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PSICANÁLISE, IDENTIFICAÇÃO E A FORMAÇÃO DE ATORES COLETIVOS

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Joanildo Burity
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Fundação Joaquim Nabuco
Instituto de Pesquisas Sociais
Departamento de Ciência Política

PSICANÁLISE, IDENTIFICAÇÃO
E A FORMAÇÃO DE ATORES COLETIVOS

Joanildo A. Burity

Recife, Outubro de 1997


“Se aceitarmos que todas as identidades são relacionais e que a
condição de existência de qualquer identidade é a afirmação de
uma diferença, determinação de um „outro‟ que desempenhará o
papel de „elemento externo constitutivo‟, torna-se possível
compreender a forma como surgem os antagonismos. No
domínio das identificações coletivas, onde o que está em causa
é a criação de um „nós‟ pela delimitação de um „eles‟, existe
sempre a possibilidade de esta relação nós/eles se transformar
numa relação do tipo amigo/inimigo; por outras palavras, pode
sempre tornar-se política, no sentido que Schmitt dá ao termo.
Isto pode acontecer quando o outro, que até aí só era
considerado sob o prisma da diferença, começa a ser
compreendido como negando a nossa própria identidade, como
pondo em causa a nossa própria existência. Desse momento em
diante, qualquer relação do tipo nós/eles, seja religiosa, étnica,
nacional, econômica ou outra, torna-se o centro de um
antagonismo político” (Chantal Mouffe, O Regresso do
Político).



“Cultural contradictions, disjunctive historical spaces,


identifications created on the crossroads - these are the issues
that the arts of cultural hybridization seek to embody and enact
rather than „transcend‟. It is an art that is no less valuable
because it takes what is unresolved, ambivalent, even
antagonistic, and performs it in the work, underlining the
struggle for translation”.

“The anxiety of belonging encourages us to choose to live in a


house whose shifting walls require that stranger and neighbor
recognize their side-by-sideness, their lateral living, because
„This house is strange./ Its shadows lie. / Say, tell, me, why
does its lock fit my key?‟” (Homi K. Bhabha, On Hybridity)
Para Gil.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 5

CAPÍTULO 1 - A TEORIA PSICANALÍTICA DA IDENTIFICAÇÃO 10

1. Formação do sujeito e identificação: o legado de Freud 12

2. Identificação e a lógica do significante: primazia da linguagem e formação do sujeito em Lacan 17

3. O Outro transverso: linguagem, antagonismo, ideologia 25

CAPÍTULO 2 - ARTICULANDO PSICANÁLISE E POLÍTICA: A CONSTITUIÇÃO DE UM


NOVO CAMPO 29

1. Problemas Conceituais da Articulação: plurivocidade das noções de sujeito, linguagem, discurso e o social 29

2. Psicanálise e Política: Diálogos na Fronteira 31

3. Psicanálise e a crise do discurso totalizante da Política: reemergência da questão da subjetividade 34

4. Psicanálise, poder e diferença: sujeito da política x sujeito do inconsciente? 37

CAPÍTULO 3 - IDENTIFICAÇÃO, ALTERIDADE E A POLÍTICA DO SUJEITO DIVIDIDO41

1. Crise do universal, crise do político? 42

2. Desconstrução e identidade/sujeito: descentramento e responsabilidade 45

3. Deslocamento, a falha na estrutura e a constituição hegemônica do ator coletivo 50

Capítulo 4 57

MOVIMENTOS SOCIAIS, IDENTIDADE E PLURALIDADE DO SOCIAL 57

1. Os movimentos sociais e a saga de uma nova concepção do sujeito da política: do preâmbulo ao epílogo and back
again 58

2. A formação de atores coletivos: uma narrativa dos caminhos da política no Brasil pós-1974 63

CONCLUSÃO 72

BIBLIOGRAFIA 76
INTRODUÇÃO

N
os anos 60 e 70 anunciou-se estrondosamente a “morte do sujeito”, em meio à descoberta
de que a liberdade soberana, autônoma, com que o iluminismo definia o agente humano,
era nada comparada à força da “estrutura”. Sistema, organização ou modo de produção, as
faces e nomes da estrutura apontavam todas para um conjunto de restrições e
balizamentos que condicionavam fortemente qualquer pretensão de movimentação, criação e
iniciativa dos agentes descoladas das teias de relações e posições definidas pela estrutura. Veio
1968, vieram os anos 80 e os chamados novos movimentos sociais puseram em xeque não
somente a noção de uma estrutura auto-centrada e invulnerável, mas também as tentativas de
compreendê-los à luz de marcos da ação coletiva desenvolvidos em moldes estruturais 1.
Manteve-se, no entanto, em larga medida, a expectativa de que os movimentos retomavam a
linha voluntarista e autonomista que marcava o conceito iluminista de sujeito. Sob a influência do
marxismo que predominava como modelo de análise, à figura do proletariado como sujeito
universal veio se somar, ou substituir, a dos movimentos. Se a classe não mais era suficiente
para dar conta da pluralidade interna de posições, lugares e formas da ação coletiva, os
movimentos surgiam como soluções para os impasses da política de classes, como novos atores
hegemônicos.

Sobreveio a crise dos movimentos, em fins dos anos 80, tanto no registro da política “real”
quanto no do imaginário: ante a decomposição do modelo socialista e a derrota das posições
mais à esquerda no cenário nacional (e continental), percebeu-se que se havia projetado demais
sobre os movimentos, incompreendendo seus limites (externos) e limitações (internas). Para
muitos, no entanto, tal constatação veio como uma segunda morte do sujeito: não só a classe
não podia ocupar o lugar do sujeito universal da revolução, mas também os movimentos haviam
fracassado no intento (entenda-se: intento que tais movimentos nunca formularam
explicitamente, senão pela boca dos militantes da esquerda organizada partidariamente ou dos
analistas sociais). Assim, não só a via movimentalista fora derrotada politicamente, como foi
2
dada por esgotada enquanto imaginário . Sobre suas cinzas reemergiria, supostamente
triunfante, o sujeito autônomo, narcisista, vindicado da estapafúrdia pretensão de subordinar a
"criatividade" e a "liberdade" a ditames coletivos ou comunitários! Os anos 90 trariam, então, de
volta à cena, o sujeito liberal, o sujeito hedonístico, o sujeito individualista-possessivo, o sujeito
associal - variantes nem sempre idênticas ou superpostas, mas todas signos de uma mutação: a
lógica do mercado teria enfim vencido a lógica coletivista, o mundo voltaria a ser o império dos
fragmentos e da individualização, regidos apenas pelos desígnios da competição e do interesse
próprio.

Noutra frente, acolheu-se a via movimentalista como única alternativa ao modelo totalizante de
política que, este sim, teria mostrado não somente seus limites mas sua perniciosidade. Não se
trataria de uma crise da subjetividade mudancista, mas da forma da política que a animava. Aqui
duas vertentes se colocaram, já na segunda metade dos anos 80 e, resolutamente, a partir da
constatação da crise “final” do socialismo real e dos efeitos perversos da maré liberalizante que

1
- A análise de classes marxista havia se beneficiado largamente da onda estruturalista para questionar o
individualismo ativo ou passivo da ideologia liberal que antes mascarava o caráter de classe desta última, e
preconizando a necessidade de uma política classista como forma de enfrentá-la e neutralizá-la.
2
Estou usando o termo "imaginário" aqui no sentido de um horizonte em que se inscrevem diferentes percepções ou
discursos sobre o social, o indivíduo, a história, a política, a cultura, etc. a partir do compartilhamento, não tanto de
conteúdos idênticos, mas de regras de produção de sentido e da utilização de alguns significantes comuns. Na
terminologia lacaniana que aparecerá em outras partes do texto, o imaginário diz respeito a um dos registros da
subjetividade através do qual se dão as identificações pelas quais o sujeito tenta administrar sua falta, sua
incompletude constitutiva.
acompanhou e seguiu-se àquela. Ambas as vertentes retomaram o voluntarismo autonomista da
concepção moderna de sujeito por meio da categoria de identidade. Uma primeira, à esquerda,
assumiu definitivamente a fratura do sujeito-classe em inúmeras posições de sujeito, e iniciou a
articulação de políticas da diferença. Política de afirmação de identidades particulares,
irredutíveis à política de classe ou do individualismo possessivo, ao mesmo tempo coletivas e
localizadas, que atuariam de forma direta nas brechas abertas em ou ensejadas pelo sistema
(especialmente no domínio dos direitos e das instâncias de representação não-parlamentar da
esfera estatal). Uma segunda vertente, à direita, tomou a afirmação de identidades não apenas
como uma forma de resistência, mas principalmente como negação dos valores universalistas
adotados a partir do trauma das guerras mundiais e do fenômeno totalitário - valores que tinham
nos direitos humanos sua expressão mais acabada -, afirmando a diferença (étnica, moral,
religiosa, regional, nacional, etc.) como critério de apartação, como forma de vida atormentada
pela presença das demais. Xenofobia, moralismo e intolerância tornam-se moeda corrente
dessas políticas de identidade3.

Em todo este movimento - que é simultaneamente prático e teórico, envolvendo ações concretas
e dilemas conceituais - permaneceu intacta, em larga medida, a figura do sujeito como
fundamento seguro da ação social. Seja como agente individual, seja como ator coletivo (e a
própria ambiguidade das categorias de sujeito, agente, ator e indivíduo faz parte do problema),
assume-se sem maiores problemas que ao sujeito corresponde uma identidade própria e plena.
Se esta não se afirma inteiramente ou coerentemente num dado momento, isto se daria por
constrangimentos externos (do estado, da sociedade, de outros sujeitos) ou por um
desconhecimento de si próprio e de seu lugar na história (alienação, falsa consciência). Em
ambos os casos tratar-se-ia apenas de afastar o bloqueio e a identidade viria à luz em toda sua
cintilância e vigor.
4
Este jogo da identidade - pelo qual se postula um outro que a ameaça, constrange ou impede, e
se propõe a afastá-lo, neutralizá-lo ou mesmo exterminá-lo como condição para ser “de fato”
quem já se é "de direito" - está no centro da problemática da ação coletiva hoje. E, no entanto,
as perspectivas predominantes têm perdido de vista precisamente o que a configuração deste
jogo revela sobre a inconsistência constitutiva do sujeito. Não no sentido banal de
contraditoriedade ou malformação, mas no sentido de uma heterogeneidade interna, plástica e
sobretudo inconstante, provisória, que estaria na base da formação de todo sujeito - individual ou
coletivo. Pois o jogo da identidade, longe de expressar um choque de entes positivos, objetivos,
plenamente constituídos previamente ao conflito mútuo, exprime ao mesmo tempo a relação
imaginária que se estabelece entre os contendores e a relação identificatória pela qual o que se
é está presente/ausente no outro. Em ambos os casos, a identidade não é um bem, um objeto
positivo que se possua, mas só existe na relação com o outro. Se o outro apresenta
características emuláveis, quer-se ser como ele/a. Se o outro repugna de algum modo, quer-se
ser contra ele/a. Mas isto significa que não existem identidades em estado puro, nem jamais se
chega a concluir a formação de uma identidade. O sujeito é um precipitado de práticas
identificatórias, a identidade é um momento instável da prática da identificação.

Chegamos, assim, ao cerne de uma formulação para a qual cremos ser a psicanálise um
referencial extremamente importante de reflexão e construção teórico-prática. A categoria de
identificação é fundamental à concepção do sujeito da psicanálise, pois traduz o caráter

3
Uma certa oscilação será permitida ao longo deste trabalho em relação ao uso da expressão "política de identidade".
Como ela é bastante usada na literatura pós-estruturalista de forma genérica, em muitos casos recobre o que chamei
de políticas da diferença. Neste caso, seu significado será mais neutro ou analítico. Em outros momentos, a
expressão designará estritamente esta variante conservadora ou, se quiserem, fundamentalista, associada a
movimentos racistas, moralistas ou politicamente reacionários. Confio que o contexto, em cada caso, não deixará o
leitor em dúvida atroz.
4
- “Outro” que pode ser múltiplo: quer um indivíduo, quer um pequeno grupo social, quer um campo onde se
colocariam diferentes grupos em oposição ao campo “de cá”, quer toda uma cultura ou forma de organização social. É
antes do lugar ou dimensão do outro que se trata, e não tanto deste ou daquele ente no mundo.
descentrado da subjetividade individual, o lugar do desejo na “afirmação” da identidade do
indivíduo (este termo mesmo se torna contraditório, pois o que é próprio do sujeito é ser dividido
em si mesmo) e o vazio impreenchível que o impele para a frente e que é outro nome para sua
“vida”. Constituído num lugar que não é o seu próprio, mas do Outro (simbólico, cultural, social),
ao mesmo tempo em que "perde" algo que lhe caracterizava num antes ao qual não pode
remontar objetivamente, e que buscará permanentemente reencontrar, o sujeito emergirá a cada
momento em que o(s) objeto(s) em que "depositou sua confiança", por meio da identificação,
revelam-se aquém da expectativa. O sujeito emerge na falha da estrutura (do Outro) de garantir
a estabilidade da identidade até então vigente. Heterogêneo no plano mais singular de sua
"individualidade", diferente de si mesmo, o sujeito tampouco poderá alcançar a identidade a si, a
homogeneidade e completude, no plano coletivo: os atores coletivos são construtos compósitos,
mobilizados em torno de uma exterioridade que, como disse acima, os ameaça ou desafia, ou
seja, os desloca, fornecendo-lhes as condições de aglutinarem grupos e pessoas díspares em
torno de uma "preocupação" ou "demanda" comuns, mas ao mesmo tempo lhes impedindo de se
apresentarem como identidades sólidas e naturais, dado que o que são depende
irrecusavelmente do outro a quem "elegeram" como objeto de sua agressividade ou do seu
amor.

O argumento aqui desenvolvido, desta maneira, procura responder a algumas questões: como a
categoria da identificação poderia servir a uma reflexão sobre a ação coletiva? Seria possível
utilizá-la num contexto em que não é um indivíduo e sua trajetória de vida que está em questão,
sem forçar uma transposição artificiosa? Não se estaria de volta à “morte do sujeito” e, assim,
fechando a porta pela qual as energias da resistência à hegemonia neo-capitalista poderiam se
expressar? Que diferença faz se a identidade dos atores coletivos é una, plural ou imaginária
(identificatória)? O importante não seria como eles se articulam estrategicamente para atingir
5
objetivos específicos?

Este trabalho se preocupa em afirmar a importância de se repensar a categoria do sujeito, não


para negá-la, mas para explorar os processos políticos que a informam. Neste sentido, entendo
que a caracterização da subjetividade feita pela psicanálise pode sim ser deslocada do setting
analítico, da relação analista/analisando, e articular-se a uma interrogação política sobre a
heterogeneidade constitutiva dos atores coletivos. Não mera diversidade de grupos que vêm a
compor um ator coletivo. Isto pode ser admitido sem qualquer recurso à categoria de
identificação, a partir de termos como “aliança”, “composição”, ou mesmo no uso corrente de
“articulação”6. Mas, heterogeneidade relativa ao que seria a identidade expressa por este ator,
tomando-o já como um ente positivo: um movimento, uma organização, uma instituição, uma
classe. Heterogeneidade que significa que o ator coletivo é resultado de um processo pelo qual
um conjunto de sujeitos se reconhecem como semelhantes ou complementares diante de um
outro (ou outros) cuja imagem não cabe dentro do “nós”, e no entanto é a sua condição de
existência. Mudanças na situação que gera o antagonismo (e, consequentemente, a articulação
dos “aliados”) deslocam necessariamente ambos os lados da fronteira.

No campo da ciência política, não se tem dado muita atenção a este aspecto. O vezo positivista
que marca a disciplina reserva apenas aos excêntricos preocupações desta ordem. Fica-se,
então, no nível descritivo, acumulando hipóteses externas sobre as condicionantes e influências
materiais, históricas, e institucionais na formação de atores coletivos; ou submete-se a ação
destes sujeitos coletivos a modelos normativos, para em geral achá-los em falta, incapazes de
perceber as demandas do momento (estruturais ou conjunturais) ou incompetentes para se

5
É bom lembrar que há autores que abordam a temática dos movimentos sociais precisamente por meio desta
distinção heurística entre identidade e estratégia (cf. Cohen, 1985; Krischke, 1993). Outros defendem que, no caso de
grupos marginalizados, a reconstrução da dignidade e assertividade próprias exigiriam uma certa tolerância para um
momento de "essencialismo estratégico".
6
- Neste último caso, um enfoque do processo de articulação que se beneficie de hipóteses tomadas à psicanálise e à
análise do discurso poderia ser perfeitamente integrado - e mesmo requerido - pela investigação que nos propomos a
fazer. Tentei elaborar sobre o assunto em Burity, 1994.
adaptarem às tendências percebidas. O argumento aqui desenvolvido pretende ser uma
contribuição para o rol da ex-centricidade em ciência política, ao mesmo tempo em que quer se
situar no coração das preocupações da disciplina: a ação política (institucionalizada ou
movimentalista, para usar uma distinção clássica).

Ademais, uma melhor compreensão do problema da identidade e do sujeito ensejaria uma nova
perspectiva sobre a pluralidade, o conflito e a promessa de emancipação que são constitutivos
do imaginário democrático, relativizando pretensões essencialistas e apontando caminhos de
atuação em que a consciência dos limites surge como condição para a liberdade. Pode-se
continuar lutando para “ser”, até porque a estrutura não tem a palavra f inal, é fraturada e
limitada. Saber-se incompleto e provisório também reduz pretensões megalomaníacas, de
projetos salvadores, ou totalitárias, de grupos que pretendem reduzir a dificuldade da vida a
saídas fáceis que operam sempre pela exclusão do que “não interessa” ou “não cabe” em seus
esquemas discriminatórios. Relativizar as pretensões de monolitismo e auto-transparência dos
atores coletivos não significa negar a possibilidade de sua existência, mas dimensionar seus
limites e possibilidades num contexto em que se não podem tudo, tampouco o inimigo o pode.
Assim, um contexto em que os atores, por um lado, assumem sua parcialidade e a precariedade
da articulação que os trouxe à luz, e por outro, reconhecem que não têm que estar juntos ou
separados por força de leis históricas ou materiais, é benéfico a uma democracia plural, embora
seja problemático para atores políticos tradicionais, questionando suas pretensões de dirigir e
manipular os grupos em nome de objetivos maiores ou de uma espera pelo "momento certo".

Uma nota de advertência é necessária, a esta altura: o território das relações entre psicanálise e
política não está inteira ou satisfatoriamente pavimentado para visitas livres de acidentes por
parte de especialistas ou "turistas" eventuais. Há desconfianças, temores, polícia de fronteiras e
reservas de domínio de parte a parte, que precisam ser de certa forma "violadas" para que um
diálogo mais gozoso ou ao menos franco surja. Tornar porosa e ondulada a fronteira, ao invés
do traçado contínuo da linha que separa os dois mundos, é uma tarefa difícil e não-autorizada.
Mas sempre que aventureiros vindos das duas províncias se encontram a sensação é sempre a
mesma: é preciso ironizar as pretensões de incomunicabilidade e de pureza virginal das
províncias, rindo-se da sisudez da polícia do saber que vigia as fronteiras; e é preciso ousar
colocar-se questões impertinentes mutuamente. Não as questões afinal decisivas, mas outras
questões, que nos permitam experimentar para além da repetição, com o que não é óbvio,
evidente, patente, para talvez poder dizer ou fazer diferentemente e mais produtivamente.

É certo que se corre amiúde o risco de, a propósito de uma articulação entre psicanálise e
política, estabelecer-se um diálogo de surdos entre, de um lado, cientistas ou ativistas sociais
que ignoram sobranceiramente a hipótese do inconsciente e do sujeito da falta/do desejo/das
pulsões, e, do outro lado, psicanalistas que se recusam a falar de política senão nos termos da
própria psicanálise (seja da política da psicanálise, seja da política tal como é tematizada na
psicanálise) - deixando-se de avançar na direção de uma contaminação mútua das fronteiras.
Compreendido o espírito desta reserva quanto à articulação - a preocupação em não colonizar
um campo pelo outro -, não se pode deixar de anotar que a alternativa não é adotar um polícia
de fronteira entre os dois territórios, nem se permitir heterodoxias controladas, por meio de uma
recepção subordinada ("aplicada") de questões de um campo pelo outro. O que se propõe aqui é
que, respeitada até onde possível a particularidade de cada um - o que já implica na
impossibilidade de uma absorção ou superposição integrais - se constitua um terceiro espaço,
em que as preocupações do cientista político se encontrem com as do psicanalista e ensejem
um efeito de interlocução construtivo, que não pertença rigorosamente a nenhum dos domínios.

O trabalho está organizado da seguinte maneira: após um primeiro capítulo, em que traço as
linhas básicas da concepção psicanalítica da identificação, prossigo tematizando o terreno em
que a preocupação dos dois campos pode encontrar um espaço de diálogo e reconstrução, para
chegar ao capítulos três e quatro, em que rediscuto a questão da identidade - que perpassa todo
o esforço anterior - tal como se coloca no debate político hoje, mobilizando uma série de motivos
(como o da crise do político, da fragmentação dos atores sociais e das articulações possíveis,
bem como as realmente existentes, entre eles, e a questão da liberdade do sujeito face às
condicionantes da "organização", além do lugar referencial dos movimentos sociais
contemporâneos para o avanço dessa problemática). Oferecem-se, em seguida, algumas
reflexões sobre a política nacional nas últimas décadas, no que diz respeito às questões aqui
discutidas. Apesar da tentativa de manter o argumento num ritmo progressivo e controlado, não
é possível evitar certas reiterações ou retomadas que assegurem a "amarração" necessária entre
momentos distintos do percurso e que, acredito, serão compreendidas e quiçá apreciadas
pelo(a) leitor(a). Em se tratando de uma exploração analítica, um experimento de idéias, não se
encontrará no percurso descrições de casos concretos, embora se tenha mantido até onde
possível na companhia de interlocutores a quem se pode remeter para investigações mais
empiricamente orientadas.

Gostaria de registrar, de início, meu agradecimento ao colega João Rego, cientista político e
psicanalista, com quem esta pesquisa foi iniciada, mas que infelizmente teve que abandonar sua
preciosa colaboração a meio caminho das discussões. Embora a redação do texto seja de minha
inteira responsabilidade, alguns dos arroubos comparativos foram devidamente contidos dada a
cautelosa “desconfiança” de João. Creio que ele saberá reconhecer onde seus cuidados
tornaram o restante do trabalho, levado a termo já longe dos seus olhares, menos incerto ou
impreciso. No que não se alcançou, debite-se tudo à minha teimosia.
CAPÍTULO 1 - A TEORIA PSICANALÍTICA DA IDENTIFICAÇÃO

"O Imaginário constitui o ângulo de determinação de


uma estrutura que comporta um sujeito. Fica
evidenciado deste modo que a estrutura em Psicanálise
comporta um logro, que toma o lugar da falta, votando
o sujeito ao equívoco. Dado que o sujeito só se define
pela sua relação com o significante, temos que a
alienação é, para a teoria psicanalítica, fato significante
do sujeito, uma vez que este não se efetua como agente
senão no Imaginário" (Nina Leite, Psicanálise e Análise
do Discurso).

A
percepção de que o ser dos indivíduos e grupos sociais não está simplesmente dado pela
natureza dos processos de socialização tradicionais 7 ou por sua posição na estrutura de
classes sociais, tem contemporaneamente trazido à tona toda uma revalorização do tema da
identidade. Não estando fadados a descobrir nosso lugar e assumi-lo resignadamente, vimos
nos acostumando (ou resistindo) a uma insistente fala a respeito da necessidade de nos
afirmarmos autonomamente, de construirmos e sermos senhores de nosso próprio destino, não
aceitando que se prescrevam modelos acabados para toda época e lugar e que desconsiderem
nossas aspirações e forma singular de ser e viver. Ter a sua própria identidade, construir a sua
identidade, afirmar sua identidade são todas maneiras de destacar uma sensibilidade anti-
totalizante e uma valorização da diferença como constitutiva da dinâmica social e pessoal 8.

Ora, o termo identidade tem sido usado em filosofia para referir-se a duas questões distintas -
uma, sobre o que confere a algo ou alguém sua natureza ou essência, ao abrigo das variações
de tempo e lugar (a problemática grega da forma ou eidos); outra, sobre o que permite afirmar
que duas pessoas ou coisas são iguais (cf. Zaretsky, 1995:199-200). Assim largamente descrita
na tradição ocidental, a noção de identidade é correlata de oposição ou diferença, embora esta
tenha que ser pensada como algo externo e em grande medida perturbador. Ser algo é não ser
outra coisa. Ou, na direção contrária, não saber o que se é implica em estar alienado de sua
verdadeira natureza, destituído de sua identidade própria, deslocado. A experiência da
identidade traduziria uma invariância (o que significa que, em diferentes tempos e lugares, é
preciso reconhecer a forma ou essência por trás ou por baixo da diversidade, das aparências e
dos acidentes) e uma “missão” (a origem comanda o destino a trilhar ou assumir, desvela-se ao
longo da trajetória do sujeito, serve de critério de julgamento sobre o grau de aproximação em
relação ao seu potencial/ideal de auto-desenvolvimento) que seriam perturbadas pela presença
do outro, da exterioridade.

