou do ideal de eu" (1994:70; cf.
Freud, 1976:144). No caso, a hipnose, ocupando uma posição intermediária entre o grupo, do
qual retém basicamente a relação entre líder e liderado, e o estar amando, por não possuir
inclinações sexuais, é vista como uma relação na qual o líder/hipnotizador assume o lugar de
ideal do eu (Freud, 1976:145). Admitindo que, no amor, tanto é possível que o objeto se
mantenha quanto que seja abandonado, Freud acaba levantando uma questão, a que não
responde, sobre se "a identificação supõe a renúncia ao investimento de objeto" (David-Ménard,
1994:71). Seria possível haver identificação com a conservação do objeto?
Em O eu e o isso (cf. Freud, 1984b), que Florence considera a última grande contribuição de
Freud sobre a questão da identificação, insiste-se em que não se conceba o eu como
substância, mas como espaço de divisão entre o ativo e o passivo (como na voz média da língua
grega), um núcleo sempre já cindido em instâncias que impedem o eu de se constituir como
15
Mais adiante, Freud dirá que o que caracteriza basicamente um grupo é o fato de que diversas pessoas tenham
colocado um só e mesmo objeto no lugar do seu ideal de eu (1976:147). Este objeto é o líder e assim se forma uma
distinção entre os membros do grupo - iguais entre si - e o líder - erigido por sobre eles à maneira do mito darwiniano
da horda primitiva dominada pelo macho despótico (cf. Idem:155).
16
No final do ensaio sobre o narcisismo, lemos: “O ideal de eu abre uma importante via para a compreensão da
psicologia de grupo. Além de seu lado individual, este ideal tem um lado social; ele é também o ideal comum de uma
família, uma classe, uma nação. (...) A necessidade de satisfação que procede do não-cumprimento deste ideal libera
a libido homossexual, e isto é transformado num sentimento de culpa (ansiedade social)” (1984a:96-97; cf. tb.
1984b:376-377).
idêntico-a-si-mesmo. Se há um núcleo formado pelas primeiras identificações este só significa
que a realização do sujeito estará para sempre adiada. A identificação primária "dá lugar ao
campo do narcisismo secundário, com a libido retirada dos objetos. O eu se desenvolve, assim,
incessantemente, por incorporações sucessivas" (Florence, 1994:139). Aproximando o que antes
escrevera sobre a melancolia dos processos “normais” de abandono/substituição de objetos de
desejo, Freud afirma ali que a cada vez que a falha identificatória (perda do objeto) se manifesta,
uma alteração se produz no eu, deixando nele uma marca, pela introjeção aí daquele objeto. A
frequência com que isto ocorre leva-o então a “supor que o caráter do eu é um precipitado de
investimentos de objeto abandonados e que ele contem a história dessas escolhas de objeto”
(1984b:368, grifo nosso).
O emaranhado de laços que se vai constituindo por estas múltiplas incorporações das quais o
sujeito é o precipitado, está, entretanto, sujeito a uma instância reguladora e seletiva, o supereu
(Überich, que vem substituir a noção de ideal do eu - Ichideal -, cunhada entre 1913 e 1914, e
encontrada tanto em Psicologia das Massas como no ensaio sobre o narcisismo), a qual vem a
se estabelecer em substituição aos vínculos ambivalentes que a criança mantinha com os seus
pais, exercendo a função de apontar ao resto do eu as interdições, censuras, regras morais e o
sentido de realidade (cf. Freud, 1984b:373-79). O supereu não é apenas censor, é também ideal
a atingir. Ele é "virtualmente responsável pela auto-superação, assim como pela paixão, pela
obediência e pela submissão" (Idem:141). Nem toda identificação consegue sucesso inteira ou
duradouramente, podendo criar "formações reativas" das quais o supereu é um dos mais
acabados exemplares. Produto da primeira identificação, ocorrida quando o eu era ainda frágil, o
supereu continua como herdeiro do complexo de Édipo, como “memorial da fraqueza e
dependência anteriores do eu, e o eu maduro mantém-se sujeito a sua dominação”, a despeito
da resistência que venha a lhe opor (Idem:389).
Na parte final de sua reflexão, Florence introduz alguns problemas, especialmente decorrentes
da inflexão lacaniana - que são retomados em seguida, numa longa lista de intervenções e
questionamentos de analistas presentes ao colóquio em que o trabalho foi originalmente
apresentado -, dos quais reteremos apenas dois (cf. 1994:147-70). Em primeiro lugar, o autor
questiona a propriedade do termo "identificação" admitindo, contudo, que talvez não haja um
melhor para dar conta ao mesmo tempo da história e da estrutura do sujeito, sua unicidade e
multiplicidade, sua ligação com o mesmo e com o outro, Eros e Tanatos, a imagem e o
significante (Idem:142). Em seguida, o autor assinala o difícil balanço entre o empirismo
freudiano e o estruturalismo lacaniano, que tem implicações para o que se compreende por
objeto e pelo eu, bem como pela questão das origens, nos dois casos, embora não haja como
escolher entre os dois (Idem:162). A primazia da linguagem conferida por Lacan acaba
deslocando a própria conceituação de identificação: o sujeito é deduzido da estrutura do
significante, o qual representa um sujeito para outro significante; o traço único na segunda forma
de identificação apresentada por Freud em Psicologia das Massas, torna-se o modelo da
identificação, ao remetê-la para o caráter puramente diferencial do significante, a mercê de sua
inscrição numa cadeia de significação, na medida em que não está preso a nenhum significado.
Redução que é apontada por vários participantes da discussão, ao alertarem, dentre outras
coisas, para a heterogeneidade do corpo com respeito ao significante (cf. Idem:161, 167), bem
como para a necessidade de distinguir, no campo da linguagem, outros aspectos que não se
deixam captar pelo recorte saussureano do signo, como, na questão da comunicação e da
significação, a função constitutiva do não-comunicável e o não-designável, do silêncio (cf.
Idem:169).
Seguindo a mesma orientação apontada pelas incursões freudianas a respeito das origens da
sociedade e da subjetividade humanas (os mitos da horda primeva, do pai primordial e do pai da
pré-história pessoal), agora referenciadas na etnografia estruturalista, Lacan assinala o princípio
da interdição como porta de entrada à realidade por parte de todo novo membro da comunidade
humana, uma Lei Primordial pela qual a ordem do parentesco e a ordem das relações de aliança
se ajunta o sacrifício da relação sexual com a mãe e a irmã e obriga a buscar noutro grupo
familiar a mulher. O acesso do indivíduo à Lei e à ordem simbólica se dá por meio da interdição e
do sacrifício. O que significa que para constituir-se o sujeito já precisa perder ou distanciar-se
infinitamente da possibilidade de plena realização do gozo.
Assim, como assinala Freitas, "o Pai, portador do falo, símbolo da potência, estabelece com um
corte - por seu lugar como terceiro na estrutura mínima de relações sociais que supõe a
existência de um novo ser humano - a interdição do gozo infinito. Isto é, a interdição da relação
contínua, dual, da imagem especular, mãe e criança" (1992:48).
Para Lacan, então, tornar-se sujeito é transitar do registro do ser (ser o falo, realizar inteiramente
o seu gozo) ao registro do ter (assumir e definir um desejo em termos de demanda,
substitutivamente à pretensão de gozo infinito). Privado do seu-próprio, do livre curso de seu
gozo, o sujeito, no entanto, resiste à Lei, ao formular desejos que assumem o lugar do gozo,
para realizá-lo, ainda que nunca lhe sejam inteiramente correspondentes. O que inaugura a
deriva do sujeito e a dinâmica das identificações.
Por outro lado, o desejo que só existe na falta, no buraco que é constitutivo do sujeito, exige,
para sua satisfação, o seu reconhecimento por outro, o que quer dizer que somente pela
linguagem e pelo intercâmbio dos significantes que se apresentam como respostas à demanda
do sujeito, é que o desejo vem a existir. Para Lacan, se o sujeito é "determinado pela linguagem
e pela fala, isto quer dizer que o sujeito, in initio, começa no lugar do Outro, no que é lá que
surge o primeiro significante" (Seminário 11, apud Leite, 1994:38). A lógica do significante torna -
se, como defende Milner, uma ontologia transcendental, na medida em que "a propriedade de
qualquer ser que seja é de ser distinguível de um outro" ("Lacan e a ciência moderna", apud
Idem: 39).
Consequentemente, "[s]er na Linguagem ... vem a significar ser um significante para outro
significante. A entrada na Linguagem consiste, assim, em relações transformadoras que fazem
17
Na verdade, o significado passa a ser visto como apenas mais um significante, com pretensões de estabilizar o
sentido do seu correspondente do lado de cima da barra.
do indivíduo um significante na Linguagem, um significante para outro significante e, só por este
meio, representando um sujeito para outro significante" (Idem:54).
Entre os sujeitos, o Outro (a ordem simbólica, os outros); e entre o sujeito e o Outro, a hiância
representada pela perda da unidade ilusória do sujeito, a qual vem a ser preenchida, tentativa,
precaria e parcialmente, pelos múltiplos objetos de desejo. Ser falante, mas de uma fala que não
lhe é originária, mas encontra-se no lugar do Outro, o sujeito apresenta-se como dividido18. Entre
o sujeito (ser) e o Outro (sentido), na sua reunião, constitui-se uma zona de condensação que
não provem propriamente de nenhum, mas que possui elementos de ambos: o não-sentido,
domínio do inconsciente. Num segundo momento, porém, os significantes chamados a dar
sentido ao sujeito, nomeando seu desejo, falham e são substituídos interminavelmente, a
tentativa dos objetos do desejo de fazerem a junção entre o desejo do sujeito e o desejo do
Outro não recebe respostas "convincentes". A metáfora da reunião prossegue nas metonímias
da realização impossível do desejo. "Deste modo, o sujeito que se faz neste processo é um
sujeito nunca terminado, uma vez que a sua condição de ser é a ausência e a falta" (Idem:62).
Se o sujeito "suporta" esta falha estrutural do processo de sua constituição é pela intervenção de
um elemento mediador que procura recobrir a falta por meio de representações de consciência,
coerência e completude: a fantasia. Esta se interpõe ao inconsciente (sujeito dividido) e o objeto
perdido, como tentativa de costurar o hiato entre o desejo e sua realização, entre o sujeito e a
realidade. O domínio da fantasia é o da conjunção entre o imaginário e o simbólico. Por meio
dela o sujeito "se veste de representações, de imagens que o ligam à história propriamente dita"
(Idem:73) e que pretendem definir ou encontrar o Centro, a Origem, a Essência que a reunião do
campo do sujeito ao campo do Outro revelou inexistentes ou barradas.
A primeira destas oscilações remonta ao famoso ensaio de Lacan sobre o estágio do espelho na
formação do sujeito (cf. Lacan, 1977:1-7). A segunda pode ser encontrada, por exemplo, no
Seminário IX, em que Lacan retoma de Psicologia das Massas basicamente a segunda forma de
identificação, por regressão a um traço único (Einziger Zug), como fundamento das demais,
18
Célio Garcia, falando dos três momentos na formação da teoria freudiana do sujeito, identifica no terceiro deles (por
exemplo, em Cisão do eu no processo de defesa) a figura do sujeito cindido. Para descrevê-lo, Freud recorre à
metáfora do cristal: tal como este se parte sempre segundo linhas estruturais, revelando na rachadura o seu princípio
de articulação, também o sujeito se revela por suas rachaduras; onde estiverem estas, estará o sujeito. Para Garcia,
"[i]sto não quer dizer que o sujeito existia antes e que agora está partido, mas que ele só existe no momento em que
se parte" (1995:25-26). É a ruptura que abre a perspectiva de um saber retrospectivo sobre o sujeito. Por outro lado, a
18
percepção desta cisão (Spaltung) é possível ao sujeito, embora a tendência deste seja a renegar a castração, a
continuar a viver como se nada tivesse acontecido, costurando assim imaginariamente a fenda que insiste na sua
constituição (problemática que Lacan retomará na figura da fantasia) - cf. Idem:26.
passível que é de ser articulada à linguística estrutural de matriz saussureana, e de apontar para
a constituição do sujeito (cf. Lacan, s.d.).
“Pois tal é a discordância entre o eu e sua própria realidade que a maneira pela qual ele se
apreende, ao aparecer diante de si mesmo pela primeira vez, é inicialmente fictícia. O sujeito, em
primeiro lugar, se procura e se encontra, constituindo-se em alguma coisa radicalmente „outra‟: a
forma antecipada daquilo que ele não é, mas que não tem outra possibilidade senão a de crer que
é. (...) A imagem não é um instrumento: ela é esta imago na qual os latinos entendiam
primeiramente a estátua, a imitação, o retrato do ancestral, e depois, o espectro, a aparição. O que
vale dizer que ela está investida de desejo, mais do que de objetividade” (1991:117).
“Lacan reinterpreta toda a tópica freudiana a partir da sua própria: para aquém de um inconsciente-
efeito do recalcamento mítico [a primeira identificação de Freud, JAB], ele vê o inconsciente, a
princípio como o resto originário que tomba para sempre no inatingível, quando desta operação
primeira da alienação na forma e na presença da linguagem, e da refenda nas identificações e no
jogo do sistema simbólico da linguagem. O inconsciente não é mais, então, alguma profundeza,
mas sim esta superfície de face dupla, real do sujeito que só vem à luz sob a forma de suas
formações simbólicas” (Idem:122).
No Seminário sobre a identificação, Lacan explora em detalhe sua tese de que a questão
essencial aí é a da relação do sujeito com o significante, isto é, como, por meio de sua
identificação com um significante, o sujeito emerge na e pela ordem simbólica (o Outro) em
busca de reencontrar o objeto perdido. Partindo da fórmula cartesiana "Cogito, ergo sum", Lacan
polemicamente afirma que não existe suporte para a concepção tradicional filosófica do sujeito
19
senão em termos da existência do significante e seus efeitos (Lacan, s.d.:1:1, 5 ), e que na
tradição cartesiana, “jamais houve senão um único sujeito que fixarei, para terminar, sob esta
forma: o sujeito suposto saber” (Idem:11), que nada sabe do sujeito do inconsciente. Ao invés de
ser um "penso, logo sou", este sujeito é antes um que pensa que pensa. Assim, não somente a
certeza de si que a fórmula cartesiana traduz oculta um não-saber sobre o inconsciente, mas
esta visita à origem da filosofia moderna serve para discutir a impropriedade da unidade-a-si, ou
identidade-consigo do sujeito (classicamente asseverada na equação A = A), no momento em
que se introduz a questão do Outro, da linguagem e do significante na discussão sobre a origem
do sujeito.
Segundo este raciocínio, nos constituímos na e pela linguagem e a porta de entrada deste
processo é a fixação ao significante, isto é, fundamentalmente a partir de uma identificação com
um traço único do Outro, a ordem simbólica, a ordem da linguagem. “Trata-se de tomar, para
nós, a relação desta possibilidade que se chama identificação, no sentido em que aí surge o que
só existe na linguagem, e graças à linguagem...” (Lacan, s.d., 1:3, 12). E isto, num sentido que
vai muito além da afirmação clássica de que A = A, que fundamenta a concepção cartesiana de
identidade, introduzindo-se aqui o que Saussure dissera a respeito do princípio da diferenciação
como base da unidade: é a diferença que produz a identidade. Lacan: “Dito de outro modo,
diferentemente do sinal ... o que distingue o significante é somente ser o que os outros não são;
o que, no significante, implica esta função da unidade é justamente ser somente diferença. É
enquanto pura diferença que a unidade, na sua função significante, estrutura-se, constitui-se.
(...) [N]ada é propriamente pensável, nada da função do significante é propriamente pensável,
sem partir do que formulo: o um como tal é o Outro. É a partir disto, desta fundamental estrutura
do um como diferença, que podemos ver aparecer esta origem, de onde se pode ver o
significante se constituir, se posso dizer: é no Outro que o A do “A é A”, o grande A” (Idem:13). A
19
Dada a forma como está numerada a edição mimeografada do Seminário com que trabalhamos, somos forçados a
apontar, pela ordem, o número do volume, o número da seção (capítulo) e o da página.
que implica Autre, Outro, em francês - veja-se aqui o jogo de Lacan, irrepresentável em
português: o A que vem após a cópula significa o Outro. Se pudéssemos reescrever a clássica
fórmula filosófica da identidade como O é O, teríamos então o sentido do que Lacan aponta. Ou
seja, a fórmula da identidade é já uma definição da diferença.
A esta altura do argumento é que Lacan faz menção ao capítulo VII de Psicologia das Massas e
Análise do Eu, onde Freud apresenta as três formas de identificação, para dizer que a reflexão
feita até aqui sobre o significante diz respeito à segunda forma de identificação, regressiva, em
que o sujeito se identifica com um traço único, parcial do "objeto amado". O traço unário nada
mais é do que a entrada do significante no real, sob a forma de pura diferença (o significante é o
que não são os outros). O traço unário é inscrição.
Após salientar que as três identificações ali apresentadas não chegam a formar uma única
classe, Lacan reitera a primazia da segunda, na medida em que é por ela que se faz o vínculo
com a problemática da linguagem e do significante. Para ele, "no que concerne à função da
identificação ... o que se passa, passa-se essencialmente no nível da estrutura; e a estrutura ... é
o que introduzimos especialmente como especificação, registro do simbólico. Se nós o
distinguimos do imaginário e do real ... não se trata de uma definição ontológica, não são aqui
campos do ser que eu separo" (s.d., 1:5, 5). Trata-se de um campo definido pela experiência
psicanalítica, um artifício constituído pela descoberta freudiana.
Assim, a própria descrição mítica freudiana da primeira identificação aparece aqui refratada pela
discussão relativa à arqui-origem da inscrição no/pelo significante, à inscriptibilidade anterior ao
próprio da escrita fonética e que já marcaria a necessidade de vincular o sujeito a um lugar na
ordem simbólica (discussão que, diga-se de passagem, é notavelmente reminiscente das
posições de Derrida sobre a arqui-escritura e o [arqui-]traço, em Gramatologia ou em "Freud e a
cena da escritura", em Escritura e Diferença)20. Momento do qual só resta(m) traço(s), com os
20
"Se é do objeto que o traço surge, de algo do objeto que o traço retém, justamente, sua unicidade, o apagamento, a
destruição absoluta de todas essas outras emergências, de todos esses outros prolongamentos, de todos esses outros
apêndices, de tudo o que pode haver de ramificado, de palpitante ... ora, essa relação do objeto com o nascimento de
quais vai-se identificando o sujeito na esperança de reencontrar-se com o objeto perdido, esta
"origem" a que o inconsciente busca sempre retornar elude sempre. A expectativa de juntar
pensamento a pensamento, termo a termo, igualar A com A, fixar o idêntico entre o sujeito e o
objeto de sua identificação,
“é justamente isso o que faltará sempre: é que em toda espécie de outra reaparição do que
responde ao significante original, no ponto onde está a marca que o sujeito recebeu deste seja o
que for que está na origem do Urverdrängt, faltará sempre ao seja o que for que venha representá-
lo esta marca única do surgimento original de um significante original que se apresentou uma vez
no momento em que o ponto, o algo do Urverdrängt em questão passou à existência inconsciente,
à insistência nessa ordem interna que é o inconsciente, entre, por um lado, o que ele recebe do
mundo exterior e onde ele tem coisas a ligar: pelo fato de ligá-las sob uma forma significante, ele
só as pode receber em sua diferença, e é bem por isso que ele não pode de maneira nenhuma ser
satisfeito por esta procura como tal da identidade perceptiva se é isso mesmo que o especifica
como inconsciente” (Lacan, s.d., 2:7, 15).
Julia Kristeva relativiza a centralidade atribuída por Lacan ao significante como determinante da
identificação. Para ela, "[l]onge de ser uma simples assimilação do significante ou de esquemas
simbólicos, ela toca o real e o corpo, especificamente. O sintoma pode ser uma identificação que
se fez carne, em vez de submeter-se à exigência de identidade que a frustração e a palavra
ditam. Tal identificação é uma recusa de identidade: ela opta pelo gozo e denega o corte, a
distinção" (1994:48). No caso da paciente analisada por Kristeva, múltiplas, parciais e
simultâneas identificações fazem com que seu processo de identificação faça fracassar a própria
identidade!