Em sua formulação tipicamente moderna, dir-se-ia que a problemática da identidade enfatiza a


pre-existência do indivíduo ao laço social, de forma que a vivência social frequentemente criaria
problemas para a auto-asserção da identidade, ao gerar demandas de ajustamento ou
assujeitamento que são inconciliáveis com a natureza livre e autônoma do indivíduo. Ao pisar o
terreno da sociedade, o indivíduo já o faria previamente constituído e o descompasso entre o
que ele/ela é e o que seu lugar vivencial lhe oferece/permite já acena para os limites do social,
7
Ou seja, aqueles fundados na transmissão de uma experiência, narrativizada com base quer nos acontecimentos
vividos pelos mais velhos quer numa ordem natural e hierárquica das coisas, de forma a se tornar uma lição a ser
acolhida pelos mais jovens ou pelos subalternos.
8
Indicadores bastante significativos destas tendências podem ser encontrados em dois exemplos das últimas
décadas: de um lado, a teologia da libertação e o campo da democracia de base, com sua insistência na autonomia
dos sujeitos populares em relação aos padrões assimétricos (cooptativos ou repressivos) da política latino-americana,
associados ao populismo e às ditaduras militares, e postulou a emergência de uma comunidade dos de baixo como
protóripo da "nova sociedade"; de outro lado, os discursos "anti-totalitários" que, a partir daquele campo, mas já não
inteira ou majoritariamente referenciado nele, introduziu uma crítica do reducionismo "politicista" traduzido na idéia de
uma militância total (subordinação de demandas culturais e/ou subjetivas aos ditames da luta estrutural), e assumiu a
defesa da pluralidade e da legitimidade das diferenças.
nos termos da oposição indivíduo/sociedade. É assim que pensadores como Hobbes, Locke e
Rousseau, com todas as suas diferenças, imaginam o domínio (social) que se erige por sobre os
indivíduos, ora para permitir-lhes neutralizar sua agressividade natural e garantir sua própria
sobrevivência, ora para estorvar-lhes a plena realização de sua liberdade.

Ora, esta representação da identidade tem sido submetida a uma tenaz problematização nas
últimas décadas, na esteira de uma série de intervenções intelectuais e políticas fortemente
referenciadas na tradição francesa e no que através desta se deram a pensar os acontecimentos
do final dos anos 60 em vários países do mundo. Através dela se tem argumentado que “a
identidade pressupõe diferenças, que ela envolve a supressão da diferença, ou que ela acarreta
um interminável processo de adiamento de sentido” (Zaretsky, 1995:200). Para estas correntes,
normalmente enfeixadas sob o rótulo de pós-estruturalismo, as políticas de identidade
contemporâneas - progressistas ou reacionárias - têm que ser confrontadas com um elemento
complicador, que desestabiliza as pretensões essencialistas de posse de uma identidade
definida previa e naturalisticamente à entrada na cena social onde outras já se encontram. Assim
é que a noção de identidade passa a ser substituída (ou suplementada) pela de identificação,
que pressupõe um caráter inacabado, processual e habitado constitutivamente pela diferença. A
noção de identificação, por sua vez, aparece, nas referidas intervenções intelectuais
frequentemente referida ao discurso psicanalítico, razão porque julgo conveniente situar a
discussão a que se propõe este trabalho no contexto da concepção psicanalítica da constituição
do sujeito por meio de atos identificatórios sempre precários e parciais.

O propósito deste capítulo é traçar os contornos da teoria psicanalítica da identificação como


parte de um esforço para apresentar o processo de construção de atores coletivos na sociedade
contemporânea como marcado pelas vicissitudes da identificação. A análise a seguir, que tem
um caráter confessamente propedêutico e está longe de pretender qualquer apresentação
9
sistemática do problema , parte do princípio de que não apenas a discussão, mas também a
própria auto-percepção de diversos sujeitos individuais e coletivos atuando na cena social e
política, exigem que se abandonem as oposições indivíduo/sociedade ou subjetivo/objetivo e se
conceba a ação coletiva como sendo sempre já marcada pela tensão entre subjetividade e
regulação social e histórica. Adicionalmente, a teoria da identificação não será detalhada com
vistas a sua aplicação termo-a-termo a "exemplos" da ação coletiva contemporânea. Isto seria
simplista e ingênuo demais, ao pressupor que a passagem do sujeito individual ao coletivo é
apenas de quantidade ou grau e que tudo o que diz respeito ao segundo deverá ser encontrado
in nuce no primeiro. Isto seria incongruente seja em relação à própria linguagem da psicanálise,
para a qual não existe o indivíduo associal, nem o social é apenas resultado de um contrato que
soma indivíduos; seja em relação aos objetivos deste trabalho, que visam antes à articulação do
discurso psicanalítico a um domínio reflexivo que não lhe é próprio e que, portanto, lhe impõe
refrações e demandas de negociação de sentido. Voltaremos ao ponto no próximo capítulo.

Dizer que a psicanálise é tomada como referencial desta nova concepção de identidade como
processo interminável de atos identificatórios, pelos quais os sujeitos buscam confirmar ou
retificar suas imagens de si bem como distinguir entre objetos de satisfação do seu desejo e
dirigir suas expectativas de gozo a uns ou outros desses objetos, e que assim vão construindo
agrupamentos e territórios marcados por uma zona de comun(al)idade em meio a suas
diferenças, não resolve o problema. Antes abre o flanco para outros, uma vez que não é ponto
pacífico que a "pátria" psicanalítica desta noção de constituição do sujeito seja compatível com
as novas políticas de identidade. A localização da problemática da formação de atores coletivos
no solo psicanalítico está sujeita ao ataque tanto de posições que valorizam a iniciativa e a
autonomia como condição para a auto-assertividade de grupos sociais historicamente vitimizados
ou excluídos, quanto de posições que incluem a própria psicanálise entre as formas de

9
Uma das implicações desta opção é que, a despeito de ter trabalhado com uma série de textos de Freud e Lacan
sobre o tema, serei econômico na exposição deste material, privilegiando um tom mais sintético e recorrendo apenas
eventualmente à "palavra autorizada" dos pais fundadores.
pensamento de matriz essencialista com que cumpre romper para liberar uma experiência plural
e indeterminada da identidade.

Zaretsky, por exemplo, chama a atenção para o repúdio da psicanálise (como do marxismo)
pelos partidários das políticas de identidade ou de diferença (1995:201-02). E admite que o fato
destas formas de pensamento compartilharem uma postura universalista e retirarem conclusões
definitivas sobre o que não seria senão uma fase na história do capitalismo, a industrialização,
tornou-as vulneráveis às mudanças subsequentes. No caso do capitalismo, tanto o marxismo
como a psicanálise teriam emergido no contexto da passagem da produção doméstica à fabril e
da divisão entre uma esfera pública (identificada com o mercado e o estado) e uma privada
(identificada com a família e o indivíduo). É fácil de verificar em que campos se situaram o
marxismo e a psicanálise ao longo desta divisória. A idéia de que subjacente às diferenças
pessoais ou contextuais pode-se encontrar uma identidade comum a todos e passível de ser
analisada, inscreve a ambas as tradições na linhagem do universalismo iluminista que,
começando com o romantismo no século passado 10, é novamente fustigado a partir dos anos 70
como responsável por terríveis mazelas da sociabilidade em nosso século.

Esta marca de origem abrigaria, assim, a possibilidade de que a despeito de todo o criticismo
freudiano da idéia de sujeito associal e soberano do iluminismo, uma leitura domesticada da
psicanálise brotasse, especialmente nos Estados Unidos. Por outro lado, o caráter crítico do
discurso freudiano ensejaria outras tantas releituras que se situariam nos antípodas do projeto
de ajustamento/normalização que evoluiu na psicanálise norte-americana. De forma que será
preciso explicitar qual orientação prevalecerá na leitura da psicanálise que informa esta
retematização da questão do sujeito. Este é o tópico do próximo capítulo, cumprindo, por
enquanto, apenas recusarmos a primeira das possibilidades mencionadas neste parágrafo e nos
aproximarmos da formulação psicanalítica sobre os processos de identificação como
constitutivos da subjetividade.

1. Formação do sujeito e identificação: o legado de Freud

Não é possível separar as categorias do sujeito e da sociedade no discurso freudiano, pois aí "o
sujeito é imediatamente representado no campo da intersubjetividade, implicando sempre outros
sujeitos" (Birman, 1994:128). A oposição não pode ser feita entre indivíduo e sociedade como no
discurso clássico das ciências sociais, mas, como diz Freud em Psicologia das massas e análise
do eu, entre relações interpessoais que podem ser consideradas fenômenos sociais e "alguns
outros processos, por nós descritos como „narcisistas‟, nos quais a satisfação dos instintos é
parcial ou totalmente retirada da influência de outras pessoas" (1976:91-92). Desta forma, o que
há é a tensão entre "atos mentais sociais e narcisistas" (Idem:92) no interior do próprio sujeito,
11
que o constituem sempre já como individual e social . O trabalho sobre a pulsão, transformando-
a em desejo dirigido a objetos parciais, se faz pela simbolização, pela inscrição do que o sujeito
sente (pulsão) e o que quer (objeto do desejo) ou deve fazer (ideal de eu) no domínio linguístico,
social e político. O sujeito se constitui identificando-se - pela "inversão no contrário", o "retorno
sobre a própria pessoa", o "recalque" e a "sublimação" (Birman, 1994:169), como também pela
transferência.

Florence destaca a importância de tematizar as identificações no plural, seja devido à


multiplicidade de formações psíquicas com que trabalhou Freud, seja pela sua "atenção dirigida
ao múltiplo e às diferenças" (1994:115). O que a própria noção de identificação permite

10
Cf. a este respeito as iluminadoras contribuições incluídas na obra organizada por Critchley e Dews (1996).
11
É preciso dizer que isto, entretanto, não está inteiramente resolvido para Freud, para quem parece tratar-se, neste
trabalho, antes de uma certa subsunção do social ao individual, na medida em que o instinto social seria, não
primitivo, mas derivado de processos que ocorreriam no âmbito da subjetivação, e que teriam início no círculo estreito
da família (cf. 1976:92). Obviamente, uma vez redesenhada a fronteira entre individual e social, de uma oposição
entre interior e exterior para outra entre duas formas de pensar a relação interior/exterior, a leitura apresentada acima
não apenas se torna possível, mas adequada à intuição freudiana (cp. 1976:156-57).
compreender - e que ao mesmo tempo a distingue de imitação, compreensão, empatia ou
projeção - é que o sujeito é constitutivamente marcado pelo Outro, pelo heterogêneo, pelo plural
em relação ao mesmo, ao si-mesmo. A pluralidade aponta, desta forma, para o que está em jogo
na identificação. Estabelecendo três momentos do percurso de Freud, o autor destaca como na
primeira fase, em que Freud descobre o inconsciente articulado com o sexual (Correspondência
com Fliess, A interpretação dos sonhos, Psicopatologia da vida cotidiana, Fragmento de análise
de um caso de histeria e O chiste e suas relações com o inconsciente), a identificação adquire
tanto um caráter romanesco quanto implica em questões de transferência e mesmo na
suspensão, por um átimo, dos recalques ou censuras criando uma comunidade de sujeitos,
como no caso dos chistes e do humor.

No primeiro caso, o caráter romanesco refere-se à entrada do sujeito numa cena onde pre-existe
um conjunto de relações entre personagens que o afetam e estilhaçam: "jogo dramático, uma
vez que o desejo se põe em cena, difratado em uma série de personagens de empréstimo, de
aspectos contraditórios" (Idem:119). Fissão e ficção constituem-se portanto em dois traços
estruturais do sujeito, acrescendo-se-lhes as condensações de que fala A interpretação dos
sonhos. No caso dos chistes, um novo elemento se apresenta, que é a possibilidade de uma
identificação-relâmpago, sem recurso à fantasia, por meio do jogo de palavras estabelecido no
"trabalho espirituoso" do humor. Em suma, "a identificação não é somente o caminho da
formação de um elo sonhado ou fantasiado com o objeto do desejo, mas também a condição
para a instauração de um elo social, e isso duplamente: no plano 'cômico' da relação imaginária
com o mesmo, e no plano 'espiritual' da troca simbólica, que não é de estrutural dual, mas
ternária, por conta da mediação significante" (Idem:125).

O segundo Freud (Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, o ensaio sobre o narcisismo,
Totem e Tabu e Luto e melancolia) traz à tona a paixão deste pelas origens 12. Daí vem a idéia de
que o infantil corresponde não apenas a um momento inicial do desenvolvimento humano, mas
como um "'momento' estrutural permanente da organização subjetiva", de modo que a
identificação passa a ter o caráter tanto genético quanto estrutural (Idem:126). Há aqui uma
hipótese segundo a qual a emergência do sujeito corresponde à experiência de uma perda que
instaura-lhe (nostalgicamente?) o desejo, o qual migra (isto é, identifica-se) de objeto para objeto
em vista da sua satisfação, somente para descobrir que isto não foi possível ("não há figuração
objetiva desse 'objeto perdido'; todo o trabalho do desejo consiste precisamente em perdê-lo
como tal!" – Idem:127). Nessas condições, o ensaio sobre o narcisismo salienta como o sujeito
faz as suas escolhas de objeto segundo duas modalidades que a todo instante consagram a sua
divisão (e a do objeto): uma narcísica e outra "por apoio" nas pulsões de auto-conservação.

Já em Totem e Tabu, Freud teria ilustrado como a identificação se expressa em diversos


sentidos no totemismo: a) a aquisição de uma identidade depende do recalque do incesto e do
canibalismo, pelo qual o sujeito se inscreve num sistema de trocas entre semelhantes; b) estar
identificado a um totem atribui ao sujeito um nome que garante tanto a sua individuação quanto
a sua socialização; c) o pai primordial morto volta no totem como autor da lei e como ideal: o
símbolo proíbe qualquer um de ocupar aquele lugar e ao mesmo tempo espera de cada um que
seja como ele, mas não ele: um pai, mas nunca o Pai.

Em Luto e melancolia surge uma outra possibilidade, que é a do fracasso em realizar a


identificação com o ideal (o totem), na medida em que a tensão entre o eu e o objeto introjetado
torna-se impossível de ser transferida a outros objetos, lançando o sujeito numa relação sado-
masoquista com o objeto.

A esta altura, Florence sintetiza o percurso de Freud em dois modelos, cada um com sua versão
normalizadora e patologizante. No primeiro modelo, oriundo do Freud I, ter-se-ia a identificação
espiritual (chistes) e a histérica (sonhos, sintoma). No segundo modelo, indicado há pouco a

12
Paixão que, segundo Florence, transparece no grande número de palavras em Ur- (radical alemão de origem, proto,
pré, etc.), ou no uso de termos como "primitivo", "originário", “pré-histórico".
propósito do Freud II, ter-se-ia a identificação narcísica (a mais primitiva e mais importante em
seus efeitos), com suas variantes totêmica e melancólica.

No último Freud (1918-1939)13 o problema da identificação estará basicamente marcado pela


extensão das reflexões anteriores ou pelo seu questionamento, ao introduzir a noção de pulsão
de morte. Concentrando-se no capítulo de Psicologia das massas que tem como título "A
identificação" e na seção de O eu e o isso que trata da relação entre o eu e o supereu/ideal de
eu, Florence observa como a compreensão da identificação enquanto processo formador do eu
e de suas instâncias, leva Freud a recusar a distinção entre psicologia individual e social,
mostrando que o que é da ordem do indivíduo já é social e vice-versa e que, assim, a formação
dos vínculos públicos e privados seria calcada no processo identificatório. Nessa perspectiva é
que cobra sentido a estranha aproximação que faz Freud entre a multidão, o amor, a hipnose e a
transferência, pela qual ele, ao dar conta de uma série de observações clínicas já realizadas a
respeito da identificação, radicaliza-as precisamente ao colocar a questão da emergência do
sujeito.

Além disso, Birman observa, Freud ajunta à distinção entre eu ideal e ideal de eu como fundante
do processo identificatório a problemática do narcisismo das pequenas diferenças. Esta diz
respeito ao estabelecimento de oposições entre os corpos, seja para se demarcarem como
singularidade e diferença, seja para constituírem relações de dominação. Oposições que indicam
tanto a pulsão à realização integral do gozo (mesmo que pela extorsão ou extermínio do outro)
quanto o obstáculo interposto pelos outros, seja porque fazem o mesmo, seja porque se
recusam a ser assujeitados. Para Freud, porém, esta guerra latente ou aberta pode ser trazida a
uma razoável estabilidade, e efetivamente o faz intermitentemente (com intervalos variáveis de
vigência), ante a emergência de um líder cujo carisma produz um relativo ou temporário
apagamento da singularidade dos sujeitos (isto é, do narcisismo de seu eu ideal), por intermédio
de sua participação em movimentos de massa. O reconhecimento mútuo é outra contrapartida
da relação com o líder, pela qual as pessoas identificadas em/com o movimento "se tornam
capazes de realizar atos para os quais estariam incapazes se estivessem sozinhas" (Birman,
1994:133).

A crença no carisma do líder, que mantêm juntos os seus seguidores, pode ser "arranhada" por
deslizes ou insucessos daquele, quer produzindo um fratura da organização, quer causando a
queda do líder. Em ambos os casos, o processo é acompanhado pela reemergência do elemento
centrífugo e desordenador do narcisismo das pequenas diferenças. Se contornado, o frisson
causado pela perda do elemento articulatório se reequilibra; se não, um dos dois destinos
apontados tem lugar. O reequilíbrio, entretanto, depende para sua durabilidade da forma como a
autoridade do líder é refeita. Pois, se esta se impõe pela força, a submissão tornar-se-á
essencialmente frágil e terá seus dias contados, pois estará condicionada à promessa de gozo
pleno feita pelo líder e transformada num processo de referendo sempre sujeito a resultados
adversos.

É também em Psicologia de Massas que aparecem três formas de identificação retomadas por
Lacan em seu seminário sobre o tema: (1) a identificação primária, com o pai primordial, da pré-
história individual, pela qual ao querer ser o pai e instaurá-lo como ideal, o menino prepara-se
para adentrar o complexo de Édipo, onde organizará suas pulsões; (2) as múltiplas identificações
que são "a apropriação (Aneignung) de qualidades, e até de sintomas, do objeto da rivalidade ou
do amor" do sujeito (Birman, 1994:135), caracterizadas por estarem limitadas a um único traço
do objeto, introjetado por regressão 14; e, por último, (3) a identificação por meio do sintoma, que
13
Para Florence, este seria o Freud que dá continuidade à temática de Totem e Tabu (Psicologia das massas e análise
do eu; Moisés e o monoteísmo; Mal-estar na civilização), bem como o que concentra-se sobre a estrutura do eu e suas
subdivisões (Além do princípio do prazer; O eu e o isso; A divisão do eu como mecanismo de defesa; Inibição, sintoma
e angústia).
14
Ou seja, a escolha de objeto, que é posterior à primeira identificação (com a figura paterna, que dá origem ao
supereu), retroage e assume o lugar da identificação: o eu assume assim as características do objeto, embora nunca
deste como um todo.
não pressupõe um investimento de objeto ligando o sujeito à pessoa “copiada”, aparecendo no
exemplo das garotas de pensionato, em que um ponto em comum significativo entre dois sujeitos
pode levar ao surgimento de novos laços sociais (amizade, camaradagem, competição, simpatia,
etc.) - cf. Freud, 1976:133-36. Freud dá a entender que esta terceira é a que está em questão no
caso do laço mútuo que se desenvolve entre membros de um grupo, em cujo caso, a relação
com o líder teria a natureza deste ponto em comum, assinalado pelo sintoma 15.

Insatisfeito, porém, com a exaustividade desta classificação, Freud retoma em seguida dois
outros casos em que analisara a homossexualidade masculina e a melancolia (no ensaio sobre
Leonardo da Vinci e em Luto e Melancolia), e mostrara a possibilidade de que a identificação não
se fixe apenas sobre um dos traços do objeto, mas que (1) assuma o próprio lugar do objeto,
recusando-se a abandoná-lo; ou (2) seja a tal ponto intrusiva e trágica que cinda profundamente
o sujeito entre a culpa e a vingança pela perda do objeto, ou ainda entre o eu e o ideal de eu.
Uma última nota do capítulo VII de Psicologia das Massas, que praticamente se constitui num
apêndice ou num último parágrafo, aponta mais uma possibilidade: a de que a identificação surta
o efeito de reduzir a agressividade mútua entre as pessoas com as quais se compartilha, dando
entrada a uma dimensão especificamente social do processo (cf. Freud, 1976:139, n. 1;
1984b:377).

É significativo, como observa David-Ménard, que antes de explorar a questão do vínculo social,
da relação entre líder e massas, Freud se detenha, neste trabalho, a comparar o amor, por um
lado, e a hipnose e as massas, por outro. E nisto ele muda de critério e aponta para uma
alternativa, que é "saber se o objeto é colocado no lugar do eu ou do ideal de eu" (1994:70; cf.
Freud, 1976:144). No caso, a hipnose, ocupando uma posição intermediária entre o grupo, do
qual retém basicamente a relação entre líder e liderado, e o estar amando, por não possuir
inclinações sexuais, é vista como uma relação na qual o líder/hipnotizador assume o lugar de
ideal do eu (Freud, 1976:145). Admitindo que, no amor, tanto é possível que o objeto se
mantenha quanto que seja abandonado, Freud acaba levantando uma questão, a que não
responde, sobre se "a identificação supõe a renúncia ao investimento de objeto" (David-Ménard,
1994:71). Seria possível haver identificação com a conservação do objeto?

No ensaio sobre o narcisismo, Freud formula a distinção fundante do processo identificatório em


termos da relação entre o eu ideal e o ideal de eu. Estas instâncias constituem-se nas
referências fundamentais da economia do narcisismo, regulando as relações entre o sujeito com
o Outro e com o prazer (Freud, 1984a:87-90, 95-97). No eu ideal, o sujeito se apresenta como
seu próprio projeto, como auto-afetação, não reconhecendo qualquer instância acima ou fora de
si. No ideal de eu, este elemento transcendente aparece sob a figura do pai e prescreve um
projeto ao qual o sujeito deve responder e nele encontrar o seu lugar, ao lado de outros tantos
sujeitos. É, portanto, nesta dimensão que o sujeito se defronta com a alteridade e passa a
realizar-se (no duplo sentido desta reflexividade) na e pela linguagem e as ordens social e
16
política . A tensão entre eu ideal (narcisista) e ideal de eu (social) está na raiz da constituição do
sujeito pelo processo identificatório.

Em O eu e o isso (cf. Freud, 1984b), que Florence considera a última grande contribuição de
Freud sobre a questão da identificação, insiste-se em que não se conceba o eu como
substância, mas como espaço de divisão entre o ativo e o passivo (como na voz média da língua
grega), um núcleo sempre já cindido em instâncias que impedem o eu de se constituir como
15
Mais adiante, Freud dirá que o que caracteriza basicamente um grupo é o fato de que diversas pessoas tenham
colocado um só e mesmo objeto no lugar do seu ideal de eu (1976:147). Este objeto é o líder e assim se forma uma
distinção entre os membros do grupo - iguais entre si - e o líder - erigido por sobre eles à maneira do mito darwiniano
da horda primitiva dominada pelo macho despótico (cf. Idem:155).
16
No final do ensaio sobre o narcisismo, lemos: “O ideal de eu abre uma importante via para a compreensão da
psicologia de grupo. Além de seu lado individual, este ideal tem um lado social; ele é também o ideal comum de uma
família, uma classe, uma nação. (...) A necessidade de satisfação que procede do não-cumprimento deste ideal libera
a libido homossexual, e isto é transformado num sentimento de culpa (ansiedade social)” (1984a:96-97; cf. tb.
1984b:376-377).
idêntico-a-si-mesmo. Se há um núcleo formado pelas primeiras identificações este só significa
que a realização do sujeito estará para sempre adiada. A identificação primária "dá lugar ao
campo do narcisismo secundário, com a libido retirada dos objetos. O eu se desenvolve, assim,
incessantemente, por incorporações sucessivas" (Florence, 1994:139). Aproximando o que antes
escrevera sobre a melancolia dos processos “normais” de abandono/substituição de objetos de
desejo, Freud afirma ali que a cada vez que a falha identificatória (perda do objeto) se manifesta,
uma alteração se produz no eu, deixando nele uma marca, pela introjeção aí daquele objeto. A
frequência com que isto ocorre leva-o então a “supor que o caráter do eu é um precipitado de
investimentos de objeto abandonados e que ele contem a história dessas escolhas de objeto”
(1984b:368, grifo nosso).

O emaranhado de laços que se vai constituindo por estas múltiplas incorporações das quais o
sujeito é o precipitado, está, entretanto, sujeito a uma instância reguladora e seletiva, o supereu
(Überich, que vem substituir a noção de ideal do eu - Ichideal -, cunhada entre 1913 e 1914, e
encontrada tanto em Psicologia das Massas como no ensaio sobre o narcisismo), a qual vem a
se estabelecer em substituição aos vínculos ambivalentes que a criança mantinha com os seus
pais, exercendo a função de apontar ao resto do eu as interdições, censuras, regras morais e o
sentido de realidade (cf. Freud, 1984b:373-79). O supereu não é apenas censor, é também ideal
a atingir. Ele é "virtualmente responsável pela auto-superação, assim como pela paixão, pela
obediência e pela submissão" (Idem:141). Nem toda identificação consegue sucesso inteira ou
duradouramente, podendo criar "formações reativas" das quais o supereu é um dos mais
acabados exemplares. Produto da primeira identificação, ocorrida quando o eu era ainda frágil, o
supereu continua como herdeiro do complexo de Édipo, como “memorial da fraqueza e
dependência anteriores do eu, e o eu maduro mantém-se sujeito a sua dominação”, a despeito
da resistência que venha a lhe opor (Idem:389).

Na parte final de sua reflexão, Florence introduz alguns problemas, especialmente decorrentes
da inflexão lacaniana - que são retomados em seguida, numa longa lista de intervenções e
questionamentos de analistas presentes ao colóquio em que o trabalho foi originalmente
apresentado -, dos quais reteremos apenas dois (cf. 1994:147-70). Em primeiro lugar, o autor
questiona a propriedade do termo "identificação" admitindo, contudo, que talvez não haja um
melhor para dar conta ao mesmo tempo da história e da estrutura do sujeito, sua unicidade e
multiplicidade, sua ligação com o mesmo e com o outro, Eros e Tanatos, a imagem e o
significante (Idem:142). Em seguida, o autor assinala o difícil balanço entre o empirismo
freudiano e o estruturalismo lacaniano, que tem implicações para o que se compreende por
objeto e pelo eu, bem como pela questão das origens, nos dois casos, embora não haja como
escolher entre os dois (Idem:162). A primazia da linguagem conferida por Lacan acaba
deslocando a própria conceituação de identificação: o sujeito é deduzido da estrutura do
significante, o qual representa um sujeito para outro significante; o traço único na segunda forma
de identificação apresentada por Freud em Psicologia das Massas, torna-se o modelo da
identificação, ao remetê-la para o caráter puramente diferencial do significante, a mercê de sua
inscrição numa cadeia de significação, na medida em que não está preso a nenhum significado.
Redução que é apontada por vários participantes da discussão, ao alertarem, dentre outras
coisas, para a heterogeneidade do corpo com respeito ao significante (cf. Idem:161, 167), bem
como para a necessidade de distinguir, no campo da linguagem, outros aspectos que não se
deixam captar pelo recorte saussureano do signo, como, na questão da comunicação e da
significação, a função constitutiva do não-comunicável e o não-designável, do silêncio (cf.
Idem:169).

2. Identificação e a lógica do significante: primazia da linguagem e formação do


sujeito em Lacan

Seguindo a mesma orientação apontada pelas incursões freudianas a respeito das origens da
sociedade e da subjetividade humanas (os mitos da horda primeva, do pai primordial e do pai da
pré-história pessoal), agora referenciadas na etnografia estruturalista, Lacan assinala o princípio
da interdição como porta de entrada à realidade por parte de todo novo membro da comunidade
humana, uma Lei Primordial pela qual a ordem do parentesco e a ordem das relações de aliança
se ajunta o sacrifício da relação sexual com a mãe e a irmã e obriga a buscar noutro grupo
familiar a mulher. O acesso do indivíduo à Lei e à ordem simbólica se dá por meio da interdição e
do sacrifício. O que significa que para constituir-se o sujeito já precisa perder ou distanciar-se
infinitamente da possibilidade de plena realização do gozo.

Ao se tornar "alguém", ao se singularizar, o sujeito recebe um nome e encontra um lugar no


social ao preço de perder o que sequer pode definir como seu. Encontra uma possibilidade de
saber-se na linguagem ao preço de só ser pela linguagem. Sua descoberta de quem é, de qual
lugar ocupa na trama das relações sociais, que lhe é transmitida pela ordem simbólica, é
simultânea à sua entrada na ordem da linguagem, onde se opera seu reconhecimento dos e
pelos outros e o reconhecimento de seu próprio lugar (seus nomes e designações). Isto reforça a
tese freudiana do vínculo indissociável entre o indivíduo e o social, mas acrescenta uma
determinação à luz da conjuntura científica francesa dos anos 50/60: ser social e ser falante se
indistinguem na ordem simbólica.

Assim, como assinala Freitas, "o Pai, portador do falo, símbolo da potência, estabelece com um
corte - por seu lugar como terceiro na estrutura mínima de relações sociais que supõe a
existência de um novo ser humano - a interdição do gozo infinito. Isto é, a interdição da relação
contínua, dual, da imagem especular, mãe e criança" (1992:48).

Para Lacan, então, tornar-se sujeito é transitar do registro do ser (ser o falo, realizar inteiramente
o seu gozo) ao registro do ter (assumir e definir um desejo em termos de demanda,
substitutivamente à pretensão de gozo infinito). Privado do seu-próprio, do livre curso de seu
gozo, o sujeito, no entanto, resiste à Lei, ao formular desejos que assumem o lugar do gozo,
para realizá-lo, ainda que nunca lhe sejam inteiramente correspondentes. O que inaugura a
deriva do sujeito e a dinâmica das identificações.

Por outro lado, o desejo que só existe na falta, no buraco que é constitutivo do sujeito, exige,
para sua satisfação, o seu reconhecimento por outro, o que quer dizer que somente pela
linguagem e pelo intercâmbio dos significantes que se apresentam como respostas à demanda
do sujeito, é que o desejo vem a existir. Para Lacan, se o sujeito é "determinado pela linguagem
e pela fala, isto quer dizer que o sujeito, in initio, começa no lugar do Outro, no que é lá que
surge o primeiro significante" (Seminário 11, apud Leite, 1994:38). A lógica do significante torna -
se, como defende Milner, uma ontologia transcendental, na medida em que "a propriedade de
qualquer ser que seja é de ser distinguível de um outro" ("Lacan e a ciência moderna", apud
Idem: 39).

Fundado na concepção saussureana da língua como sistema de diferenças e do signo como


relação de um significante a um significado, Lacan explora, contudo, os limites da representação
saussureana do signo, ali onde Saussure deixa de vê-la como estabilização de um significado
por sob um significante, traçando a figura de uma barra entre eles cercada por uma elipse , e
admite que os dois lados da relação constituem domínios em permanente fluxo (cf. Freitas,
1992:50-51, grifo nosso). A elipse já não cercaria, estabilizaria a relação entre significante e
significado. Esta possibilidade para Lacan indica ao mesmo tempo a primazia do primeiro sobre
o último17 e a impossibilidade da realização plena do sentido. A linguagem se constitui
sincronicamente por uma rede de significantes que se articulam diacronicamente em discursos,
compondo uma rede de significados. O elo de ligação entre elas, no entanto, não é o sujeito
psicológico, senhor de um querer-dizer, mas a cadeia significante. E esta jamais pode assegurar
que o sentido atribuído a um significante corresponda à sua natureza ou essência.

Consequentemente, "[s]er na Linguagem ... vem a significar ser um significante para outro
significante. A entrada na Linguagem consiste, assim, em relações transformadoras que fazem

17
Na verdade, o significado passa a ser visto como apenas mais um significante, com pretensões de estabilizar o
sentido do seu correspondente do lado de cima da barra.
do indivíduo um significante na Linguagem, um significante para outro significante e, só por este
meio, representando um sujeito para outro significante" (Idem:54).

Entre os sujeitos, o Outro (a ordem simbólica, os outros); e entre o sujeito e o Outro, a hiância
representada pela perda da unidade ilusória do sujeito, a qual vem a ser preenchida, tentativa,
precaria e parcialmente, pelos múltiplos objetos de desejo. Ser falante, mas de uma fala que não
lhe é originária, mas encontra-se no lugar do Outro, o sujeito apresenta-se como dividido18. Entre
o sujeito (ser) e o Outro (sentido), na sua reunião, constitui-se uma zona de condensação que
não provem propriamente de nenhum, mas que possui elementos de ambos: o não-sentido,
domínio do inconsciente. Num segundo momento, porém, os significantes chamados a dar
sentido ao sujeito, nomeando seu desejo, falham e são substituídos interminavelmente, a
tentativa dos objetos do desejo de fazerem a junção entre o desejo do sujeito e o desejo do
Outro não recebe respostas "convincentes". A metáfora da reunião prossegue nas metonímias
da realização impossível do desejo. "Deste modo, o sujeito que se faz neste processo é um
sujeito nunca terminado, uma vez que a sua condição de ser é a ausência e a falta" (Idem:62).

Se o sujeito "suporta" esta falha estrutural do processo de sua constituição é pela intervenção de
um elemento mediador que procura recobrir a falta por meio de representações de consciência,
coerência e completude: a fantasia. Esta se interpõe ao inconsciente (sujeito dividido) e o objeto
perdido, como tentativa de costurar o hiato entre o desejo e sua realização, entre o sujeito e a
realidade. O domínio da fantasia é o da conjunção entre o imaginário e o simbólico. Por meio
dela o sujeito "se veste de representações, de imagens que o ligam à história propriamente dita"
(Idem:73) e que pretendem definir ou encontrar o Centro, a Origem, a Essência que a reunião do
campo do sujeito ao campo do Outro revelou inexistentes ou barradas.

Para Monique David-Ménard, no entanto, há uma ambiguidade na noção de identificação pela


qual esta ou bem é uma "fixação em imagos que capturam o sujeito, prendem-no e o ameaçam,
uma espécie de identificação-prisão, da qual talvez fosse possível se desprender em um
processo de desidentificação" (1994:72), ou bem se refere à formação do sujeito humano,
consistindo, como quer Lacan, "na maneira pela qual um sujeito, para se constituir, torna seus os
elementos vindos de um outro, sendo que algo daquilo que o liga a esse outro permanece
recalcado, mas de tal maneira que estes elementos, retirados do outro, dados pelo outro ou
impostos pelo outro, implicam, ao mesmo tempo, de algum modo, falta para o sujeito" (Idem:73).
Lacan, no caso, reúne ambos os tipos no Seminário IX, sobre a identificação, ao definí-la como
identificação com um significante da falta no Outro, isto é, com o desejo de ser privado. A autora
questiona a propriedade dessa definição no caso da histeria, onde o que está em jogo é menos
a identificação com um significante da falta no Outro do que a capacidade de inventar um meio
termo entre dois tipos de identificações (Idem:76). Assim sendo, para David-Ménard, "a privação
não desempenha sempre o mesmo papel. Será que ela é de fato o que constitui o desejo? Ou
será ela que permite que o desejo se constitua enquanto desejo, não assumido, se quisermos,
fazendo com que possa se sustentar justamente por não ser satisfeito?" (Idem:86).

A primeira destas oscilações remonta ao famoso ensaio de Lacan sobre o estágio do espelho na
formação do sujeito (cf. Lacan, 1977:1-7). A segunda pode ser encontrada, por exemplo, no
Seminário IX, em que Lacan retoma de Psicologia das Massas basicamente a segunda forma de
identificação, por regressão a um traço único (Einziger Zug), como fundamento das demais,

18
Célio Garcia, falando dos três momentos na formação da teoria freudiana do sujeito, identifica no terceiro deles (por
exemplo, em Cisão do eu no processo de defesa) a figura do sujeito cindido. Para descrevê-lo, Freud recorre à
metáfora do cristal: tal como este se parte sempre segundo linhas estruturais, revelando na rachadura o seu princípio
de articulação, também o sujeito se revela por suas rachaduras; onde estiverem estas, estará o sujeito. Para Garcia,
"[i]sto não quer dizer que o sujeito existia antes e que agora está partido, mas que ele só existe no momento em que
se parte" (1995:25-26). É a ruptura que abre a perspectiva de um saber retrospectivo sobre o sujeito. Por outro lado, a
18
percepção desta cisão (Spaltung) é possível ao sujeito, embora a tendência deste seja a renegar a castração, a
continuar a viver como se nada tivesse acontecido, costurando assim imaginariamente a fenda que insiste na sua
constituição (problemática que Lacan retomará na figura da fantasia) - cf. Idem:26.
passível que é de ser articulada à linguística estrutural de matriz saussureana, e de apontar para
a constituição do sujeito (cf. Lacan, s.d.).

Comentando a elaboração lacaniana sobre o estágio do espelho, Ogilvie interpreta este


momento de constituição do sujeito como “pré-político” (como afirma Lacan no Seminário I),
anterior à determinação social (cf. Lacan, 1977:2):

“Pois tal é a discordância entre o eu e sua própria realidade que a maneira pela qual ele se
apreende, ao aparecer diante de si mesmo pela primeira vez, é inicialmente fictícia. O sujeito, em
primeiro lugar, se procura e se encontra, constituindo-se em alguma coisa radicalmente „outra‟: a
forma antecipada daquilo que ele não é, mas que não tem outra possibilidade senão a de crer que
é. (...) A imagem não é um instrumento: ela é esta imago na qual os latinos entendiam
primeiramente a estátua, a imitação, o retrato do ancestral, e depois, o espectro, a aparição. O que
vale dizer que ela está investida de desejo, mais do que de objetividade” (1991:117).

O autor afirma ainda:

“Lacan reinterpreta toda a tópica freudiana a partir da sua própria: para aquém de um inconsciente-
efeito do recalcamento mítico [a primeira identificação de Freud, JAB], ele vê o inconsciente, a
princípio como o resto originário que tomba para sempre no inatingível, quando desta operação
primeira da alienação na forma e na presença da linguagem, e da refenda nas identificações e no
jogo do sistema simbólico da linguagem. O inconsciente não é mais, então, alguma profundeza,
mas sim esta superfície de face dupla, real do sujeito que só vem à luz sob a forma de suas
formações simbólicas” (Idem:122).

No Seminário sobre a identificação, Lacan explora em detalhe sua tese de que a questão
essencial aí é a da relação do sujeito com o significante, isto é, como, por meio de sua
identificação com um significante, o sujeito emerge na e pela ordem simbólica (o Outro) em
busca de reencontrar o objeto perdido. Partindo da fórmula cartesiana "Cogito, ergo sum", Lacan
polemicamente afirma que não existe suporte para a concepção tradicional filosófica do sujeito
19
senão em termos da existência do significante e seus efeitos (Lacan, s.d.:1:1, 5 ), e que na
tradição cartesiana, “jamais houve senão um único sujeito que fixarei, para terminar, sob esta
forma: o sujeito suposto saber” (Idem:11), que nada sabe do sujeito do inconsciente. Ao invés de
ser um "penso, logo sou", este sujeito é antes um que pensa que pensa. Assim, não somente a
certeza de si que a fórmula cartesiana traduz oculta um não-saber sobre o inconsciente, mas
esta visita à origem da filosofia moderna serve para discutir a impropriedade da unidade-a-si, ou
identidade-consigo do sujeito (classicamente asseverada na equação A = A), no momento em
que se introduz a questão do Outro, da linguagem e do significante na discussão sobre a origem
do sujeito.

Segundo este raciocínio, nos constituímos na e pela linguagem e a porta de entrada deste
processo é a fixação ao significante, isto é, fundamentalmente a partir de uma identificação com
um traço único do Outro, a ordem simbólica, a ordem da linguagem. “Trata-se de tomar, para
nós, a relação desta possibilidade que se chama identificação, no sentido em que aí surge o que
só existe na linguagem, e graças à linguagem...” (Lacan, s.d., 1:3, 12). E isto, num sentido que
vai muito além da afirmação clássica de que A = A, que fundamenta a concepção cartesiana de
identidade, introduzindo-se aqui o que Saussure dissera a respeito do princípio da diferenciação
como base da unidade: é a diferença que produz a identidade. Lacan: “Dito de outro modo,
diferentemente do sinal ... o que distingue o significante é somente ser o que os outros não são;
o que, no significante, implica esta função da unidade é justamente ser somente diferença. É
enquanto pura diferença que a unidade, na sua função significante, estrutura-se, constitui-se.
(...) [N]ada é propriamente pensável, nada da função do significante é propriamente pensável,
sem partir do que formulo: o um como tal é o Outro. É a partir disto, desta fundamental estrutura
do um como diferença, que podemos ver aparecer esta origem, de onde se pode ver o
significante se constituir, se posso dizer: é no Outro que o A do “A é A”, o grande A” (Idem:13). A
19
Dada a forma como está numerada a edição mimeografada do Seminário com que trabalhamos, somos forçados a
apontar, pela ordem, o número do volume, o número da seção (capítulo) e o da página.
que implica Autre, Outro, em francês - veja-se aqui o jogo de Lacan, irrepresentável em
português: o A que vem após a cópula significa o Outro. Se pudéssemos reescrever a clássica
fórmula filosófica da identidade como O é O, teríamos então o sentido do que Lacan aponta. Ou
seja, a fórmula da identidade é já uma definição da diferença.

A quarta sessão do Seminário é dedicada à discussão da diferença entre significante e


identidade, à exploração da incongruência da fórmula A = A. O efeito de tomar os dois termos
ligados pelo sinal (=) como idênticos é aqui apresentado como um dos segredos da identificação,
a saber, “esta assunção espontânea pelo sujeito da identidade de duas aparições todavia bem
diferentes” (Lacan, s.d., 1:4, 3). Assim, a convicção de que o primeiro termo “é ele” se estende,
do lado de lá da cópula, à reiteração de que o segundo termo “ainda é ele”. A questão do
significante, entretanto, remete a “uma dimensão diferente de tudo o que é da ordem da aparição
e do desaparecimento” (Idem:4): “nossa experiência nos mostra que os diferentes modos, os
diferentes ângulos sob os quais somos levados a nos identificarmos como sujeitos, ao menos
para uma parte deles, supõem o significante para articulá-lo, mesmo sob a forma
frequentemente ambígua e imprópria, mal manejável e sujeita a toda sorte de reservas e
distinções que é o „a é a‟” (Ibidem). Assim, tudo gira em torno do estatuto do significante, pois “é
do efeito do significante que surge como tal o sujeito. Efeito metonímico, efeito metafórico, não o
sabemos ainda, e talvez haja algo articulável já antes destes efeitos que nos permita ver surgir,
formar uma relação, a dependência do sujeito como tal em relação ao significante” (Idem:4-5).
Afirmação que é logo sucedida por uma menção enigmática de que a constituição do sujeito
comporta “a marca de um passo” (la trace d’un pas), expressão que pode ser lida de várias
maneiras: a) alguma movimentação na origem do sujeito deixa neste uma marca de outrem (isto
é, ao entrar na ordem do simbólico, leia-se, ao constituir-se como sujeito, este assume uma
característica que não lhe é própria, que lhe é dada por ou no Outro); b) a entrada na ordem do
significante é marcada por uma negação (pas) do gozo imediato, e isto deixa marca no sujeito
(isto é, transforma-o em sujeito do desejo); e c) indicada pelo próprio Lacan, entre o passo
(iniciativa, intenção, vontade, autonomia) e o pas (negação, interdição) constitui-se uma cadeia
que representa o único lugar onde pode o sujeito surgir (Idem:5).

A esta altura do argumento é que Lacan faz menção ao capítulo VII de Psicologia das Massas e
Análise do Eu, onde Freud apresenta as três formas de identificação, para dizer que a reflexão
feita até aqui sobre o significante diz respeito à segunda forma de identificação, regressiva, em
que o sujeito se identifica com um traço único, parcial do "objeto amado". O traço unário nada
mais é do que a entrada do significante no real, sob a forma de pura diferença (o significante é o
que não são os outros). O traço unário é inscrição.

Após salientar que as três identificações ali apresentadas não chegam a formar uma única
classe, Lacan reitera a primazia da segunda, na medida em que é por ela que se faz o vínculo
com a problemática da linguagem e do significante. Para ele, "no que concerne à função da
identificação ... o que se passa, passa-se essencialmente no nível da estrutura; e a estrutura ... é
o que introduzimos especialmente como especificação, registro do simbólico. Se nós o
distinguimos do imaginário e do real ... não se trata de uma definição ontológica, não são aqui
campos do ser que eu separo" (s.d., 1:5, 5). Trata-se de um campo definido pela experiência
psicanalítica, um artifício constituído pela descoberta freudiana.

Assim, a própria descrição mítica freudiana da primeira identificação aparece aqui refratada pela
discussão relativa à arqui-origem da inscrição no/pelo significante, à inscriptibilidade anterior ao
próprio da escrita fonética e que já marcaria a necessidade de vincular o sujeito a um lugar na
ordem simbólica (discussão que, diga-se de passagem, é notavelmente reminiscente das
posições de Derrida sobre a arqui-escritura e o [arqui-]traço, em Gramatologia ou em "Freud e a
cena da escritura", em Escritura e Diferença)20. Momento do qual só resta(m) traço(s), com os

20
"Se é do objeto que o traço surge, de algo do objeto que o traço retém, justamente, sua unicidade, o apagamento, a
destruição absoluta de todas essas outras emergências, de todos esses outros prolongamentos, de todos esses outros
apêndices, de tudo o que pode haver de ramificado, de palpitante ... ora, essa relação do objeto com o nascimento de
quais vai-se identificando o sujeito na esperança de reencontrar-se com o objeto perdido, esta
"origem" a que o inconsciente busca sempre retornar elude sempre. A expectativa de juntar
pensamento a pensamento, termo a termo, igualar A com A, fixar o idêntico entre o sujeito e o
objeto de sua identificação,

“é justamente isso o que faltará sempre: é que em toda espécie de outra reaparição do que
responde ao significante original, no ponto onde está a marca que o sujeito recebeu deste seja o
que for que está na origem do Urverdrängt, faltará sempre ao seja o que for que venha representá-
lo esta marca única do surgimento original de um significante original que se apresentou uma vez
no momento em que o ponto, o algo do Urverdrängt em questão passou à existência inconsciente,
à insistência nessa ordem interna que é o inconsciente, entre, por um lado, o que ele recebe do
mundo exterior e onde ele tem coisas a ligar: pelo fato de ligá-las sob uma forma significante, ele
só as pode receber em sua diferença, e é bem por isso que ele não pode de maneira nenhuma ser
satisfeito por esta procura como tal da identidade perceptiva se é isso mesmo que o especifica
como inconsciente” (Lacan, s.d., 2:7, 15).

O (re)encontro com a marca (o passo, a marca, a pegada de Sexta-Feira na ilha de Robinson


Crusoé), marca daquilo que se faz tudo para apagar (por exemplo, o neurótico), ou mesmo se
não se encontra mais a marca, se volta porque se acredita que ela existiu um dia, é o sinal de
que estamos “em relação com um sujeito real. Observem que, neste desaparecimento da marca,
que o sujeito procura fazer desaparecer é sua passagem, de sujeito a ele mesmo" (Ibidem).

Julia Kristeva relativiza a centralidade atribuída por Lacan ao significante como determinante da
identificação. Para ela, "[l]onge de ser uma simples assimilação do significante ou de esquemas
simbólicos, ela toca o real e o corpo, especificamente. O sintoma pode ser uma identificação que
se fez carne, em vez de submeter-se à exigência de identidade que a frustração e a palavra
ditam. Tal identificação é uma recusa de identidade: ela opta pelo gozo e denega o corte, a
distinção" (1994:48). No caso da paciente analisada por Kristeva, múltiplas, parciais e
simultâneas identificações fazem com que seu processo de identificação faça fracassar a própria
identidade!

Englobando diversos estágios na formação do sujeito, o termo identificação marca a divisão


constitutiva do sujeito pela qual "[s]e admito que não sou nunca idealmente Um sob a Lei do
Outro, toda a minha aventura psíquica é feita de identificações falhas, de autonomias
impossíveis nas quais vêm se alojar o narcisismo, a perversão, a alienação"; "transferido ao
Outro, na identificação, eu forma Um com ele por toda a gama do simbólico, do imaginário e do
real. Freud evoca a intensidade de uma Einfühlung, de uma empatia própria a certos estados
amorosos ou hipnóticos, e mesmo místicos" (Idem: 48, 49 - grifos nossos).

Uma outra forma de expor a questão da identificação no pensamento lacaniano pode ser
encontrada em Slavoj Zizek (1992), na análise que este propõe do grafo do desejo, em suas
quatro formas superpostas. Zizek defende que só se pode compreender o grafo a partir do efeito
cumulativo de sua apresentação, partindo da formulação mais simples, que mostra o vetor de
uma intenção mítica, pré-simbólica ( ) cortando de trás para a frente o vetor da cadeia dos
significantes (S - S') e chegando ao sujeito ($); à segunda formulação, que explora as duas
intersecções entre os dois vetores, e com elas a questão das identificações imaginária e
simbólica; passando ao “Che vuoi?” do Outro que, ao assinalar a diferença entre a demanda e o
desejo do sujeito, recebe deste a resposta na forma da fantasia/fantasma ($ a); até alcançar
sua forma acabada, pelo cruzamento do vetor do desejo simbolicamente estruturado por um
novo vetor, o do gozo (jouissance).

algo que se chama aqui signo, já que ele nos interessa no nascimento do significante, é bem aí em torno do que
estamos detidos, e em torno do que não é sem promessa que tenhamos feito, se se pode dizer, uma descoberta - pois
acredito que é uma -: esta indicação de que há, digamos, num tempo, um tempo recuperável, historicamente definido,
um momento em que alguma coisa está aí para ser lida, lida com a linguagem quando ainda não há escrita, e é pela
inversão dessa relação, e dessa relação de leitura do signo, que pode nascer em seguida a escrita, uma vez que ela
pode servir para conotar a fonematização" (Lacan, s.d., 2:7, 7-8).
21
Grafo 1

Primeiro a retroatividade: o indivíduo é interpelado como sujeito quando, confrontado pelo Outro,
liga-se a um significante e, a partir dele, relê a si próprio, construindo uma unidade narrativa
sobre si a partir do significante com que se identifica. Este significante, o point de capiton
lacaniano, ao mesmo tempo em que costura o sujeito a um ponto da cadeia dos significantes, o
constitui em sujeito e interrompe o deslizamento do significado sob o significante, produzindo um
sentido do sujeito. Aqui já se encontra o mecanismo básico da transferência em ação,
produzindo a ilusão de que um certo elemento, que se fixou pela intervenção de um significante-
mestre, já estava presente desde o início determinando o desenrolar da história do sujeito.

Grafo 2

Segundo, a especificação dos dois pontos em que a intenção corta a cadeia significante:
inicialmente, o significante que é fixado, é a um só tempo apenas um significante e representa a
própria generalidade da ordem simbólica 22; no ponto do segundo cruzamento da cadeia
significante, o sentido produzido aparece como função desta última [s(O)], na medida em que ela
"amarra" o sentido do sujeito em torno de um dado significante. Há aqui, na segunda forma do
grafo, uma retroversão em relação aos pontos de partida (intenção ) e de chegada (o sujeito
barrado $): este último aparece na base direita do grafo (ponto de partida) e o resultado da
operação surge agora como I(O). A mudança de posição do sujeito corresponde, para Lacan, à
ilusão transferencial pela qual o sujeito a cada estágio torna-se "o que sempre-já fora", em
continuidade consigo mesmo, acreditando ser "o agente autônomo que está presente desde o
início como origem de seus atos" (Idem:104). Já o ponto de chegada refere-se à identificação
simbólica, ao fato de que o sujeito, ao ser interpelado pela ordem simbólica, encontrou ali um
significante, um traço (I), em torno do qual se organiza o sentido de sua vida: segundo Zizek, é
por meio deste procedimento que o significante "assume uma forma concreta, reconhecível num
nome ou num mandato que o sujeito toma para si e/ou que lhe é imputado" (Ibidem). Esta

21
As quatro versões do grafo apresentadas nas páginas seguintes são tomadas de Zizek, 1992:101,103, 111, 121.
22
Esta dialética universal/particular é aplicada à análise política nos diversos trabalhos de Ernesto Laclau reunidos em
Emancipation(s) [1996].
identificação simbólica se distingue da identificação imaginária, representada por uma linha
inserida entre o vetor do significante e a identificação simbólica, representando a conexão entre
o eu imaginário (e) e seu outro imaginário [i(o)], pela qual o primeiro enxerga sua identidade fora
de si mesmo, por assim dizer.