Uma outra forma de expor a questão da identificação no pensamento lacaniano pode ser
encontrada em Slavoj Zizek (1992), na análise que este propõe do grafo do desejo, em suas
quatro formas superpostas. Zizek defende que só se pode compreender o grafo a partir do efeito
cumulativo de sua apresentação, partindo da formulação mais simples, que mostra o vetor de
uma intenção mítica, pré-simbólica ( ) cortando de trás para a frente o vetor da cadeia dos
significantes (S - S') e chegando ao sujeito ($); à segunda formulação, que explora as duas
intersecções entre os dois vetores, e com elas a questão das identificações imaginária e
simbólica; passando ao “Che vuoi?” do Outro que, ao assinalar a diferença entre a demanda e o
desejo do sujeito, recebe deste a resposta na forma da fantasia/fantasma ($ a); até alcançar
sua forma acabada, pelo cruzamento do vetor do desejo simbolicamente estruturado por um
novo vetor, o do gozo (jouissance).
algo que se chama aqui signo, já que ele nos interessa no nascimento do significante, é bem aí em torno do que
estamos detidos, e em torno do que não é sem promessa que tenhamos feito, se se pode dizer, uma descoberta - pois
acredito que é uma -: esta indicação de que há, digamos, num tempo, um tempo recuperável, historicamente definido,
um momento em que alguma coisa está aí para ser lida, lida com a linguagem quando ainda não há escrita, e é pela
inversão dessa relação, e dessa relação de leitura do signo, que pode nascer em seguida a escrita, uma vez que ela
pode servir para conotar a fonematização" (Lacan, s.d., 2:7, 7-8).
21
Grafo 1
Primeiro a retroatividade: o indivíduo é interpelado como sujeito quando, confrontado pelo Outro,
liga-se a um significante e, a partir dele, relê a si próprio, construindo uma unidade narrativa
sobre si a partir do significante com que se identifica. Este significante, o point de capiton
lacaniano, ao mesmo tempo em que costura o sujeito a um ponto da cadeia dos significantes, o
constitui em sujeito e interrompe o deslizamento do significado sob o significante, produzindo um
sentido do sujeito. Aqui já se encontra o mecanismo básico da transferência em ação,
produzindo a ilusão de que um certo elemento, que se fixou pela intervenção de um significante-
mestre, já estava presente desde o início determinando o desenrolar da história do sujeito.
Grafo 2
Segundo, a especificação dos dois pontos em que a intenção corta a cadeia significante:
inicialmente, o significante que é fixado, é a um só tempo apenas um significante e representa a
própria generalidade da ordem simbólica 22; no ponto do segundo cruzamento da cadeia
significante, o sentido produzido aparece como função desta última [s(O)], na medida em que ela
"amarra" o sentido do sujeito em torno de um dado significante. Há aqui, na segunda forma do
grafo, uma retroversão em relação aos pontos de partida (intenção ) e de chegada (o sujeito
barrado $): este último aparece na base direita do grafo (ponto de partida) e o resultado da
operação surge agora como I(O). A mudança de posição do sujeito corresponde, para Lacan, à
ilusão transferencial pela qual o sujeito a cada estágio torna-se "o que sempre-já fora", em
continuidade consigo mesmo, acreditando ser "o agente autônomo que está presente desde o
início como origem de seus atos" (Idem:104). Já o ponto de chegada refere-se à identificação
simbólica, ao fato de que o sujeito, ao ser interpelado pela ordem simbólica, encontrou ali um
significante, um traço (I), em torno do qual se organiza o sentido de sua vida: segundo Zizek, é
por meio deste procedimento que o significante "assume uma forma concreta, reconhecível num
nome ou num mandato que o sujeito toma para si e/ou que lhe é imputado" (Ibidem). Esta
21
As quatro versões do grafo apresentadas nas páginas seguintes são tomadas de Zizek, 1992:101,103, 111, 121.
22
Esta dialética universal/particular é aplicada à análise política nos diversos trabalhos de Ernesto Laclau reunidos em
Emancipation(s) [1996].
identificação simbólica se distingue da identificação imaginária, representada por uma linha
inserida entre o vetor do significante e a identificação simbólica, representando a conexão entre
o eu imaginário (e) e seu outro imaginário [i(o)], pela qual o primeiro enxerga sua identidade fora
de si mesmo, por assim dizer.
Estamos aqui na relação entre a identificação imaginária (eu ideal) e a identificação simbólica
(ideal de eu): a primeira é identificação com a imagem que representa "o que gostaríamos de
ser"; a segunda é identificação com o próprio lugar de onde estamos sendo observados, de
onde nos olhamos para parecermos apreciáveis, dignos de amor (Idem:105). Em nenhum dos
casos estamos diante de idéias como imitação de modelos, ídolos ou ideais. O traço em cuja
base se produz a identificação com outrem está geralmente oculto do sujeito, e nem sempre se
trata de um "lado bom" do outro, podendo ocorrer que nos identifiquemos precisamente com a
dubiedade, a impotência, a culpa ou o fracasso do outro.
Grafo 3
A terceira forma do grafo introduz a interrogação: "O que queres?" (Che vuoi?) e pretende dar
conta da necessária falha no processo de identificação. Após toda "costura" pela qual um
significante torna-se a chave de sentido do que o precedeu na cadeia significante, sobra sempre
algo, que se traduz na pergunta acima. "Tudo bem, isto é o que você está me pedindo, mas o
que é que você quer mesmo? O que o leva a pedir isso? Aonde você quer chegar?" A
persistência deste hiato entre a proposição e sua enunciação, entre a demanda e o desejo, é
que levará à fórmula da fantasia, à resposta do sujeito que pretende uma vez mais reequilibrar o
jogo. Nunca se pode saber se o que se afirma é o que se quer ou onde se quer chegar. Nunca
se pode garantir que a solução alcançada no processo de identificação, a junção constitutiva do
sujeito a um determinado significante, será suficiente para satisfazê-lo, será adequada para
descrevê-lo, será forte o bastante para detê-lo. Se ao encontrar seu lugar na rede intersubjetiva
das relações simbólicas, ao "descobrir quem é", o sujeito recebe um mandato, este jamais deixa
de ser arbitrário. Sua natureza puramente performativa faz com que esse mandato não possa
ser deduzido em referência aos atributos e capacidades "reais" do sujeito. Por duas razões: o
sujeito não sabe por que é assim, por que ocupa o lugar que ocupa na rede simbólica; o sujeito
está ao mesmo tempo aquém e além desta "missão". Mas isto não o impede de tentar responder
à questão e preencher o vazio entre a demanda e o desejo apontado pelo Outro. A fantasia é a
designação de objetos que venham a ocupar o lugar do desejo do Outro, desejo do que o sujeito
acredita ali se encontrar em sua forma "pura", como gozo pleno e imediato.
Grafo Completo
A última forma do grafo é aquela em que um novo vetor, o do gozo (jouissance) atravessa o
vetor curvilíneo do desejo pelo qual o "Che vuoi?" encontra resposta na fantasia. Este vetor vem
assim dividir o grafo em dois níveis: um nível do sentido, mais abaixo, e o do gozo, acima.
Enquanto o problema no primeiro nível é como a intersecção da cadeia significante com uma
intencionalidade mítica produz um efeito de sentido (o sujeito), passando pela retroatividade, a
retroversão e a identificação simbólica e imaginária, o problema do segundo nível é o que se dá
quando o próprio campo do Outro é perfurado por um fluxo pré-simbólico (real) de gozo, ou seja,
quando a rede do significante se mistura ao corpo. A resposta é a seguinte: "ao ser filtrado pela
peneira do significante, o corpo é submetido à castração, o gozo é evacuado dele, o corpo
sobrevive desmembrado, mortificado. Em outras palavras, a ordem do significante (o grande
Outro) e a do gozo (a Coisa como sua encarnação) são radicalmente heterogêneas,
inconsistentes; qualquer acordo entre elas é estruturalmente impossivel" (122). Mas sobram
alguns "oásis de gozo" em meio ao deserto da ordem simbólica, pequenas "zonas erógenas" do
corpo não submetidas ao Outro, mas de forma alguma meramente biológicas, naturais. Revela-
se aqui a falta do Outro, sua pretensão de deter o segredo do desejo do sujeito, de ser a matriz
do seu destino, de ser a fonte de sua sujeição.
Revela-se aqui a falha da estrutura. O gozo é o que atravessa a ordem simbólica, perfurando-a e
revelando a sua contingência, resistindo a toda simbolização, a toda tentativa de congelar a
deriva da significação, da identificação. Se assim não fora, só restaria ao sujeito alienar-se
radicalmente no Outro. Mas esta falta no Outro permite ao sujeito separar de vez o objeto do
Outro, negar que este possua ou controle a verdade do gozo, da plenitude, da totalidade. Não é
que o sujeito se perceba enfim, invulnerável, vitorioso. Ele apenas descobre que se não tem a
resposta para o vazio que o habita, tampouco a tem o Outro. Ele pode identificar-se, enfim, com
a falta no Outro, "atravessar a fantasia" e descobrir que não existe nenhum objeto sublime
aguardando o mais denodado dos nossos esforços de auto-superação ou abnegação.
Gostaria, enfim, de colocar somente mais um ponto. Octave Mannoni pondera que a dimensão
inconsciente da identificação nos coloca diante de duas circunstâncias: primeiro, a de que não é
possível se justificar a identificação, buscando explicar o seu porquê, só se precisa considerar
como se dá a identificação; e segundo, não há como ter acesso à identificação senão a partir de
situações de desidentificação, pelas quais o sujeito percebe/descobre/reconhece que esteve
identificado no momento em que (começa a) deixa(r) de sê-lo23. Isto torna relativamente sem
importância uma discussão que ocupa bastante espaço na teoria da identificação, a saber, se há
objetivamente uma pré-história ou identificação primária (cf. Mannoni et alli, 1994:174-75). O
processo de constituição do sujeito inclui sempre identificação e desidentificação: como não há
acesso originário à primeira, tomar consciência dela é já o início da segunda. Para Mannoni,
"Freud viu-se levado a conceber o eu como uma cebola composta de camadas sucessivas de
identificações. Mas, se é assim, é efeito também das desidentificações sucessivas" (Idem:176).
Aliás, falar de identificação, introjeção ou incorporação é utilizar-se de metáforas e dizer
identificação é anunciar uma multiplicidade de formas e situações irredutíveis a uma teorização
no singular. O privilégio dado por Lacan, por exemplo, à identificação com um traço do outro, não
pode, afirma Mannoni, estar na raiz de todas as formas de identificação e mais, deve mesmo vir
depois do movimento de desidentificação (Idem:178).
Constituindo seu ser na e pela linguagem, o sujeito humano é ao mesmo tempo descentrado e
dividido. Descentrado, porque se constitui no terreno do Outro, da ordem simbólica que o
precede e sucede, ao mesmo tempo em que lhe fornece o terreno onde vai "buscar" o que lhe é
"próprio", a realização dos seus desejos (substitutos para sempre inadequados e parciais da
plenitude do gozo). Dividido, porque constituído por uma dimensão ou instância que é a marca
do Outro no si-mesmo: o inconsciente.
A "descoberta" de que somos na linguagem nos proíbe de fazer coincidir o sentido realizado por
nós com nosso ser integral (origem ou destino), sonho narcísistico de onipotência do sujeito qu e
esquece-se de que entendemos o mundo e a nós mesmos por meio da linguagem, pela qual
também recebemos um nome e nos tornamos alguém que, no mundo, pode dizer "eu". Ligando à
questão do vínculo social, digamos que nosso pertencimento é uma das medidas de nossa
finitude, como insistiam os românticos e, em sua esteira, a tradição hermenêutica pós-
Schleiermacher: "se apenas podemos ser topicamente, fragmentariamente, parceladamente, no
desdobrar-se da linguagem ..., sujeito é sempre uma função da linguagem com a qual nos
identificamos" (Soares, 1994:53). Em outras palavras, "É finito o ser que só existe
representando-se, pois sua extensão correspondente [sic] a suas realizações de linguagem, por
definição descontínuas e limitadas, submetidas a lógicas extrínsecas e aos horizontes culturais
23
Outra possibilidade admitida por Mannoni se refere à identificação com um papel (por exemplo, no caso da leitura
de um texto literário ou da performance em/assistência a uma peça teatral ou filme). Aí, estar identificado implica em
saber que não se é o papel, a fantasia ou a indumentária, e a desidentificação não tem nem o efeito nem a função de
uma situação em que o sujeito se surpreende consigo mesmo ou se descobre partilhando traços de um outro. Seria
um caso de identificação irônica, guardando distância de si mesma, embora seja sempre possível imaginar que
alguém "se deixe levar" pelo jogo e acabar retendo um traço que seja dos personagens ou situações literários ou
dramáticos.
em que emergem as linguagens que lhe servem de morada. O ser só se realiza ... situando-se,
isto é, fazendo-se sujeito de uma visada particular, circunscrita por um horizonte específico,
balizado por concepções e valores herdados de tradições também específicas" (Idem:54).
O lugar do Outro resulta, porém, de múltiplas articulações. Não se pode reduzi-lo à dimensão da
linguagem como sistema de diferenças regulado pela substituição e pela associação. Como diz
Freitas, a despeito do seu vezo althusseriano, "o percurso do significante - o dinamismo do
inconsciente - organiza um espaço heterogêneo, lugar da transversalidade da função simbólica e
das relações de sua produção, que são, ao mesmo tempo, condição de reprodução das relaçõ es
sociais tornando-se uma condensação de múltiplas problemáticas e ponto de partida para várias
possibilidades de trabalho" (1992:104). É pelos vãos e cavilhas desta transversalidade que nos
parece legítima a exploração de questões levantadas pela teoria psicanalítica - no caso, sobre a
identificação - à luz de uma problemática em que discurso, antagonismo e ideologia se
entrecruzam, deixando emergir o sujeito nas frestas, na falha da estrutura, como resposta a uma
situação de deslocamento, como testemunha de uma resistência a deixar-se simplesmente
manietar pela onipotência do Outro, mas também como sujeito marcado pela divisão e pela
ambiguidade entre identificação (nos registros do imaginário e do simbólico) e sua
contingência/impossibilidade (registro do real). No trabalho de Laclau, como veremos no capítulo
3, encontramos uma tentativa particularmente fecunda de realizar esta articulação.
No campo das ciências sociais, o lugar deste Outro esteve tradicionalmente subsumido à
problemática da ideologia. Naturalmente esta afirmação é meramente aproximativa, saltando
logo à vista de qualquer analista atento as diferenças de perspectiva que se abrem quando, no
caso, a ideologia é vista como um mecanismo deformante pelo qual o processo identificatório só
poderia ter lugar pela alienação do sujeito em relação ao seu verdadeiro ser. Apreensão
distorcida da realidade, a ideologia seria um estorvo à plena expressão da identidade do
indivíduo, classe, nação ou raça. A névoa ideológica precisaria ser dissipada pela luz do
conhecimento (científico), de forma a emancipar aqueles agentes. Com isto, o Outro
desapareceria para que o Si-Mesmo finalmente se encontrasse.
Noutra ponta, a ideologia surgia como expressão de um sujeito soberano, numa problemática
intencionalista. Senhor de um querer-dizer, o sujeito comandaria a arregimentação dos recursos
linguísticos e simbólicos para alcançar seja uma visão coerente de mundo, seja objetivos
instrumentais específicos. Neste caso, a ideologia não teria necessariamente um caráter de falsa
consciência, mas poderia ter o sentido descritivo, neutro, de uma representação do mundo,
elaborada pelo sujeito.
Neste particular, mesmo o enorme avanço produzido pela articulação, na análise do discurso
francesa, dos campos da linguística estrutural, do marxismo althusseriano e da psicanálise,
revela-se ainda limitado. Por um lado, é perceptível o esforço para se desvencilhar do modelo da
falsa consciência e da problemática intencionalista, como testemunha o trabalho de Michel
Pêcheux (cf. 1990a; 1990b, 1988). Por outro lado, a refração do estruturalismo em moda no
período (final dos anos 60) resultou numa concepção em que o Outro reina impassível e
despoticamente sobre o sujeito, fazendo com que apenas o caráter fictício da unidade e
autonomia deste último fosse estabelecido. Assim, o sujeito estaria condenado à fantasia ou ao
fechamento da estrutura, ainda que apenas "em última instância" 24.
A articulação do Outro em termos de sua própria falha ou falta, bem como da transversalidade
que defendi acima, não era ainda possível nem mesmo na análise do discurso, em sua primeira
fase. Num segundo momento do trabalho de Pêcheux se começa a perceber os limites dessa
rígida idéia do Outro (não barrado, "economicizado"). Mas é somente numa terceira fase da
disciplina, testemunhada pelo próprio Pêcheux (cf. 1990c; 199x; v. tb. Maingueneau, 1989;
24
É importante lembrar que a teoria althusseriana da ideologia pretende exatamente promover esta aplicação da
hipótese psicanalítica do inconsciente ao campo do marxismo (cf. Althusser, 1985) e que Pêcheux assume para si a
tarefa de elaborá-la de forma mais refinada numa teoria do discurso (cf. Pêcheux, 1988).
Courtine, 1981), que a produtividade do diálogo entre psicanálise e análise do discurso revela -se
mais promissora a partir do momento em que, na obra de Pêcheux, o conceito de estrutura,
pensado como o Outro inteiramente determinante do sujeito, passa a comportar uma falha, um
furo, pela entrada em cena da idéia de real lacaniana, que é tributária da tese freudiana da perda
irremediável do acesso à Coisa-em-si (das Ding), o qual instaura a errância do desejo que é uma
metáfora da trajetória do sujeito. A linguagem, epicentro da ordem simbólica, deixa de ser
pensada como "rolha do furo do real" e passa a ser vista também como produtora deste furo:
falha do simbólico de resolver em definitivo o problema do sentido e do desejo, de deter a
errância do sujeito em busca do gozo perdido. O Outro é marcado pelas interrupções da
singularidade (sujeito, acontecimento), de forma que, na última fase do trabalho de Pêcheux,
passa-se desta idéia de um Outro completo, buscada nas categorias de estrutura na sociologia
marxista e de código da semiologia/linguística estrutural, reavendo-se "o real do inconsciente na
teoria", e chegando-se a uma conceituação do Outro como esburacado, barrado, falhado (cf/.
Leite, 1994:22-28).
Desta forma, a ideologia pode ser afirmada como uma dimensão da realidade e da constituição
do sujeito, correspondendo de certa forma ao mandato (ideal) de que fala Zizek, bem como
impedindo todo acesso imediato ao real, sem passar pelo corpo opaco da linguagem e das
representações. Não exatamente o conteúdo de uma ideologia particular (que já é da ordem das
identificações imaginárias) é o que se descreve aqui. Por outro lado, a análise e crítica dessas
ideologias concretas beneficia-se do aporte psicanalítico (cf. Zizek, 1996).
A questão implicada na fantasia social (ideológica) é "construir uma visão da sociedade que
realmente exista, que não seja cindida por uma divisão antagonística, uma sociedade em que a
relação entre suas partes seja orgânica, complementar" (Zizek, 1992:126). A dimensão crítica
correspondente a esta pretensão não revolve tanto em torno da necessidade de interpretar a
fantasia, mas de atravessá-la, revelar que por trás dela nada se coloca, que a fantasia tenta
esconder precisamente este "nada". A fantasia é o que pretende ocultar o antagonismo
constitutivo da sociedade e da identidade. Criticar a ideologia, em outras palavras, é "detectar,
num dado edifício ideológico, o elemento que representa nele sua própria impossibilidade"
(Idem:127), o sintoma que ele busca ocultar, exorcizar, a fim de ostentar a pretensão de
estabilidade, completude e realização. Este elemento, o sintoma social, indica "o ponto em que o
antagonismo social imanente assume uma forma positiva, irrompe na superfície social, o ponto
em que se torna óbvio que a sociedade 'não funciona', que o mecanismo social 'racha-se'"
(Idem:127-28). Ao atravessar a fantasia, o que se requer é que nos identifiquemos com o
sintoma, reconheçamos que nos "excessos" e absurdos a ele atribuídos está a verdade sobre
nós próprios; não se tratam de meros desvios ou aberrações do normal, mas produtos
necessários do sistema.
O
esforço de exposição da concepção psicanalítica da identificação feito no capítulo anterior
deixou um resto não enfrentado, mas indicado logo na introdução, relativo à propriedade
da articulação da problemática do sujeito ali implicada com questões de identidade e
subjetividade coletivas, tal como comumente se faz no pensamento político e nas ciências
sociais. A comum recusa da idéia clássica do sujeito centrado, autônomo e transparente a si,
domínio do Mesmo, projetando-se em direção ao mundo exterior onde os outros lhe aparecem
como objetos a serem conquistados e/ou conhecidos, não é suficiente para instaurar uma
coextensividade das categorias envolvidas em cada campo. Primeiro, porque até mesmo a
recusa referida é modulada de diferentes maneiras. Segundo, porque entre a psicanálise e as
ciências sociais já se interpuseram outros domínios ou problemáticas - como as da linguagem e
do discurso - que se funcionam como ponto de encontro possível (por exemplo, entre a
linguística e a antropologia estrutural, a leitura lacaniana de Freud, o campo da teoria do discurso
e o marxismo althusseriano), não traduzem nenhuma unidade ou correspondência dos conceitos,
nem muito menos a solução para o diálogo entre psicanálise e política no que se refere à
questão da identidade.
Há, portanto, um trabalho, ainda que tentativo e operacional, a realizar. Neste capítulo,
procurarei aventar alguns dos problemas enfrentados pela recepção da problemática
psicanalítica na política e vice-versa, de forma a poder, em seguida, voltar à questão da
identidade e da constituição de sujeitos coletivos que norteia toda a preocupação deste trabalho.