Estamos aqui na relação entre a identificação imaginária (eu ideal) e a identificação simbólica
(ideal de eu): a primeira é identificação com a imagem que representa "o que gostaríamos de
ser"; a segunda é identificação com o próprio lugar de onde estamos sendo observados, de
onde nos olhamos para parecermos apreciáveis, dignos de amor (Idem:105). Em nenhum dos
casos estamos diante de idéias como imitação de modelos, ídolos ou ideais. O traço em cuja
base se produz a identificação com outrem está geralmente oculto do sujeito, e nem sempre se
trata de um "lado bom" do outro, podendo ocorrer que nos identifiquemos precisamente com a
dubiedade, a impotência, a culpa ou o fracasso do outro.

Grafo 3

A terceira forma do grafo introduz a interrogação: "O que queres?" (Che vuoi?) e pretende dar
conta da necessária falha no processo de identificação. Após toda "costura" pela qual um
significante torna-se a chave de sentido do que o precedeu na cadeia significante, sobra sempre
algo, que se traduz na pergunta acima. "Tudo bem, isto é o que você está me pedindo, mas o
que é que você quer mesmo? O que o leva a pedir isso? Aonde você quer chegar?" A
persistência deste hiato entre a proposição e sua enunciação, entre a demanda e o desejo, é
que levará à fórmula da fantasia, à resposta do sujeito que pretende uma vez mais reequilibrar o
jogo. Nunca se pode saber se o que se afirma é o que se quer ou onde se quer chegar. Nunca
se pode garantir que a solução alcançada no processo de identificação, a junção constitutiva do
sujeito a um determinado significante, será suficiente para satisfazê-lo, será adequada para
descrevê-lo, será forte o bastante para detê-lo. Se ao encontrar seu lugar na rede intersubjetiva
das relações simbólicas, ao "descobrir quem é", o sujeito recebe um mandato, este jamais deixa
de ser arbitrário. Sua natureza puramente performativa faz com que esse mandato não possa
ser deduzido em referência aos atributos e capacidades "reais" do sujeito. Por duas razões: o
sujeito não sabe por que é assim, por que ocupa o lugar que ocupa na rede simbólica; o sujeito
está ao mesmo tempo aquém e além desta "missão". Mas isto não o impede de tentar responder
à questão e preencher o vazio entre a demanda e o desejo apontado pelo Outro. A fantasia é a
designação de objetos que venham a ocupar o lugar do desejo do Outro, desejo do que o sujeito
acredita ali se encontrar em sua forma "pura", como gozo pleno e imediato.
Grafo Completo

A última forma do grafo é aquela em que um novo vetor, o do gozo (jouissance) atravessa o
vetor curvilíneo do desejo pelo qual o "Che vuoi?" encontra resposta na fantasia. Este vetor vem
assim dividir o grafo em dois níveis: um nível do sentido, mais abaixo, e o do gozo, acima.
Enquanto o problema no primeiro nível é como a intersecção da cadeia significante com uma
intencionalidade mítica produz um efeito de sentido (o sujeito), passando pela retroatividade, a
retroversão e a identificação simbólica e imaginária, o problema do segundo nível é o que se dá
quando o próprio campo do Outro é perfurado por um fluxo pré-simbólico (real) de gozo, ou seja,
quando a rede do significante se mistura ao corpo. A resposta é a seguinte: "ao ser filtrado pela
peneira do significante, o corpo é submetido à castração, o gozo é evacuado dele, o corpo
sobrevive desmembrado, mortificado. Em outras palavras, a ordem do significante (o grande
Outro) e a do gozo (a Coisa como sua encarnação) são radicalmente heterogêneas,
inconsistentes; qualquer acordo entre elas é estruturalmente impossivel" (122). Mas sobram
alguns "oásis de gozo" em meio ao deserto da ordem simbólica, pequenas "zonas erógenas" do
corpo não submetidas ao Outro, mas de forma alguma meramente biológicas, naturais. Revela-
se aqui a falta do Outro, sua pretensão de deter o segredo do desejo do sujeito, de ser a matriz
do seu destino, de ser a fonte de sua sujeição.

Revela-se aqui a falha da estrutura. O gozo é o que atravessa a ordem simbólica, perfurando-a e
revelando a sua contingência, resistindo a toda simbolização, a toda tentativa de congelar a
deriva da significação, da identificação. Se assim não fora, só restaria ao sujeito alienar-se
radicalmente no Outro. Mas esta falta no Outro permite ao sujeito separar de vez o objeto do
Outro, negar que este possua ou controle a verdade do gozo, da plenitude, da totalidade. Não é
que o sujeito se perceba enfim, invulnerável, vitorioso. Ele apenas descobre que se não tem a
resposta para o vazio que o habita, tampouco a tem o Outro. Ele pode identificar-se, enfim, com
a falta no Outro, "atravessar a fantasia" e descobrir que não existe nenhum objeto sublime
aguardando o mais denodado dos nossos esforços de auto-superação ou abnegação.

Gostaria, enfim, de colocar somente mais um ponto. Octave Mannoni pondera que a dimensão
inconsciente da identificação nos coloca diante de duas circunstâncias: primeiro, a de que não é
possível se justificar a identificação, buscando explicar o seu porquê, só se precisa considerar
como se dá a identificação; e segundo, não há como ter acesso à identificação senão a partir de
situações de desidentificação, pelas quais o sujeito percebe/descobre/reconhece que esteve
identificado no momento em que (começa a) deixa(r) de sê-lo23. Isto torna relativamente sem
importância uma discussão que ocupa bastante espaço na teoria da identificação, a saber, se há
objetivamente uma pré-história ou identificação primária (cf. Mannoni et alli, 1994:174-75). O
processo de constituição do sujeito inclui sempre identificação e desidentificação: como não há
acesso originário à primeira, tomar consciência dela é já o início da segunda. Para Mannoni,
"Freud viu-se levado a conceber o eu como uma cebola composta de camadas sucessivas de
identificações. Mas, se é assim, é efeito também das desidentificações sucessivas" (Idem:176).
Aliás, falar de identificação, introjeção ou incorporação é utilizar-se de metáforas e dizer
identificação é anunciar uma multiplicidade de formas e situações irredutíveis a uma teorização
no singular. O privilégio dado por Lacan, por exemplo, à identificação com um traço do outro, não
pode, afirma Mannoni, estar na raiz de todas as formas de identificação e mais, deve mesmo vir
depois do movimento de desidentificação (Idem:178).

3. O Outro transverso: linguagem, antagonismo, ideologia

Constituindo seu ser na e pela linguagem, o sujeito humano é ao mesmo tempo descentrado e
dividido. Descentrado, porque se constitui no terreno do Outro, da ordem simbólica que o
precede e sucede, ao mesmo tempo em que lhe fornece o terreno onde vai "buscar" o que lhe é
"próprio", a realização dos seus desejos (substitutos para sempre inadequados e parciais da
plenitude do gozo). Dividido, porque constituído por uma dimensão ou instância que é a marca
do Outro no si-mesmo: o inconsciente.

Entre o indivíduo e as diversas situações ou razões de seus investimentos se interpõem


definitivamente a linguagem, a tradição, a cultura, os processos identificatórios, "a rede complexa
em que o sujeito se eclipsa, constelado" (Soares, 1993:44). Pois tudo isto antecede, espera pelo
sujeito, embora não exista sem sujeitos. Pela linguagem se promete o sentido do que não está
garantido por qualquer fundamento, sentido que vai se revelando/desvelando ao se acumularem
as práticas de linguagem, mas não sob a forma ascendente de uma progressão. O
desvelamento do sentido para o sujeito tem caráter retroativo, como vimos, no que diz respeito à
"verdade do sujeito" (cf. Dews, 1996). Não obstante, as disputas de sentido têm lugar numa
história em que se visa a um todo ou fim que está à frente, apesar de depender de como se fará
para construí-lo e que guarda uma única surpresa: o que faz falta na origem jamais será
encontrado adiante: o que esperamos do Outro este não tem para dar, como vimos em Zizek. O
sentido não precisa esperar pelo encontro entre a palavra e o referente, o sentido se dá na
ausência de referente, como promessa e antecipação, mas também como adiamento e
deslizamento contínuos da plena coincidência entre significante e significado, entre
conhecimento e real, entre a palavra e a coisa, entre a essência e a aparência.

A "descoberta" de que somos na linguagem nos proíbe de fazer coincidir o sentido realizado por
nós com nosso ser integral (origem ou destino), sonho narcísistico de onipotência do sujeito qu e
esquece-se de que entendemos o mundo e a nós mesmos por meio da linguagem, pela qual
também recebemos um nome e nos tornamos alguém que, no mundo, pode dizer "eu". Ligando à
questão do vínculo social, digamos que nosso pertencimento é uma das medidas de nossa
finitude, como insistiam os românticos e, em sua esteira, a tradição hermenêutica pós-
Schleiermacher: "se apenas podemos ser topicamente, fragmentariamente, parceladamente, no
desdobrar-se da linguagem ..., sujeito é sempre uma função da linguagem com a qual nos
identificamos" (Soares, 1994:53). Em outras palavras, "É finito o ser que só existe
representando-se, pois sua extensão correspondente [sic] a suas realizações de linguagem, por
definição descontínuas e limitadas, submetidas a lógicas extrínsecas e aos horizontes culturais

23
Outra possibilidade admitida por Mannoni se refere à identificação com um papel (por exemplo, no caso da leitura
de um texto literário ou da performance em/assistência a uma peça teatral ou filme). Aí, estar identificado implica em
saber que não se é o papel, a fantasia ou a indumentária, e a desidentificação não tem nem o efeito nem a função de
uma situação em que o sujeito se surpreende consigo mesmo ou se descobre partilhando traços de um outro. Seria
um caso de identificação irônica, guardando distância de si mesma, embora seja sempre possível imaginar que
alguém "se deixe levar" pelo jogo e acabar retendo um traço que seja dos personagens ou situações literários ou
dramáticos.
em que emergem as linguagens que lhe servem de morada. O ser só se realiza ... situando-se,
isto é, fazendo-se sujeito de uma visada particular, circunscrita por um horizonte específico,
balizado por concepções e valores herdados de tradições também específicas" (Idem:54).

O lugar do Outro resulta, porém, de múltiplas articulações. Não se pode reduzi-lo à dimensão da
linguagem como sistema de diferenças regulado pela substituição e pela associação. Como diz
Freitas, a despeito do seu vezo althusseriano, "o percurso do significante - o dinamismo do
inconsciente - organiza um espaço heterogêneo, lugar da transversalidade da função simbólica e
das relações de sua produção, que são, ao mesmo tempo, condição de reprodução das relaçõ es
sociais tornando-se uma condensação de múltiplas problemáticas e ponto de partida para várias
possibilidades de trabalho" (1992:104). É pelos vãos e cavilhas desta transversalidade que nos
parece legítima a exploração de questões levantadas pela teoria psicanalítica - no caso, sobre a
identificação - à luz de uma problemática em que discurso, antagonismo e ideologia se
entrecruzam, deixando emergir o sujeito nas frestas, na falha da estrutura, como resposta a uma
situação de deslocamento, como testemunha de uma resistência a deixar-se simplesmente
manietar pela onipotência do Outro, mas também como sujeito marcado pela divisão e pela
ambiguidade entre identificação (nos registros do imaginário e do simbólico) e sua
contingência/impossibilidade (registro do real). No trabalho de Laclau, como veremos no capítulo
3, encontramos uma tentativa particularmente fecunda de realizar esta articulação.

No campo das ciências sociais, o lugar deste Outro esteve tradicionalmente subsumido à
problemática da ideologia. Naturalmente esta afirmação é meramente aproximativa, saltando
logo à vista de qualquer analista atento as diferenças de perspectiva que se abrem quando, no
caso, a ideologia é vista como um mecanismo deformante pelo qual o processo identificatório só
poderia ter lugar pela alienação do sujeito em relação ao seu verdadeiro ser. Apreensão
distorcida da realidade, a ideologia seria um estorvo à plena expressão da identidade do
indivíduo, classe, nação ou raça. A névoa ideológica precisaria ser dissipada pela luz do
conhecimento (científico), de forma a emancipar aqueles agentes. Com isto, o Outro
desapareceria para que o Si-Mesmo finalmente se encontrasse.

Noutra ponta, a ideologia surgia como expressão de um sujeito soberano, numa problemática
intencionalista. Senhor de um querer-dizer, o sujeito comandaria a arregimentação dos recursos
linguísticos e simbólicos para alcançar seja uma visão coerente de mundo, seja objetivos
instrumentais específicos. Neste caso, a ideologia não teria necessariamente um caráter de falsa
consciência, mas poderia ter o sentido descritivo, neutro, de uma representação do mundo,
elaborada pelo sujeito.

Neste particular, mesmo o enorme avanço produzido pela articulação, na análise do discurso
francesa, dos campos da linguística estrutural, do marxismo althusseriano e da psicanálise,
revela-se ainda limitado. Por um lado, é perceptível o esforço para se desvencilhar do modelo da
falsa consciência e da problemática intencionalista, como testemunha o trabalho de Michel
Pêcheux (cf. 1990a; 1990b, 1988). Por outro lado, a refração do estruturalismo em moda no
período (final dos anos 60) resultou numa concepção em que o Outro reina impassível e
despoticamente sobre o sujeito, fazendo com que apenas o caráter fictício da unidade e
autonomia deste último fosse estabelecido. Assim, o sujeito estaria condenado à fantasia ou ao
fechamento da estrutura, ainda que apenas "em última instância" 24.

A articulação do Outro em termos de sua própria falha ou falta, bem como da transversalidade
que defendi acima, não era ainda possível nem mesmo na análise do discurso, em sua primeira
fase. Num segundo momento do trabalho de Pêcheux se começa a perceber os limites dessa
rígida idéia do Outro (não barrado, "economicizado"). Mas é somente numa terceira fase da
disciplina, testemunhada pelo próprio Pêcheux (cf. 1990c; 199x; v. tb. Maingueneau, 1989;

24
É importante lembrar que a teoria althusseriana da ideologia pretende exatamente promover esta aplicação da
hipótese psicanalítica do inconsciente ao campo do marxismo (cf. Althusser, 1985) e que Pêcheux assume para si a
tarefa de elaborá-la de forma mais refinada numa teoria do discurso (cf. Pêcheux, 1988).
Courtine, 1981), que a produtividade do diálogo entre psicanálise e análise do discurso revela -se
mais promissora a partir do momento em que, na obra de Pêcheux, o conceito de estrutura,
pensado como o Outro inteiramente determinante do sujeito, passa a comportar uma falha, um
furo, pela entrada em cena da idéia de real lacaniana, que é tributária da tese freudiana da perda
irremediável do acesso à Coisa-em-si (das Ding), o qual instaura a errância do desejo que é uma
metáfora da trajetória do sujeito. A linguagem, epicentro da ordem simbólica, deixa de ser
pensada como "rolha do furo do real" e passa a ser vista também como produtora deste furo:
falha do simbólico de resolver em definitivo o problema do sentido e do desejo, de deter a
errância do sujeito em busca do gozo perdido. O Outro é marcado pelas interrupções da
singularidade (sujeito, acontecimento), de forma que, na última fase do trabalho de Pêcheux,
passa-se desta idéia de um Outro completo, buscada nas categorias de estrutura na sociologia
marxista e de código da semiologia/linguística estrutural, reavendo-se "o real do inconsciente na
teoria", e chegando-se a uma conceituação do Outro como esburacado, barrado, falhado (cf/.
Leite, 1994:22-28).

Desta forma, a ideologia pode ser afirmada como uma dimensão da realidade e da constituição
do sujeito, correspondendo de certa forma ao mandato (ideal) de que fala Zizek, bem como
impedindo todo acesso imediato ao real, sem passar pelo corpo opaco da linguagem e das
representações. Não exatamente o conteúdo de uma ideologia particular (que já é da ordem das
identificações imaginárias) é o que se descreve aqui. Por outro lado, a análise e crítica dessas
ideologias concretas beneficia-se do aporte psicanalítico (cf. Zizek, 1996).

A questão implicada na fantasia social (ideológica) é "construir uma visão da sociedade que
realmente exista, que não seja cindida por uma divisão antagonística, uma sociedade em que a
relação entre suas partes seja orgânica, complementar" (Zizek, 1992:126). A dimensão crítica
correspondente a esta pretensão não revolve tanto em torno da necessidade de interpretar a
fantasia, mas de atravessá-la, revelar que por trás dela nada se coloca, que a fantasia tenta
esconder precisamente este "nada". A fantasia é o que pretende ocultar o antagonismo
constitutivo da sociedade e da identidade. Criticar a ideologia, em outras palavras, é "detectar,
num dado edifício ideológico, o elemento que representa nele sua própria impossibilidade"
(Idem:127), o sintoma que ele busca ocultar, exorcizar, a fim de ostentar a pretensão de
estabilidade, completude e realização. Este elemento, o sintoma social, indica "o ponto em que o
antagonismo social imanente assume uma forma positiva, irrompe na superfície social, o ponto
em que se torna óbvio que a sociedade 'não funciona', que o mecanismo social 'racha-se'"
(Idem:127-28). Ao atravessar a fantasia, o que se requer é que nos identifiquemos com o
sintoma, reconheçamos que nos "excessos" e absurdos a ele atribuídos está a verdade sobre
nós próprios; não se tratam de meros desvios ou aberrações do normal, mas produtos
necessários do sistema.

Para voltar a um ponto já introduzido anteriormente, a seção superior do grafo do desejo em


Lacan poderia ser designada como a dimensão "além-da-interpelação". Esta parte é que estaria
faltando a quantos esforços (pós-)estruturalistas de elaboração de uma teoria da ideologia se
mantiveram no primeiro nível, pretendendo assim "compreender a eficácia de uma ideologia
exclusivamente por meio dos mecanismos de identificação imaginária e simbólica" (Idem:124).
Polemicamente, Zizek afirma que a dimensão "além da interpelação" nada tem a ver com a
pluralidade e dispersão irredutíveis dos significantes. Ela se refere a este retorno de um cerne de
gozo pré-simbólico e pré-ideológico (isto é, na terminologia lacaniana, real), o qual constitui o
"último suporte do efeito ideológico (da forma como uma rede ideológica de significantes nos
'prende')" (Ibidem). Nem tudo é ideológico na ideologia. De modo que nem a análise da ideologia
nem sua crítica pode desprezar este resto, a tarefa de detectar este núcleo de gozo que escapa
à tentativa de totalização do campo do discurso através da fantasia e que volta como um
espectro (cf. Zizek, 1996).
CAPÍTULO 2 - ARTICULANDO PSICANÁLISE E POLÍTICA: A
CONSTITUIÇÃO DE UM NOVO CAMPO

O
esforço de exposição da concepção psicanalítica da identificação feito no capítulo anterior
deixou um resto não enfrentado, mas indicado logo na introdução, relativo à propriedade
da articulação da problemática do sujeito ali implicada com questões de identidade e
subjetividade coletivas, tal como comumente se faz no pensamento político e nas ciências
sociais. A comum recusa da idéia clássica do sujeito centrado, autônomo e transparente a si,
domínio do Mesmo, projetando-se em direção ao mundo exterior onde os outros lhe aparecem
como objetos a serem conquistados e/ou conhecidos, não é suficiente para instaurar uma
coextensividade das categorias envolvidas em cada campo. Primeiro, porque até mesmo a
recusa referida é modulada de diferentes maneiras. Segundo, porque entre a psicanálise e as
ciências sociais já se interpuseram outros domínios ou problemáticas - como as da linguagem e
do discurso - que se funcionam como ponto de encontro possível (por exemplo, entre a
linguística e a antropologia estrutural, a leitura lacaniana de Freud, o campo da teoria do discurso
e o marxismo althusseriano), não traduzem nenhuma unidade ou correspondência dos conceitos,
nem muito menos a solução para o diálogo entre psicanálise e política no que se refere à
questão da identidade.

Há, portanto, um trabalho, ainda que tentativo e operacional, a realizar. Neste capítulo,
procurarei aventar alguns dos problemas enfrentados pela recepção da problemática
psicanalítica na política e vice-versa, de forma a poder, em seguida, voltar à questão da
identidade e da constituição de sujeitos coletivos que norteia toda a preocupação deste trabalho.
Em assim fazendo, espero poder introduzir uma série de argumentos preparatórios àquela
discussão, relativos à relação entre o discurso da psicanálise e o da política, seus pontos de
aproximação e de recuo, especialmente tendo em vista o debate contemporâneo referenciado na
25
"crise dos paradigmas" e num certo "recuo do político" .

1. Problemas Conceituais da Articulação: plurivocidade das noções de sujeito,


linguagem, discurso e o social

Uma das objeções - e certamente uma das dificuldades - levantadas pela tentativa de articulação
que se propõe neste ensaio diz respeito à heterogeneidade conceitual que se abriga sob a
"mesma" designação de certos conceitos nos dois campos. É uma mesma a concepção da
linguagem que aparece na psicanálise e na linguística? De que sujeito se trata em ambos os
casos? Como se articulam estas concepções? O que ocorre quando se fazem tentativas de
"compor" ou "intervir" num campo a partir de outro, como faz, por exemplo, Lacan em relação à
linguística saussureana e jakobsoniana, ao afirmar que "o inconsciente está estruturado como
uma linguagem"? Que preço vem a ser pago pela homologia entre inconsciente e linguagem a
partir da primazia do significante, por exemplo, em relação à questão do corpo?

No caso da análise do discurso francesa, que tenta pensar o que fora excluído na linguística
estruturalista, a saber, a questão do sentido, correspondendo à semântica na clássica repartição
das áreas da linguística, levando-a à especificidade do discurso, como a solução encontrada
num primeiro momento (sob hegemonia do estruturalismo) se revelará insuficiente e inaceitável
em seguida (ao ser contaminada pelos ventos desconstrutivistas)?

Quando uma teoria não-subjetiva do sujeito (buscada na psicanálise) atravessa um campo


epistemológico, qual será seu estatuto aí? Esta é a pergunta de Leite (1994:18), ao colocar a
questão da elaboração do objeto discurso na formulação pêcheuxiana. Seria tal estatuto o de um
25
Refiro-me aqui tanto ao "arrefecimento" do agonismo político que a decantada vitória da democracia nos últimos
dez anos tem gerado no mundo, e que é marcado pelo apagamento ou confusão das fronteiras entre a democracia e o
seu outro, de consequências imprevisíveis para aquela (cf. Mouffe, 1996:11-19), quanto à já conhecida observação de
que as democracias realmente existentes são caracterizadas por um crescente desencanto e retração participativa dos
cidadãos (cf. Lechner, 1987; 1994). Voltarei ao ponto na primeira parte do próximo capítulo.
fundamento (simultaneamente pressuposto e base) como ela sugere? Mas o que dizer do
fundamento se não for capaz de governar os movimentos da forma por ela produzida? Se não
for suficiente para definir todos os contornos da nova problemática? Se os interlocutores não
puderem ser vistos como a matéria inerte que receberá a "contribuição", mas exercerem uma
resistência, impuserem um atrito que tome a forma de uma demanda por "negociação" cujos
resultados não estão dados fora-de-contexto, mas sejam uma função das ações
hegemonizantes de cada parte? 26

Não entendo a tarefa por realizar como precisando postular como fundamento a teoria
psicanalítica do sujeito, ou mesmo de privilegiá-la como "definição operacional" dos conceitos.
Trata-se, é certo, de pensar o processo de formação de atores coletivos como efeito de
precipitação de uma série de atos identificatórios, imaginários no que diz respeito à "iniciativa"
dos sujeitos, simbólicos no que diz respeito à sua inserção junto a uma tradição, cultura ou
discurso independentemente da vontade de qualquer dos "componentes" (indivíduos ou grupos)
desta forma compósita que chamamos de ator coletivo, não estamos propondo uma "psicanálise"
do sujeito social. O que é preciso, contudo, é delimitar alguns critérios que possam
simultaneamente dar conta deste "chamado" 27 que nos leva a responder sim à tradição
psicanalítica (o que só é possível, se a identificação é inconsciente, como alerta Mannoni, num
momento de desidentificação), e marcar nossa diferença, impedindo a nossa diluição no campo
desse outro. Não, a psicanálise não detém a resposta final ao nosso problema de pesquisa.

Critérios, portanto, de aproximação e articulação (a qual, aprendemos de Saussure a Derrida,


não existe sem um espaçamento entre os elementos: não pode ser articulado senão o que é
descontínuo, distinto, singular), que viabilizem nosso experimento no plano conceitual. Critérios
que permitam definir um “índice de comparação” (Laclau) pelo qual não se venha simplesmente
ajuntar a contribuição de um campo a outro, ou redescrever os termos de um pelos do outro,
nem substituir um princípio de causalidade (a economia) por outro (o inconsciente), mas construir
um novo campo, um tertium, em que a comparação adquira sentido 28.

No que diz respeito à natureza do "chamado", posso dizer que uma tripla injunção me leva a
responder sim a esta concepção do sujeito: primeira, a de "acertar contas" com a formação
estruturalista recebida por muitos cientistas sociais brasileiros formados nos anos 70 e início dos
80, massivamente calcada no marxismo e, portanto, fixada na determinação inconteste da
estrutura; segunda, a de dar sentido à crise da fantasia de construir a sociedade democrática a
partir das bases que animou boa parte da esquerda não-comunista nos anos 80, calcada na
representação voluntarista do "ser sujeito da própria história"; terceira, a de atravessar a fantasia
da nossa relação irresolvida com a Democracia, a Igualdade e a Liberdade, num contexto em
que já não mais acreditamos que qualquer projeto concreto as encarne inteiramente, ou com
elas se confunda, nem mesmo esperamos delas que nos redimam do abismo desta errância que
nos impulsiona para o de onde nunca viemos e onde não sabemos se chegaremos: o Paraíso.
Nossa adesão a estes objetos da nossa falta reconhece que eles não têm a resposta para nossa
pergunta, mas não podem senão receber uma resposta, sempre contingente e ultimamente

26
Esta é precisamente a questão que persegue Derrida desde seus primeiros escritos sobre o estruturalismo e a
psicanálise, até seus trabalhos sobre a problemática da iterabilidade (cf. 1967:9-49, 409-28; 1991a:33-63, 349-73;
1991b; Burity, 1995).
27
Este chamado prévio a toda resposta específica, esta dívida/responsabilidade para com o outro, é tematizado de
formas diferentes seja por Lacan, seja por Levinas (cf. 1993; Critchley, 1992; 1996), seja pelo último Derrida (cf.
1995:255-87; Van Haute, 1996).
28
No caso de Laclau (cf. 1990:93-96), este novo campo é chamado de “pós-marxismo” e articula fundamentalmente a
categoria lacaniana da falta às questões do desenvolvimento desigual e combinado e da hegemonia, no discurso
marxista: “o sujeito hegemônico é o sujeito do significante, que é, neste sentido, um sujeito sem um significado”
(Idem:96). A aproximação entre (pós-)marxismo e psicanálise se dá, pela coincidência entre a economia e o
inconsciente, em torno da “lógica do significante como lógica da irregularidade [unevenness] e do deslocamento,
coincidência fundada no fato de que essa última é a lógica que preside a possibilidade/impossibilidade da constituição
de qualquer identidade” (Ibidem). Esta operação foi discutida por mim num outro trabalho, a que remeto o leitor
(Burity, 1997).
impossível, mas nem por isso frágil e improvável, porque passível de mobilizar energias
coletivas.

Quanto à marcação do espaço que separa a psicanálise da política no momento mesmo em que
busco me articular com ela, ressalto três pontos: 1) não identidade, mas semelhança de família
entre os conceitos que circulam pelos dois campos - contingência do vínculo entre conceitos
"idênticos"; 2) não apropriação, nem reprodução dos "mesmos" termos: como reza a sabedoria
da análise do discurso, as palavras mudam de sentido ao migrarem de uma formação discursiva
a outra - o deslizamento do sentido permite um mínimo de semelhança em meio à alteração, e
isto é tanto da ordem do significante quanto do significado (ponto em que a crítica do signo e a
análise da iterabilidade em Derrida separam-se resolutamente de Lacan, ainda que apenas pela
resistência em substituir a idéia unificada do signo [significante + significado] pela da primazia do
significante); 3) a tentativa de manter a pureza dos conceitos pressupõe que estes se tenham
constituído plena e previamente ao processo de articulação, o que exigiria definir uma espécie
de controle de fluxo de (i)migração na fronteira dos dois territórios - problemas quando a
própria fronteira está em litígio, quando o dentro e o fora são indecidíveis em seus próprios
termos e remetem a uma decisão política, isto é, não ditada pela lógica interna do processo de
aproximação.

As seções a seguir tentam ilustrar estas questões. A idéia é que elas ajudem a situar as linhas
de força do processo de recepção de uma problemática psicanalítica no domínio de uma teoria
da formação de atores coletivos que não está, como disse acima, referenciada na psicanálise
como fundamento, porque, de um lado, não reconhece a primazia do fundamento (gesto
classicamente metafísico), mas, de outro, assume a transversalidade como marca da dinâmica
de um campo de práticas articulatórias. O que aproxima a psicanálise da política não é assim,
nem a supremacia de uma sobre outra, nem a existência de uma coincidência (ou intersecção)
de seus conteúdos, mas a dupla possibilidade de que sejam submetidas à "pressão" de um
terceiro, em relação ao qual se achem na condição de companheiras de viagem, e de que
reconheçam a estrutura cindida que caracteriza a ambas (estrutura que é simultaneamente
pretensão de domínio/determinação e impossibilidade de contenção de toda a multiplicidad e que
se aninha sob sua "jurisdição", mas que também pode "pertencer" a outras). A economia da
proximidade e do afastamento não diz respeito ao choque de limites rígidos e inalteráveis, mas
ao vai-e-vem do antagonismo e da pluralidade, que ameaçam a cada momento revelar a
contingência e a impossibilidade da estabilização alcançada até ali. A resistência do singular, do
acontecimento, em relação à estrutura é a marca comum destes campos fraturados, condição de
possibilidade para o seu diálogo e mútua deformação.

2. Psicanálise e Política: Diálogos na Fronteira

É interessante, inicialmente, anotar como diversos autores, especialmente no campo da


psicanálise, têm tentado delinear as relações entre psicanálise e política ao mesmo tempo em
que pretendem manter intacta a linha demarcatória entre as duas. Na preocupação bastante
compreensível de não fazerem "aplicações" sem rigor e superficiais de um campo em outro,
acabam por depender de uma fronteira que de forma alguma está dada, mas só pode ser
contextualmente compreendida: ela será sempre a fronteira entre uma certa modulação da
psicanálise e uma certa modulação da política, as quais de forma alguma esgotam o campo de
cada problemática e se abrem, portanto, a refutações e reservas de ambas as partes (bem como
de outras, que ali não se reconheçam).

Brazil (1995) procura fazer uma ponte entre a psicanálise e a política através de uma
aproximação com o marxismo, via Fredric Jameson (O Inconsciente Político). Propondo-se a
expandir o conceito freudiano de inconsciente para incluir “um princípio de alteridade e a
determinação do símbolo”, por remissão a Lacan (Idem:19), e o conceito marxista de praxis para
dar conta da importância da significação (o que Lacan chama de praxis, isto é, “qualquer ação
realizada pelo homem que o põe em condição de tratar o real pelo simbólico” [apud Idem:20]),
Brazil apóia-se na elaboração de Jameson sobre o inconsciente político. Ou seja, a produção,
por meio de uma prática interpretativa, de uma sensibilidade para o intercruzamento das pu lsões
com as condições materiais da vida em sociedade (economia, cultura, história), que revelaria o
caráter do texto como ato simbólico e o relacionaria aos horizontes político, social e histórico (cf.
Jameson, 1988:17-102):

“Isso importa em associarmos a categoria essencialmente negativa de uma agressividade primária


que pertence a uma „realidade psíquica‟ e só pode se expressar produtivamente na dimensão do
simbólico a uma alteridade radical que invoca o conceito de um inconsciente alteritário e
transubjetivo como a linguagem; uma vez que os valores que diferenciam um grupo social, e o
sustentam na sua identidade diferenciada, têm que se opor à organização de valores de outros
grupos. Esta oposição determina necessariamente a exclusão de outros grupos, a negação da
diferença na temporalidade da cultura, para que se sustente a coesão de um grupo que se quer,
como o Eu unitário, idêntico a si mesmo, aspirando a uma unidade permanente que implicaria na
absoluta homogeneização do grupo” (Brazil, 1995:22).

Desde a perspectiva da psicanálise há um irrefreável descompasso entre o que Freud chama,


em O Mal-Estar na Civilização, de exigências pulsionais e as restrições impostas pela cultura.
Isto não impede que indivíduo e grupo se relacionem de forma tensa com a necessidade de
coadunar de alguma maneira as demandas díspares das pulsões individuais e da conformidade
grupal. Isto aparece na reflexão de Freud sobre a instância do supereu e sua remissão ao ideal
de eu. Aquela procurava dar conta do “sentimento de culpabilidade que indica uma ética sempre
oscilando entre a moral individual e os valores de uma coletividade. Esta ética individualizada
numa história pode ser concebida como se dando em associação a um antecessor do Supereu:
O Ideal-do-Eu como uma constante que, além de mediatizar as relações com o imaginário,
regula as identificações sucessivas do Eu com as imagens em torno de valores individuais e
possibilita a identificação simbólica” (Idem:23-24). Desta dinâmica da relação do indivíduo ao
Ideal de Eu advém a necessidade de se considerar, além do efeito de aproximação/coesão
projetado pela relação líder/massa (ou grupo), o efeito de dissociação gerado pela relação com o
Outro. Nos termos freudianos, o amor ao líder é insuficiente para fundar o laço coesivo grupal,
precisando ser suplementado pelo ódio ao Outro.

Um outro ponto da análise de Brazil, decorrente do descompasso entre pulsões e cultura


identificado acima, é o da consideração das ideologias e utopias como “ilusões do desejo”, ao
mesmo tempo irrealizáveis e associadas a ambições de poder que combinam pulsões
destrutivas/dissociativas e construtivas/integrativas. Um aspecto disto é que a
incomensurabilidade das pulsões com o projeto da cultura (ou do poder, neste caso) dá origem a
realizações sempre parciais de realização dos projetos ideológicos/utópicos tanto quanto a
pretensões de homogeneização das diferenças que justificam o exercício da coerção (cf. tb.
Barros, 1995:81-84). O autor comenta que,

“Se partimos do pressuposto de que todo poder é basicamente imaginário, e se associa à „paixão
pelo poder‟ que convoca a pulsão de destruição, mas deixando à violência, como faz Freud em
Totem e Tabu, um papel fundador, a se colocar na origem, antes do que chamamos de cultura,
esta interpretação da psicanálise, que denuncia a ambição de poder se realizando no plano do
simbólico, só se sustentaria porque este poder imaginário - o poder dos deuses e das leis sagradas
- associado a uma culpabilidade coletiva, é logicamente anterior às formas positivas de „exercício
do poder‟. Estas formas utilitaristas, pragmáticas, encarregadas de reprimir corporal e efetivamente
os transgressores, se exercem na „ordenação‟ do simbólico e dão ao que a psicanálise chama de
„repressões secundárias‟ um valor de estarem fundando a organização social, hierarquizando a
sociedade sobre o pressuposto da relação dominador/dominado, sobre o que já é uma organização
de forças que opõem o instituído por uma coletividade aos anseios individualizados” (Brazil,
1995:26).

A psicanálise em extensão visualizada por Brazil tem esta função de denunciar as pretensões
de fundar o poder e a ordem no ajustamento/repressão entre pulsões e cultura, e isto se aplica
tanto aos projetos “perversos” de poder (as ideologias?) quanto aos “benignos/altruístas” (as
utopias?). A ambos, o autor chama de “ideologias do desejo”. O gancho entre a psicanálise e a
política estaria na produtividade do vínculo entre inconsciente e o político numa formulação como
a de Jameson. Assim, “podemos atribuir ao inconsciente, que deixa de ser individual ou coletivo
para se colocar na dimensão da intersubjetividade [concebida à maneira de Habermas - cf.
Idem:29-3329], dando ao „político‟ - referido à ação como um „saber prático‟, um „saber-fazer‟ que
pode transformar a realidade - o sentido de produzir significações que escapam à reiteração dos
significados da „falsa consciência‟” (Idem:28). O que recoloca um projeto hermenêutico efetuado
por um sujeito interpretante ciente (?) da determinação pelo inconsciente e pela história, como
propõe Jameson.

Enquanto Brazil coloca-se em termos do diálogo entre psicanálise e marxismo, procurando


ampliar a ambos os domínios a partir do conceito jamesoniano de “inconsciente político”, Birman
descarta a idéia de uma “interpretação da política pela psicanálise” em favor de “uma indagação
sobre o registro da política no interior da psicanálise”, ou seja, sobre como a política e o poder
aparecem tematizados no discurso psicanalítico (1995:44). Para ele, a primeira possibilidade é
reducionista e equivocada, além de manter imutáveis os dois termos em confronto. O problema é
se qualquer das duas possibilidades pode, em si mesma, negar ou assegurar o diálogo ou
fertilização mútua que o autor espera surgirem do confronto. Pois, pode-se dizer que a
concentração em como a política e o poder emergem no discurso psicanalítico obviamente
confere a este último o “código” interpretativo e pode, portanto, manter perfeitamente inalterada
a fronteira deste ante a política. Ademais, o trabalho de Birman não identifica consistentemente
“como os registros da política e do poder se apresentam nos destinos psíquicos das pulsões e do
sujeito do inconsciente” (Idem:45), como se propõe no começo, analisando antes como tais
registros surgem no contexto da problemática das pulsões, do desejo e do sujeito do
inconsciente, daquilo que Birman chama de “estilo teórico da psicanálise” (Idem:47).

Assinalando que a psicanálise freudiana não construiu uma teoria da política e do poder, o autor
concentra-se, como Brazil, no descompasso entre as questões da governabilidade e da
regulação do poder, por um lado, e o caráter multipolar e centrífugo do desejo e das pulsões que
movem os sujeitos. Não há como evitar a impressão de uma oposição entre sociedade e
indivíduo, situado o saber da psicanálise no segundo pólo. O que ele acrescenta é que, em
Freud, particularmente, a tematização da política e do poder não constitui sistema e que passa
por diferentes fases de elaboração, pontuando a inflexão causada pela nova concepção que
Freud passa a ter da pulsão, a partir de 1913/15. O destaque aqui fica na leitura crítica feita por
Freud do estalinismo, especialmente quanto à impossibilidade de se incluir num projeto político
toda a diversidade de desejos (e concepções de felicidade) individuais bem como de se esperar
pelo altruísmo das pessoas, pela sua desistência do gozo em função do grupo maior ou da
sociedade (Idem:49-55).

O narcisismo e a pulsão de morte comandam uma economia pulsional que inviabilizaria os


sonhos emancipatórios universalistas do Iluminismo e a insistência na realização destes só serve
para acirrar o “mal-estar na civilização”. Enquanto que a leitura freudiana - que Birman aponta
adiante fundar-se ainda na representação hobbesiana do poder (Idem:59-60, 73-74) -
certamente impõe uma redescrição de imagens tradicionais da política sob o signo da
modernidade e do projeto iluminista, por sua vez, não se abre à contradição por parte de outras
concepções da política não animadas pela metafórica da guerra e do terror da morte. Na
perspectiva freudiana a política seria um espaço de mediação entre as exigências agressivas e
fragmentadoras das pulsões e a destruição total das individualidades num projeto comum.
Espaço hobbesiano que cobra aos indivíduos a perda da diferença radical para que se lhes
garanta a sobrevivência física. A política é o interregno entre o narcisismo e a guerra.

29
- A remissão ao saber-fazer é referenciada a uma prática interpretativa de caráter intersubjetivo e performativo, que
Brazil vai recolher na teoria retórica/da argumentação de C. Perelman e na teoria do agir comunicativo de Habermas,
a fim de fundar uma “política” ética e crítica, que desmistifique as ideologias do desejo. En passant, o autor anota que
a ética discursiva habermasiana é insuficiente para dar conta das “situações extremadas - como a fome, a miséria, a
pobreza do Terceiro Mundo” (Brazil, 1995:32), em que considerações de ordem propriamente políticas são
necessárias e urgentes. Para uma análise comparativa de Lacan e Habermas, cf. Dews, 1996.
3. Psicanálise e a crise do discurso totalizante da Política: reemergência da
questão da subjetividade

Para Birman, os movimentos sociais de fins dos anos 60 contribuíram para quebrar o discurso
totalizante da política, pelo qual uma determinada prática social (como a psicanálise) é julgada
em termos de sua importância e contribuição efetivas para a mudança política (revolucionária).
Os movimentos chamaram a atenção para a especificidade de questões que não se deixavam
resolver ou tematizar pelo discurso totalizante do engajamento político: "A questão destes
movimentos sociais não se coloca como sendo a conquista do aparelho do Estado, mas a da
busca de reconhecimento de suas diferenças sociais, éticas e sexuais, isto é, da afirmação da
legitimidade destas diferenças, para que a posse destes emblemas pelos agentes sociais não
implique a diminuição do seu valor social" (1994:98). Assim, a indicação da existência de uma
multiplicidade de lugares onde as lutas de poder se dão descentra a imagem da política como
dirigida exclusivamente à posse ou transformação do poder estatal. Como corolário, colocava-se
a necessidade de enfrentar a "politicidade" daqueles espaços, antes reservados geralmente à
esfera do privado, ou subordinados às flutuações das lutas políticas no âmbito estatal. Neste
contexto, a obra de Foucault, contemporânea destes desenvolvimentos, cobra toda sua
relevância.

Concretamente, este discurso totalizante da política se refere à chamada esquerda marxista


tradicional, stalinista, para a qual as questões da subjetividade e da sexualidade estão sempre
subordinadas à lógica da revolução: são um sub-capítulo da teoria da opressão de classe ou da
alienação; suas querelas se resolverão com a mudança de modo de produção, podendo apenas
ser instrumentalmente potenciadas na desestabilização da ordem capitalista vigente. Não há
especificidade para elas e quem quer que pretenda tratá-las como tais (ex. a psicanálise), só
pode ser contra-revolucionário e anti-dialético (cf. 1994:99-100). "Assim, a tradição stalinista
pregaria o retorno a uma forma de discurso que permeava o horizonte ideológico do século XIX,
no qual se contrapunha as categorias de 'indivíduo' e de 'meio social' como se fossem duas
essências absolutas que não se interpenetravam, de maneira que valorar metodologicamente o
pólo do 'indivíduo' implicava retirar o peso correspondente do pólo 'meio social', e
reciprocamente" (Idem:102). Esta leitura, profundamente arraigada no marxismo oficial, somente
começou a ser quebrada, no interior do marxismo, nos anos 70, com Althusser.

Torna-se possível novamente perceber que

"se para o pensamento freudiano o sujeito se constitui através do outro e a partir do outro -
enquanto este é o intérprete de seus movimentos pulsionais originários, de maneira que a
subjetividade se funda efetivamente como um sujeito-interpretação -, a ordem da cultura estará
presente na construção de qualquer subjetividade. Desta maneira, o sujeito se constitui como ser
de conflito entre as ordens da natureza e da cultura, tendo que articular para a sua fundação as
demandas destas séries contrapostas. (...) Enfim, se esta tese não define com clareza uma política
psicanalítica freudiana, ela implica, contudo, afirmar incisivamente a impossibilidade de harmonia
absoluta entre o sujeito e a cultura, relação sempre destinada ao conflito para o sujeito" (Ibidem).

Foi então a ruptura da hegemonia stalinista no marxismo oficial e a emergência dos movimento s
sociais que recolocaram em evidência a questão da subjetividade e da diversidade de formas de
enfocá-la politicamente.

Outra tradição marxista faz um diálogo com a psicanálise pelo qual esta é positivamente vista, só
que enquanto instrumento de crítica política, como discurso desmistificador da falsa consciência
(cf. Idem:103-06). Reich e Fromm são as principais referências aqui. O contexto inicial é o da
ascensão do fascismo nos anos trinta, e a psicanálise é chamada a tornar-se um momento da
teoria da ideologia que dê conta simultaneamente das razões da aceitação da opressão por
parte dos oprimidos e revele a alienação destes e a falsidade do discurso dos dominantes. No
entanto, por esta valorização a psicanálise paga o preço da sociologização de seus conceitos e
da exclusão ou abandono daqueles que remeteriam a aspectos ideológicos do pensamento
freudiano, imprestáveis para a prática política transformadora (ex. o conceito de pulsão).
Este reducionismo é questionado por autores da escola de Frankfurt, que desfazem a relação
direta entre ideologia e "caráter", ao mostrar a possibilidade de que diferentes ideologias
produzam a mesma estrutura de "personalidade" (Adorno, Horkheimer). O que se mantém é a
visão instrumental de que a psicanálise serve para fazer a crítica da sociedade unidimensional e
massificante (ex. Marcuse), embora o ganho seja o de colocar a subjetividade como elemento
importante do questionamento da ordem vigente.

A proposta de Birman é que, à luz deste afrouxamento da ortodoxia marxista e da ruptura


introduzida pelos movimentos sociais pós-68, se considere a especificidade da questão política
na psicanálise. O que para ele implica na recusa em oferecer um programa de "salvação da
humanidade" ou de "regeneração social" (1994:107). Se o que caracteriza a psicanálise é uma
relação intersubjetiva (analista-analisante), que tem como alvo provocar/demonstrar o "mal-estar"
da relação entre sujeito e cultura, seu efeito é singularizador, não existindo um conjunto fixo e
previamente delimitado de soluções a serem repassadas pelo analista ao analisante. Esta prática
singularizante teria efeitos políticos, seja no sentido de questionar a medicalização e
psiquiatrização da "loucura", seja no de questionar qualquer discurso totalizante (normatizante),
seja ainda no de questionar o destino da psicanálise nas sociedades contemporâneas
(institucionalizada em sua prática analítica e de formação).

O que Birman não considera é o movimento inverso desta singularização/pluralização de


espaços que libera a psicanálise das reduções e imposições de um discurso totalizante do
engajamento político, qual seja, a imersão da prática analítica num contexto social complexo,
que se refere tanto aos seus atores quanto ao seu discurso. Contexto que convoca, aplica ou
questiona a psicanálise em outros espaços que não o seu próprio, mas que tampouco são
estatais ou politico-partidários. Assim, o autor acaba caindo no erro oposto: de acreditar que a
singularidade da relação entre psicanálise e política signifique que só se pode falar da política na
psicanálise. Ora, isto está vedado em qualquer perspectiva relacionalista da política e da
pluralidade social.

Igualmente, não se considera o quanto os movimentos a quem o autor credita a quebra da


concepção totalizante da política a retomaram por outra via: a da expansão ou extensão da
lógica do político para todos os espaços do social. Em assim fazendo, os movimentos
deslocaram a fronteira entre o político e o não-político, entre o público e o privado, multiplicando
os lugares de contestação de relações de subordinação e ampliando o terreno da política, mas
não conseguiram evitar que, (1) o novo comprometimento demandado dos militantes se
convertesse em expectativas de militância integral, em favor das novas causas para as quais
reclamavam reconhecimento, ou que alimentassem fantasias essencialistas quanto às
comunidades formadas em torno das novas questões; (2) a frustração de muitas dessas
energias mudancistas na virada dos anos 90, em meio a uma agressiva retomada conservadora
que tripudiou sobre as ruínas do socialismo real, ensejassem a busca de uma nova reserva de
fruição comunitária ou de cultivo da subjetividade ao abrigo da cena pública e institucionalizada
da política. Assim, pode-se dizer que, também os novos movimentos sociais partilharam do
destino a que o crescente descrédito da visão totalizante da política foi aos poucos confinando
punhados de ativistas que, nos anos 80, haviam jogado suas fichas na democratização como
porta de entrada para o encaminhamento de aspectos centrais das novas questões colocadas
pela cultura à política (cf. capítulo 4).

Em Van Haute, a perspectiva anti-totalizante atribuída por Birman a Freud é inicialmente


questionada, não para acusar este último de pendores totalitários - o que, diz ele, somente um
cínico faria - mas para examinar se a postura freudiana permitiria a recusa do totalitarismo em
bases filosoficamente sustentáveis: "se a submissão a um líder caracteriza a sociedade como tal,
que argumentos nos restam para rejeitar qualquer forma de totalitarismo?" (1996:186). Mesmo
que alguns, como o próprio Lacan, advirtam que Freud não está falando da sociedade em geral,
mas da sociedade européia de inícios dos anos 20, Van Haute disputa se esta leitura tem algum
suporte textual sólido e parece recomendar que se suplemente o texto de Freud com alusões e
enxertos de autores mais contemporâneos, de forma a poder realçar um tom anti-totalitário
àquele. Em Psicologia das Massas e Análise do Eu, este texto que serve de pano de fundo para
as considerações acima, ao se fixar na análise do exército e da igreja, como casos típicos de
processos organizativos fundados na identificação, deixa implícito que toda massa é organizada
(ou pelo menos contem a organização em germe) e que, neste sentido, toda massa é parecida.
Van Haute afirma: "Ao estudar estes protótipos, Freud só está interessado na organização
mínima sem a qual nenhuma sociedade pode existir, na relação (política) entre um 'Führer' e
seus seguidores" (Ibidem; cp. Freud, 1976:120) 30.

Se tomarmos as definições de totalitarismo de Lefort (isto é, a confusão entre sociedade civil e


estado, por um lado, e a identificação entre a liderança e a essência da sociedade, por outro) ou
de imanentismo, de Jean-Luc Nancy (que este propõe como substituta da lefortiana, para
significar um idéia de comunidade em que se dá uma comunicação ininterrupta entre seus
membros), pode-se dizer que a descrição freudiana é perfeitamente compatível com aquelas. E,
no entanto, as concepções políticas de Freud podem abrir perspectivas para se sair do
imanentismo, por meio do que Van Haute chama de "ler Freud contra Freud", Totem e Tabu
contra Psicologia das Massas, uma análise da (origem da) autoridade ética como prévia à
(origem da) autoridade política (cf. 1996:188-94). Desta deriva-se a conclusão de que, 1) ao
matarem o pai primordial e devorá-lo por odiá-lo e simultaneamente desejarem ser ele, os filhos
se deparam com a própria impossibilidade de seu gesto (nenhum deles pode ocupar o lugar
vazio deixado pelo pai, sob pena de se sujeitar a sofrer o mesmo destino), e 2) a lei a que os
filhos passam a obedecer não preexistia, mas emerge a partir dos sentimentos de culpa com que
se defrontam diante da morte do pai. É à figura do pai, e não à do líder, que primariamente se
ligam os filhos. Mas sua pretensão de conquistarem uma identidade pela assimilação do outro
fracassa e é esta falha da identificação que provoca o sentimento de culpa (191).

Em suma, "Os filhos submetem-se ao outro (consequentemente, a si mesmos) na medida em


que o outro escapa a toda identificação: aquilo em torno de que se reúnem os filhos e a que eles
estão se submetendo literalmente "nada" é - nenhum sujeito, nenhum Pai, nenhum líder -, nada
senão sua própria/imprópria morte inconcebível, sua incapacidade de serem um sujeito/narcisista
absoluto. A obediência 'tardia' (nachträglich) que funda a comunidade não é uma submissão a
um poder político, mas um respeito ético pelo que no sujeito lhe escapa; é um respeito pelo que
está 'além do Eu' (Über-ich, no sentido do inassimilável) no eu" (1996:192).