Em assim fazendo, espero poder introduzir uma série de argumentos preparatórios àquela
discussão, relativos à relação entre o discurso da psicanálise e o da política, seus pontos de
aproximação e de recuo, especialmente tendo em vista o debate contemporâneo referenciado na
25
"crise dos paradigmas" e num certo "recuo do político" .
Uma das objeções - e certamente uma das dificuldades - levantadas pela tentativa de articulação
que se propõe neste ensaio diz respeito à heterogeneidade conceitual que se abriga sob a
"mesma" designação de certos conceitos nos dois campos. É uma mesma a concepção da
linguagem que aparece na psicanálise e na linguística? De que sujeito se trata em ambos os
casos? Como se articulam estas concepções? O que ocorre quando se fazem tentativas de
"compor" ou "intervir" num campo a partir de outro, como faz, por exemplo, Lacan em relação à
linguística saussureana e jakobsoniana, ao afirmar que "o inconsciente está estruturado como
uma linguagem"? Que preço vem a ser pago pela homologia entre inconsciente e linguagem a
partir da primazia do significante, por exemplo, em relação à questão do corpo?
No caso da análise do discurso francesa, que tenta pensar o que fora excluído na linguística
estruturalista, a saber, a questão do sentido, correspondendo à semântica na clássica repartição
das áreas da linguística, levando-a à especificidade do discurso, como a solução encontrada
num primeiro momento (sob hegemonia do estruturalismo) se revelará insuficiente e inaceitável
em seguida (ao ser contaminada pelos ventos desconstrutivistas)?
Não entendo a tarefa por realizar como precisando postular como fundamento a teoria
psicanalítica do sujeito, ou mesmo de privilegiá-la como "definição operacional" dos conceitos.
Trata-se, é certo, de pensar o processo de formação de atores coletivos como efeito de
precipitação de uma série de atos identificatórios, imaginários no que diz respeito à "iniciativa"
dos sujeitos, simbólicos no que diz respeito à sua inserção junto a uma tradição, cultura ou
discurso independentemente da vontade de qualquer dos "componentes" (indivíduos ou grupos)
desta forma compósita que chamamos de ator coletivo, não estamos propondo uma "psicanálise"
do sujeito social. O que é preciso, contudo, é delimitar alguns critérios que possam
simultaneamente dar conta deste "chamado" 27 que nos leva a responder sim à tradição
psicanalítica (o que só é possível, se a identificação é inconsciente, como alerta Mannoni, num
momento de desidentificação), e marcar nossa diferença, impedindo a nossa diluição no campo
desse outro. Não, a psicanálise não detém a resposta final ao nosso problema de pesquisa.
No que diz respeito à natureza do "chamado", posso dizer que uma tripla injunção me leva a
responder sim a esta concepção do sujeito: primeira, a de "acertar contas" com a formação
estruturalista recebida por muitos cientistas sociais brasileiros formados nos anos 70 e início dos
80, massivamente calcada no marxismo e, portanto, fixada na determinação inconteste da
estrutura; segunda, a de dar sentido à crise da fantasia de construir a sociedade democrática a
partir das bases que animou boa parte da esquerda não-comunista nos anos 80, calcada na
representação voluntarista do "ser sujeito da própria história"; terceira, a de atravessar a fantasia
da nossa relação irresolvida com a Democracia, a Igualdade e a Liberdade, num contexto em
que já não mais acreditamos que qualquer projeto concreto as encarne inteiramente, ou com
elas se confunda, nem mesmo esperamos delas que nos redimam do abismo desta errância que
nos impulsiona para o de onde nunca viemos e onde não sabemos se chegaremos: o Paraíso.
Nossa adesão a estes objetos da nossa falta reconhece que eles não têm a resposta para nossa
pergunta, mas não podem senão receber uma resposta, sempre contingente e ultimamente
26
Esta é precisamente a questão que persegue Derrida desde seus primeiros escritos sobre o estruturalismo e a
psicanálise, até seus trabalhos sobre a problemática da iterabilidade (cf. 1967:9-49, 409-28; 1991a:33-63, 349-73;
1991b; Burity, 1995).
27
Este chamado prévio a toda resposta específica, esta dívida/responsabilidade para com o outro, é tematizado de
formas diferentes seja por Lacan, seja por Levinas (cf. 1993; Critchley, 1992; 1996), seja pelo último Derrida (cf.
1995:255-87; Van Haute, 1996).
28
No caso de Laclau (cf. 1990:93-96), este novo campo é chamado de “pós-marxismo” e articula fundamentalmente a
categoria lacaniana da falta às questões do desenvolvimento desigual e combinado e da hegemonia, no discurso
marxista: “o sujeito hegemônico é o sujeito do significante, que é, neste sentido, um sujeito sem um significado”
(Idem:96). A aproximação entre (pós-)marxismo e psicanálise se dá, pela coincidência entre a economia e o
inconsciente, em torno da “lógica do significante como lógica da irregularidade [unevenness] e do deslocamento,
coincidência fundada no fato de que essa última é a lógica que preside a possibilidade/impossibilidade da constituição
de qualquer identidade” (Ibidem). Esta operação foi discutida por mim num outro trabalho, a que remeto o leitor
(Burity, 1997).
impossível, mas nem por isso frágil e improvável, porque passível de mobilizar energias
coletivas.
Quanto à marcação do espaço que separa a psicanálise da política no momento mesmo em que
busco me articular com ela, ressalto três pontos: 1) não identidade, mas semelhança de família
entre os conceitos que circulam pelos dois campos - contingência do vínculo entre conceitos
"idênticos"; 2) não apropriação, nem reprodução dos "mesmos" termos: como reza a sabedoria
da análise do discurso, as palavras mudam de sentido ao migrarem de uma formação discursiva
a outra - o deslizamento do sentido permite um mínimo de semelhança em meio à alteração, e
isto é tanto da ordem do significante quanto do significado (ponto em que a crítica do signo e a
análise da iterabilidade em Derrida separam-se resolutamente de Lacan, ainda que apenas pela
resistência em substituir a idéia unificada do signo [significante + significado] pela da primazia do
significante); 3) a tentativa de manter a pureza dos conceitos pressupõe que estes se tenham
constituído plena e previamente ao processo de articulação, o que exigiria definir uma espécie
de controle de fluxo de (i)migração na fronteira dos dois territórios - problemas quando a
própria fronteira está em litígio, quando o dentro e o fora são indecidíveis em seus próprios
termos e remetem a uma decisão política, isto é, não ditada pela lógica interna do processo de
aproximação.
As seções a seguir tentam ilustrar estas questões. A idéia é que elas ajudem a situar as linhas
de força do processo de recepção de uma problemática psicanalítica no domínio de uma teoria
da formação de atores coletivos que não está, como disse acima, referenciada na psicanálise
como fundamento, porque, de um lado, não reconhece a primazia do fundamento (gesto
classicamente metafísico), mas, de outro, assume a transversalidade como marca da dinâmica
de um campo de práticas articulatórias. O que aproxima a psicanálise da política não é assim,
nem a supremacia de uma sobre outra, nem a existência de uma coincidência (ou intersecção)
de seus conteúdos, mas a dupla possibilidade de que sejam submetidas à "pressão" de um
terceiro, em relação ao qual se achem na condição de companheiras de viagem, e de que
reconheçam a estrutura cindida que caracteriza a ambas (estrutura que é simultaneamente
pretensão de domínio/determinação e impossibilidade de contenção de toda a multiplicidad e que
se aninha sob sua "jurisdição", mas que também pode "pertencer" a outras). A economia da
proximidade e do afastamento não diz respeito ao choque de limites rígidos e inalteráveis, mas
ao vai-e-vem do antagonismo e da pluralidade, que ameaçam a cada momento revelar a
contingência e a impossibilidade da estabilização alcançada até ali. A resistência do singular, do
acontecimento, em relação à estrutura é a marca comum destes campos fraturados, condição de
possibilidade para o seu diálogo e mútua deformação.
Brazil (1995) procura fazer uma ponte entre a psicanálise e a política através de uma
aproximação com o marxismo, via Fredric Jameson (O Inconsciente Político). Propondo-se a
expandir o conceito freudiano de inconsciente para incluir “um princípio de alteridade e a
determinação do símbolo”, por remissão a Lacan (Idem:19), e o conceito marxista de praxis para
dar conta da importância da significação (o que Lacan chama de praxis, isto é, “qualquer ação
realizada pelo homem que o põe em condição de tratar o real pelo simbólico” [apud Idem:20]),
Brazil apóia-se na elaboração de Jameson sobre o inconsciente político. Ou seja, a produção,
por meio de uma prática interpretativa, de uma sensibilidade para o intercruzamento das pu lsões
com as condições materiais da vida em sociedade (economia, cultura, história), que revelaria o
caráter do texto como ato simbólico e o relacionaria aos horizontes político, social e histórico (cf.
Jameson, 1988:17-102):
“Se partimos do pressuposto de que todo poder é basicamente imaginário, e se associa à „paixão
pelo poder‟ que convoca a pulsão de destruição, mas deixando à violência, como faz Freud em
Totem e Tabu, um papel fundador, a se colocar na origem, antes do que chamamos de cultura,
esta interpretação da psicanálise, que denuncia a ambição de poder se realizando no plano do
simbólico, só se sustentaria porque este poder imaginário - o poder dos deuses e das leis sagradas
- associado a uma culpabilidade coletiva, é logicamente anterior às formas positivas de „exercício
do poder‟. Estas formas utilitaristas, pragmáticas, encarregadas de reprimir corporal e efetivamente
os transgressores, se exercem na „ordenação‟ do simbólico e dão ao que a psicanálise chama de
„repressões secundárias‟ um valor de estarem fundando a organização social, hierarquizando a
sociedade sobre o pressuposto da relação dominador/dominado, sobre o que já é uma organização
de forças que opõem o instituído por uma coletividade aos anseios individualizados” (Brazil,
1995:26).
A psicanálise em extensão visualizada por Brazil tem esta função de denunciar as pretensões
de fundar o poder e a ordem no ajustamento/repressão entre pulsões e cultura, e isto se aplica
tanto aos projetos “perversos” de poder (as ideologias?) quanto aos “benignos/altruístas” (as
utopias?). A ambos, o autor chama de “ideologias do desejo”. O gancho entre a psicanálise e a
política estaria na produtividade do vínculo entre inconsciente e o político numa formulação como
a de Jameson. Assim, “podemos atribuir ao inconsciente, que deixa de ser individual ou coletivo
para se colocar na dimensão da intersubjetividade [concebida à maneira de Habermas - cf.
Idem:29-3329], dando ao „político‟ - referido à ação como um „saber prático‟, um „saber-fazer‟ que
pode transformar a realidade - o sentido de produzir significações que escapam à reiteração dos
significados da „falsa consciência‟” (Idem:28). O que recoloca um projeto hermenêutico efetuado
por um sujeito interpretante ciente (?) da determinação pelo inconsciente e pela história, como
propõe Jameson.
Assinalando que a psicanálise freudiana não construiu uma teoria da política e do poder, o autor
concentra-se, como Brazil, no descompasso entre as questões da governabilidade e da
regulação do poder, por um lado, e o caráter multipolar e centrífugo do desejo e das pulsões que
movem os sujeitos. Não há como evitar a impressão de uma oposição entre sociedade e
indivíduo, situado o saber da psicanálise no segundo pólo. O que ele acrescenta é que, em
Freud, particularmente, a tematização da política e do poder não constitui sistema e que passa
por diferentes fases de elaboração, pontuando a inflexão causada pela nova concepção que
Freud passa a ter da pulsão, a partir de 1913/15. O destaque aqui fica na leitura crítica feita por
Freud do estalinismo, especialmente quanto à impossibilidade de se incluir num projeto político
toda a diversidade de desejos (e concepções de felicidade) individuais bem como de se esperar
pelo altruísmo das pessoas, pela sua desistência do gozo em função do grupo maior ou da
sociedade (Idem:49-55).
29
- A remissão ao saber-fazer é referenciada a uma prática interpretativa de caráter intersubjetivo e performativo, que
Brazil vai recolher na teoria retórica/da argumentação de C. Perelman e na teoria do agir comunicativo de Habermas,
a fim de fundar uma “política” ética e crítica, que desmistifique as ideologias do desejo. En passant, o autor anota que
a ética discursiva habermasiana é insuficiente para dar conta das “situações extremadas - como a fome, a miséria, a
pobreza do Terceiro Mundo” (Brazil, 1995:32), em que considerações de ordem propriamente políticas são
necessárias e urgentes. Para uma análise comparativa de Lacan e Habermas, cf. Dews, 1996.
3. Psicanálise e a crise do discurso totalizante da Política: reemergência da
questão da subjetividade
Para Birman, os movimentos sociais de fins dos anos 60 contribuíram para quebrar o discurso
totalizante da política, pelo qual uma determinada prática social (como a psicanálise) é julgada
em termos de sua importância e contribuição efetivas para a mudança política (revolucionária).
Os movimentos chamaram a atenção para a especificidade de questões que não se deixavam
resolver ou tematizar pelo discurso totalizante do engajamento político: "A questão destes
movimentos sociais não se coloca como sendo a conquista do aparelho do Estado, mas a da
busca de reconhecimento de suas diferenças sociais, éticas e sexuais, isto é, da afirmação da
legitimidade destas diferenças, para que a posse destes emblemas pelos agentes sociais não
implique a diminuição do seu valor social" (1994:98). Assim, a indicação da existência de uma
multiplicidade de lugares onde as lutas de poder se dão descentra a imagem da política como
dirigida exclusivamente à posse ou transformação do poder estatal. Como corolário, colocava-se
a necessidade de enfrentar a "politicidade" daqueles espaços, antes reservados geralmente à
esfera do privado, ou subordinados às flutuações das lutas políticas no âmbito estatal. Neste
contexto, a obra de Foucault, contemporânea destes desenvolvimentos, cobra toda sua
relevância.
"se para o pensamento freudiano o sujeito se constitui através do outro e a partir do outro -
enquanto este é o intérprete de seus movimentos pulsionais originários, de maneira que a
subjetividade se funda efetivamente como um sujeito-interpretação -, a ordem da cultura estará
presente na construção de qualquer subjetividade. Desta maneira, o sujeito se constitui como ser
de conflito entre as ordens da natureza e da cultura, tendo que articular para a sua fundação as
demandas destas séries contrapostas. (...) Enfim, se esta tese não define com clareza uma política
psicanalítica freudiana, ela implica, contudo, afirmar incisivamente a impossibilidade de harmonia
absoluta entre o sujeito e a cultura, relação sempre destinada ao conflito para o sujeito" (Ibidem).
Foi então a ruptura da hegemonia stalinista no marxismo oficial e a emergência dos movimento s
sociais que recolocaram em evidência a questão da subjetividade e da diversidade de formas de
enfocá-la politicamente.
Outra tradição marxista faz um diálogo com a psicanálise pelo qual esta é positivamente vista, só
que enquanto instrumento de crítica política, como discurso desmistificador da falsa consciência
(cf. Idem:103-06). Reich e Fromm são as principais referências aqui. O contexto inicial é o da
ascensão do fascismo nos anos trinta, e a psicanálise é chamada a tornar-se um momento da
teoria da ideologia que dê conta simultaneamente das razões da aceitação da opressão por
parte dos oprimidos e revele a alienação destes e a falsidade do discurso dos dominantes. No
entanto, por esta valorização a psicanálise paga o preço da sociologização de seus conceitos e
da exclusão ou abandono daqueles que remeteriam a aspectos ideológicos do pensamento
freudiano, imprestáveis para a prática política transformadora (ex. o conceito de pulsão).
Este reducionismo é questionado por autores da escola de Frankfurt, que desfazem a relação
direta entre ideologia e "caráter", ao mostrar a possibilidade de que diferentes ideologias
produzam a mesma estrutura de "personalidade" (Adorno, Horkheimer). O que se mantém é a
visão instrumental de que a psicanálise serve para fazer a crítica da sociedade unidimensional e
massificante (ex. Marcuse), embora o ganho seja o de colocar a subjetividade como elemento
importante do questionamento da ordem vigente.
Este "além do eu" corresponde ao supereu freudiano, que "se origina não de uma identificação
com a lei, mas numa identificação com os representantes da lei (pais, mestres, etc.). Portanto, a
lei nunca está diretamente presente a nós" (Idem:193). Nós só temos acesso a ela através de um
relato mítico (como faz Freud em Totem e Tabu, somente que ali seu empirismo o leva a buscar
correspondências diretas muito rapidamente). Um paralelo com Heidegger serve a Van Haute
como ilustração do que está em questão aqui: que a culpa primordial não diz respeito a nenhum
resvalo moral diante do outro, nem prescreve qualquer plano de conduta definido que garanta a
boa vida. Ela precede toda culpa moral. Diferentemente de Heidegger, porém, para Freud (e
Nancy), postar-se diante de si próprio como mortal está intimamente ligado a responder a um
chamado de outros, da "comunidade". A experiência da finitude está associada à origem da
comunidade. A culpa é uma chamada à atenção para com o infundado e o indefinido de toda
comunidade, o fato de que esta é finita e contingente, de que ela não pode ser imanente, isto é,
o princípio e o fundamento de si mesma. O chamado - e a resposta a ele - não procede de um
sujeito, mas o encontra sempre já lançado aí. A esta responsabilidade prévia a toda
responsabilidade específica (moral) que, juntamente, com a lei, se perde num passado absoluto,
30
No capítulo10 de Psicologia das Massas, Freud deixa clara não somente esta preocupação com o princípio básico
da formação do grupo (a relação entre líder e massa, ocupando o primeiro o lugar do ideal de eu entre os membros da
segunda), mas ainda a idéia de que todo grupo/massa retoma/dá continuidade a traços da horda primitiva, uma
massa relativamente amorfa, dirigida por um chefe (postura que o leva, como se sabe, a recusar a tese de que os
seres humanos são gregários por natureza) - cf. 1976:155-61. Ali, se lê, por exemplo, que “o grupo nos aparece como
uma revivescência da horda primeva” (Idem:156).
se opõe precisamente o totalitarismo ou o imanentismo, ao procurar fixar a essência da
comunidade na ação ou percepção privilegiadas do líder (individual ou partidário).
A questão aqui é até que ponto esta imagem da horda 31 não é uma ilusão retrospectiva a
respeito da subjetividade moderna, que não se aplicaria a formações sociais pré-capitalistas ou
pré-modernas, onde opor-se à massificação e à coletivização simplesmente não era uma
possibilidade atual ou não se referia a processos históricos concretos. Seria somente na
modernidade que esta questão emergiria, de forma que o animal de horda é, não primitivo, mas
moderno, e constitui uma possibilidade ao lado do animal de massa. Isto, Birman de certa forma
confirma ao afirmar, em outro trabalho, que “a constituição do sujeito de desejo teve como
condição histórica de possibilidade a constituição do sujeito do direito. Como sabemos, o sujeito
do direito se constituiu na modernidade...”, ou ao dizer que “o sujeito do desejo não é uma
substancialidade, mas uma construção histórica ancorada nos fundamentos da modernidade”
(1995:165, 166).
Birman abre uma de suas análises sobre a relação entre psicanálise e poder, asseverando que
"no discurso freudiano o poder é uma instância simbólica e um lugar real que está no
fundamento da constituição do sujeito, pois é face ao poder que o sujeito primordialmente se
ordena e se desordena seguidamente para a produção de sua singularidade" (1994:111). Há
assim uma exterioridade que impede o sujeito de ser pura auto-referência, consciência de si (no
sentido cartesiano ou no da psicologia clássica) ou de se afirmar pela ascese e pelo diálogo
íntimo com Deus como eleito e redimido (no sentido protestante). Exterioridade que não se
reporta apenas ao mundo das coisas e objetos, que medeiam entre o sujeito e o seu desejo, mas
também ao Outro. Outro que, por sua vez, é a ordem da linguagem e o polo dos diferentes
outros sujeitos e que é constitutivo do sujeito.
Num segundo registro, o mesmo sujeito constituído por esta exterioridade que remete ao poder
(ainda mal determinado no texto em questão), vive intensamente a contradição entre sua
singularidade e a indistinção entre os sujeitos que é produzida por qualquer ordem que os
abarque. Ao fixar-se (por adesão, recrutamento, interpelação, imposição, etc.) num sistema
qualquer, o sujeito sofre a tensão entre castrar sua singularidade e afirmar-se como diferente.
Neste momento, a contradição dá lugar ao paradoxo de uma insurgência ou contraposição ao
poder sem o qual, não obstante, não haveria sujeito (Idem:112). Se é impossível separar, desta
31
- Imagem que Freud, em Totem e Tabu, toma de empréstimo a Darwin (Birman, 1995:70), para fundamentar a idéia
de que o poder político resulta de uma solução para o problema do monopólio do gozo. Nele, por meio do parricídio,
se reinstala a diferença entre o pai e os filhos, agora em termos da figura ausente do pai (o totem), assegurando a
associação de iguais que constitui a comunidade política por meio do interdito à soberania absoluta por parte de
qualquer um.
forma, os registros do sujeito e do social, o mesmo se pode dizer sobre o sujeito ser inteiramente
absorvido pela sociedade e pela cultura. O que se instaura assim é uma tensão irresolvível, o
"mal-estar" que introduz o trágico na experiência humana e social e aponta seja para a
incompletude do sujeito seja para a da sociedade. Esta experiência do trágico e do impossível é
bastante enfatizada no discurso freudiano e se dirige contra projetos de massificação ou
normalização social, quer inspirados em ideais altruísticos, quer movidos por concepções
totalitárias.