Este "além do eu" corresponde ao supereu freudiano, que "se origina não de uma identificação
com a lei, mas numa identificação com os representantes da lei (pais, mestres, etc.). Portanto, a
lei nunca está diretamente presente a nós" (Idem:193). Nós só temos acesso a ela através de um
relato mítico (como faz Freud em Totem e Tabu, somente que ali seu empirismo o leva a buscar
correspondências diretas muito rapidamente). Um paralelo com Heidegger serve a Van Haute
como ilustração do que está em questão aqui: que a culpa primordial não diz respeito a nenhum
resvalo moral diante do outro, nem prescreve qualquer plano de conduta definido que garanta a
boa vida. Ela precede toda culpa moral. Diferentemente de Heidegger, porém, para Freud (e
Nancy), postar-se diante de si próprio como mortal está intimamente ligado a responder a um
chamado de outros, da "comunidade". A experiência da finitude está associada à origem da
comunidade. A culpa é uma chamada à atenção para com o infundado e o indefinido de toda
comunidade, o fato de que esta é finita e contingente, de que ela não pode ser imanente, isto é,
o princípio e o fundamento de si mesma. O chamado - e a resposta a ele - não procede de um
sujeito, mas o encontra sempre já lançado aí. A esta responsabilidade prévia a toda
responsabilidade específica (moral) que, juntamente, com a lei, se perde num passado absoluto,

30
No capítulo10 de Psicologia das Massas, Freud deixa clara não somente esta preocupação com o princípio básico
da formação do grupo (a relação entre líder e massa, ocupando o primeiro o lugar do ideal de eu entre os membros da
segunda), mas ainda a idéia de que todo grupo/massa retoma/dá continuidade a traços da horda primitiva, uma
massa relativamente amorfa, dirigida por um chefe (postura que o leva, como se sabe, a recusar a tese de que os
seres humanos são gregários por natureza) - cf. 1976:155-61. Ali, se lê, por exemplo, que “o grupo nos aparece como
uma revivescência da horda primeva” (Idem:156).
se opõe precisamente o totalitarismo ou o imanentismo, ao procurar fixar a essência da
comunidade na ação ou percepção privilegiadas do líder (individual ou partidário).

A identificação falhada da origem, no entanto, sempre já começou: nós sempre já apreendemos


mal a alteridade do outro e por isto nos sentimos culpados diante dele. Quanto mais
violentamente tentamos nos apoderar dele - ser quem é ou ter o que (pensamos que) tem - tanto
mais nos deparamos com a distância que nos separa. Respeitar o outro e reduzi-lo à imanência
são dois momentos ineludíveis, cuja tentativa de remoção nos lança em excessos: "No caso da
pura deturpação/redução, aterrissamos no terror do totalitarismo; o puro respeito pelo outro nos
leva à desintegração e ao caos. No segundo caso, não há nada que possa nos manter coesos"
(Idem:198). É, portanto, necessário que se mantenha esta fantasia da unidade imanen te
(comunidade, ou, como chama Lefort, o Povo-Uno) em permanente tensão com o lugar vazio do
poder (do totem): sem esta fantasia, o vazio simbólico arrisca-se a transformar-se em vazio real,
à fragmentação de interesses/grupos que retiram apenas de si mesmos os princípios de sua
legitimidade; sem o respeito pela alteridade (o vazio deixado pela morte do pai primordial, o vazio
da origem da comunidade), a fantasia do Povo-Uno ameaça adquirir um conteúdo definitivo e
incontestável, expelindo da comunidade tudo o que não se conformar a ela (cf. Lefort, 1987).

A questão aqui é até que ponto esta imagem da horda 31 não é uma ilusão retrospectiva a
respeito da subjetividade moderna, que não se aplicaria a formações sociais pré-capitalistas ou
pré-modernas, onde opor-se à massificação e à coletivização simplesmente não era uma
possibilidade atual ou não se referia a processos históricos concretos. Seria somente na
modernidade que esta questão emergiria, de forma que o animal de horda é, não primitivo, mas
moderno, e constitui uma possibilidade ao lado do animal de massa. Isto, Birman de certa forma
confirma ao afirmar, em outro trabalho, que “a constituição do sujeito de desejo teve como
condição histórica de possibilidade a constituição do sujeito do direito. Como sabemos, o sujeito
do direito se constituiu na modernidade...”, ou ao dizer que “o sujeito do desejo não é uma
substancialidade, mas uma construção histórica ancorada nos fundamentos da modernidade”
(1995:165, 166).

4. Psicanálise, poder e diferença: sujeito da política x sujeito do inconsciente?

Birman abre uma de suas análises sobre a relação entre psicanálise e poder, asseverando que
"no discurso freudiano o poder é uma instância simbólica e um lugar real que está no
fundamento da constituição do sujeito, pois é face ao poder que o sujeito primordialmente se
ordena e se desordena seguidamente para a produção de sua singularidade" (1994:111). Há
assim uma exterioridade que impede o sujeito de ser pura auto-referência, consciência de si (no
sentido cartesiano ou no da psicologia clássica) ou de se afirmar pela ascese e pelo diálogo
íntimo com Deus como eleito e redimido (no sentido protestante). Exterioridade que não se
reporta apenas ao mundo das coisas e objetos, que medeiam entre o sujeito e o seu desejo, mas
também ao Outro. Outro que, por sua vez, é a ordem da linguagem e o polo dos diferentes
outros sujeitos e que é constitutivo do sujeito.

Num segundo registro, o mesmo sujeito constituído por esta exterioridade que remete ao poder
(ainda mal determinado no texto em questão), vive intensamente a contradição entre sua
singularidade e a indistinção entre os sujeitos que é produzida por qualquer ordem que os
abarque. Ao fixar-se (por adesão, recrutamento, interpelação, imposição, etc.) num sistema
qualquer, o sujeito sofre a tensão entre castrar sua singularidade e afirmar-se como diferente.
Neste momento, a contradição dá lugar ao paradoxo de uma insurgência ou contraposição ao
poder sem o qual, não obstante, não haveria sujeito (Idem:112). Se é impossível separar, desta

31
- Imagem que Freud, em Totem e Tabu, toma de empréstimo a Darwin (Birman, 1995:70), para fundamentar a idéia
de que o poder político resulta de uma solução para o problema do monopólio do gozo. Nele, por meio do parricídio,
se reinstala a diferença entre o pai e os filhos, agora em termos da figura ausente do pai (o totem), assegurando a
associação de iguais que constitui a comunidade política por meio do interdito à soberania absoluta por parte de
qualquer um.
forma, os registros do sujeito e do social, o mesmo se pode dizer sobre o sujeito ser inteiramente
absorvido pela sociedade e pela cultura. O que se instaura assim é uma tensão irresolvível, o
"mal-estar" que introduz o trágico na experiência humana e social e aponta seja para a
incompletude do sujeito seja para a da sociedade. Esta experiência do trágico e do impossível é
bastante enfatizada no discurso freudiano e se dirige contra projetos de massificação ou
normalização social, quer inspirados em ideais altruísticos, quer movidos por concepções
totalitárias.

A constituição do sujeito como sujeito do inconsciente na psicanálise, se não concebe qualquer


separação entre o sujeito e o social, remete para "algo mais" que não pode ser disciplinado ou
regulado pela política. Trata-se do que Freud chama de pulsão, força ou pressão "bruta"
localizada na fronteira entre o psíquico e o somático que, mediada pelo simbólico (ordens da
linguagem, da política e do social - cf. Birman, 1994:167), se "canaliza" em objetos de desejo
específicos e enseja a constituição do sujeito como desejante, o qual passa a conhecer a
discrepância entre a excitação que o impele e a satisfação em objetos menos-que-perfeitos.

Na segunda teoria freudiana das pulsões (ex. Além do Princípio do Prazer), a pulsão é vista
fundamentalmente como pulsão de morte, isto é, como excitação tendente à descarga imediata e
total (e não meramente dirigida à minimização do desprazer). A efetivação irrestrita da pulsão
levaria o corpo pulsional à morte antes mesmo que se constituísse como sujeito. A constituição
do sujeito exige uma interrupção e deslocamento da lógica da pulsão, a qual é realizada pela
intervenção do Outro, oferecendo ao corpo pulsional objetos de satisfação que possam refratar
sua excitação fixando-a como desejo (por definição irrealizável). Assim, "a satisfação é o que
permite a constituição do sujeito como desejante, tendo como fundo a iminência da morte
produzida pela descarga pulsional" (Idem:168).

Como já vimos, o sujeito nasce como "perda" ou "falta de" e procurará, durante toda a sua
existência, (re)encontrar a completude que o corpo materno representara. E esta existência
estará pontuada por desvios, interditos ou fracassos que ora traduzem a finitude e a
incompletude do sujeito, ora manifestam o "limite intransponível para a onipotência do gozo na
descarga imediata das pulsões" (Idem:127), a percepção da figura do pai como representação
da ordem simbólica, interpondo-se entre o sonho de completude (corpo materno) e o sujeito.

O Outro e a ordem simbólica, portanto, produzem um efeito estruturante do qual advém o sujeito
e que lhe cobra o preço de adiamento da realização total do desejo e da mediação simbólica
pela qual descobre quem é e o que quer:

"A dívida simbólica é o que possibilita que as individualidades inscritas na mesma cultura e no
mesmo universo linguístico passem a compartilhar dos mesmos valores, apesar da diferença entre
as subjetividades e a diversidade nas suas modalidades de existência. A dívida simbólica é a
condição de possibilidade para o sistema de trocas entre os sujeitos e para a demanda de
reconhecimento que marca estruturalmente qualquer sujeito" (Idem:167).

A mediação do simbólico, porém, não significa a neutralização da pulsão. Ela permanece


remetendo ao "algo mais" que resiste a toda simbolização, o real. É "força constante" que pode
produzir interrupções "nos circuitos estabelecidos de significação e de satisfação que o sujeito
estabeleceu com o seu corpo e com os outros. Portanto, se a pulsão na sua parcialidade e
multiplicidade é a representação do caos e da desordem, ela tem o poder de desarrumar
permanentemente a ordem da representação estabelecida pelo registro simbólico" (Birman,
1994:151). Assim, o simbólico jamais pode relaxar o trabalho de regular e orientar a pulsão, e
isto instaura um processo interpretativo pelo qual os objetos de desejo e suas formas de
realização/satisfação sejam constantemente resignificados, pelo "contato" com outros termos e
representações, um pelo outro, um sobre o outro, metonímia e metáfora, deslocamento e
condensação, de forma a resolver conflitos e frustrações relativos à satisfação do desejo pela
sua transferência ou identificação com outros. Encontramo-nos aqui com a imagem saussureana
da linguagem como sistema de signos caracterizados como diferenças sem substância própria,
que se articulam mutuamente em sistemas de significação historica e socialmente determinados.
"Nesta perspectiva", conclui Birman, "o sujeito do inconsciente é essencialmente sujeito da
diferença, tanto porque advém do universo pulsional da desordem que desarticula a ordem
estabelecida no registro do ego, quanto porque as pulsões se inscrevem como diferença num
registro que é potencialmente diferenciado na sua estrutura diacrítica" (Idem:151).

Frente à ordem política, o sujeito incompleto e finito que assoma da elaboração psicanalítica
"pretende não apenas marcar sua diferença absoluta frente aos demais sujeitos, mas também
buscar realizar sua completude dionisíaca de qualquer maneira, rivalizando com os outros
sujeitos para a conquista dos precários objetos de satisfação e dos espaços de produção desses
objetos" (Idem:131).

Desta forma, a representação da política com que trabalha Freud vai beber na idéia de estado de
natureza da filosofia clássica, embora não corrobore a teoria do contrato que está associada
àquela32. Política é a tentativa de regular as paixões, trazer a guerra permanente entre as
pessoas a um ponto de parcial, mas efetiva détente, e gerenciar a economia do desejo de forma
a tornar compatíveis as diferenças com um certo grau de estabilidade. Projeto que se confunde
com o impossível, "pois pretende legislar nas fronteiras de um território que indica a oposição
ativa do sujeito à absorção pela ordem simbólica" (Ibidem; v. tb. Idem:55-56).

Face ao impasse com que se defronta o projeto civilizatório (ou seja, a tentativa da ordem
simbólica de regular a dinâmica "desenfreada" da pulsão e de dobrar a resistência do sujeito à
sua dessingularização), Freud foi buscar no mito da morte do pai primordial e da horda primitiva
(de matriz darwiniana, mas pincelados por recorrentes motivos da filosofia política clássica, entre
os quais a figura do estado de natureza - cf. 138-41) a idéia de que o lugar da realização integral
do gozo, da completude e da autoridade incontestada, "deve ser mantido como um lugar vazio,
na medida em que é um lugar impossível de ser ocupado integralmente por qualquer figura
humana. Esse é o lugar do pai morto, da reminiscência da onipotência humana, que deve ser
limitada para que se constitua a ordem simbólica como o seu outro, condição de possibilidade
para a mediação entre os sujeitos pela linguagem" (Birman, 1994:134-135) e para a própria
sobrevivência e satisfação parcial do desejo de cada membro da comunidade. Problemática da
morte de Deus, que em Freud e na psicanálise em geral assume a forma moderna da
secularização e do desencantamento do mundo (sem Deus, explicado pela ciência e governado
pelo poder dos homens), como condição de inteligibilidade e possibilidade da democracia e da
história (cf. Idem:135, 137). Problemática retomada, com diferenças, na teoria lefortiana da
democracia, a qual tem sobre Freud a vantagem de não partilhar do horizonte mítico do estado
de natureza33.

"No discurso freudiano, portanto, existe uma articulação orgânica entre a morte, o símbolo [o
totem, JAB] e a ordem social, pois é a morte da figura soberana do pai primordial que é a
condição de possibilidade para a associação entre iguais, pela mediação da linguagem e pelo
estabelecimento do pacto simbólico" (Idem:136). O totem, assim, é o símbolo da presença e da
ausência do pai. O poder é simultaneamente o lugar da autoridade, do gozo e da totalização , e o
lugar onde todos e cada um se revelam incapazes de preencher essas funções. As tentativas de
fazê-lo são sempre promessa de retorno do caos e da tirania, impossibilidade de uma
associação entre iguais que é a única possibilidade de sobrevivência e satisfação (limitada, mas
não interditada) de cada um. Por isso, "esse lugar é para se manter vazio, pois é o seu vazio que

32
Se a teoria freudiana do sujeito tem fortes paralelos com Hobbes e Rousseau (encontrados, por exemplo, no mito
da horda primitiva e do pai primordial, na teoria da pulsão de morte e na teoria do sadismo/masoquismo, bem como
na insistente referência à problemática da morte), a diferença fundamental está na ruptura com a concepção de
indivíduo soberano e autônomo, fundante do social, com que aqueles trabalhavam, e que é o componente essencial
de sua teoria do contrato. "Em contrapartida, o discurso freudiano formula que a associação entre os irmãos é o efeito
da culpa pelo assassinato da figura paterna e não um contrato social deliberado pela escolha livre e autônoma da
consciência. Trata-se, então, de um pacto originário mediante o qual se ordena ao mesmo tempo o sujeito e o social,
não existindo pois qualquer subjetividade antes do estabelecimento do pacto simbólico" (Birman, 1994:141).
33
Cf. "Permanência do Teológico-Político?", em Lefort, 1991:249-95.
é a condição de possibilidade da ordem simbólica e do seu correlato que é a ordem social"
(Idem:137).

Do ponto de vista da contribuição lacaniana, por sua vez, Nina Leite aponta três planos de
referência da questão da subjetividade, que remetem ao (1) "sujeito possível da lei" (sujeito da
ideologia e do direito, ou efeito-sujeito, busca de afirmação da unidade do eu no registro do
imaginário); (2) "sujeito do desejo inconsciente" (sujeito como falta-a-ser, segundo a fórmula
lacaniana da fantasia [$ a], sujeito dependente do significante, carente de identidade, ao qual o
primeiro tenta responder "sob a forma da ilusão de unidade projetada na imagem do outro,
referenciada a um Ideal de Eu" (1994:27); (3) "sujeito foracluído", correlato do real que excede
ao significante e se perde ao entrar na ordem simbólica, estando originariamente excluído, mas
voltando sempre (ou, o que dá no mesmo, escapando sempre a toda forma de simbolização). O
jogo da subjetividade oscila de um a outro destes planos e, na questão da política, embora o
primeiro plano tenda a ser quase sempre priorizado, por atores e analistas, é a interferência dos
dois outros planos que constitui um diferencial analítico pelo qual a psicanálise pode contribuir
para uma outra concepção da instituição do social por meio da política.
CAPÍTULO 3 - IDENTIFICAÇÃO, ALTERIDADE E A POLÍTICA DO
SUJEITO DIVIDIDO
“Cada indivíduo é uma parte componente de numerosos
grupos, acha-se ligado por vínculos de identificação em
muitos sentidos e construiu seu ideal do ego segundo os
modelos mais variados. Cada indivíduo, portanto,
partilha de numerosas mentes grupais - as da sua raça,
classe, credo, nacionalidade, etc. - podendo também
elevar-se sobre elas, na medida em que possui um
fragmento de independência e originalidade” (Freud, em
Psicologia das Massas e Análise do Eu).

C
omo foi indicado no capítulo anterior, dois eixos organizam a recente retomada da questão
do sujeito e da subjetividade - e não só no plano coletivo: a crise do universalismo e a
emergência dos "novos" movimentos sociais a partir de fins dos anos 60, apontando para
uma outra concepção do sujeito histórico e do espaço da política. Associadamente ou por
caminhos diversos, a experiência desta crise e a da construção de alternativas de participação e
mobilização social e política que recusassem os termos estereotipados, rotinizados e/ou
restritivos do debate público, confluem na medida em que se pretende compreender os
(des)caminhos da luta social e política contemporânea.

A emergência das políticas de identidade associadas aos movimentos sociais contemporâneos é


vista, por diversos autores (por exemplo, Zarestky, Guattari, Laclau, Birman), como efeito da
conjuntura pós-68 e do realinhamento da divisão público/privado no contexto de uma mudança
global no caráter do capitalismo (cf. Zaretsky, 1995:198). Por outro lado, tanto a emergência
destes movimentos quanto o crescente esclerosamento ou perda de capacidade de articulação
política dos projetos e movimentos universalistas, culminando simbolicamente no desmonte do
bloco socialista entre 1989 e 1993, são acompanhados pela "apatia política" (que pode ser lida
como reprivatização ou como desinteresse pelas expressões institucionalizadas da política) ou
por expressões ambivalentes ou contraditórias de políticas identitárias. Nacionalismo, xenofobia
e racismo, "fundamentalismo" religioso 34, ao lado de uma forte tendência essencialista nos
movimentos de emancipação de minorias (o que chamei na introdução de políticas da diferença),
acentuam um reforço do particularismo em que a apartação acaba surgindo como a saída para
enfrentar os impasses ou os desafios postos pela fragmentação da idéia moderna de nação ou
da noção de ator ou sujeito histórico.

Para Zaretsky, este reforço do particularismo tem produzido dois tipos de movimentos
referenciados na questão da identidade: "movimentos que se situam num sistema político
universalista mas insistem em formas de separação cultural ou 'multiculturalismo' - em outras
palavras, movimentos que pressupõem uma distinção entre cultura e sistema político - e
movimentos que buscam total auto-determinação sob a forma de estados separados"
(1995:199). Transversalmente a esta distinção há, para ele, uma outra que diz respeito à
natureza própria desses movimentos, agrupando basicamente movimentos étnico-raciais
(negros, hispânicos, asiáticos, indígenas, etc.), de um lado, e movimentos de gênero (mulheres,
gays e lésbicas), de outro, na medida em que estes últimos situam-se fortemente naquilo que
chamava-se de esfera privada ou pessoal, redescrevendo-a e politizando-a, enquanto os
primeiros operam mais fortemente referenciados na esfera pública tradicional. Poder-se-ia
acrescentar que mesmo esta dupla distinção não recobre todas as possibilidades, uma vez que a

34
Apesar de considerar a expressão "fundamentalismo religioso" intrinsecamente contestável, pois tende a ser
imputada polemicamente por "ecumênicos", "agnósticos" ou "adeptos nominais" a qualquer grupo religioso mais cioso
de seus valores ou preocupados em fazer adeptos, admito-a aqui para descrever as expressões religiosas que, de
diferentes formas e em diferentes graus, postulam um núcleo rígido de identidade, fixado em termos de fidelidade a
uma origem unívoca da tradição e dificilmente negociável por motivos contextuais.
problemática do essencialismo não assume apenas a forma da "auto-determinação sob a forma
de estados separados", podendo ser encontrada mesmo em movimentos que são explicitamente
anti-segregacionistas35. Apenas, a forma de postular a (re)afirmação de sua identidade leva
muitos grupos no interior destes movimentos a adotar uma postura naturalística ("mulher",
"negro", "gay", etc. passando a descrever uma confusão entre os portadores destas marcas e os
que as assumem como ponto nodal de sua identidade), ainda que apenas "estrategicamente"
(Spivak).

O objetivo deste capítulo e do próximo é traçar em maior detalhe o quadro teórico-político desta
passagem da afirmação identitária como resposta à crise do universalismo iluminista às aporias
da "política de identidade", pondo em relevo as implicações de se postular o caráter
constitutivamente heterogêneo, compósito, dos atores coletivos. Assim fazendo, pode-se ir além
das aproximações entre psicanálise e política apresentadas anteriormente, desestabilizando-se o
terreno seguro das ressalvas sobre a especificidade das categorias psicanalíticas, e desafiando
a aparente indiferença das teorias da ação coletiva face à dimensão subjetiva e identificatória da
formação de atores sociais.

Para fazer isto, assim dividirei o argumento: neste capítulo, a propósito do primeiro eixo da
discussão enunciado acima, discutirei a crise do universalismo em duas de suas modulações, a
referente a uma certa percepção do declínio do político e a referente à questão do
descentramento do sujeito. Isto será feito nas duas primeiras seções. Em seguida, beneficiando -
se do que veio antes e preparando caminho para a discussão do segundo eixo, analisarei, à luz
de uma perspectiva pós-marxista, como a questão do deslocamento (tematizada parcialmente
até o momento como uma experiência de "crise") se articula à lógica do significante expressa na
teoria lacaniana, para postular a natureza compósita e contingente dos atores e projetos
coletivos. No capítulo 4, discutirei o segundo eixo indicado anteriormente, detalhando, em torno
do tema dos movimentos sociais, como se passa da fratura da representação unificada do
político (experiência da crise do universalismo e da política totalizante) à percepção da
contingência e limites dos movimentos em reproduzirem o padrão de "sujeito histórico" legado
pela linhagem hegelo-marxista das ciências sociais, em meio aos encontros e desencontros das
políticas de identidade e de diferença.

1. Crise do universal, crise do político?

Em artigo recente, Roberto Follari destaca um elemento em sua análise do pós-moderno que
remete à inflexão gerada pelo confronto entre a "leveza" das falas sobre a pluralidade, o fim da
modernidade, a alteridade, a morte do sujeito, o fim da metafísica, etc., e a (re)emergência de
fenômenos como a solidão, a pobreza, os nacionalismos, o racismo, a intolerância, a
desmotivação para a ação coletiva, a monotonia de um presente eterno (1997:38ss). O referido
elemento é o impacto da dessublimação dos valores universais e abstratos sobre a experiência
36
do político .

Esta dessublimação procede de vários indicadores histórico-políticos, que constituem a própria


história do nosso século - a lista de forma alguma é exaustiva: (1) a tendência ao formalismo e à
subtração da vigilância e controle populares das instituições da democracia liberal, que levaram
à expectativa de uma forma de poder "social", de baixo para cima, associativista e anti-estatal,
sintetizado sob o significante socialismo; ou a tentativas de suplementar o liberalismo com o
socialismo, na social-democracia; (2) a progressiva revelação da burocratização, violência e
ineficiência dos regimes instaurados nos países do socialismo real, que levaram à retomada do
vezo insurrecional ou rebelde dos movimentos sociais do século passado; (3) a derrota das
estratégias de guerrilha ou de radicalização política fundadas numa retórica anti-liberal, que

35
Num de seus trabalhos recentes sobre a questão Laclau (1997) chama a atenção para a irônica semelhança entre a
lógica do apartheid e a dos movimentos (ou correntes no seu interior) que postulam um radical particularismo com
base no argumento de que qualquer perspectiva universal implicaria na supressão das diferenças.
36
Uma análise bastante semelhante à desenvolvida por Follari encontra-se também em Lechner, 1987.
acabaram deslanchando reações do tipo das ditaduras militares em vários países do mundo,
especialmente na América Latina; (4) a reemergência de um discurso liberal "purista"
radicalmente anti-estatista e fundado na centralidade do mercado, da livre concorrência e da
desregulamentação das estruturas de provisão pública construídas pela social-democracia; (5)
derrocada ou desmonte do bloco socialista, paralela à chamada crise fiscal que levou ao limite o
modelo social-democrata pós-45; (6) o visível abismo entre as promessas e as realizações do
capitalismo que, associado às crises do socialismo e da social-democracia, bem como à
renovada percepção de que a nova praxis liberal produz novas formas de marginalidade e
pobreza, ensejam formas desencontradas de reação ou resistência aos efeitos desestruturantes
da nova situação; (7) as repercussões deste processo no campo do saber, com a perda de
confiança no caráter unificador e redentor da ciência, e no caráter puramente referencial (neutro,
objetivo) de sua descrição do real.

Os anos 90, então, em contraste com a efervescência dos anos 80 - gravitando


fundamentalmente em torno da promessa da democratização de regimes autoritários ou da
ampliação de direitos a grupos emergentes nos países "centrais" - dramatizaria atitudes de
reforço do individualismo (competição desenfreada, perda de espírito comunitário, estreitamento
dos horizontes de inserção social das pessoas), de descomprometimento com as questões
políticas (baixa participação ou inconsistência das escolhas e expressões de opinião dos
cidadãos), de espetacularização da política (via midiatização, o que reforçaria a percepção de
sua artificialidade e irrelevância face aos problemas cotidianos). Num outro registro, a percepção
quanto à pluralidade de espaços relevantes para a ação coletiva (política, no sentido amplo)
levaria a um desinvestimento na referência estatal e a uma "culturalização" da agenda e debate
públicos. Por último, o entusiasmo com a pluralidade de perspectivas e de espaços públicos
onde o social se articularia, por parte dos discursos acadêmicos, geraria uma inclinação pela
diferença, pela guerra das interpretações e pela crítica dos discursos globalizantes, que tolheria
as bases para uma ação concertada em torno de valores comuns e relativamente estáveis.
Numa palavra: declínio do político37.