Na segunda teoria freudiana das pulsões (ex. Além do Princípio do Prazer), a pulsão é vista
fundamentalmente como pulsão de morte, isto é, como excitação tendente à descarga imediata e
total (e não meramente dirigida à minimização do desprazer). A efetivação irrestrita da pulsão
levaria o corpo pulsional à morte antes mesmo que se constituísse como sujeito. A constituição
do sujeito exige uma interrupção e deslocamento da lógica da pulsão, a qual é realizada pela
intervenção do Outro, oferecendo ao corpo pulsional objetos de satisfação que possam refratar
sua excitação fixando-a como desejo (por definição irrealizável). Assim, "a satisfação é o que
permite a constituição do sujeito como desejante, tendo como fundo a iminência da morte
produzida pela descarga pulsional" (Idem:168).
Como já vimos, o sujeito nasce como "perda" ou "falta de" e procurará, durante toda a sua
existência, (re)encontrar a completude que o corpo materno representara. E esta existência
estará pontuada por desvios, interditos ou fracassos que ora traduzem a finitude e a
incompletude do sujeito, ora manifestam o "limite intransponível para a onipotência do gozo na
descarga imediata das pulsões" (Idem:127), a percepção da figura do pai como representação
da ordem simbólica, interpondo-se entre o sonho de completude (corpo materno) e o sujeito.
O Outro e a ordem simbólica, portanto, produzem um efeito estruturante do qual advém o sujeito
e que lhe cobra o preço de adiamento da realização total do desejo e da mediação simbólica
pela qual descobre quem é e o que quer:
"A dívida simbólica é o que possibilita que as individualidades inscritas na mesma cultura e no
mesmo universo linguístico passem a compartilhar dos mesmos valores, apesar da diferença entre
as subjetividades e a diversidade nas suas modalidades de existência. A dívida simbólica é a
condição de possibilidade para o sistema de trocas entre os sujeitos e para a demanda de
reconhecimento que marca estruturalmente qualquer sujeito" (Idem:167).
Frente à ordem política, o sujeito incompleto e finito que assoma da elaboração psicanalítica
"pretende não apenas marcar sua diferença absoluta frente aos demais sujeitos, mas também
buscar realizar sua completude dionisíaca de qualquer maneira, rivalizando com os outros
sujeitos para a conquista dos precários objetos de satisfação e dos espaços de produção desses
objetos" (Idem:131).
Desta forma, a representação da política com que trabalha Freud vai beber na idéia de estado de
natureza da filosofia clássica, embora não corrobore a teoria do contrato que está associada
àquela32. Política é a tentativa de regular as paixões, trazer a guerra permanente entre as
pessoas a um ponto de parcial, mas efetiva détente, e gerenciar a economia do desejo de forma
a tornar compatíveis as diferenças com um certo grau de estabilidade. Projeto que se confunde
com o impossível, "pois pretende legislar nas fronteiras de um território que indica a oposição
ativa do sujeito à absorção pela ordem simbólica" (Ibidem; v. tb. Idem:55-56).
Face ao impasse com que se defronta o projeto civilizatório (ou seja, a tentativa da ordem
simbólica de regular a dinâmica "desenfreada" da pulsão e de dobrar a resistência do sujeito à
sua dessingularização), Freud foi buscar no mito da morte do pai primordial e da horda primitiva
(de matriz darwiniana, mas pincelados por recorrentes motivos da filosofia política clássica, entre
os quais a figura do estado de natureza - cf. 138-41) a idéia de que o lugar da realização integral
do gozo, da completude e da autoridade incontestada, "deve ser mantido como um lugar vazio,
na medida em que é um lugar impossível de ser ocupado integralmente por qualquer figura
humana. Esse é o lugar do pai morto, da reminiscência da onipotência humana, que deve ser
limitada para que se constitua a ordem simbólica como o seu outro, condição de possibilidade
para a mediação entre os sujeitos pela linguagem" (Birman, 1994:134-135) e para a própria
sobrevivência e satisfação parcial do desejo de cada membro da comunidade. Problemática da
morte de Deus, que em Freud e na psicanálise em geral assume a forma moderna da
secularização e do desencantamento do mundo (sem Deus, explicado pela ciência e governado
pelo poder dos homens), como condição de inteligibilidade e possibilidade da democracia e da
história (cf. Idem:135, 137). Problemática retomada, com diferenças, na teoria lefortiana da
democracia, a qual tem sobre Freud a vantagem de não partilhar do horizonte mítico do estado
de natureza33.
"No discurso freudiano, portanto, existe uma articulação orgânica entre a morte, o símbolo [o
totem, JAB] e a ordem social, pois é a morte da figura soberana do pai primordial que é a
condição de possibilidade para a associação entre iguais, pela mediação da linguagem e pelo
estabelecimento do pacto simbólico" (Idem:136). O totem, assim, é o símbolo da presença e da
ausência do pai. O poder é simultaneamente o lugar da autoridade, do gozo e da totalização , e o
lugar onde todos e cada um se revelam incapazes de preencher essas funções. As tentativas de
fazê-lo são sempre promessa de retorno do caos e da tirania, impossibilidade de uma
associação entre iguais que é a única possibilidade de sobrevivência e satisfação (limitada, mas
não interditada) de cada um. Por isso, "esse lugar é para se manter vazio, pois é o seu vazio que
32
Se a teoria freudiana do sujeito tem fortes paralelos com Hobbes e Rousseau (encontrados, por exemplo, no mito
da horda primitiva e do pai primordial, na teoria da pulsão de morte e na teoria do sadismo/masoquismo, bem como
na insistente referência à problemática da morte), a diferença fundamental está na ruptura com a concepção de
indivíduo soberano e autônomo, fundante do social, com que aqueles trabalhavam, e que é o componente essencial
de sua teoria do contrato. "Em contrapartida, o discurso freudiano formula que a associação entre os irmãos é o efeito
da culpa pelo assassinato da figura paterna e não um contrato social deliberado pela escolha livre e autônoma da
consciência. Trata-se, então, de um pacto originário mediante o qual se ordena ao mesmo tempo o sujeito e o social,
não existindo pois qualquer subjetividade antes do estabelecimento do pacto simbólico" (Birman, 1994:141).
33
Cf. "Permanência do Teológico-Político?", em Lefort, 1991:249-95.
é a condição de possibilidade da ordem simbólica e do seu correlato que é a ordem social"
(Idem:137).
Do ponto de vista da contribuição lacaniana, por sua vez, Nina Leite aponta três planos de
referência da questão da subjetividade, que remetem ao (1) "sujeito possível da lei" (sujeito da
ideologia e do direito, ou efeito-sujeito, busca de afirmação da unidade do eu no registro do
imaginário); (2) "sujeito do desejo inconsciente" (sujeito como falta-a-ser, segundo a fórmula
lacaniana da fantasia [$ a], sujeito dependente do significante, carente de identidade, ao qual o
primeiro tenta responder "sob a forma da ilusão de unidade projetada na imagem do outro,
referenciada a um Ideal de Eu" (1994:27); (3) "sujeito foracluído", correlato do real que excede
ao significante e se perde ao entrar na ordem simbólica, estando originariamente excluído, mas
voltando sempre (ou, o que dá no mesmo, escapando sempre a toda forma de simbolização). O
jogo da subjetividade oscila de um a outro destes planos e, na questão da política, embora o
primeiro plano tenda a ser quase sempre priorizado, por atores e analistas, é a interferência dos
dois outros planos que constitui um diferencial analítico pelo qual a psicanálise pode contribuir
para uma outra concepção da instituição do social por meio da política.
CAPÍTULO 3 - IDENTIFICAÇÃO, ALTERIDADE E A POLÍTICA DO
SUJEITO DIVIDIDO
“Cada indivíduo é uma parte componente de numerosos
grupos, acha-se ligado por vínculos de identificação em
muitos sentidos e construiu seu ideal do ego segundo os
modelos mais variados. Cada indivíduo, portanto,
partilha de numerosas mentes grupais - as da sua raça,
classe, credo, nacionalidade, etc. - podendo também
elevar-se sobre elas, na medida em que possui um
fragmento de independência e originalidade” (Freud, em
Psicologia das Massas e Análise do Eu).
C
omo foi indicado no capítulo anterior, dois eixos organizam a recente retomada da questão
do sujeito e da subjetividade - e não só no plano coletivo: a crise do universalismo e a
emergência dos "novos" movimentos sociais a partir de fins dos anos 60, apontando para
uma outra concepção do sujeito histórico e do espaço da política. Associadamente ou por
caminhos diversos, a experiência desta crise e a da construção de alternativas de participação e
mobilização social e política que recusassem os termos estereotipados, rotinizados e/ou
restritivos do debate público, confluem na medida em que se pretende compreender os
(des)caminhos da luta social e política contemporânea.
Para Zaretsky, este reforço do particularismo tem produzido dois tipos de movimentos
referenciados na questão da identidade: "movimentos que se situam num sistema político
universalista mas insistem em formas de separação cultural ou 'multiculturalismo' - em outras
palavras, movimentos que pressupõem uma distinção entre cultura e sistema político - e
movimentos que buscam total auto-determinação sob a forma de estados separados"
(1995:199). Transversalmente a esta distinção há, para ele, uma outra que diz respeito à
natureza própria desses movimentos, agrupando basicamente movimentos étnico-raciais
(negros, hispânicos, asiáticos, indígenas, etc.), de um lado, e movimentos de gênero (mulheres,
gays e lésbicas), de outro, na medida em que estes últimos situam-se fortemente naquilo que
chamava-se de esfera privada ou pessoal, redescrevendo-a e politizando-a, enquanto os
primeiros operam mais fortemente referenciados na esfera pública tradicional. Poder-se-ia
acrescentar que mesmo esta dupla distinção não recobre todas as possibilidades, uma vez que a
34
Apesar de considerar a expressão "fundamentalismo religioso" intrinsecamente contestável, pois tende a ser
imputada polemicamente por "ecumênicos", "agnósticos" ou "adeptos nominais" a qualquer grupo religioso mais cioso
de seus valores ou preocupados em fazer adeptos, admito-a aqui para descrever as expressões religiosas que, de
diferentes formas e em diferentes graus, postulam um núcleo rígido de identidade, fixado em termos de fidelidade a
uma origem unívoca da tradição e dificilmente negociável por motivos contextuais.
problemática do essencialismo não assume apenas a forma da "auto-determinação sob a forma
de estados separados", podendo ser encontrada mesmo em movimentos que são explicitamente
anti-segregacionistas35. Apenas, a forma de postular a (re)afirmação de sua identidade leva
muitos grupos no interior destes movimentos a adotar uma postura naturalística ("mulher",
"negro", "gay", etc. passando a descrever uma confusão entre os portadores destas marcas e os
que as assumem como ponto nodal de sua identidade), ainda que apenas "estrategicamente"
(Spivak).
O objetivo deste capítulo e do próximo é traçar em maior detalhe o quadro teórico-político desta
passagem da afirmação identitária como resposta à crise do universalismo iluminista às aporias
da "política de identidade", pondo em relevo as implicações de se postular o caráter
constitutivamente heterogêneo, compósito, dos atores coletivos. Assim fazendo, pode-se ir além
das aproximações entre psicanálise e política apresentadas anteriormente, desestabilizando-se o
terreno seguro das ressalvas sobre a especificidade das categorias psicanalíticas, e desafiando
a aparente indiferença das teorias da ação coletiva face à dimensão subjetiva e identificatória da
formação de atores sociais.
Para fazer isto, assim dividirei o argumento: neste capítulo, a propósito do primeiro eixo da
discussão enunciado acima, discutirei a crise do universalismo em duas de suas modulações, a
referente a uma certa percepção do declínio do político e a referente à questão do
descentramento do sujeito. Isto será feito nas duas primeiras seções. Em seguida, beneficiando -
se do que veio antes e preparando caminho para a discussão do segundo eixo, analisarei, à luz
de uma perspectiva pós-marxista, como a questão do deslocamento (tematizada parcialmente
até o momento como uma experiência de "crise") se articula à lógica do significante expressa na
teoria lacaniana, para postular a natureza compósita e contingente dos atores e projetos
coletivos. No capítulo 4, discutirei o segundo eixo indicado anteriormente, detalhando, em torno
do tema dos movimentos sociais, como se passa da fratura da representação unificada do
político (experiência da crise do universalismo e da política totalizante) à percepção da
contingência e limites dos movimentos em reproduzirem o padrão de "sujeito histórico" legado
pela linhagem hegelo-marxista das ciências sociais, em meio aos encontros e desencontros das
políticas de identidade e de diferença.
Em artigo recente, Roberto Follari destaca um elemento em sua análise do pós-moderno que
remete à inflexão gerada pelo confronto entre a "leveza" das falas sobre a pluralidade, o fim da
modernidade, a alteridade, a morte do sujeito, o fim da metafísica, etc., e a (re)emergência de
fenômenos como a solidão, a pobreza, os nacionalismos, o racismo, a intolerância, a
desmotivação para a ação coletiva, a monotonia de um presente eterno (1997:38ss). O referido
elemento é o impacto da dessublimação dos valores universais e abstratos sobre a experiência
36
do político .
35
Num de seus trabalhos recentes sobre a questão Laclau (1997) chama a atenção para a irônica semelhança entre a
lógica do apartheid e a dos movimentos (ou correntes no seu interior) que postulam um radical particularismo com
base no argumento de que qualquer perspectiva universal implicaria na supressão das diferenças.
36
Uma análise bastante semelhante à desenvolvida por Follari encontra-se também em Lechner, 1987.
acabaram deslanchando reações do tipo das ditaduras militares em vários países do mundo,
especialmente na América Latina; (4) a reemergência de um discurso liberal "purista"
radicalmente anti-estatista e fundado na centralidade do mercado, da livre concorrência e da
desregulamentação das estruturas de provisão pública construídas pela social-democracia; (5)
derrocada ou desmonte do bloco socialista, paralela à chamada crise fiscal que levou ao limite o
modelo social-democrata pós-45; (6) o visível abismo entre as promessas e as realizações do
capitalismo que, associado às crises do socialismo e da social-democracia, bem como à
renovada percepção de que a nova praxis liberal produz novas formas de marginalidade e
pobreza, ensejam formas desencontradas de reação ou resistência aos efeitos desestruturantes
da nova situação; (7) as repercussões deste processo no campo do saber, com a perda de
confiança no caráter unificador e redentor da ciência, e no caráter puramente referencial (neutro,
objetivo) de sua descrição do real.
"Centralmente, advertiríamos pelo menos para duas grandes questões: 1. O sistema parece não
cobrir a diferencialidade de campos de legitimação da ação que a sociedade produz. A
complexidade social seria maior que a absorção por parte da expressão política: a representação
ficaria muito abaixo da variedade objetiva existente no nível social; 2. A representação política se
mostraria genérica, abstrata, distante da imediatez em que os sujeitos hoje assumem a sua
experiência. Se o universal é rechaçado, se é percebido como distante, o sistema político aparece
dissociado da vivência, como ente exterior à vida social concreta" (Idem:43-44).
"O fato - que alguns analistas políticos tomam unilateralmente como sinal de 'maturidade' - de que
o voto mude permanentemente de opção não se deve apenas ao cuidado de não mais fazer parte
de clientelas cativas; também significa que o político importa pouco, que não é acompanhado
senão como show business, que ali nada da própria identidade está em jogo. Há um
descompromisso em relação ao próprio voto: este se desobriga do compromisso com o
representante" (Idem:44).
Num mundo de narcisismo generalizado, a desconformidade não gera luta contra o poder, mas
apatia, impotência, indiferença. O político não diz respeito a ninguém, está longe. Não se deixa
captar na vida pessoal, não se enquadra num campo cultural onde "só se escolhe o sem-
importância, o agradável, o 'soft'" (Idem:46). Um ataque frontal ao status quo não tem como se
dar, completa o autor. Haveria aqui uma possibilidade de convergência entre Marx e Nietzsche:
37
Para mais algumas referências em torno das quais se pode reconstituir esta narrativa do declínio - naturalmente,
apontando em múltiplas direções em cada autor -, cf. Lechner, 1994; Canclini, 1995:13-41, 224-43; Laclau, 1990:xi-xv;
1994:1-5; Mouffe, 1996:11-19.
ambos questionavam a política como conjunto de aparatos especializados, ocupados por
indivíduos especializados, distanciados da vida cotidiana. Hoje, como a política continua sendo
em larga medida isto, perde em legitimidade, ante uma rejeição social profunda pelas
abstrações. Nisto, o pós-moderno corroeria não somente a legitimação da política revolucionária,
a oposição ao sistema, mas a do próprio sistema. E abriria a porta para uma reafirmação do
social sobre o político, do cotidiano/concreto sobre o genérico/abstrato.
Como se sabe, há outras leituras desta mesma situação que Follari lê com pessimismo. Com a
simultânea recusa e resignação ao momento presente que anuncia a pobreza de experiência
(Benjamin) de nosso tempo, a admissão da parcialidade (finitude e pertencimento) ou a apologia
da irredutibilidade das diferenças, chegamos a uma sensibilidade para perceber o nosso tempo
marcada pela baixa da guarda da vigilância da Razão. A desconfiança de que tudo ocultava uma
profundidade por sob uma aparência enganadora dá lugar à crescente afirmação da aparência,
ao reencantamento do mundo - evidência do objeto, profundidade das aparências, certeza do
senso comum, experiência da proxemia (Maffesoli, 1996:9). O presente torna-se a única
referência fecunda do pensamento. Neste presenteísmo assoma um hedonismo do cotidiano
pelo qual as relações sociais "não são mais regidas unicamente por instâncias transcendentes, a
priori e mecânicas; do mesmo modo não são mais orientadas por um objetivo a atingir, sempre
longínquo, em suma, o que é delimitado por uma lógica econômico-política, ou determinado em
função de uma visão moral" (Idem:11-12). O mundo torna-se objeto de uma atividade estética; a
vida, uma obra de arte.
A abertura ao prazer dos sentidos, ao jogo das formas, o retorno à natureza, a aceitação do fútil
produzem uma razão sensível, onde se inaugura, sob o signo da pós-modernidade, "uma forma
de solidariedade social que não é mais racionalmente definida, em uma palavra 'contratual', mas
que ao contrário, se elabora a partir de uma processo complexo feito de atrações, de repulsões,
de emoções e de paixões. Coisas que têm uma forte carga estética" (Idem:15). Predomina aí a
dimensão arbitrária e construtiva da linguagem sobre a dimensão orgânica, como observa Walter
Benjamin em "Experiência e Pobreza": de um lado, a vida já não se deixa conter pela narrativa
edificante das gerações mais velhas para as mais jovens, de modo que a idéia tradicional de
"experiência", como reflexão sobre o vivido e dedução de lições para a conduta, se perde,
tornando-nos mais "pobres"; de outro lado, o mundo é o que se vai fazendo, com os materiais de
nossa época, sem preocupação com sua profundidade, sem atribuir-lhe qualquer aura, e sem
deixar nele qualquer marca de nossa passagem - o que seria o caso se fôssemos sujeitos
plenos, densos, detalhistas, como o burguês novecentista que decora seu ambiente de tal forma
que tudo ali o lembre e exprima (Benjamin, 1987).
Desde esta perspectiva - mas ela não pode recobrir nem ocupar o vazio deixado pela crise do
38
racionalismo universalista - a postura de Follari só pode ser nostálgica, restauracionista. Porém,
concordo que há problemas nessa área, e que a crise do político envolve aspectos que não
precisam ser admitidos irreservadamente: (1) o presenteísmo e o esteticismo não precisa ser
visto como reforço do individualismo, mas certamente representa para muitos uma sobrevida da
concepção do sujeito como transparente a si mesmo, expressa agora numa versão
aparentemente desprovida de supereu, semelhante ao pai primordial do mito darwiniano
apropriado por Freud, dirigida pela realização irrestrita do gozo pleno (aqui se insere tudo o que
vai sob o rótulo de hedonismo); (2) a recusa em admitir o caráter situado, tanto em relação ao
Outro (linguagem, cultura, tradição, comunidade) como em relação a outros (adversários e
aliados) reforça a fantasia do indivíduo descontextuado, "livre, leve e solto" (unencumbered). O
medo de assumir o desfundamento instaurado pelo modo democrático de instituição do social,
38
Por quê? Porque esta perspectiva presenteísta e "superficializante" está privada de um "projeto"; ela não se constrói
- embora possa em certos casos pretender fazê-lo - como negativo do universal, mas como fratura deste último.
Assim, esta atitude fragmentária pode até se achar universal no seu raio de abrangência específica, um micro-
universalismo; mas ela tem que admitir outros micro-universalismos. Resta ainda outra forma de entrar na discussão,
que veremos na terceira seção.
produz sujeitos supostamente auto-suficientes e intolerantes. A proximidade do outro torna-se
algo a exorcizar sempre que este não for familiar, concorde e passivo.
Como isto responde à nostalgia de Follari? Na medida em que admite que há uma crise do
político, mas descrê de poder resolvê-la pela reasserção dos valores universalistas tal como
eram compreendidos pelo racionalismo iluminista. Assim, se não é politicamente viável impor um
novo projeto universalista, tampouco satisfaz a alternativa de excluir toda e qualquer referência a
um princípio geral de organização, como uma certa política foulcaultiana de micro-lutas sem
referências gerais. Na melhor das hipóteses, esta alternativa fracassa em garantir espaço para a
pluralidade de demandas, recaindo num modelo darwinista da sobrevivência dos mais fortes; na
pior das hipóteses, ela alimenta posturas segregacionistas que estão longe de resolver os
problemas levantados por comunidades e grupos excluídos ou marginalizados. Retomarei este
raciocínio na seção 3, abaixo.
Vista desde a perspectiva dos discursos críticos da concepção moderna do sujeito (e do sujeito
da política), estaríamos aparentemente nos antípodas da nostalgia de Follari. Não há nostalgia
pelo núcleo duro e estável da subjetividade, que teria se perdido pela fragmentação das
certezas, pelo apogeu do narcisismo ou do individualismo, pela deriva ou errância do sentido,
pela derrota dos valores universais, ante um discurso ideologicamente “vidrado” na
multiplicidade, na variação, na disseminação, sem perceber a necessidade de comunidade,
universalidade e estabilidade. Téllez (1997), falando sobre as implicações da perspectiva
desconstrutivista (na qual inclui autores tão diferentes como Derrida, Foucault, Deleuze, Guattari,
Augé) para a questão do sujeito, diz que aquela
“comporta não só o fato de que tal modo se entreteça nas discursividades que registram as
mudanças havidas nas práticas socio-culturais, políticas, éticas, estéticas, intelectuais, mas
também o fato de que dito pensamento é, ele próprio, parte constitutiva das práticas textuais
implicadas nas referidas mudanças e indicadoras da emergência de uma nova matriz crítica de
pensamento. Matriz que, a partir de sua configuração heterogênea, se concatena como recusa a
toda pretensão de recuperar os universais, os fundamentos últimos, os centros únicos, os fins
transcendentais, as essências, enquanto referentes que deram corpo e conteúdo à lógica da
identidade e seu correlato no Sujeto unificado, autotransparente, autodeterminado e constituinte, e
enquanto referentes portadores da vontade de dominação inerente a todo pensamento que
funciona en términos da lógica identificatória” (Idem:75).
Para a autora, teríamos de Derrida a inserção do sujeito numa intertextualidade sem fim, uma
rede de produção e difusão de sentidos, em que o sujeito não pode ser concebido como “prévio
e independente do jogo mesmo que produz as diferenças, entendida [sic], por sua vez, como
heterogeneidade e como diferimento pelo qual cada elemento discursivo só adquire e dá sentido
por meio de permanentes remissões a outros elementos” (Idem:76-77). Em Deleuze, Guattari e
Foucault, viria uma ênfase na multiplicidade de posições de sujeito que entrelaçam linhas de
força de poder, saber e desejo, transversais aos dispositivos pelos quais se produzem/definem a
objetividade, os modos de enunciação e de constituição de subjetividades. Desta forma,
“Nem sujeito a priori, nem instância única de constituição de subjetividade, mas processos, práticas
e procedimentos de produção de subjetividades, que se cristalizam em territórios pessoais - o
corpo, o eu - e em territórios coletivos como a família, o grupo ou a etnia. Processos, práticas,
procedimentos em razão dos quais um sujeito individual, como sustém Guattari, „já é um “coletivo”
de componentes heterogêneos‟” (Idem:78).
Zizek, se inquieta diante desta representação, por motivos distintos dos de Follari. É que ele
propõe haver uma radical distinção entre a noção lacaniana do sujeito dividido e a idéia pós-
estruturalista de "posições de sujeito": "No 'pós-estruturalismo', o sujeito é sempre reduzido à
chamada subjetivação, ele é concebido como efeito de um processo fundamentalmente não-
subjetivo: o sujeito está sempre preso a, atravessado pelo processo pré-subjetivo (da 'escritura',
do 'desejo', etc.), e a ênfase está sobre os diferentes modos do indivíduo 'experimentar', 'viver'
suas posições como 'sujeitos', 'atores', 'agentes' do processo histórico" (1992:174). O protótipo
desta leitura é Foucault. Mas em Lacan, Zizek observa, é outra a noção de sujeito:
"se fizermos uma abstração, se subtrairmos toda a riqueza dos diferentes modos de subjetivação,
toda a plenitude de experiência presente na maneira como os indivíduos 'vivem' suas posições de
sujeito, o que fica é um lugar vazio que foi preenchido com essa riqueza; este vazio original, esta
falta de estrutura simbólica, é o sujeito, o sujeito do significante. O sujeito, portanto, deve ser
estritamente oposto ao efeito de subjetivação: o que a subjetivação mascara não é um processo
pré ou trans-subjetivo de escritura mas uma falta na estrutura, uma falta que é o sujeito" (175).
Certamente, estamos aqui diante de uma disputa por especificação, mas eu tendo a achar
demasiadamente rigorosa a oposição zizekiana entre sujeito da falta e posições de sujeito, uma
vez que não há nenhuma incompatibilidade insuperável entre estas noções: na medida em que
as posições de sujeito dizem respeito a espaços de subjetivação preexistentes aos indivíduos,
mas que estes necessariamente ocupam, em números diferentes, de modos diferentes e por
períodos diferentes, ao longo de sua vida, elas correspondem à necessária objetivação pela qual
o sujeito "encontra um lugar" na arquitetura do social, o qual no entanto jamais é suficiente quer
para satisfazer plenamente a demanda destes sujeitos, quer para fixar sua identidade de uma
vez por todas. Neste sentido, as posições de sujeito, de um lado, operam como pontos nodais,
como significantes encarregados de fixar temporaria e precariamente o sentido do sujeito, como
superfícies de inscrição da falta. Por outro lado, a expressão tem uma conotação sociologizante,
ao designar lugares sociais, delimitados por um conjunto de práticas e protocolos institucionais,
que ao mesmo tempo conferem aos seus ocupantes uma forma de identificação e exercem
determinados controles sobre a espontaneidade destes sujeitos. Ser mulher, ser trabalhadora,
ser mãe, ser amante, ser pentecostal, ser aluna, ser sindicalista, ser militante partidária são
posições de sujeito que podem simultaneamente ser ocupadas
A polaridade entre "riqueza" e "falta" alegada por Zizek torna-se desta maneira, na pior das
hipóteses, um preciosismo, e mais provavelmente, uma especificação da relação entre posição
de sujeito, subjetivação e a natureza "faltante" do sujeito psicanalítico. Não há "riqueza" na
noção de posições de sujeito, simplesmente porque ela não equivale a uma forma de conter o
sujeito numa determinação totalizadora; tampouco ela se opõe à "falta" constitutiva, uma vez que
é possível dizer com segurança que ela é ao mesmo tempo busca de suplementação desta falta
(fantasia identificatória) e fracasso da identificação: de um lado, o "ser mulher" ou "ser
intelectual", por exemplo, não conseguem dar conta da identidade do sujeito como um todo, não
porque este seja "sempre mais do que", mas porque o objeto da falta é indeterminado; de outro
lado, no interior mesmo de cada posição de sujeito destas, há uma dinâmica de luta pelo próprio
sentido de "ser mulher" (por exemplo, entre concepções patriarcais, feministas e "femininas",
seculares e religiosas).
Mas seria esta representação elogiosa do sujeito fragmentado ou crítica da leitura pós-
estruturalista tudo o que pode ser dito da desconstrução do sujeito? Seria possível passar pela
desconstrução do sujeito - inclusive pela que a psicanálise incessantemente produz - e ainda se
colocar a possibilidade da "sobrevida" ou da "ressurreição" do sujeito? Que sujeito seria este? O
que vem depois do sujeito? Ou qual sujeito está por vir?
O pensamento recente de Jacques Derrida aponta caminhos nesta direção que destoam das
interpretações acima. Tendo sido identificado com a matriz de um pensamento que proclamaria a
"morte do sujeito" - na linhagem do estruturalismo ao pós-estruturalismo - Derrida se indispõe,
em "'Comer bem', ou o cálculo do sujeito" [1989], contra a doxa que associa a contribuição de
pessoas como Lacan, Althusser e Foucault, para não falar dos ilustres precedentes em Marx,
Nietzsche e Freud, ou mesmo Heidegger, com um projeto de liquidação do sujeito,
provavelmente para lançar em rosto que esta pretensão não funcionou e que, hoje, estaríamos
de volta ao sujeito ou assistindo à sua ressurreição. Derrida diz: reinterpretado, restaurado,
descentrado, reinscrito, sim, mas morto, liquidado, o sujeito nunca foi por aquela linhagem. E o
diz de olho não somente nos que crêem estar autorizados a anunciar o retorno, mas também nos
que crêem/creram na "morte" mesma (cf. 1995b:253-58). Há um sujeito depois da
desconstrução? O que do sujeito ainda "sobraria" após a desconstrução dos seus predicados
clássicos, entre os quais o da "estrutura sub-jetiva como o ser-lançado - ou sub-jacente - da
39
substância ou do substratum, do hipokeimenon , com suas qualidades de estado [stance] ou
estabilidade, de presença permanente, de relação contínua consigo, tudo o que liga o 'sujeito' à
consciência, à humanidade, à história... e acima de tudo à lei, como sujeito submetido à lei,
sujeito à lei em sua própria autonomia, à lei jurídica ou ética, à lei política ou ao poder, à ordem
(simbólica ou não)..." (Idem:259). Seria uma instância para "um 'quem' cercado pela problemática
do traço e da différance, da afirmação, da assinatura e do chamado nome próprio, do je[c]t
(acima de tudo sujeito, objeto, projeto) 40, como destinerrância da carta" (Idem:260). Ou seja, um
"quem" literalmente marcado pela necessidade e impossibilidade de ser enquanto diferente de si
mesmo, de recolher sob o nome próprio a diversidade de falas, posicionamentos e qualidades de
um sujeito dividido, de pretender coincidir sua assinatura com sua autoria, de se reconhecer
como destinatário de uma mensagem ou chamado que não lhe foi particularmente enviada nem
deixou de sê-lo.
Além disso tudo, Derrida ajunta, um quem constituído pela impossibilidade de ser um átomo,
auto-referido, um "quem" que permanece responsável41: o quem possui uma singularidade "que
se desloca ou divide ao se compor para responder ao outro, cujo chamado de certa forma
precede sua própria identificação consigo mesmo, pois a este chamado eu só posso responder,
já respondi, mesmo quando eu acho que estou respondendo 'não' ... Aqui, sem dúvida começa o
vínculo com as questões mais amplas da responsabilidade ética, jurídica e política em torno da
qual a metafísica da subjetividade foi constituída" (Idem:261-62).
39
O sentido etimológico aqui sugerido é o de que classicamente "sujeito" indica aquilo que, por baixo ou abaixo das
expressões confusas ou contingentes do aparecer e do devir histórico, dá estabilidade, provê um fundamento, confere
uma identidade aos entes, e especialmente ao ser humano.
40
Fórmula intraduzível, mas que joga com o sentido de "lançar", "jogar", das últimas sílabas das palavras sujeito,
objeto, projeto, em francês (sujet, objet, projet) e em inglês (subject, object, project), e no caso perfeitamente
compreensível em português.
41
O termo possui em Derrida (como em Levinas) o duplo significado de "responsabilidade diante de/por" e de
"responsividade a".
Em torno desta posição, Derrida assume que há muitos que, hoje, trabalham com uma definição
de sujeito que já passou pela desconstrução e que não o concebem como origem absoluta, pura
vontade, identidade a si, presença a si da consciência, mas como não-coincidência consigo,
como "a experiência finita da não-identidade a si, como a interpelação inderivável na medida em
que procede do outro, do traço do outro, com todos os paradoxos ou a aporia do estar-diante-da-
lei" (Idem:266). Como chamar a isto de sujeito? Mas, por que não fazê-lo de pleno direito? Se o
pensamento sobre o sujeito, mesmo durante a "época da metafísica", nunca foi inteiramente
homogêneo, o que impediria de resdescrevê-lo? Pois, seria preciso alertar para a continuidade
entre a desconstrução heideggeriana do sujeito (que a maioria destes trabalhos de certa forma
pressupõe, inclusive o do próprio Derrida) e a redução metafísica do sujeito ao sujeito humano,
confundindo assim subjetividade e humanidade - quando hoje toda a questão da ecologia, dos
"direitos dos animais", bem como da engenharia genética, das barrigas de aluguel, do
patenteamento de seres vivos e, não muito distante, da prótese homem-máquina, estariam
apontando para uma subjetividade que já não tem a forma gramatical do sujeito ou a forma
filosófica da consciência a si, do ser-falante, do ser que se relaciona com a morte, etc.
Seria preciso, enfim, admitir que o ser-lançado é, antes de ser-se sujeito, confrontado com uma
responsabilidade e diante da necessidade de responder a um outro. Assim, a responsabilidade é
anterior à subjetividade e excede toda subjetividade. É certo que o sujeito é "um princípio de
calculabilidade", seja na política, seja na questão dos direitos, seja na moralidade (Idem:272). Ou
seja, é certo que o sujeito deriva certos cursos de ação a partir de princípios, voltado para a
consecução de certos objetivos. O sujeito decide. Mas, pausa enfaticamente Derrida, "não existe
nenhuma responsabilidade, nenhuma decisão ético-política, que não tenha que passar pelas
provas do incalculável ou do indecidível. De outra forma, tudo seria redutível a cálculo, programa,
causalidade, e, no máximo, 'imperativo hipotético'" (Idem:273; cf. 1995a:146-49).
"Se alguém sabe, e se é um sujeito que sabe quem e o quê, então a decisão é simplesmente a
aplicação de uma lei. Em outras palavras, se existe decisão, ela pressupõe que o sujeito da
decisão não exista ainda, nem o objeto. Assim, com respeito ao sujeito e ao objeto, jamais existirá
decisão. (...) Toda vez que eu decido, se uma decisão é possível, eu invento o quem, e decido
quem decide o quê; neste momento, a questão não é o quem ou o quê, mas antes a da decisão, se
isto existir. Assim, concordo que a identificação seja indispensável, mas isto também é um
processo de desidentificação, porque se a decisão é identificação, então a decisão também destrói
a si mesma.
"Como consequência, deve-se dizer que na relação com o outro, que é aquele em nome de quê e
de quem a decisão é tomada, o outro permanece inapropriável ao processo de identificação"
(1996:84).
Ou seja, mesmo que minha decisão seja tomada em nome de algo ou alguém, nada me eludirá
de minha responsabilidade, nem esta poderá jamais ser transferida ao outro (Idem:84-85). E a
introdução deste elemento ético polemiza claramente com posturas que recusam qualquer
fundamento ético para a questão do sujeito e da decisão, apelando para ou silenciando diante
de um elemento que, determinando a (falta de) autonomia do sujeito, talvez o isentaria de
responsabilidade. Para Derrida - e Levinas -, há que haver responsabilidade sempre, mesmo em
presença da identificação. Neste sentido, para Derrida, politização e eticização são sinônimos
(cf. Idem:87).
Isso tudo não vai na direção de negar a legitimidade de uma nova fala sobre o sujeito, mas da
necessidade de assumir a ruptura desta com o discurso clássico da subjetividade como presença
e identidade a si. Como afirma Derrida mais adiante a respeito da origem desta responsabilidade
perante o outro prévia a toda subjetividade, "[d]izer desta responsabilidade, e mesmo desta
amizade, que não é 'humana', não mais do que seja 'divina', não quer dizer que seja
simplesmente inumana" (Idem:276). O outro não é simplesmente outro ser humano, nem mesmo
a ordem simbólica ou a linguagem, mas "algo" não-reapropriável, não-subjetivável, mesmo até
certo ponto não-identificável. Mas, antes de podermos elaborar toda uma ética ou política do ser
vivo, que redefina toda nossa concepção do que/de quem é um sujeito, é preciso tomar posição,
assumir responsabilidade, responder - e isto politica, juridica e éticamente (Idem:286).
Diante da urgência da demanda que o outro me coloca, não é possível/legítimo esperar; ela não
pode se contentar nem com a idéia de uma moralidade provisória, de uma ética de situação.
Porque não há tempo para pacientemente se recomeçar, para se parar e dizer: "ops, os
princípios falharam aqui, refaçamos o percurso". A responsabilidade que a desconstrução implica
"pode sempre perturbar, no mínimo, o ritmo instituído de toda pausa (e o sujeito é uma pausa,
um estado, o freio estabilizador, a tese, ou antes a hipótese de que sempre precisaremos),
ela pode sempre perturbar nossos sábados e domingos... e nossas sextas-feiras..." (Ibidem, grifo
nosso). A responsabilidade está além (ou aquém) do tornar-se-lei da moralidade, é excessiva ou
não é responsabilidade.
Aqui, talvez, tenhamos uma forte oposição a tudo o que a concepção lacaniana do sujeito da
falta representa (e que Zizek se deu ao trabalho de opor à "riqueza" da subjetivação por meio
das posições de sujeito): se o sujeito se constitui por meio de uma afirmação ao chamado do
outro, de um sim à interpelação do outro, então não haveria uma relação essencial entre o
desejo e a falta, antes o desejo seria afirmação e a introjeção da morte do objeto (o trabalho do
luto), também (cf. 1995a:143). Mas isto se colocaria em relação à ponta de lá do processo
identificatório, na medida em que Lacan pretende saber o que ou quem é o O/outro, e não em
relação à ponta de cá, o lugar do sujeito: afinal, não seria este último, na medida em que não
tem uma identidade - não coincidente consigo mesmo, não presente a si, não caracterizado por
um núcleo essencial que se desenvolveria ou revelaria diacronicamente -, falta constitutiva e,
mais rigorosamente, falta em relação a um conteúdo que nunca verdadeiramente possuiu 42, uma
vez que a relação gozosa com o objeto, é prévia ao desejo, prévia também à emergência do
próprio sujeito? Como veremos na próxima seção, é exatamente na referência cruzada à
desconstrução derridiana e à lógica da identificação lacaniana, sujeito descentrado como sujeito
da falta, que se constrói o pensamento de Ernesto Laclau sobre a questão.
42
É notável, neste aspecto, a semelhança entre o argumento psicanalítico e o desconstrutivista, como demonstra
claramente o próprio Derrida em “Freud e a cena da escritura” (cf. 1967:313-314).
totalizantes - quanto com esforços de articulação ou agregação de agendas ou agentes díspares
em torno de pontos de convergência suficientemente abrangentes e fortes para reuní-las e ao
mesmo tempo contingentes demais para postular duração e legitimidade acima de qualquer
suspeita ou questionamento. Parece que um vínculo se insinua entre esta multiplicação de
(posições de) sujeito/s e alguma coisa da ordem do nosso tempo, da nossa condição histórica,
da nossa contemporaneidade. Haveria algum elemento comensurável entre essa experiência do
sujeito fragmentado/descentrado e a (des)ordem de nosso tempo? Seria possível avançar algum
acordo “sociologizável” entre elas? Responder a esta questão parece fundamental se o esforço
aqui realizado quiser apresentar alguma relevância no terreno “hard” das ciências sociais. Não
queremos sugerir a falsidade de uma opção entre a teoria e a análise empírica, entre a lógica
psicanalítica e a lógica das ciências sociais, ou entre a filosofia política e a ciência política.
Assim, é preciso ainda perseguir, por mais um tempo, a possibilidade do referido acordo. É o que
nos aguarda, nas páginas seguintes, e no próximo capítulo.
Mantenhamo-nos na companhia dos interlocutores psicanálise e política, pois nosso fio condutor
continua sendo o tema da identificação, pelo qual queremos produzir um discurso sobre o sujeito
coletivo e os desafios que enfrenta neste fim de século. Desafios, especialmente aqui, onde o
sujeito histórico, autônomo e livre nunca atendeu pelo nome de povo, classe trabalhadora ou
classes populares e no momento em que poderia fazê-lo em proporções mais locais, vê-se
dessublimado por um pensamento diferencialista, quem sabe politicamente irresponsável ou
equivocado.