Para Follari, surge a necessidade de se restituírem margens de sentido (e portanto limites à


deriva e à desfundamentação), que remetem aos processos de legitimação do político:

"Centralmente, advertiríamos pelo menos para duas grandes questões: 1. O sistema parece não
cobrir a diferencialidade de campos de legitimação da ação que a sociedade produz. A
complexidade social seria maior que a absorção por parte da expressão política: a representação
ficaria muito abaixo da variedade objetiva existente no nível social; 2. A representação política se
mostraria genérica, abstrata, distante da imediatez em que os sujeitos hoje assumem a sua
experiência. Se o universal é rechaçado, se é percebido como distante, o sistema político aparece
dissociado da vivência, como ente exterior à vida social concreta" (Idem:43-44).

Assim, para o autor,

"O fato - que alguns analistas políticos tomam unilateralmente como sinal de 'maturidade' - de que
o voto mude permanentemente de opção não se deve apenas ao cuidado de não mais fazer parte
de clientelas cativas; também significa que o político importa pouco, que não é acompanhado
senão como show business, que ali nada da própria identidade está em jogo. Há um
descompromisso em relação ao próprio voto: este se desobriga do compromisso com o
representante" (Idem:44).

Num mundo de narcisismo generalizado, a desconformidade não gera luta contra o poder, mas
apatia, impotência, indiferença. O político não diz respeito a ninguém, está longe. Não se deixa
captar na vida pessoal, não se enquadra num campo cultural onde "só se escolhe o sem-
importância, o agradável, o 'soft'" (Idem:46). Um ataque frontal ao status quo não tem como se
dar, completa o autor. Haveria aqui uma possibilidade de convergência entre Marx e Nietzsche:
37
Para mais algumas referências em torno das quais se pode reconstituir esta narrativa do declínio - naturalmente,
apontando em múltiplas direções em cada autor -, cf. Lechner, 1994; Canclini, 1995:13-41, 224-43; Laclau, 1990:xi-xv;
1994:1-5; Mouffe, 1996:11-19.
ambos questionavam a política como conjunto de aparatos especializados, ocupados por
indivíduos especializados, distanciados da vida cotidiana. Hoje, como a política continua sendo
em larga medida isto, perde em legitimidade, ante uma rejeição social profunda pelas
abstrações. Nisto, o pós-moderno corroeria não somente a legitimação da política revolucionária,
a oposição ao sistema, mas a do próprio sistema. E abriria a porta para uma reafirmação do
social sobre o político, do cotidiano/concreto sobre o genérico/abstrato.

Como se sabe, há outras leituras desta mesma situação que Follari lê com pessimismo. Com a
simultânea recusa e resignação ao momento presente que anuncia a pobreza de experiência
(Benjamin) de nosso tempo, a admissão da parcialidade (finitude e pertencimento) ou a apologia
da irredutibilidade das diferenças, chegamos a uma sensibilidade para perceber o nosso tempo
marcada pela baixa da guarda da vigilância da Razão. A desconfiança de que tudo ocultava uma
profundidade por sob uma aparência enganadora dá lugar à crescente afirmação da aparência,
ao reencantamento do mundo - evidência do objeto, profundidade das aparências, certeza do
senso comum, experiência da proxemia (Maffesoli, 1996:9). O presente torna-se a única
referência fecunda do pensamento. Neste presenteísmo assoma um hedonismo do cotidiano
pelo qual as relações sociais "não são mais regidas unicamente por instâncias transcendentes, a
priori e mecânicas; do mesmo modo não são mais orientadas por um objetivo a atingir, sempre
longínquo, em suma, o que é delimitado por uma lógica econômico-política, ou determinado em
função de uma visão moral" (Idem:11-12). O mundo torna-se objeto de uma atividade estética; a
vida, uma obra de arte.

A abertura ao prazer dos sentidos, ao jogo das formas, o retorno à natureza, a aceitação do fútil
produzem uma razão sensível, onde se inaugura, sob o signo da pós-modernidade, "uma forma
de solidariedade social que não é mais racionalmente definida, em uma palavra 'contratual', mas
que ao contrário, se elabora a partir de uma processo complexo feito de atrações, de repulsões,
de emoções e de paixões. Coisas que têm uma forte carga estética" (Idem:15). Predomina aí a
dimensão arbitrária e construtiva da linguagem sobre a dimensão orgânica, como observa Walter
Benjamin em "Experiência e Pobreza": de um lado, a vida já não se deixa conter pela narrativa
edificante das gerações mais velhas para as mais jovens, de modo que a idéia tradicional de
"experiência", como reflexão sobre o vivido e dedução de lições para a conduta, se perde,
tornando-nos mais "pobres"; de outro lado, o mundo é o que se vai fazendo, com os materiais de
nossa época, sem preocupação com sua profundidade, sem atribuir-lhe qualquer aura, e sem
deixar nele qualquer marca de nossa passagem - o que seria o caso se fôssemos sujeitos
plenos, densos, detalhistas, como o burguês novecentista que decora seu ambiente de tal forma
que tudo ali o lembre e exprima (Benjamin, 1987).

Desde esta perspectiva - mas ela não pode recobrir nem ocupar o vazio deixado pela crise do
38
racionalismo universalista - a postura de Follari só pode ser nostálgica, restauracionista. Porém,
concordo que há problemas nessa área, e que a crise do político envolve aspectos que não
precisam ser admitidos irreservadamente: (1) o presenteísmo e o esteticismo não precisa ser
visto como reforço do individualismo, mas certamente representa para muitos uma sobrevida da
concepção do sujeito como transparente a si mesmo, expressa agora numa versão
aparentemente desprovida de supereu, semelhante ao pai primordial do mito darwiniano
apropriado por Freud, dirigida pela realização irrestrita do gozo pleno (aqui se insere tudo o que
vai sob o rótulo de hedonismo); (2) a recusa em admitir o caráter situado, tanto em relação ao
Outro (linguagem, cultura, tradição, comunidade) como em relação a outros (adversários e
aliados) reforça a fantasia do indivíduo descontextuado, "livre, leve e solto" (unencumbered). O
medo de assumir o desfundamento instaurado pelo modo democrático de instituição do social,

38
Por quê? Porque esta perspectiva presenteísta e "superficializante" está privada de um "projeto"; ela não se constrói
- embora possa em certos casos pretender fazê-lo - como negativo do universal, mas como fratura deste último.
Assim, esta atitude fragmentária pode até se achar universal no seu raio de abrangência específica, um micro-
universalismo; mas ela tem que admitir outros micro-universalismos. Resta ainda outra forma de entrar na discussão,
que veremos na terceira seção.
produz sujeitos supostamente auto-suficientes e intolerantes. A proximidade do outro torna-se
algo a exorcizar sempre que este não for familiar, concorde e passivo.

Uma outra maneira de colocar o problema estaria em assumir inteiramente a crise do


universalismo e da representação clássica da política, não para concluir que passamos a viver
uma era "pós-política", mas a vivenciar a aporia da relação entre universalismo e particularismo:
de um lado, o trauma que dá origem a uma dada ordem social (o duplo fato de que há
antagonismo, mas que sua expressão concreta não dá conta de todos os traços apontados nos
contendores, ou seja, os adversários ou inimigos são sempre menos ou mais do que dizem uns
dos outros; e de que a ordem vitoriosa nunca consegue resolver em definitivo ou
satisfatoriamente os problemas que se propôs a resolver) exige que algum projeto seja capaz de
representar uma diversidade de outras demandas, além daquela onde originariamente se
estrutura. Este projeto é ao mesmo tempo apenas um entre outros, portanto, particular, e o
representante da ordem social como tal, portanto, universal. Mas esta mesma situação perfura e
barra ambos os pólos, embora não possa prescindir de nenhum deles. Se o conteúdo do projeto
hegemônico não é universal em si mesmo, a função de universalidade precisa ser preenchida
para que haja alguma ordem.

Como isto responde à nostalgia de Follari? Na medida em que admite que há uma crise do
político, mas descrê de poder resolvê-la pela reasserção dos valores universalistas tal como
eram compreendidos pelo racionalismo iluminista. Assim, se não é politicamente viável impor um
novo projeto universalista, tampouco satisfaz a alternativa de excluir toda e qualquer referência a
um princípio geral de organização, como uma certa política foulcaultiana de micro-lutas sem
referências gerais. Na melhor das hipóteses, esta alternativa fracassa em garantir espaço para a
pluralidade de demandas, recaindo num modelo darwinista da sobrevivência dos mais fortes; na
pior das hipóteses, ela alimenta posturas segregacionistas que estão longe de resolver os
problemas levantados por comunidades e grupos excluídos ou marginalizados. Retomarei este
raciocínio na seção 3, abaixo.

2. Desconstrução e identidade/sujeito: descentramento e responsabilidade

Vista desde a perspectiva dos discursos críticos da concepção moderna do sujeito (e do sujeito
da política), estaríamos aparentemente nos antípodas da nostalgia de Follari. Não há nostalgia
pelo núcleo duro e estável da subjetividade, que teria se perdido pela fragmentação das
certezas, pelo apogeu do narcisismo ou do individualismo, pela deriva ou errância do sentido,
pela derrota dos valores universais, ante um discurso ideologicamente “vidrado” na
multiplicidade, na variação, na disseminação, sem perceber a necessidade de comunidade,
universalidade e estabilidade. Téllez (1997), falando sobre as implicações da perspectiva
desconstrutivista (na qual inclui autores tão diferentes como Derrida, Foucault, Deleuze, Guattari,
Augé) para a questão do sujeito, diz que aquela

“comporta não só o fato de que tal modo se entreteça nas discursividades que registram as
mudanças havidas nas práticas socio-culturais, políticas, éticas, estéticas, intelectuais, mas
também o fato de que dito pensamento é, ele próprio, parte constitutiva das práticas textuais
implicadas nas referidas mudanças e indicadoras da emergência de uma nova matriz crítica de
pensamento. Matriz que, a partir de sua configuração heterogênea, se concatena como recusa a
toda pretensão de recuperar os universais, os fundamentos últimos, os centros únicos, os fins
transcendentais, as essências, enquanto referentes que deram corpo e conteúdo à lógica da
identidade e seu correlato no Sujeto unificado, autotransparente, autodeterminado e constituinte, e
enquanto referentes portadores da vontade de dominação inerente a todo pensamento que
funciona en términos da lógica identificatória” (Idem:75).

Para a autora, teríamos de Derrida a inserção do sujeito numa intertextualidade sem fim, uma
rede de produção e difusão de sentidos, em que o sujeito não pode ser concebido como “prévio
e independente do jogo mesmo que produz as diferenças, entendida [sic], por sua vez, como
heterogeneidade e como diferimento pelo qual cada elemento discursivo só adquire e dá sentido
por meio de permanentes remissões a outros elementos” (Idem:76-77). Em Deleuze, Guattari e
Foucault, viria uma ênfase na multiplicidade de posições de sujeito que entrelaçam linhas de
força de poder, saber e desejo, transversais aos dispositivos pelos quais se produzem/definem a
objetividade, os modos de enunciação e de constituição de subjetividades. Desta forma,

“Nem sujeito a priori, nem instância única de constituição de subjetividade, mas processos, práticas
e procedimentos de produção de subjetividades, que se cristalizam em territórios pessoais - o
corpo, o eu - e em territórios coletivos como a família, o grupo ou a etnia. Processos, práticas,
procedimentos em razão dos quais um sujeito individual, como sustém Guattari, „já é um “coletivo”
de componentes heterogêneos‟” (Idem:78).

Zizek, se inquieta diante desta representação, por motivos distintos dos de Follari. É que ele
propõe haver uma radical distinção entre a noção lacaniana do sujeito dividido e a idéia pós-
estruturalista de "posições de sujeito": "No 'pós-estruturalismo', o sujeito é sempre reduzido à
chamada subjetivação, ele é concebido como efeito de um processo fundamentalmente não-
subjetivo: o sujeito está sempre preso a, atravessado pelo processo pré-subjetivo (da 'escritura',
do 'desejo', etc.), e a ênfase está sobre os diferentes modos do indivíduo 'experimentar', 'viver'
suas posições como 'sujeitos', 'atores', 'agentes' do processo histórico" (1992:174). O protótipo
desta leitura é Foucault. Mas em Lacan, Zizek observa, é outra a noção de sujeito:

"se fizermos uma abstração, se subtrairmos toda a riqueza dos diferentes modos de subjetivação,
toda a plenitude de experiência presente na maneira como os indivíduos 'vivem' suas posições de
sujeito, o que fica é um lugar vazio que foi preenchido com essa riqueza; este vazio original, esta
falta de estrutura simbólica, é o sujeito, o sujeito do significante. O sujeito, portanto, deve ser
estritamente oposto ao efeito de subjetivação: o que a subjetivação mascara não é um processo
pré ou trans-subjetivo de escritura mas uma falta na estrutura, uma falta que é o sujeito" (175).

Ou, mais explicitamente:

"O sujeito do significante é precisamente esta falta, esta impossibilidade de encontrar um


significante que seria 'o seu': o fracasso de sua representação é sua condição positiva. O
sujeito tenta se articular numa representação significante; a representação falha; ao invés de uma
riqueza, temos uma falta, e este vazio aberto pela falha é o sujeito de um significante. Posto
paradoxalmente: o sujeito do significante é um efeito retroativo do fracasso de sua própria
representação" (Ibidem).

Certamente, estamos aqui diante de uma disputa por especificação, mas eu tendo a achar
demasiadamente rigorosa a oposição zizekiana entre sujeito da falta e posições de sujeito, uma
vez que não há nenhuma incompatibilidade insuperável entre estas noções: na medida em que
as posições de sujeito dizem respeito a espaços de subjetivação preexistentes aos indivíduos,
mas que estes necessariamente ocupam, em números diferentes, de modos diferentes e por
períodos diferentes, ao longo de sua vida, elas correspondem à necessária objetivação pela qual
o sujeito "encontra um lugar" na arquitetura do social, o qual no entanto jamais é suficiente quer
para satisfazer plenamente a demanda destes sujeitos, quer para fixar sua identidade de uma
vez por todas. Neste sentido, as posições de sujeito, de um lado, operam como pontos nodais,
como significantes encarregados de fixar temporaria e precariamente o sentido do sujeito, como
superfícies de inscrição da falta. Por outro lado, a expressão tem uma conotação sociologizante,
ao designar lugares sociais, delimitados por um conjunto de práticas e protocolos institucionais,
que ao mesmo tempo conferem aos seus ocupantes uma forma de identificação e exercem
determinados controles sobre a espontaneidade destes sujeitos. Ser mulher, ser trabalhadora,
ser mãe, ser amante, ser pentecostal, ser aluna, ser sindicalista, ser militante partidária são
posições de sujeito que podem simultaneamente ser ocupadas

A polaridade entre "riqueza" e "falta" alegada por Zizek torna-se desta maneira, na pior das
hipóteses, um preciosismo, e mais provavelmente, uma especificação da relação entre posição
de sujeito, subjetivação e a natureza "faltante" do sujeito psicanalítico. Não há "riqueza" na
noção de posições de sujeito, simplesmente porque ela não equivale a uma forma de conter o
sujeito numa determinação totalizadora; tampouco ela se opõe à "falta" constitutiva, uma vez que
é possível dizer com segurança que ela é ao mesmo tempo busca de suplementação desta falta
(fantasia identificatória) e fracasso da identificação: de um lado, o "ser mulher" ou "ser
intelectual", por exemplo, não conseguem dar conta da identidade do sujeito como um todo, não
porque este seja "sempre mais do que", mas porque o objeto da falta é indeterminado; de outro
lado, no interior mesmo de cada posição de sujeito destas, há uma dinâmica de luta pelo próprio
sentido de "ser mulher" (por exemplo, entre concepções patriarcais, feministas e "femininas",
seculares e religiosas).

Mas seria esta representação elogiosa do sujeito fragmentado ou crítica da leitura pós-
estruturalista tudo o que pode ser dito da desconstrução do sujeito? Seria possível passar pela
desconstrução do sujeito - inclusive pela que a psicanálise incessantemente produz - e ainda se
colocar a possibilidade da "sobrevida" ou da "ressurreição" do sujeito? Que sujeito seria este? O
que vem depois do sujeito? Ou qual sujeito está por vir?

O pensamento recente de Jacques Derrida aponta caminhos nesta direção que destoam das
interpretações acima. Tendo sido identificado com a matriz de um pensamento que proclamaria a
"morte do sujeito" - na linhagem do estruturalismo ao pós-estruturalismo - Derrida se indispõe,
em "'Comer bem', ou o cálculo do sujeito" [1989], contra a doxa que associa a contribuição de
pessoas como Lacan, Althusser e Foucault, para não falar dos ilustres precedentes em Marx,
Nietzsche e Freud, ou mesmo Heidegger, com um projeto de liquidação do sujeito,
provavelmente para lançar em rosto que esta pretensão não funcionou e que, hoje, estaríamos
de volta ao sujeito ou assistindo à sua ressurreição. Derrida diz: reinterpretado, restaurado,
descentrado, reinscrito, sim, mas morto, liquidado, o sujeito nunca foi por aquela linhagem. E o
diz de olho não somente nos que crêem estar autorizados a anunciar o retorno, mas também nos
que crêem/creram na "morte" mesma (cf. 1995b:253-58). Há um sujeito depois da
desconstrução? O que do sujeito ainda "sobraria" após a desconstrução dos seus predicados
clássicos, entre os quais o da "estrutura sub-jetiva como o ser-lançado - ou sub-jacente - da
39
substância ou do substratum, do hipokeimenon , com suas qualidades de estado [stance] ou
estabilidade, de presença permanente, de relação contínua consigo, tudo o que liga o 'sujeito' à
consciência, à humanidade, à história... e acima de tudo à lei, como sujeito submetido à lei,
sujeito à lei em sua própria autonomia, à lei jurídica ou ética, à lei política ou ao poder, à ordem
(simbólica ou não)..." (Idem:259). Seria uma instância para "um 'quem' cercado pela problemática
do traço e da différance, da afirmação, da assinatura e do chamado nome próprio, do je[c]t
(acima de tudo sujeito, objeto, projeto) 40, como destinerrância da carta" (Idem:260). Ou seja, um
"quem" literalmente marcado pela necessidade e impossibilidade de ser enquanto diferente de si
mesmo, de recolher sob o nome próprio a diversidade de falas, posicionamentos e qualidades de
um sujeito dividido, de pretender coincidir sua assinatura com sua autoria, de se reconhecer
como destinatário de uma mensagem ou chamado que não lhe foi particularmente enviada nem
deixou de sê-lo.

Além disso tudo, Derrida ajunta, um quem constituído pela impossibilidade de ser um átomo,
auto-referido, um "quem" que permanece responsável41: o quem possui uma singularidade "que
se desloca ou divide ao se compor para responder ao outro, cujo chamado de certa forma
precede sua própria identificação consigo mesmo, pois a este chamado eu só posso responder,
já respondi, mesmo quando eu acho que estou respondendo 'não' ... Aqui, sem dúvida começa o
vínculo com as questões mais amplas da responsabilidade ética, jurídica e política em torno da
qual a metafísica da subjetividade foi constituída" (Idem:261-62).

39
O sentido etimológico aqui sugerido é o de que classicamente "sujeito" indica aquilo que, por baixo ou abaixo das
expressões confusas ou contingentes do aparecer e do devir histórico, dá estabilidade, provê um fundamento, confere
uma identidade aos entes, e especialmente ao ser humano.
40
Fórmula intraduzível, mas que joga com o sentido de "lançar", "jogar", das últimas sílabas das palavras sujeito,
objeto, projeto, em francês (sujet, objet, projet) e em inglês (subject, object, project), e no caso perfeitamente
compreensível em português.
41
O termo possui em Derrida (como em Levinas) o duplo significado de "responsabilidade diante de/por" e de
"responsividade a".
Em torno desta posição, Derrida assume que há muitos que, hoje, trabalham com uma definição
de sujeito que já passou pela desconstrução e que não o concebem como origem absoluta, pura
vontade, identidade a si, presença a si da consciência, mas como não-coincidência consigo,
como "a experiência finita da não-identidade a si, como a interpelação inderivável na medida em
que procede do outro, do traço do outro, com todos os paradoxos ou a aporia do estar-diante-da-
lei" (Idem:266). Como chamar a isto de sujeito? Mas, por que não fazê-lo de pleno direito? Se o
pensamento sobre o sujeito, mesmo durante a "época da metafísica", nunca foi inteiramente
homogêneo, o que impediria de resdescrevê-lo? Pois, seria preciso alertar para a continuidade
entre a desconstrução heideggeriana do sujeito (que a maioria destes trabalhos de certa forma
pressupõe, inclusive o do próprio Derrida) e a redução metafísica do sujeito ao sujeito humano,
confundindo assim subjetividade e humanidade - quando hoje toda a questão da ecologia, dos
"direitos dos animais", bem como da engenharia genética, das barrigas de aluguel, do
patenteamento de seres vivos e, não muito distante, da prótese homem-máquina, estariam
apontando para uma subjetividade que já não tem a forma gramatical do sujeito ou a forma
filosófica da consciência a si, do ser-falante, do ser que se relaciona com a morte, etc.

Seria preciso, enfim, admitir que o ser-lançado é, antes de ser-se sujeito, confrontado com uma
responsabilidade e diante da necessidade de responder a um outro. Assim, a responsabilidade é
anterior à subjetividade e excede toda subjetividade. É certo que o sujeito é "um princípio de
calculabilidade", seja na política, seja na questão dos direitos, seja na moralidade (Idem:272). Ou
seja, é certo que o sujeito deriva certos cursos de ação a partir de princípios, voltado para a
consecução de certos objetivos. O sujeito decide. Mas, pausa enfaticamente Derrida, "não existe
nenhuma responsabilidade, nenhuma decisão ético-política, que não tenha que passar pelas
provas do incalculável ou do indecidível. De outra forma, tudo seria redutível a cálculo, programa,
causalidade, e, no máximo, 'imperativo hipotético'" (Idem:273; cf. 1995a:146-49).

Comentando a esse respeito, num trabalho recente, Derrida relaciona a questão da


responsabilidade, da decisão e da identificação (respondendo a uma argüição de Laclau - cf.
1996b) à questão do sujeito:

"Se alguém sabe, e se é um sujeito que sabe quem e o quê, então a decisão é simplesmente a
aplicação de uma lei. Em outras palavras, se existe decisão, ela pressupõe que o sujeito da
decisão não exista ainda, nem o objeto. Assim, com respeito ao sujeito e ao objeto, jamais existirá
decisão. (...) Toda vez que eu decido, se uma decisão é possível, eu invento o quem, e decido
quem decide o quê; neste momento, a questão não é o quem ou o quê, mas antes a da decisão, se
isto existir. Assim, concordo que a identificação seja indispensável, mas isto também é um
processo de desidentificação, porque se a decisão é identificação, então a decisão também destrói
a si mesma.
"Como consequência, deve-se dizer que na relação com o outro, que é aquele em nome de quê e
de quem a decisão é tomada, o outro permanece inapropriável ao processo de identificação"
(1996:84).

Ou seja, mesmo que minha decisão seja tomada em nome de algo ou alguém, nada me eludirá
de minha responsabilidade, nem esta poderá jamais ser transferida ao outro (Idem:84-85). E a
introdução deste elemento ético polemiza claramente com posturas que recusam qualquer
fundamento ético para a questão do sujeito e da decisão, apelando para ou silenciando diante
de um elemento que, determinando a (falta de) autonomia do sujeito, talvez o isentaria de
responsabilidade. Para Derrida - e Levinas -, há que haver responsabilidade sempre, mesmo em
presença da identificação. Neste sentido, para Derrida, politização e eticização são sinônimos
(cf. Idem:87).

Isso tudo não vai na direção de negar a legitimidade de uma nova fala sobre o sujeito, mas da
necessidade de assumir a ruptura desta com o discurso clássico da subjetividade como presença
e identidade a si. Como afirma Derrida mais adiante a respeito da origem desta responsabilidade
perante o outro prévia a toda subjetividade, "[d]izer desta responsabilidade, e mesmo desta
amizade, que não é 'humana', não mais do que seja 'divina', não quer dizer que seja
simplesmente inumana" (Idem:276). O outro não é simplesmente outro ser humano, nem mesmo
a ordem simbólica ou a linguagem, mas "algo" não-reapropriável, não-subjetivável, mesmo até
certo ponto não-identificável. Mas, antes de podermos elaborar toda uma ética ou política do ser
vivo, que redefina toda nossa concepção do que/de quem é um sujeito, é preciso tomar posição,
assumir responsabilidade, responder - e isto politica, juridica e éticamente (Idem:286).

Diante da urgência da demanda que o outro me coloca, não é possível/legítimo esperar; ela não
pode se contentar nem com a idéia de uma moralidade provisória, de uma ética de situação.
Porque não há tempo para pacientemente se recomeçar, para se parar e dizer: "ops, os
princípios falharam aqui, refaçamos o percurso". A responsabilidade que a desconstrução implica
"pode sempre perturbar, no mínimo, o ritmo instituído de toda pausa (e o sujeito é uma pausa,
um estado, o freio estabilizador, a tese, ou antes a hipótese de que sempre precisaremos),
ela pode sempre perturbar nossos sábados e domingos... e nossas sextas-feiras..." (Ibidem, grifo
nosso). A responsabilidade está além (ou aquém) do tornar-se-lei da moralidade, é excessiva ou
não é responsabilidade.