Em 1986, no curto ensaio “Psicanálise e Marxismo”, Laclau defende a posição de que a questão
do deslocamento é fundamental a qualquer compreensão da formação de identidade. Ali Laclau
fazia uma articulação entre a lógica do significante lacaniana (do sujeito da falta) e a categoria
do desenvolvimento desigual e combinado (ela própria descrita como a articulação sincrônica -
descrita fundamentalmente por meio do conceito de hegemonia - de estágios que, na teoria
marxista, deveriam ser sucessivos). “Hegemonia é na realidade um hímen/dobradiça, dado que
por um lado ela sutura a relação entre dois elementos (a tarefa e o agente); mas, por outro lado,
uma vez que esta sutura é produzida no terreno de uma relação primária e insuperável de
deslocamento, nós só podemos atribui-la um caráter de inscrição, não de articulação necessária”
(1990:95-96). A relação hegemônica funciona assim analogamente à lógica do significante. Por
outro lado, Laclau afirma que “[é] a generalização dos fenômenos de „desenvolvimento desigual
e combinado‟ da era imperialista para toda identidade social que, como na imagem
heideggeriana do martelo quebrado, transforma o deslocamento num horizonte a partir do qual
toda identidade pode ser pensada e constituída (estes dois termos sendo exatamente
sinônimos)” (Idem:96).
Em outras palavras, dirá Laclau, num texto posterior ("Novas reflexões sobre a revolução de
nossa época"), em que elabora com detalhe a problemática, a possibilidade de plena
constituição/realização de uma identidade ("totalidade") deve ser sempre medida não em função
de quem são, essencialmente, os atores sociais, mas da distância entre o que afirmam ser e o
que efetivamente alcançaram deste "projeto". Toda identidade é deslocada porque depende de
um exterior que representa tanto a sua possibilidade - por exemplo, ao identificar um inimigo que
ameaça ou nega o que ou quem se é num dado momento -, quanto a sua impossibilidade -
enquanto o inimigo não for afastado, não se poderá ser plenamente; mas ao se retirar de cena, o
inimigo leva consigo, por assim dizer, um pedaço de nós. Desta forma, é inadequado tematizar o
problema da constituição incompleta da identidade em termos de "falsa consciência" ou
"alienação" como aquilo que impediria a plena realização. Se as condições de existência dos
atores sociais são contingentes - porque não exprimem o movimento necessário de um sistema -
e se estes se definem em relação a um exterior que não controlam inteiramente (e que não é
rigorosamente objetivo, pois se define no registro do imaginário 43), o deslocamento da identidade
43
Bem entendido, não é de uma ilusão ou delírio que definiria o caráter do exterior constitutivo que se trata, mas do
fato de que o que uma identidade afirma do seu outro não precisa corresponder necessariamente a um agente ou
situação factualmente dados e apresentando exatamente as características a ele/a atribuídas. Naturalmente, não se
fala de uma ameaça, de um inimigo, de um obstáculo sem nomeá-los. Outra coisa é se esta nomeação encontra "do
não pode ser compreendido em termos da oposição entre aparência e realidade (cf. 1990:36-37).
As relações entre a identidade dos atores e suas condições de existência são absolutamente
necessárias. O que significa que mudanças nessas condições (históricas) de existência alteram
e transgridem a "identidade essencial" dos atores (Idem:21, 22).
Desta forma, o lugar do sujeito é o do deslocamento. Longe de ser um momento da estrutu ra, o
sujeito é o resultado da impossibilidade desta se constituir em sua auto-suficiência e dominar
irrestritamente sobre os seus elementos constitutintes. Como na imagem lacaniana, o sujeito
atravessa a fantasia - desidentifica-se - quando "descobre" que o Outro é barrado, que não é
todo-poderoso, que não tem o que o sujeito "quer". Contudo, os esforços dos agentes sociais,
qua sujeitos, para rearticularem e reconstruirem uma estrutura deslocada também produzem
lado de lá" um referente estritamente definido pelas características atribuídas. Outra maneira de colocar a questão é
levá-la para o lado da relação antagonística: se o antagonismo (a negatividade) não é um momento no interior de um
sistema dialético, não é uma contradição, ele não pode ter um sentido objetivo, mas é aquilo que limita toda
objetividade; "com o antagonismo, a negação não se origina no 'interior' da identidade, mas no sentido mais radical,
vem de fora; ele é assim pura facticidade que não pode ser referida a nenhuma racionalidade subjacente" (Laclau,
1990:17). Por outro lado, não pode existir antagonismo em relação a um vazio de identidade. Uma identidade só pode
ser ameaçada se ela já está aí. O que o antagonismo nega - desde fora - é a possibilidade de uma total coincidência
entre o que uma identidade afirma ser e o que ela em cada momento é; o que o antagonismo faz, pela mesma razão,
é afirmar a existência da identidade que nega (cf. Idem:26-27). Mais radicalmente ainda: a hora do desaparecimento
do antagonista, a hora da minha vitória, é o momento de minha maior perda, morto o outro, morro também
com ele; descubro que o que me lançava em direção a ele tinha a ver com uma identificação, o mesmo se
dando em relação aos meus aliados; mas precisamente por isto, minha falta permanece intacta e terá que ser
preenchida por outros objetos de atração e repulsão.
efeitos sobre sua própria identidade e subjetividade. Assim, não se trata de se é o mesmo
sujeito que emerge ao final dum processo de mudança, mas de qual é sua nova identidade
depois (cf. Idem:50). Uma vez que os novos atores surgidos na esteira da expansão
contemporânea do capitalismo se movem num terreno deslocado, devem constantemente
reinventar suas próprias identidades e formas de organização social.
Deslocamento, antagonismo, falha na estrutura, lugar do sujeito e relações de poder são então
aspectos intrinsecamente relacionados da construção histórica e da constituição dos sujeitos
sociais. Temos, então, a seguinte situação:
"A novidade da presente situação, então, está no fato de que o ponto nodal em torno do qual a
inteligibilidade do social é articulada tende agora, não a se mover de uma instância para outra na
sociedade, mas a se dissolver. A pluralidade de deslocamentos gera uma pluralidade de centros de
poder relativo, e a expansão de toda lógica social tem lugar assim num terreno que é cada vez
mais dominado por elementos externos a ele. Deste modo, a articulação é constitutiva de toda
prática social. Mas neste caso, na mesma medida em que os deslocamentos crescentemente
dominam o terreno de uma determinação estrutural ausente, o problema de quem articula passa a
ocupar uma posição mais central" (1990:59).
É aqui que começamos a reencontrar o tema da identificação. O sujeito emerge como um ato
de poder que revela e resiste ao deslocamento da estrutura, ao colapso de uma objetividade.
Isto se dá pela crescente percepção de que esta última é apenas a sedimentação e o
apagamento dos traços de atos de poder passados e contingentes. Tais atos, tomados num
terreno deslocado, (re)constróem a identidade enquanto atos identificatórios; não são, portanto,
expressões de uma identidade positiva, constituída previamente ao momento da decisão. Logo,
todo sujeito é, por definição, político. Fora do sujeito, neste sentido, só existem posições de
sujeito no campo da objetividade. Mas o sujeito não pode ser objetivo: ele só se constitui nas
margens irregulares da estrutura (Idem:60-61). O sujeito é raro e não um estado de permanente
auto-determinação e expressividade, talvez tolhido por alguma condicionante temporária.
Quatro consequências decorrem desta formulação (cf. Idem:61-65). Primeiro, todo sujeito é
mítico, pois se o mito é uma representação do passado e do futuro de uma ordem que está em
descontinuidade radical com ela, o sujeito que intervém para reconstruir a estrutura falhada, o
faz a partir de uma leitura da situação sujos termos são externos ao que pode ser representado
nela. O papel do mito é suturar o espaço deslocado, rearticulando os elementos que se
desprenderam ou que são sistematicamente excluídos pela ordem. Trata-se, novamente, de uma
operação hegemônica, pois a aproximação destes elementos (discursos, grupos, contextos) num
"projeto alternativo", num mito, não é natural nem necessária.
Em segundo lugar, todo sujeito é metáfora. Não há uma "forma lógica" comum ao sujeito e à
realidade ou estrutura a que este se refira ou corresponda. O espaço mítico se apresenta como
alternativa à forma do discurso dominante da estrutura. Como nenhum dos dois (mito e estrutura)
está plenamente constituído, somente o deslocamento de um pode configurar o outro como sua
imagem invertida. Ora, o mito não se opõe à existência de uma estrutura, mas aos efeitos
desestruturadores de uma certa estrutura. Sua identidade e função do mito é dividida: ele é o
que diz ser - a nova ordem proposta - e é a "encarnação" do próprio princípio da ordem. Assim é
que o mito surge como metáfora de um fundamento dominado pela dialética entre a identificação
com uma plenitude inalcançada (a "verdadeira expressão dos interesses populares", a
"sociedade plenamente democrática", o "socialismo", etc.) e o deslocamento da estrutura (a
crise, a ineficiência ou a violência da ordem vigente). Ou seja, a forma concreta que o mito
assume (seu conteúdo literal) representa sempre algo diferente de si mesmo: a própria idéia de
uma nova ordem, plenamente constituída. "O fascínio que acompanha a visão de uma terra
prometida ou uma sociedade ideal provém diretamente desta percepção ou intuição de uma
plenitude que não pode ser conferida pela realidade do presente" (Idem:63). Ora, como se disse
acima, esta distância entre deslocamento e identificação é precisamente o espaço do sujeito: "O
sujeito (falta na estrutura) só assume sua forma de representação específica como metáfora de
uma estrutura ausente" (Ibidem).
Terceiro, as formas de identificação do sujeito funcionam como superfícies de inscrição, ou seja,
o mito de uma nova ordem perfeitamente realizada, à medida que vai ganhando aceitação social,
vai sendo usado como lugar onde podem se inscrever toda sorte de frustrações, agravos,
sentimentos de injustiça ou demandas insatisfeitas e que "encontram" no estado de coisas
vigente a sua razão de ser (ou a continuidade de uma situação inaceitável que já vem de longe).
Assim, todo discurso que se propõe a reconstruir uma situação, re-hegemonizá-la precisa se
tornar um lugar de confluência em que "tudo cabe" e a tudo o mito promete resolver tão logo
(mas só quando) se concretizar. A inscrição, no entanto, nunca é completa, mantendo-se sempre
uma distância entre sua expressão e o que se expressa no ato de inscrever. A inscrição sempre
deixa um resto, que abre caminho para sua instabilidade e eventual insucesso ou transformação.
Ou seja, assim como os objetos de desejo vêm a ocupar precariamente o lugar do que se perdeu
irremediavelmente na origem, para que o próprio sujeito se constituísse, assim como o sujeito só
encontra os seus objetos (a promessa de ser ele mesmo, enfim) fora de si próprio, somente para
descobrir que não eram bem o que pensava, da mesma forma o conteúdo dos mitos sociais
precisa ser constantemente reconstituído e deslocado.
Finalmente, o caráter incompleto das superfícies míticas de inscrição (isto é, de identificação com
o lugar de onde o Outro me/nos vê) é a condição para a emergência de imaginários sociais,
horizontes de inscrição de qualquer demanda social e qualquer deslocamento possível, em que
os mitos podem se transformar. A condição para o surgimento de um imaginário é que o
conteúdo de uma determinada demanda se metaforize ao ponto de (passar a) representar um
indefinido número de outras demandas, ou um lugar onde as carências nelas implicadas tenham
sido todas satisfeitas. (Em termos gramscianos, trata-se da missão hegemônica de toda
identidade particular que aspire a construir um novo bloco histórico, uma articulação entre paixão
e organização: a classe revolucionária é aquela capaz de deixar o seu momento econômico-
corporativo, particularista, e interpelar e organizar uma vontade coletiva muito maior e mais
complexa do que ela.) O imaginário não é um objeto entre outros, ele é o limite de todo projeto
de realização de todas as demandas e de todo ato identificatório pelo qual uma delas é eleita
como representativa das demais.
Desta forma, ao dizer que o antagonismo é a condição para a emergência de um sujeito social,
tem-se que dizer igualmente que toda identidade é já em si barrada, organizada em torno de um
trauma não-simbolizável, uma impossibilidade, e que o inimigo externo é apenas aquele pedaço
da realidade sobre o qual o sujeito "projeta" ou "externaliza" sua própria impossibilidade (cf.
Zizek, 1990:252). Nenhum projeto coletivo, nenhum sujeito de um tal projeto, tem a qualidade de
se eximir deste (auto-)impedimento. A propósito desta percepção que visa ao mesmo tempo
reforçar o lugar do sujeito e assinalar a sua impossibilidade última, Zizek afirma que o grande
mérito do trabalho seminal de Laclau e Mouffe, Hegemony and Socialist Strategy, foi o de ter
articulado um projeto fundado numa "ética do real", da travessia da fantasia, "uma ética do
confronto com um cerne impossível, traumático, não coberto por nenhum ideal (da comunicação
indistorcida, da invenção do self)" (Idem:259). Este impasse insuperável não constitui nem pede
qualquer resignação, mas aponta para a possibilidade kantiana de experimentar um objeto
através do próprio insucesso de sua adequada representação (Ibidem).
Uma das dimensões desta simulação é a da “distância intransponível entre minha falta de ser
(que é a origem da decisão) e aquilo que confere o ser de que preciso para agir num mundo que
não conseguiu me construir como sua „Modificação‟ (modus). Ora esta operação de uma
aquisição adventícia de ser tem um nome”: a categoria psicanalítica da identificação (ibidem).
Outra dimensão é a da desproporção entre o corpo que vem a “resolver” o nó da estrutura,
preencher seu vazio ou reparar suas brechas, assim encarnando a função de plenitude da
estrutura, e esta última. Se é impossível atingir a plena realização da estrutura, não deixa de ser
necessário tentá-lo vez após vez - há um hiato entre o lugar da estrutura e as propostas de
(re)estruturação, que simultaneamente exige a identificação e impede-a de significar o "fim da
história". Os conteúdos (projetos, ações, manobras, etc.) que venham a assumir esta função
pagarão sempre o preço de sua contingência, de sua mortalidade. Mas a necessidade destes
“deuses mortais” permanecerá sempre imperativa.
A isto acresce que não existe nenhum conteúdo que esteja a priori determinado a preencher a
falta da estrutura: a decisão se dá sempre num contexto e é portanto, sempre parcialmente
determinada. Ou seja, nunca existe uma situação de total desestruturação, mas apenas de
parcial desestruturação. Uma pluralidade de conteúdos se coloca, assim, em cada contexto,
igualmente passíveis de assumir a função de representantes da plenitude ausente da estrutura.
Mas como isto se dá sempre em contextos concretos, estes “factualmente limitam a
indecidibilidade estrutural, limitando também o escopo dos conteúdos que podem, a qualquer
momento, representar o papel de representação universal” (Idem:58). A função de
preenchimento da falta da estrutura é, para Laclau, propriamente hegemônica: um
elemento particular (um significante, um discurso, um projeto, um ator coletivo, etc.)
assume a função do universal, encarnando a plenitude da estrutura. A tendência do
singificante a “esvaziar-se” de um conteúdo demasiadamente literal e abrir-se a “descrever”
outros conteúdos, substituindo outros significantes e assumindo assim uma característica mais
universal ao mesmo tempo em que não deixa de manter uma relação espectral com seu
significado “original”, esta tendência é, para Laclau, o que torna a política possível e a
hegemonia a expressão mais adequada desta.
Mas pela sua condição, este sujeito só terá sucesso se for capaz de se alçar para além de sua
particularidade, interpelando e coordenando uma variedade de outros e/ou suas demandas; dito
de outra maneira, o significante que representa este sujeito precisa se tornar o ponto de
amarração, o ponto nodal, de uma série de investimentos de sentido que expressem o
descontentamento com a ordem vigente, com a desordem produzida por ela, e dar nome a um
projeto alternativo, um mito de reconstrução da comunidade em sua completude perdida ou
agredida pelo discurso vigente/dominante. Esta situação traduz o primado da política na
instituição da sociedade e realça o caráter hegemônico da política como nova lógica do social
advinda da experiência do deslocamento “inaugurada” pelo capitalismo e pela democracia
moderna.
Capítulo 4
MOVIMENTOS SOCIAIS, IDENTIDADE E PLURALIDADE DO
SOCIAL
U
ma das características dos chamados novos movimentos sociais a partir dos anos 70 foi a
da experimentação com uma concepção estratégica da ação coletiva que não exigia a
"amarração" entre todas e cada uma das iniciativas, com vistas a um efeito de mudança
totalizador que colocasse a sociedade num novo patamar. Ainda que as razões para esta visão
plural ou fragmentada - dependendo da opinião do observador - não fossem as mesmas em
cada caso44, o certo é que, na conjuntura que se abre com esse deslocamento da idéia de um
ator histórico operando no nível dos fundamentos do social (cf. Laclau, 1996c), cobra interesse a
questão de como articular uma nova compreensão da subjetividade simultaneamente
reminiscente da idéia de individualidade e privacidade ou intimidade 45 a uma outra, da virtude
pública da participação numa sociedade plural (cf. Mouffe, 1996:83-99), como condições para
uma renovação do pensamento e da prática democráticas. Foram também os novos movimentos
sociais que reintroduziram questões de identidade no debate político, excluídas que haviam sido
pela vigência do neutralismo liberal pelo qual o espaço público não comporta reivindicações
fundadas em idéias substantivas do bem, devendo limitar-se a definir procedimentos e princípios
universalistas que possibilitem a todo cidadão - de preferência a título individual e/ou por meio da
representação política - o acesso aos processos de tomada de decisões. Ao insistirem no vínculo
entre demandas e reivindicações de identidade e comunidade, os movimentos recolocaram na
agenda do debate político ocidental a relevância da tradição civico-republicana e a necessidade
do liberalismo relativizar seu puro procedimentalismo, e levar na devida conta as interferências
de concepções do bem sobre as demandas trazidas pelos diferentes atores para as esferas
públicas da sociedade.
44
Pode-se dizer que no caso europeu e norte-americano, o caminho pluralístico deveu-se à fratura da imagem de ator
histórico, catalizador e dirigente de uma mudança global, e à abertura de espaço para intervenções mais pragmáticas
e localizadas. Já no caso latino-americano, na vigência das ditaduras militares ou da crise econômica que vitimou
aqueles países, a alternativa pluralística deveu-se mais a critérios de possibilidade/oportunidade da ação coletiva: era
simplesmente mais produtivo explorar múltiplas e localizadas formas de demanda ou contestação do que esperar
pelas condições para um ataque frontal ao estado.
45
Digo reminiscente para sublinhar que, por um lado, não se trata simplesmente de um retorno à idéia de um
indivíduo coeso, centrado e oposto à sociedade, nem de um insulamento do sujeito em torno de si mesmo, de seus
interesses, de seu espaço próprio ao abrigo de qualquer publicidade ou de qualquer contextualização numa
comunidade. Por outro lado, dadas as condições históricas e sociais em que emerge esta preocupação, a exposição
pública dos indivíduos enquanto agentes sociais, sob a forma de participação política ou de sua presença nos meios
de comunicação de massa, não pode prescindir de uma esfera de privacidade, ou seja de liberdade pessoal para ser e
fazer diferentemente dos demais sem ter que ser perscrutado e julgado publicamente por isto a todo mom ento, bem
como de individualidade, ou seja, de uma linha limítrofe entre as demandas coletivas ou comunitárias de seus
envolvimentos políticos e o momento do recuo, da pausa ou da resistência a deixar-se diluir numa massa ou triturar
por uma ordem política de contornos totalitários.
construindo demandas instrumentais e identitárias que não se dissolvem numa identidade maior
e mais importante e que buscam reconhecimento para as diferenças sociais, culturais, éticas,
sexuais, etc. que expressam.
Trata-se, porém, agora, de dar ênfase à importância que os movimentos passaram a dar a
questões de identidade, na medida em que a constituição do ator coletivo que articulava a
demanda se deu, na maioria dos casos, simultaneamente à referida articulação. Em torno das
demandas se constituíram formas de ação coletiva que vieram a assumir a designação de
movimentos sociais, de modo que, como bem adverte Melucci (1991), um movimento social é
antes o resultado que o ponto de partida de um processo que inclui a identificação e articulação
de uma carência como demanda, a mobilização de um conjunto de pessoas e a construção de
"aparatos" ou organizações que não somente representem seus membros, mas construam e
interpretem, no confronto ou nas alianças com outros atores, suas necessidades e identidade.
Para tanto, na primeira parte do capítulo, explorarei como, em torno do campo definido pelos
movimentos sociais se foi elaborando uma nova problemática sobre a política, a ação coletiva e
a questão da subjetividade na qual a dimensão cultural, simbólica da ação é tão importante
quanto a expressiva. Os atores coletivos que levam o nome de movimentos sociais, então,
tornam-se o protótipo de uma concepção do sujeito e da ação coletiva na qual faz todo sentido a
forma da psicanálise colocar o problema do sujeito. Um recorte temporal ajudará a tecer uma
narrativa que procura dar conta de diferentes momentos do desenvolvimento dessa percepção:
anos 70 (emergência, problematização da concepção tradicional da ação coletiva, expectativas
de mudanças substantivas nos moldes da idéia de revolução); anos 80 (visibilidade, desafios
colocados pela conjuntura de recuo político nos países avançados 46 e de redemocratização dos
países latino-americanos e do sul da Europa, sinais de limite ou cansaço da estratégia
movimentalista); anos 90 (crise dos movimentos, desilusão com suas perspectivas, discurso
sobre o declínio do político, crise da crise dos movimentos).
Na última parte, oferecerei algumas pistas hermenêuticas para a análise política contemporânea
no Brasil dos temas propostos ao longo do trabalho. Não sem antes advertir que não pretendo
que a leitura proposta seja uma dedução logicamente decorrente do que veio antes: a tomada de
posição política é carece de fundamentação última num sistema de regras estável e algorítmico;
se ela recorre sempre a razões para postular as alternativas que abraça, não pode jamais
esquecer-se de que, de um lado, o sentido de uma decisão é sempre construído retroativamente,
depois do passo dado, e de outro lado, de que o conteúdo de uma decisão poderá sempre ser
"falsificado" por outras tomadas a partir das mesmas razões alegadas e que a questionam seja
na qualidade do seu diagnóstico, seja na adequabilidade de suas proposições.
Pode-se dizer que uma parcela significativa das teorias da subjetividade que se distanciaram da
perspectiva clássica do ator social como sujeito homogêneo, definido a partir de uma posição
fixa na esfera da produção ou no contexto de um drama histórico universal, transparente a si
mesmo (ou alienado de seu verdadeiro ser), o fizeram tendo como pano de fundo os movimentos
sociais. Num primeiro momento, deu-se uma certa glorificação eufórica em relação ao potencial
mudancista dos novos atores, produzida pela transposição destes para o lugar do sujeito
histórico. Apenas o que antes era prerrogativa de uma classe ou uma instituição sociais agora
era compartilhado por uma multiplicidade de agentes. A origem destes movimentos numa certa
mutação política da esquerda socialista projetava sobre eles a missão de renovarem a história. A
partir de inícios dos anos 80 já se podia perceber uma certa desilusão com esta expectativa, por
exemplo, na obra de Manuel Castells, um dos mais festejados teóricos movimentalistas. E aos
poucos foi-se generalizando a postura oposta de avaliar os movimentos como essencialmente
46
Refiro-me à avalanche neoliberal desencadeada pelas vitórias de Margareth Thatcher na Grã-Bretanha e de Ronald
Regan nos Estados Unidos.
integracionistas, politicamente confusos e mesmo um desserviço, no longo prazo, a anseios mais
gerais de mudança social e política substantiva (cf. Castells, 1983; Scott, 1990; Vigevani, 1988).
Duas perspectivas narrativas se mostram assim: entre os anos 60 e 80, os movimentos são
vistos como atores de uma fratura na representação unificada do político 47, intrinsecamente
progressistas e lugares privilegiados da mudança. Nos anos 90 (em alguns casos, já no fim dos
anos 80), surge uma percepção dos limites dos movimentos, dada a tendência a pensá-los como
substitutos dos "velhos" atores, o que levou a um desencantamento com a sua putativa
capacidade de operar mudanças profundas no âmbito institucional, mais a revelação das aporias
das políticas de identidade, neste caso, pela perda de capacidade de negociação devido ao
purismo e à intransigência política ou ao cansaço mesmo com a militância exaustiva e sem
resultados na proporção esperada.
A crise dos anos 80 colocou quatro questões para os movimentos e seus teóricos: (1) os
movimentos não são um substituto do proletariado, nem têm um projeto abrangente de
sociedade nos moldes da representação moderna da mudança, herdada da teoria social do
século 19 (cf. Somers e Gibson, 1995; Laclau, 1994; 1996c; Melucci, 1989); (2) o Estado não é
meramente o inimigo, de forma que se pode atuar em algumas áreas no seu próprio interior (que
já não é mais pura internalidade estatal, pois se define pela presença de setores não-estatais -
ONGs, conselhos, fóruns, etc.); (3) a diferenciação interna no campo popular - ONGs se definem
como atores políticos independentes dos movimentos e associações populares, embora
articuladas a estes; (4) a articulação entre diferentes sujeitos, anteriormente dissolvidos no
campo popular, inicialmente vista como estratégia de sobrevivência política, como soma de
interesses particulares, numa conjuntura adversa à politização (início dos anos 90, com a maré
rompante do discurso neoliberal, no caso brasileiro, marcada pelo decisionismo maníaco da era
Collor), posteriormente, vai dando lugar à percepção, por parte de alguns atores (especialmente
as ONGs), de que esta soma altera a identidade das partes. Momento em que a prática desses
atores passa a se nortear por caminhos próximos da leitura pós-estruturalista48.
Por outro lado, os anos 90 trazem uma percepção de que não somente há muitos espaços da
política, mas também se quer preservar alguns espaços da politização (e não simplesmente da
política convencional). Passados os anos de intensa mobilização seja em função da
consolidação de uma multipolaridade política e cultural onde os movimentos poderiam atuar, seja
em luta pela democratização do estado e da sociedade, no caso dos países latino-americanos,
os militantes vão se deparando com um duplo reconhecimento: (1) o de que a mudança seria de
mais longo prazo do que esperavam, e exigia outras estratégias que não a dedicação em tempo
integral, freqüentemente sublimando outras demandas pessoais em função do "projeto"; (2) o de
que se a política está em toda parte, nem tudo se reduz à lógica da política, especialmente não
ao ritmo estafante e ao estilo exposto da militância. Assim, sem terem que se tornar
conservadores, cínicos ou indiferentes, muitos militantes passaram a valorizar questões de
realização pessoal, ou diante das frustrações com os resultados pífios que a democratização
realmente existente proporcionou, investiram em maior profissionalização ou em projetos de
menor impacto ou custo.
47
Zaretsky resume o processo, para o contexto americano, dizendo que a nova forma de vida política que emergiu
nos anos 60, e que vem a ser chamada nos anos 80 de "política de identidade", "tinha duas características principais:
primeira, uma ênfase na diferença, ao invés da comunalidade; segundo, a comunidade de identidade local ou
particular - tal como o lesbianismo ou a comunidade afro-americana - era vista como o ponto central de identificação
do eu" (1995:198).
48
Conforme Zaretsky, “[o] pós-estruturalismo, portanto, contribuiu para a complicação da política de identidade pela
introdução do que é às vezes denominado de política da diferença, uma política que visa menos ao estabelecimento
de uma identidade viável para suas bases do que à desestabilização das identidades, uma política que evita termos
tais como grupos, direitos, valor, e sociedade em favor de termos tais como lugares, espaços, alteridade e posições
de sujeito, uma política que visa a descentrar ou subverter, ao invés de conquistar ou afirmar” (Zaretsky, 1995:200) -
representação comum das implicações da concepção desconstrutivista da identidade, cada vez mais retificada pelas
qualificações de autores afinados com ela, como o próprio Derrida, Laclau, etc.
Projeto ambíguo, pois ao mesmo tempo pretende resistir à operação de processos constitutivos
dos atores coletivos (identificação, relação com o Outro, deslocamento, antagonismo),
apostando numa certa condescendência do tempo, que voltaria a abrir portas de intervenção
política mais propicias, bem como numa esfera mais "tranqüila" de fruição comunitária que traga
compensações mais imediatas do que a promessa do gozo pleno numa sociedade totalmente
transformada. Ambíguo também, porque busca resguardar seja uma esfera da gratuidade que
não se pauta por uma economia do cálculo e da troca, isto é, do interesse; seja uma esfera da
intimidade e do fútil, não preocupada em produzir qualquer acréscimo de civilização ou de
mudança estrutural ou em se fixar na exposição da esfera pública, mas em
cultivar/aumentar/assegurar realização, felicidade e descanso do ativismo e da labuta diários.
Ora, este projeto de ampliação do não calculável e da intimidade pode sempre resvalar para a
perda do senso de ação pública ou para o recuo puro e simples em relação à mobilização e
participação coletivas, com implicações negativas para as lutas dos grupos subalternos contra o
arranjo de forças vigente. Nessas condições, exige-se uma grande sutileza no levantamento de
bandeiras de gratuidade e restrição do alcance da politização, de forma a assegurar que a
afirmação de uma pluralidade de dimensões ou lugares não redutíveis uns aos outros, mas
relativamente autônomos, não dê lugar ao encapsulamento destes espaços e à despolitização.
Os anos 90 também trazem a crise da crise dos movimentos, ou seja, uma outra maneira de
olhar para a contribuição destes últimos que não os mensura pelos parâmetros de uma
concepção unificada da política (isto é, estadocêntrica), nem do ator histórico hegelo-marxista (a
classe universal revolucionária). De qualquer forma, exige-se menos dos movimentos, sem
abandonar a perspectiva de que estes possuem, sim, um caráter transformador. Apenas a
mudança tem aqui um novo caráter, refletindo um diferente olhar sobre a sociedade e sobre a
capacidade dos atores sociais de encarnarem o princípio de universalidade que representa a
aspiração de mudança/crítica da ordem vigente (como vimos na última seção do capítulo
49
anterior) . Os movimentos sociais - e de resto, a ação coletiva - passam a ser vistos segundo
outros critérios:
Primeiro, o de sua pluralidade, ou seja, a observação trivial de que a ação social se faz a partir
de uma multiplicidade de agências. A diferença é que não se trata de mera constatação, depois
resolvível por meio de um esquema de identificação das demandas ou atores relevantes ou
principais, classificando as demais como acessórias e secundárias, e subordinando-as às
primeiras. Isto sempre se fez. Como agora já não se parte da idéia de sociedade como dotada
de um centro irradiador de efeitos ou uma topografia de níveis superpostos (infra/superestrutura),
as lutas adquirem especificidade e autonomia relativa, não podendo ser simplesmente resolvidas
por "encaixe" ou "rotulação"50.
Nessas áreas ou redes podem contar-se, conforme o caso, outros movimentos; organizações
profissionais, religiosas, culturais; partidos políticos; agências estatais; grupos informais, etc.,
que via de regra não estão presos à territorialidade do movimento e exercem efeitos sobre ele,
ao invés de meramente apoiá-lo subsidiariamente. O importante é que o ator nunca é um grupo
isolado, por mais forte ou representativo que seja do ponto de vista numérico. Em tempos de
retração política, marcado por uma retórica oca sobre a morte das ideologias e o primado da
eficiência e da racionalidade instrumental, nada mais contemporâneo do que o reconhecimento
da necessidade de desenvolverem-se formas de articulação por parte do campo dos movimentos
que possam reforçar o caráter político não somente das questões e repertórios de ação
mobilizados pelos movimentos, mas também dos próprios vínculos "técnicos" ou "instrumentais"
existentes entre os diferentes setores da sociedade e do estado.
51
De forma bastante concisa, Bhabha se interroga sobre estas possibilidades que espreitam as políticas de
identidade: "Como se formam sujeitos no interstício [in-between], ou em excesso, da soma das 'partes' da diferença
(geralmente soletradas como raça/classe/gênero, etc.)? Como vêm a ser formuladas estratégias de representação ou
de empowerment nas demandas concorrentes de comunidades onde, apesar de compartilharem histórias de privação
e discriminação, o intercâmbio de valores, significados e prioridades podem nem sempre ser colaborativos e
dialógicos, mas profundamente antagonísticos, conflituais e mesmo incomensuráveis?" (1994:2).
universalidade, mas pela mesma razão instauraria um agregado babélico que dificilmente se
sustentaria. O seu sucesso mais acabbado seria também seu fracasso mais retumbante.
A questão é enfrentada por Laclau em "Sujeito da Política, Política do Sujeito" (1997). Ele
argumenta que é duvidosa a perspectiva de sucesso desta formulação, mantida a oposição entre
particularismo e universalismo que anima em larga medida os discursos multiculturais. Primeiro,
a afirmação radical da legitimidade das diferenças não pode prescindir de um contexto pluralista
e de outras diferenças culturais, uma vez que nenhum grupo social situado numa comunidade
maior vive uma existência monádica. Segundo, se afirmar simplesmente o direito à diferença
implica em afirmar o direito de todo outro grupo a existir, sem que uns interfiram no jeito de ser
dos outros, então o resultado do multiculturalismo seria o sancionamento do status quo. Se,
entretanto, ao menos alguma(s) das demandas de um grupo forem compartilhadas por outro(s),
o que convenhamos freqüentemente ocorre, então há algo que impede tais grupos de serem
puramente diferentes dos demais.
Por isto, continua Laclau, todo grupo que tenta afirmar a sua identidade de forma inteiramente
distintiva ou contrastiva se depara com dois perigos, opostos mas simétricos: (1) ao afirmar sua
identidade tal qual ela já é, o grupo se condena à marginalidade, à folclorização ou a qualquer
que seja a situação em que se encontrar, uma vez que a economia das relações entre os grup os
seria regida por uma lógica puramente diferencial, não havendo o que atribuir a assimetrias de
poder; (2) ao se insurgir contra a sua situação e ir à luta, o grupo terá que atuar num terreno que
vai além dos limites de sua identidade, envolvendo outros grupos e instituições cujos recursos
suportam o status quo contra o qual lutam; assim, pode ocorrer que o grupo consiga transformar
as instituições vigentes ou que venha a ser cooptado por elas. Qual dos resultados prevalecerá
nunca se poderá dizer antecipadamente. Donde a conclusão de Laclau: "O que é certo, porém, é
que não existe qualquer mudança histórica de vulto em que não seja transformada a identidade
de todas as forças intervenientes. Não existe possibilidade de vitória em termos de uma
autenticidade cultural já adquirida. A crescente percepção deste fato explica a centralidade do
conceito de “hibridização” nos debates contemporâneos" (1997:12). E, mais adiante: "[a]
hibridização não é um fenômeno marginal, mas o próprio terreno em que as identidades políticas
contemporâneas são construídas" (idem:13).
Falar de multiculturalismo é falar, assim, do contexto social em que se coloca hoje a discussão
sobre a diversidade e o pluralismo (cultural, religioso, racial, de gênero, etc.), onde se destaca a
tendência ao aprofundamento das diferenças e das desigualdades entre comunidades
supostamente homogêneas ao mesmo tempo em que numerosos grupos excluídos encetam
uma caminhada de reconstrução de suas identidades (auto-asserção). Diferenciação interna que
acentua a hibridização e alarga a zona cinzenta da negociação da identidade: clivagens
generacionais, ideológicas, religiosas, políticas, de gênero, de renda e graus de acesso a
oportunidades e privilégios; encontros com indivíduos ou grupos de outras origens identitárias
com os quais se desenvolvem laços de identificação ou solidariedade ou se experimentam
sentimentos de rejeição ou reserva; apelos institucionais à uniformidade ou à paciência;
exposição às promessas e exigências do mercado.
A diáspora contemporânea, provindo de uma história de séculos, já não se limita, mas está
sempre associada a alguma forma de migração. A migração produz normalmente situações de
desenraizamento, estranhamento, confusão, angústia e pressões relativas à aquisição das
coordenadas culturais necessárias a fazer a "tradução" da vivência social e subjetiva de onde se
vem para o novo contexto onde se passa a ficar e vice-versa. A migração, seja espacial seja
existencial, instaura contextos de transição em que mesmo quando reafirmamos nossa
identidade original, o fazemos reinventando-a ou salvaguardando o que restou dela num tecido
que inclui marcas e apetrechos de diversos momentos da jornada.
Mas a diáspora não se conclui com a migração e a violência simbólica e física da "aculturação".
O seu elemento distintivo é precisamente a permanência de uma espécie de excedente que
resiste a toda tentativa de fazer-se em casa no novo contexto e de tornar-se um a mais entre os
outros. Excedente que relembra sempre a impossibilidade de total assimilação do modo de ser e
que pode ser vivenciado como vitimização - quando é justificativa para discriminação e exclusão
- ou como resistência - quando está associado à (re)asserção de um cerne do qual não se quer
abrir mão e que é motivo de orgulho, prazer ou força para sobreviver e reclamar inclusão 52.
Nesse caso, a diáspora vem sob a forma de uma errância em que ou se está aberto a mudanças
significativas de rumo ou se "vaga" insatisfeito pelas alternativas com as quais se cruza. A
errância como busca de algo (o falo, o objeto perdido) que nunca se apresenta ou se deixa
representar como tal, inteiramente, algo simultaneamente sedutor e evanescente, para sempre
recuando para um horizonte que nunca chega. Errância que produz efeitos contraditórios: a
angústia da desorientação, que oscila entre arroubos de tenacidade e depressão; o desespero
da entrega sem reservas a ela, uma espécie de salto no escuro da não-identidade, como no
caso da paciente histérica de Monique David-Ménard que mencionamos no primeiro capítulo
(seção 2); o paradoxo da existência bífida, entre o sim e o não, o desejo e a satisfação, opção a
um tempo resignada e rebelde; ou o recuo à autoridade e rotina tranquilizadora da tradição, da
autoridade, da força.
Os três critérios que analisei acima apontam para essa outra visão que questiona o discurso
sobre a crise dos movimentos, no que este tem de desencantado e histérico, sem deixar de levar
a sério as objeções levantadas por ele, uma vez que admite se tratarem de pontos em que a
identificação falhou e a distância entre a demanda e o desejo uma vez mais se apresentou. Não
se está argüindo que as diversas leituras enfeixadas nesta representação encontrem aí o seu
lugar sempre a partir da problemática da identificação. Antes, é ao tomar este significante como
ponto nodal de uma perspectiva do sujeito social como constitutivamente cindido, marcado pela
sua relação antagonística com um outro, e definido em função das questões e situações com
que se depara e dos outros sujeitos com que se relaciona, que se pode oferecer esta solução
hegemônica para o problema.
Mudemos de terreno uma vez mais, e tracemos um quadro da ação coletiva no cenário politico-
social recente da democratização brasileira, de forma a ilustrar alguns dos pontos discutidos ao
longo do trabalho. Segundo o caminho seguido nos dois últimos capítulos, não se trata de fazer
uma psicanálise da ação coletiva no país, mas de trabalhar com conceitos que foram evoluindo
do diálogo com a psicanálise e que revolvem em torno das noções de deslocamento,
antagonismo, identificação imaginária, dialética entre demanda e desejo, caráter hegemônico do
processo de construção de um ator coletivo a partir de múltiplas identidades e formações
discursivas. Nos mantemos distantes, como na primeira parte do capítulo, só que mais ainda, do
52
Um vívido relato desta situação pode ser lido em Presmanes (1996:1-2).
estilo argumentativo, e nos lançamos num exercício que se não pretende ser "didático", assume
que o processo de designação concreta das categorias e procedimentos teoricamente
elaboradas se presta mais à narrativização do que à demonstração apodíctica de suas
"verdades"53.
Assim, temos não somente um outro cuja presença impunha constrangimentos ou ameaças
vitais para os chamados setores populares (o campo das oposições mais o das organizações e
movimentos sociais que sobreviveram à repressão, ainda que manietados a rígida censura e
intervenção), mas mudanças estruturais - na economia e na sociedade - que colocavam sérios
desafios para a identidade tradicional de liberais e esquerdas. Os anos 70 encontram as
oposições e a esquerda em desorientada busca de alternativas de recomposição, no momento
em que dificuldades de reprodução política do modelo (especialmente clivagens internas levando
a problemas sucessórios) e sinais de esgotamento do modelo de desenvolvimento acelerado
com endividamento externo (instados por fatores externos e internos) levam o regime a encetar
uma tentativa de auto-reforma. É neste momento que a "opção" pela exploração das
contradições do regime e ocupação dos estreitos espaços de participação política permitidos vai
levar a uma "descoberta" de que a vigência de uma democracia, mesmo na sua forma liberal
clássica, já representaria uma alternativa infinitamente mais promissora do que a reformulação
do modelo de modernização autoritária.
Do ponto de vista das oposições, a fronteira com o antagonista, o regime militar, já parecia
natural, dada a rígida repartição do espaço político que a ditadura impunha entre os seus
apoiadores e opositores. A representação dual daquele espaço aparecia assim como um dado.
Condições dadas para que a produtividade política de uma relação amigo/inimigo do tipo
schmittiano se colocasse. Como se constituía cada campo?
Ao contrário da leitura espontânea feita pela quase unanimidade dos atores, a associação entre
regime militar, efeitos perversos do modelo de desenvolvimento, incompetência gerencial sobre
as políticas estatais, corrupção política, manipulação eleitoral, insensibilidade social e
agravamento das condições de vida da população e tantos outros signos da negatividade, da
própria negação da ordem comunitária, nunca esteve ao abrigo de contra-evidências e contra-
argumentos. Foi um trabalho hegemônico "costurar" esta associação, até o ponto em que a
democracia proposta se definia por ser contra "tudo o que aí está".
Há uma óbvia relação imaginária em operação aqui, cujo efeito ao mesmo tempo dramatizava as
virtudes do lado de cá, dos democratas, dos perseguidos, dos descontentes, dos reprimidos e
53
Retomo nesta seção, reelaborando livremente, uma série de fragmentos narrativos de uma leitura dos anos 80
produzidos em diferentes oportunidades (cf. Burity, 1994; 1997a; 1997b) e acrescendo observações sobre os anos 90.
debitava na conta do regime toda sorte de dívidas e agravos que se pudesse associar com
aquele. O que seria talvez igualmente óbvio, mas jamais perceptível enquanto a relação dual
prevalecesse, era a relacionalidade entre a unidade das forças oposicionistas (construída por
uma cadeia de equivalências entre posições, grupos e discursos altamente diferentes seja na
sua forma seja no seu conteúdo, todos lançando ao regime demandas que não possuíam
qualquer unidade interna substantiva a não ser o seu impacto excessivo e potencialmente
desestabilizador sobre a capacidade de administração ou repressão do regime) e a unidade do
regime (construída sobre a "evidência" da ameaça subversiva como obstáculo à existência de
uma ordem como condição necessária para o progresso e como uma ardilosa teia de
contestação que poderia proceder de toda parte e desencadear um efeito dominó de
desestabilização da alternativa).
No limite, nenhum dos dois campos correspondia exatamente à representação que de si fazia o
inimigo. Mas cada parte tinha certeza de poder enumerar todos os indicadores que objetificavam
suas acusações à outra e simultaneamente produziam um efeito de solidez e inelutabilidade para
as soluções apresentadas por cada uma: não havia porque não recusar toda e qualquer iniciativa
do regime como irresponsável, equivocada ou manipulatória; não havia como não ler nas
manobras e falas da oposição (já, também, devidamente agrupada para representar "tudo o que
se insurge contra a ordem") o efeito desintegrador sorrateiro da subversão, do comunismo, da
anarquia, da negação da moral e dos bons costumes e dos fundamentos cristãos da sociedade
brasileira.
Nova classe operária, novos atores sociais, parcial descentramento da idéia tradicional de uma
"aliança operário-camponesa": o campo da democracia de base inclui setores da(s) igreja(s), da
imprensa liberal, da intelectualidade acadêmica, os estudantes, "os movimentos sociais", os
diversos partidos de esquerda que, desde inícios dos anos 80 já se faziam contar, tudo isto
somando-se aos "velhos" operários, trabalhadores rurais, partidos comunistas, etc. Um leque de
setores cuja unidade dependia, rigorosamente, da sintonia do regime com todos os efeitos
negativos do deslocamento produzido pela mudança na forma do estado e na configuração
economico-social moderna do país.
Esta estratégia, fica claro, não admitia a possibilidade de negociar uma saída do autoritarismo,
exceto pela derrota do bloco no poder e/ou tendo como interlocutores exclusivamente as forças
de oposição. Não se podia mudar o estado de dentro. A democracia emergiria como um projeto
integralmente alternativo, desde baixo, que excluía em princípio composições com o status quo.
O que vinculava todos estes grupos à democracia? Não um acordo substantivo quanto ao
conteúdo do termo, não uma unidade estratégica com vistas a sua consecução, não uma
homogeneidade de setores e grupos em sua composição. A identificação com a democracia se
dava a partir de investimentos objetais múltiplos - democracia como promessa de liberdade de
expressão religiosa, como liberação de costumes, como maior interação entre líderes e
liderados, como racionalização do processo político, como átrio da equalização de condições
(Tocqueville), como nome atualizado do socialismo, como perspectiva de dignidade humana dos
pobres, como fim da tortura, como pluralismo ideológico, como direito de reclamar e exigir sem
sofrer danos físicos ou morais, como possibilidade de nos alçarmos à modernidade e aos frutos
do desenvolvimento, como objeto de investigação dotado de referentes empíricos para além de
pretensões deontológicas - enfim, uma pletora de motivos, não inteiramente conciliáveis entre si
e mais ainda, até certo ponto unilaterais, ou seja, dispostos a interromper ou moderar o perfil
oposicionista tão logo suas demandas particulares fossem razoavelmente contempladas no novo
arranjo.
O caráter barrado do outro em quem se projeta a resposta final para o furo do real não tardou a
ser percebido, primeiramente pelos autonomistas, depois pelos que de dentro da estratégia
transicional, permaneciam "exigentes" de maior "conteúdo" para as práticas e instituições da
nova democracia. A perpetuação e ampliação de espaço de velhos setores das elites
dominantes no novo pacto de poder, beneficiada pela "inocência" da retórica liberal-democrática
(diga-se de passagem, que boa parte do liberalismo que foi identificado como interlocutor da
esquerda transicional teve que ser literalmente inventado por esta, somente correspondendo
muito parcialmente a interlocutores reais), incompetência na condução da política econômica
(especialmente na luta contra a inflação e o deficit público), erros de avaliação política
(especialmente quanto à possibilidade de conter o lado conservador da aliança sob a hegemonia
da esquerda democrática), extrema timidez das iniciativas na área social, demagogia e mesmo
casos de corrupção no governo de transição foram dessublimando a aura da democracia
realmente existente.
Nem a via transicional era garantia de chegada à "democracia desejada", nem a construção da
"democracia necessária" coincidia naturalmente com as aspirações dos amplos segmentos da
população que transferiram à democracia sua aposta de realização coletiva e mesmo individual.
Um "excedente" de demandas e expectativas de gozo permanecia que implicava muito mais do
que a agenda da transição admitia e reavivava a promessa contrafactual da via autonomista:
agora era até possível redescrever a transição como uma continuidade do autoritarismo por
outros meios, e repetir insistentemente a proposta de uma alternativa "nítida", não pactuada com
as antigas elites, nem com seus novos aliados da antiga oposição. Assim é que nas eleições
presidenciais de 1989 como que se assiste a uma reinstauração do debate sobre as tarefas não
realizadas da transição. Um candidato inteiramente identificado com a via autonomista desponta
como a grande possibilidade de fazer-se o que deveria ter sido feito, principalmente na ausência
de qualquer candidato minimamente viável afinado com a via transicional. Capaz de interpelar
quase todo o campo do “novo” associado às mudanças econômicas, sociais e políticas das duas
décadas anteriores, Lula acenava com a possibilidade de se reeditar a fronteira do momento em
que nascera a transição, só que agora com “a gente certa do lado certo”.
É importante perceber como esta desmontagem ao mesmo tempo tão extensiva e tão intrigante -
pois a sua necessidade está longe de se demonstrar por si só - exprime um abalo sísmico na
hegemonia ainda exercida pelo campo da (centro-)esquerda (em inteira desproporção ao seu
número) no cenário político-cultural do país, anunciando uma nova configuração político-
ideológica sob hegemonia liberal-conservadora. O novo ponto de condensação da ordem
exorbitou e transtornou os eixos de referência das identidades que gravitavam em torno da
esquerda, dispersando-as para se rearticularem segundo novos critérios ou a novos
parceiros. É este o momento das “surpresas”, quando se vai descobrindo - muitas vezes a
contragosto - que antigos companheiros de luta se bandeiam para o lado do “adversário”, ou
caem no cinismo, no ceticismo, na indiferença. Quando se percebe que bandeiras tão
rigorosamente justas são facilmente rechaçadas pelo retorno de um discurso da carência,
escassez ou indisponibilidade de recursos, necessidade de racionalização ou priorização de
certos cursos de ação sobre outros, ou simplesmente descartadas por terem “envelhecido” ou
perdido apelo de massa, por não “venderem” mais...
Pode-se compreender por quê, no caso, todos os esforços de recomposição do campo popular,
todos os sinais ou experiências bem sucedidas de alternativas à doxa vigente são ignorados ou
lançados na vala comum das exceções ou dos casos “interessantes” a serem replicados,
reproduzidos em escala, numa variedade de outros contextos, pela mão de outros sujeitos e
articulados a outros sistemas de referência (valores, modelos, estratégias, etc.). O efeito
ideológico de reiteração da naturalidade e da pura facticidade das coisas - “só um louco não vê
que é assim”, ou “todos sabem que”, ou “não há como não admitir que” - acompanha toda
hegemonia e transforma-a igualmente num regime de verdade. Ante a fortaleza de suas
evidências uma formação hegemônica busca reduzir toda oposição a um desvio ou quimera. Aos
olhos de quem se encontra sob o regime de verdade hegemônico, as alternativas apresentadas
não somente soam, como literalmente são, improváveis, desarticuladas e equivocadas. É
somente um contexto de deslocamento da identidade hegemônica que permite dar alguma
plausibilidade à proposta mítica que provém dos antagonistas à ordem vigente. Isto se viu por
diversas vezes na política nacional recente - e resultou em oscilações da opinião pública ou do
eleitorado com efeitos concretos sobre projetos políticos ou políticas públicas.
Outra possibilidade aberta pelo afrouxamento do vínculo antes exercido pela imagem do campo
democrático como incluindo todas as posturas anti-autoritárias, liberando as identidades para se
rearticularem segundo outros critérios, tem a ver com a banalização de certas bandeiras -
temas ou recursos estratégicos - que se desgastam e se privam de vínculos com os conteúdos
originariamente associados a elas. Tome-se os exemplos da idéia de alianças ou composições
de frentes políticas, no âmbito da política institucional, ou da idéia de parceria entre diferentes
atores sociais na implementação de objetivos sociais.
No caso das alianças, sua produtividade retratava uma série de conclusões estratégicas a que
tinham chegado os setores oposicionistas nos últimos anos do regime militar. Primeiro, o duplo
reconhecimento de que não se tinha forças para avançar sozinho - uma vez que a crise do
regime não se manifestava como perda de sua capacidade repressiva, mas decorria da sua
perda de capacidade de se legitimar por meio da performance econômica e do acirramento de
divergências internas quanto o caminho a seguir (incluindo-se o problema da sucessão) - e de
que era possível explorar essas divergências internas em benefício da democratização.
Segundo, uma idéia mais sofisticada da multipolaridade do processo de mudança política, que
levava a admitir que interesses distintos pudessem compartilhar uma série de elementos comuns
seja quanto aos meios de que se utilizarem para realizá-los, seja quanto à expectativa positiva
de que a ampla vigência democrática proporcionaria um medium mais favorável à consecução
de cada objetivo. Não era preciso, portanto, concordância em tudo, só se precisava assumir
cuidados em relação a quem teria a hegemonia do processo. Terceiro, uma percepção de que a
política nunca se dá entre atores homogêneos e radicalmente distintos entre si, mas no espaço
de negociação que os diferentes atores definem. As alianças, então decorreriam do fato de que
não existe política de classe em sentido estrito, nem qualquer ator sozinho pode realizar
integralmente o seu projeto sem minimamente alterar sua formulação original, seja porque
necessita de apoios e alianças para conseguir a hegemonia, seja porque esbarra na resistência
de outros cujos objetivos lhe são contrários.
Não há, porém, nenhuma garantia de que a costura de uma aliança se configure numa
articulação - entendendo a primeira como um arranjo de forças distintas fundado numa lógica
instrumental, e a segunda uma composição de caráter mais orgânico, mas na qual a identidade
de cada elemento muda decorrentemente. Em outras palavras, não há garantia de que os
grupos ou objetivos “menores” não acabem tendo um peso desproporcional no interior do
arranjo, descentrando-o sistematicamente e desfigurando, a médio ou longo prazo, sua armação
inicial ou seu projeto. Não há garantia de que, pela pressão dos antagonistas, o ator ou projeto
hegemônico não se defronte com a impossibilidade de realizar-se ou mesmo seja induzido a
decisões que o transfigurem ao ponto de torná-lo irreconhecível.
O caso da parceria não é menos ilustrativo, embora cumpra que sejamos mais breve a esse
respeito. São conhecidas as dificuldades de reunir recursos materiais e humanos para a hercúlea
tarefa de enfrentar a dívida social que condena milhões de pessoas à pobreza e à falta de
perspectivas. Não é possível esperar-se do estado que assuma todos estes custos,
principalmente à luz do esgotamento do modelo de intervenção estatal vigente no país até
meados dos anos 80. Tampouco pode-se esperar que a boa vontade política de elites
historicamente (e isto se estende ao momento do hoje) descomprometidas com a implementação
de políticas sociais responsáveis e agressivas. Assim, surgem duas frentes para se tentar
remediar a gravidade dos problemas, uma referenciada na iniciativa estatal, outra na iniciativa da
sociedade civil, mas em diversos casos convergindo para um campo que nem é estatal, nem
privado, mas é público. Ambas revolvem em torno das idéias de parceria e solidariedade.
No caso da iniciativa social, a questão da parceria já se coloca nos anos 80 e tem nas ONGs seu
principal locus. É por meio delas que o termo, oriundo do vocabulário da cooperação
internacional (“partnership”), passa a circular no discurso da militância social, para significar uma
forma de relação entre diferentes que não se baseia na assimetria dos recursos (materiais,
humanos, de poder ou simbólicos) originalmente possuídos por cada parte, mas num tratamento
mútuo em pé de igualdade. Não apenas isto, mas a parceria implica algo mais do que realizar
ações conjuntas, exigindo a discussão de meios e fins. A parceria demanda propriamente o que
chamei acima de articulação (novamente, não é acidental que este termo também tenha se
popularizado a partir do jargão das ONGs). Ela certamente implica no reconhecimento de que
não se pode fazer sozinho ou de que o adversário é muito poderoso para ser derrotado sem uma
ação concertada - como no caso da iniciativa estatal. Mas também exige compromissos dos mais
fortes no interior do campo articulatório de respeitar as diferenças e abrir espaço para sua efetiva
expressão e consideração no momento de definir ou executar os cursos de ação necessários.
Tudo o que foi dito nesta seção, aparentemente tão sem conexão com a teorização proposta nos
capítulos anteriores, vai na direção de ressaltar os efeitos analíticos que uma perspectiva como a
sugerida neste trabalho enseja na análise política concreta. O caráter descentrado das
identidades emerge na narrativa como deslocamento, como incompletude e contingência na
formação e no transcurso da ação coletiva, como incapacidade de constituição de um ator
unificado e homogêneo (ou de sua existência previamente às alianças ou articulações), como
fracasso último de toda proposta de estabilização/completude de uma forma de ação coletiva. O
processo identificatório emerge nas tentativas de contornar os desafios, impasses ou ameaças
do antagonismo, da presença do Outro que acena com respostas e soluções para os problemas
não resolvidos ou remanescentes de outras tentativas de ordenação, da pluralidade de visões e
alternativas com que se confrontam (e, em larga medida, têm que negociar) os atores. A
dimensão simbólica - ou sobredeterminada - da atuação social e política, que requer atenção
para os jogos de linguagem em torno dos quais o desejado e o possível têm seus limites
definidos. Cada uma dessas situações se liga a questões políticas com as quais se associam as
categorias de ordem, projeto, hegemonia, participação, articulação, mudança. Minha expectativa
é de que, via outro “estilo” de exposição, as questões colocadas nestes últimos termos, no
decorrer do trabalho, tenham cobrado a vivacidade ou a concretude que as remissões narrativas
à história vivida prometem (e nem sempre cumprem!) assegurar.
CONCLUSÃO
Minha investigação não pretendeu resolver todos os problemas com que se defrontam os atores
sociais pela introdução de mais esta variável. O que quis realçar foi antes a possibilidade de sair
da paralisia dos discursos sobre a morte do sujeito sem ter que abraçar a euforia do retorno ao
sujeito livre, soberano e maximizador do liberalismo. Insatisfeito com estas alternativas, fui
buscar - e quão enganosa é esta primeira pessoa! - em alguns dos discursos que vêm pensando
a problemática do sujeito recursos para pensar uma saída para este momento "pós" que nos
atormenta como um enigma. Ciente de alguns outros debates ora em curso - mas de forma
alguma recém iniciados - sobre questões relativas ao saber e ao poder, assumi distância da
pretensão de transformar a psicanálise num novo fundamento para o discurso sobre o(s)
sujeito(s) social(is). E isto seja devido à historicidade e limites do próprio discurso analítico, seja
devido à particularidade do seu ponto de vista face a outras portas de entrada a este labirinto
que nos é a experiência da contemporaneidade.
Sendo assim, foi necessário não somente explicitar a concepção psicanalítica da subjetividade,
mas por em discussão os vínculos entre psicanálise e política e as "extensões" da problemática
da identificação para uma leitura da ação política na contemporaneidade que, por fim, já terá
podido lançar fora a escada em que subiu (como sugeria Wittgenstein se fizesse com seus
conceitos e argumentos) sem precisar negar a contribuição inestimável que dela recebeu.
Duas possibilidades se abrem, no campo das relações entre psicanálise e política para proceder
a um tal exercício de interpretação "aplicado". A primeira seria por o foco na dimensão da
singularidade e explorar a dinâmica das identificações conducente à formação de um ator
coletivo com base nos investimentos de objeto de diferentes indivíduos, à maneira da análise
realizada por Freud, por exemplo, em Psicologia de Massas. A segunda alternativa é, através de
um trabalho de reconstrução analítica, "passar" dos conceitos psicanalíticos aos políticos e vice-
versa, transgredindo a pretensão de possuírem um sentido preciso e estável a ser "negociado"
naquilo que não for essencial, no ato de serem "aplicados". Neste caso, o conteúdo "apropriado"
dos conceitos em ambos os campos é subvertido, por meio de uma série de intervenções que
vão reconstituindo a uns e outros até chegar a um outro lugar que nem corresponde ao solo
pátrio dos conceitos na psicanálise nem na ciência política. Foi este segundo percurso que se
seguiu privilegiadamente neste trabalho. Não que o primeiro seja descabido, mas corre o risco
de reduzir-se a uma espécie de aventura pelo território do outro, com a certeza de poder voltar
na hora em que as dificuldades ou o desconhecido surgirem. O segundo não corre menos o
risco, mas assume-o como sendo parte integrante da viagem e prenúncio de possíveis "extravios
de correspondência".
Ora, a idéia da política tendo lugar num centro/como um centro, seja ele ocupado/representado
pela figura do líder ou do governante, seja pelo Estado, é precisamente o que, desde fins dos
anos 60 vem sendo insistentemente posta em questão na teoria e na prática das sociedades
ocidentais. O centro-em-falta, multiplicado e intotalizável (cf. Derrida, 1967) passa a compor uma
representação da política que reclamaria outra articulação do discurso psicanalítico. Nesta,
destacam-se três pontos: (1) a dispersão existe sempre apenas em relação a uma estrutura em
vias de descentramento, nunca havendo diferenças puras previamente a sua unificação integral
(forçada) a um projeto identificatório; (2) a unidade é sempre parcial e contextual, e contudo
indispensável, sendo não somente uma fonte de mal-estar/desajuste social, mas também uma
condição de bem-estar; (3) o discurso clássico da psicanálise não se dá os meios de imaginar
uma configuração política em que o narcisismo das pequenas diferenças encontraria condições
relativas de institucionalização por meio de uma política da diferença e da hegemonia.
Uma coisa é dizer que a ordem política pode ser sempre e a qualquer momento questionada
pelas insatisfações pulsionais das massas (Birman, 1995:62). Outra é dizer que tal ordem é
centrada e que a política - ou o campo do poder - é o que inclui os indivíduos dispersos num
projeto identificatório único (estatal). Se ambas as afirmações são leituras legítimas do legado
freudiano, somente a primeira pode ser mantida nas condições contemporâneas. A figura
freudiana do pai como representante da lei, como responsável pela realização da justiça e a
distribuição equitativa dos prazeres entre os filhos se coaduna à imagem uniforme e centrada do
poder político até meados deste século, mas precisa ser pelo menos relativizada ante o
descentramento da esfera pública do estado para múltiplos centros, espaços públicos não-
estatais (seja na imagem clássica da sociedade civil, seja na mais recente do “terceiro setor”), em
que os projetos identificatórios são plurais e parciais, sendo o desafio não sujeitar-se ou não a
um deles, mas como administrar o pertencimento a vários deles, como dividir bem as lealdades.
Marcada a distância relativa que nos separa da concepção da política com que trabalha o
discurso clássico da psicanálise, nosso esforço foi no sentido de investigar a relação da
psicanálise com a questão da identidade de forma a por em foco nosso problema básico:
interrogar a capacidade do conceito de identificação em dar conta do caráter compósito,
articulado e contingente dos atores coletivos na cena política contemporânea. O resultado da
incursão poderia ser resumido nas seguintes proposições:
O sujeito não é um ente acabado, que penetra no espaço social para aí expressar uma
identidade; tampouco é um ser unificado, igual a si mesmo, que se acerca dos demais para
"trocar" pensamentos e energias.
O sujeito só emerge na e pela ordem simbólica (linguagem, cultura, tradição), por meio da
fixação de/a um significante e, a partir deste, a construção retroativa do que é. É na ordem
simbólica que o sujeito se fixa a um significante (não somente nem definitivamente um, é
certo), que o representará para outro significante (representante de um outro sujeito, etc.).
Mas como a linguagem se faz apenas com diferenças (significantes) e não com substâncias
(significados), a verdade/sentido do sujeito não está lá tampouco. A falha não está só do lado
do sujeito, mas ele em princípio entende que apenas se equivocou na sua escolha de objeto e
vai adiante no jogo das identificações.
A identificação, por outro lado, não é mera impossibilidade de sentido. Existe fixação, embora
parcial e contingente, em torno de pontos nodais.