Aqui, talvez, tenhamos uma forte oposição a tudo o que a concepção lacaniana do sujeito da
falta representa (e que Zizek se deu ao trabalho de opor à "riqueza" da subjetivação por meio
das posições de sujeito): se o sujeito se constitui por meio de uma afirmação ao chamado do
outro, de um sim à interpelação do outro, então não haveria uma relação essencial entre o
desejo e a falta, antes o desejo seria afirmação e a introjeção da morte do objeto (o trabalho do
luto), também (cf. 1995a:143). Mas isto se colocaria em relação à ponta de lá do processo
identificatório, na medida em que Lacan pretende saber o que ou quem é o O/outro, e não em
relação à ponta de cá, o lugar do sujeito: afinal, não seria este último, na medida em que não
tem uma identidade - não coincidente consigo mesmo, não presente a si, não caracterizado por
um núcleo essencial que se desenvolveria ou revelaria diacronicamente -, falta constitutiva e,
mais rigorosamente, falta em relação a um conteúdo que nunca verdadeiramente possuiu 42, uma
vez que a relação gozosa com o objeto, é prévia ao desejo, prévia também à emergência do
próprio sujeito? Como veremos na próxima seção, é exatamente na referência cruzada à
desconstrução derridiana e à lógica da identificação lacaniana, sujeito descentrado como sujeito
da falta, que se constrói o pensamento de Ernesto Laclau sobre a questão.

Sujeito descentrado, sujeito que emerge no momento da decisão, da resposta a um chamado


que não escolheu e que talvez até não reconheça de onde/quem procede, mas perante o qual,
ao responder - e só é sujeito em respondendo - torna-se responsável: precisamente porque o
sujeito calcula, decide, o momento da decisão não é uma decorrência dos ditames da estrutura,
não é uma mera dedução a partir de uma análise da situação/conjuntura, não é uma mera
derivação do que o sujeito já é. O sujeito é infinitamente responsável ao/pelo outro. O sujeito
jamais consegue recolher-se no repouso do seu lugar próprio, onde ele é ele mesmo, onde ele
sabe exatamente o que quer e como fazer para realizar esta vontade. Mas nem por isso ele
deixa de existir, morre, desvanece. A morte do sujeito é o mito de uma doxa que muito
apressadamente creu se ver livre de qualquer idéia de agência em favor quer da força da
estrutura (no estruturalismo), quer da impossibilidade de qualquer estrutura (numa certa variante
do pós-estruturalismo).

3. Deslocamento, a falha na estrutura e a constituição hegemônica do ator


coletivo

O argumento construído até aqui pretendeu recolocar a problemática do sujeito a partir da


experiência - nunca inteiramente incorporada, porque nunca inteiramente atravessada - da crise
do universalismo e da concepção clássica da identidade/subjetividade como presença a si,
expressividade e autonomia. A realidade do mundo em que vivemos hoje nos confronta tanto
com a irrupção de múltiplas formas de identificação que se caracterizam por seu particularismo -
isto é, pela sua parcialidade e pretensão de irredutibilidade a princípios gerais ou projetos

42
É notável, neste aspecto, a semelhança entre o argumento psicanalítico e o desconstrutivista, como demonstra
claramente o próprio Derrida em “Freud e a cena da escritura” (cf. 1967:313-314).
totalizantes - quanto com esforços de articulação ou agregação de agendas ou agentes díspares
em torno de pontos de convergência suficientemente abrangentes e fortes para reuní-las e ao
mesmo tempo contingentes demais para postular duração e legitimidade acima de qualquer
suspeita ou questionamento. Parece que um vínculo se insinua entre esta multiplicação de
(posições de) sujeito/s e alguma coisa da ordem do nosso tempo, da nossa condição histórica,
da nossa contemporaneidade. Haveria algum elemento comensurável entre essa experiência do
sujeito fragmentado/descentrado e a (des)ordem de nosso tempo? Seria possível avançar algum
acordo “sociologizável” entre elas? Responder a esta questão parece fundamental se o esforço
aqui realizado quiser apresentar alguma relevância no terreno “hard” das ciências sociais. Não
queremos sugerir a falsidade de uma opção entre a teoria e a análise empírica, entre a lógica
psicanalítica e a lógica das ciências sociais, ou entre a filosofia política e a ciência política.
Assim, é preciso ainda perseguir, por mais um tempo, a possibilidade do referido acordo. É o que
nos aguarda, nas páginas seguintes, e no próximo capítulo.

Mantenhamo-nos na companhia dos interlocutores psicanálise e política, pois nosso fio condutor
continua sendo o tema da identificação, pelo qual queremos produzir um discurso sobre o sujeito
coletivo e os desafios que enfrenta neste fim de século. Desafios, especialmente aqui, onde o
sujeito histórico, autônomo e livre nunca atendeu pelo nome de povo, classe trabalhadora ou
classes populares e no momento em que poderia fazê-lo em proporções mais locais, vê-se
dessublimado por um pensamento diferencialista, quem sabe politicamente irresponsável ou
equivocado.

Em 1986, no curto ensaio “Psicanálise e Marxismo”, Laclau defende a posição de que a questão
do deslocamento é fundamental a qualquer compreensão da formação de identidade. Ali Laclau
fazia uma articulação entre a lógica do significante lacaniana (do sujeito da falta) e a categoria
do desenvolvimento desigual e combinado (ela própria descrita como a articulação sincrônica -
descrita fundamentalmente por meio do conceito de hegemonia - de estágios que, na teoria
marxista, deveriam ser sucessivos). “Hegemonia é na realidade um hímen/dobradiça, dado que
por um lado ela sutura a relação entre dois elementos (a tarefa e o agente); mas, por outro lado,
uma vez que esta sutura é produzida no terreno de uma relação primária e insuperável de
deslocamento, nós só podemos atribui-la um caráter de inscrição, não de articulação necessária”
(1990:95-96). A relação hegemônica funciona assim analogamente à lógica do significante. Por
outro lado, Laclau afirma que “[é] a generalização dos fenômenos de „desenvolvimento desigual
e combinado‟ da era imperialista para toda identidade social que, como na imagem
heideggeriana do martelo quebrado, transforma o deslocamento num horizonte a partir do qual
toda identidade pode ser pensada e constituída (estes dois termos sendo exatamente
sinônimos)” (Idem:96).

Em outras palavras, dirá Laclau, num texto posterior ("Novas reflexões sobre a revolução de
nossa época"), em que elabora com detalhe a problemática, a possibilidade de plena
constituição/realização de uma identidade ("totalidade") deve ser sempre medida não em função
de quem são, essencialmente, os atores sociais, mas da distância entre o que afirmam ser e o
que efetivamente alcançaram deste "projeto". Toda identidade é deslocada porque depende de
um exterior que representa tanto a sua possibilidade - por exemplo, ao identificar um inimigo que
ameaça ou nega o que ou quem se é num dado momento -, quanto a sua impossibilidade -
enquanto o inimigo não for afastado, não se poderá ser plenamente; mas ao se retirar de cena, o
inimigo leva consigo, por assim dizer, um pedaço de nós. Desta forma, é inadequado tematizar o
problema da constituição incompleta da identidade em termos de "falsa consciência" ou
"alienação" como aquilo que impediria a plena realização. Se as condições de existência dos
atores sociais são contingentes - porque não exprimem o movimento necessário de um sistema -
e se estes se definem em relação a um exterior que não controlam inteiramente (e que não é
rigorosamente objetivo, pois se define no registro do imaginário 43), o deslocamento da identidade
43
Bem entendido, não é de uma ilusão ou delírio que definiria o caráter do exterior constitutivo que se trata, mas do
fato de que o que uma identidade afirma do seu outro não precisa corresponder necessariamente a um agente ou
situação factualmente dados e apresentando exatamente as características a ele/a atribuídas. Naturalmente, não se
fala de uma ameaça, de um inimigo, de um obstáculo sem nomeá-los. Outra coisa é se esta nomeação encontra "do
não pode ser compreendido em termos da oposição entre aparência e realidade (cf. 1990:36-37).
As relações entre a identidade dos atores e suas condições de existência são absolutamente
necessárias. O que significa que mudanças nessas condições (históricas) de existência alteram
e transgridem a "identidade essencial" dos atores (Idem:21, 22).

Assim, se o exterior, o O/outro, é condição de possibilidade e de impossibilidade da emergência


e realização da identidade, os efeitos do deslocamento serão contraditórios. A tese de Laclau é
que, a partir da era imperialista (quem sabe, desde o tempo dos descobrimentos?) assiste-se a
uma generalização dos efeitos deslocatórios, como pano de fundo histórico-social da releitura da
questão da identidade proposta. A idéia de uma sequência de estágios de desenvolvimento e da
vinculação entre cada um destes e um (tipo de) agente histórico particular, segundo um esquema
diacrônico-evolucionista, torna-se insustentável. Como escreveu Trotsky no seu trabalho sobre a
revolução russa, as sociedades "periféricas" se mostrariam como composições entre diferentes
"estágios" de desenvolvimento, e atores correspondentes a um destes seriam chamados a
desempenhar o papel que os atores próprios do drama teriam deixado de representar. A esta
suplementação da história, pela qual a "queima" de etapas se dá pela sua sincronização Trotsky
chama de desenvolvimento desigual (irregular) e combinado. E o processo de suplementação
pelo qual um ator assume as tarefas históricas de outro se chama de hegemonia.
Consequentemente, a generalização dos efeitos deslocatórios produzidos pelo capitalismo leva à
generalização da forma hegemônica de fazer política. Se as relações sociais são contingentes,
não estando governadas por um conjunto fixo de leis ou princípios de determinação, as
identidades sociais são constituídas por relações de poder, "a identidade em si é poder" (Laclau,
1990:31). E se a objetividade em cada momento depende de uma intervenção que a assegure
ou transforme numa ou noutra direção, então o terreno do deslocamento e da (re)articulação da
estrutura é, no sentido estrito, o terreno da política (Idem:50).

A generalização dos efeitos deslocatórios nas sociedades contemporâneas produz um triplo


efeito: primeiro, uma maior consciência de historicidade, resultante do ritmo acelerado de
transformações sociais e das contínuas intervenções voltadas para "reconstituírem" os rumos de
um processo supostamente normal; segundo, quanto maior o efeito de deslocamento de uma
objetividade/estrutura/identidade, mais se expande o campo de decisões não determinadas por
ela, tendo-se assim um incremento do papel do sujeito e um menor grau de repetitividade da
história; e terceiro, o campo das relações de poder é irregular, dado que uma
estrutura/identidade deslocada não pode ter um centro (não porque se desmontou, como uma
máquina se quebra, mas porque forças antagônicas a deformam); o deslocamento social implica
na existência de uma pluralidade de centros de poder, os quais não podem ser auto-referidos;
não se trata da inexistência de um centro, mas da prática do descentramento (Idem:39-40).

Desta forma, o lugar do sujeito é o do deslocamento. Longe de ser um momento da estrutu ra, o
sujeito é o resultado da impossibilidade desta se constituir em sua auto-suficiência e dominar
irrestritamente sobre os seus elementos constitutintes. Como na imagem lacaniana, o sujeito
atravessa a fantasia - desidentifica-se - quando "descobre" que o Outro é barrado, que não é
todo-poderoso, que não tem o que o sujeito "quer". Contudo, os esforços dos agentes sociais,
qua sujeitos, para rearticularem e reconstruirem uma estrutura deslocada também produzem

lado de lá" um referente estritamente definido pelas características atribuídas. Outra maneira de colocar a questão é
levá-la para o lado da relação antagonística: se o antagonismo (a negatividade) não é um momento no interior de um
sistema dialético, não é uma contradição, ele não pode ter um sentido objetivo, mas é aquilo que limita toda
objetividade; "com o antagonismo, a negação não se origina no 'interior' da identidade, mas no sentido mais radical,
vem de fora; ele é assim pura facticidade que não pode ser referida a nenhuma racionalidade subjacente" (Laclau,
1990:17). Por outro lado, não pode existir antagonismo em relação a um vazio de identidade. Uma identidade só pode
ser ameaçada se ela já está aí. O que o antagonismo nega - desde fora - é a possibilidade de uma total coincidência
entre o que uma identidade afirma ser e o que ela em cada momento é; o que o antagonismo faz, pela mesma razão,
é afirmar a existência da identidade que nega (cf. Idem:26-27). Mais radicalmente ainda: a hora do desaparecimento
do antagonista, a hora da minha vitória, é o momento de minha maior perda, morto o outro, morro também
com ele; descubro que o que me lançava em direção a ele tinha a ver com uma identificação, o mesmo se
dando em relação aos meus aliados; mas precisamente por isto, minha falta permanece intacta e terá que ser
preenchida por outros objetos de atração e repulsão.
efeitos sobre sua própria identidade e subjetividade. Assim, não se trata de se é o mesmo
sujeito que emerge ao final dum processo de mudança, mas de qual é sua nova identidade
depois (cf. Idem:50). Uma vez que os novos atores surgidos na esteira da expansão
contemporânea do capitalismo se movem num terreno deslocado, devem constantemente
reinventar suas próprias identidades e formas de organização social.

Deslocamento, antagonismo, falha na estrutura, lugar do sujeito e relações de poder são então
aspectos intrinsecamente relacionados da construção histórica e da constituição dos sujeitos
sociais. Temos, então, a seguinte situação:

"A novidade da presente situação, então, está no fato de que o ponto nodal em torno do qual a
inteligibilidade do social é articulada tende agora, não a se mover de uma instância para outra na
sociedade, mas a se dissolver. A pluralidade de deslocamentos gera uma pluralidade de centros de
poder relativo, e a expansão de toda lógica social tem lugar assim num terreno que é cada vez
mais dominado por elementos externos a ele. Deste modo, a articulação é constitutiva de toda
prática social. Mas neste caso, na mesma medida em que os deslocamentos crescentemente
dominam o terreno de uma determinação estrutural ausente, o problema de quem articula passa a
ocupar uma posição mais central" (1990:59).

É aqui que começamos a reencontrar o tema da identificação. O sujeito emerge como um ato
de poder que revela e resiste ao deslocamento da estrutura, ao colapso de uma objetividade.
Isto se dá pela crescente percepção de que esta última é apenas a sedimentação e o
apagamento dos traços de atos de poder passados e contingentes. Tais atos, tomados num
terreno deslocado, (re)constróem a identidade enquanto atos identificatórios; não são, portanto,
expressões de uma identidade positiva, constituída previamente ao momento da decisão. Logo,
todo sujeito é, por definição, político. Fora do sujeito, neste sentido, só existem posições de
sujeito no campo da objetividade. Mas o sujeito não pode ser objetivo: ele só se constitui nas
margens irregulares da estrutura (Idem:60-61). O sujeito é raro e não um estado de permanente
auto-determinação e expressividade, talvez tolhido por alguma condicionante temporária.

Quatro consequências decorrem desta formulação (cf. Idem:61-65). Primeiro, todo sujeito é
mítico, pois se o mito é uma representação do passado e do futuro de uma ordem que está em
descontinuidade radical com ela, o sujeito que intervém para reconstruir a estrutura falhada, o
faz a partir de uma leitura da situação sujos termos são externos ao que pode ser representado
nela. O papel do mito é suturar o espaço deslocado, rearticulando os elementos que se
desprenderam ou que são sistematicamente excluídos pela ordem. Trata-se, novamente, de uma
operação hegemônica, pois a aproximação destes elementos (discursos, grupos, contextos) num
"projeto alternativo", num mito, não é natural nem necessária.

Em segundo lugar, todo sujeito é metáfora. Não há uma "forma lógica" comum ao sujeito e à
realidade ou estrutura a que este se refira ou corresponda. O espaço mítico se apresenta como
alternativa à forma do discurso dominante da estrutura. Como nenhum dos dois (mito e estrutura)
está plenamente constituído, somente o deslocamento de um pode configurar o outro como sua
imagem invertida. Ora, o mito não se opõe à existência de uma estrutura, mas aos efeitos
desestruturadores de uma certa estrutura. Sua identidade e função do mito é dividida: ele é o
que diz ser - a nova ordem proposta - e é a "encarnação" do próprio princípio da ordem. Assim é
que o mito surge como metáfora de um fundamento dominado pela dialética entre a identificação
com uma plenitude inalcançada (a "verdadeira expressão dos interesses populares", a
"sociedade plenamente democrática", o "socialismo", etc.) e o deslocamento da estrutura (a
crise, a ineficiência ou a violência da ordem vigente). Ou seja, a forma concreta que o mito
assume (seu conteúdo literal) representa sempre algo diferente de si mesmo: a própria idéia de
uma nova ordem, plenamente constituída. "O fascínio que acompanha a visão de uma terra
prometida ou uma sociedade ideal provém diretamente desta percepção ou intuição de uma
plenitude que não pode ser conferida pela realidade do presente" (Idem:63). Ora, como se disse
acima, esta distância entre deslocamento e identificação é precisamente o espaço do sujeito: "O
sujeito (falta na estrutura) só assume sua forma de representação específica como metáfora de
uma estrutura ausente" (Ibidem).
Terceiro, as formas de identificação do sujeito funcionam como superfícies de inscrição, ou seja,
o mito de uma nova ordem perfeitamente realizada, à medida que vai ganhando aceitação social,
vai sendo usado como lugar onde podem se inscrever toda sorte de frustrações, agravos,
sentimentos de injustiça ou demandas insatisfeitas e que "encontram" no estado de coisas
vigente a sua razão de ser (ou a continuidade de uma situação inaceitável que já vem de longe).
Assim, todo discurso que se propõe a reconstruir uma situação, re-hegemonizá-la precisa se
tornar um lugar de confluência em que "tudo cabe" e a tudo o mito promete resolver tão logo
(mas só quando) se concretizar. A inscrição, no entanto, nunca é completa, mantendo-se sempre
uma distância entre sua expressão e o que se expressa no ato de inscrever. A inscrição sempre
deixa um resto, que abre caminho para sua instabilidade e eventual insucesso ou transformação.
Ou seja, assim como os objetos de desejo vêm a ocupar precariamente o lugar do que se perdeu
irremediavelmente na origem, para que o próprio sujeito se constituísse, assim como o sujeito só
encontra os seus objetos (a promessa de ser ele mesmo, enfim) fora de si próprio, somente para
descobrir que não eram bem o que pensava, da mesma forma o conteúdo dos mitos sociais
precisa ser constantemente reconstituído e deslocado.

Finalmente, o caráter incompleto das superfícies míticas de inscrição (isto é, de identificação com
o lugar de onde o Outro me/nos vê) é a condição para a emergência de imaginários sociais,
horizontes de inscrição de qualquer demanda social e qualquer deslocamento possível, em que
os mitos podem se transformar. A condição para o surgimento de um imaginário é que o
conteúdo de uma determinada demanda se metaforize ao ponto de (passar a) representar um
indefinido número de outras demandas, ou um lugar onde as carências nelas implicadas tenham
sido todas satisfeitas. (Em termos gramscianos, trata-se da missão hegemônica de toda
identidade particular que aspire a construir um novo bloco histórico, uma articulação entre paixão
e organização: a classe revolucionária é aquela capaz de deixar o seu momento econômico-
corporativo, particularista, e interpelar e organizar uma vontade coletiva muito maior e mais
complexa do que ela.) O imaginário não é um objeto entre outros, ele é o limite de todo projeto
de realização de todas as demandas e de todo ato identificatório pelo qual uma delas é eleita
como representativa das demais.

Como o deslocamento não prescreve qual alternativa corresponde essencialmente às


necessidades de reconstrução da ordem falhada, uma diversidade de conteúdos podem ocupar
o lugar do Outro e nenhum deles pode fazê-lo categorica e definitivamente. Qualquer que seja o
procedimento, o resultado será sempre um equilíbrio hegemônico que terá que
permanentemente negociar suas condições de possibilidade e, eventualmente, se deparará com
o Real no sentido lacaniano, um limite a toda pretensão do discurso hegemônico de dizer a
realidade exaustivamente. Um limite extensivo integralmente ao sujeito cuja "leitura alternativa"
das possibilidades de mudança deram origem à nova situação, ao novo imaginário.

Desta forma, ao dizer que o antagonismo é a condição para a emergência de um sujeito social,
tem-se que dizer igualmente que toda identidade é já em si barrada, organizada em torno de um
trauma não-simbolizável, uma impossibilidade, e que o inimigo externo é apenas aquele pedaço
da realidade sobre o qual o sujeito "projeta" ou "externaliza" sua própria impossibilidade (cf.
Zizek, 1990:252). Nenhum projeto coletivo, nenhum sujeito de um tal projeto, tem a qualidade de
se eximir deste (auto-)impedimento. A propósito desta percepção que visa ao mesmo tempo
reforçar o lugar do sujeito e assinalar a sua impossibilidade última, Zizek afirma que o grande
mérito do trabalho seminal de Laclau e Mouffe, Hegemony and Socialist Strategy, foi o de ter
articulado um projeto fundado numa "ética do real", da travessia da fantasia, "uma ética do
confronto com um cerne impossível, traumático, não coberto por nenhum ideal (da comunicação
indistorcida, da invenção do self)" (Idem:259). Este impasse insuperável não constitui nem pede
qualquer resignação, mas aponta para a possibilidade kantiana de experimentar um objeto
através do próprio insucesso de sua adequada representação (Ibidem).

Retomando o raciocínio introduzido no início desta seção e desenvolvendo-o, tem-se aqui o


sujeito definido em termos lacanianos, como um "movimento" pelo qual o ser humano encontra o
seu lugar na sociedade, na cultura, na tradição, na família, pela sua fixação na cadeia
significante da linguagem, por meio de um significante (um "nome próprio", literal ou
metaforicamente). Tal fixação, que lhe suplementa uma falta de ser originária, constituindo -o
num ser-falante, devido à natureza puramente diferencial dos componentes da ordem simbólica,
não lhe assegura nenhuma "definição" substantiva, rígida, definitiva. A partir daí, o sujeito
passará a "negociar" permanentemente, num movimento errático, o reencontro com o objeto
perdido, aquilo que era, sem saber, antes da entrada na ordem da linguagem, mas que retornará
apenas como falta-de. Na interpelação que vem do Outro, o sujeito procura em vão divisar o
segredo de sua existência, a realização do seu desejo. O agente humano será, então, o efeito
precipitado de uma série de identificações imaginárias, históricas e contingentes, por meio das
quais ele constrói fantasias da possibilidade de se reencontrar consigo mesmo, de dizer "eu sou
x, e o que quero é y". Como os significantes que vêm a se sobrepor a ou substituir os anteriores
falham em representar o sujeito, deixam um resíduo que demanda ainda mais uma identificação,
talvez a última, quem sabe. Mas não, o insucesso desencadeará novos atos de identificação que
tentam administrar os efeitos desestruturantes do real. "É nessas interrupções que o sujeito da
falta emergirá e perturbará o universo simbólico-imaginário" (Laclau e Zac, 1994:33).

A tese desenvolvida em "Novas Reflexões" é que o sujeito é a distância entre a


indecidibilidade da estrutura - o fato de que esta emerge sempre a partir de uma escolha ou
decisão em que outras possibilidades eram perfeitamente possíveis - e a decisão - momento
identificatório (cf. 1990:30). Em seu ensaio “Desconstrução, Pragmatismo, Hegemonia”, ele
retoma o ponto e afirma que “[e]ste momento da decisão como algo auto-referencial e incapaz
de prover seus fundamentos por meio de qualquer sistema de regras que o transcenda, é o
momento do sujeito” (1996b:54-55). Mas por que chamá-lo de sujeito? Porque, segundo Laclau,
a condição para a emergência do sujeito é que este não esteja subsumido a algum determinismo
estrutural - não por ser uma substância em si, mas porque a determinação estrutural falhou em
cumprir esta função de fundamento, solicitando então um suplemento na forma de intervenções
contingentes (Idem:55). Este suplemento é uma decisão, obra de um sujeito. Decisão que não
possui uma substância própria (por exemplo, em uma consciência auto-centrada), mas precisa
ter algum grau de autodeterminação, sem o qual agiria apenas em decorrência de algum
princípio estrutural. É como se soubéssemos que não somos Deus, mas simulássemos sê-lo
mesmo assim.

Uma das dimensões desta simulação é a da “distância intransponível entre minha falta de ser
(que é a origem da decisão) e aquilo que confere o ser de que preciso para agir num mundo que
não conseguiu me construir como sua „Modificação‟ (modus). Ora esta operação de uma
aquisição adventícia de ser tem um nome”: a categoria psicanalítica da identificação (ibidem).
Outra dimensão é a da desproporção entre o corpo que vem a “resolver” o nó da estrutura,
preencher seu vazio ou reparar suas brechas, assim encarnando a função de plenitude da
estrutura, e esta última. Se é impossível atingir a plena realização da estrutura, não deixa de ser
necessário tentá-lo vez após vez - há um hiato entre o lugar da estrutura e as propostas de
(re)estruturação, que simultaneamente exige a identificação e impede-a de significar o "fim da
história". Os conteúdos (projetos, ações, manobras, etc.) que venham a assumir esta função
pagarão sempre o preço de sua contingência, de sua mortalidade. Mas a necessidade destes
“deuses mortais” permanecerá sempre imperativa.

Por que chamar a isto de sujeito, perguntaríamos de novo? “Porque a impossibilidade de um


sujeito substantivo, livre, de uma consciência idêntica a si que seja causa sui, não elimina sua
necessidade, mas apenas recoloca aquele que escolhe/decide na situação aporética de ter que
agir como se fosse um sujeito, sem estar dotado de nenhum dos meios para uma subjetividade
plenamente desenvolvida” (Laclau, 1996b:56; cf. tb. Derrida, 1995a:148). Afora este momento do
sujeito, pelo qual a indecidibilidade da estrutura, sua não-completude, é "resolvida" numa ou
noutra decisão, só existem posições de sujeito. Ou seja, momentos de uma estrutura
relativamente recomposta - o que Laclau chamará adiante de "totalização (closure) imaginária"
(Idem:59). E como a decisão tomada não expressa a identidade de um sujeito já existente, mas
ao contrário, o sujeito se constitui na/pela decisão, o que se requer são atos de identificação.
Sendo assim, a nova identidade do sujeito (pós-decisão) é dividida: ela representa ao mesmo
tempo um conteúdo concreto e encarna a plenitude ausente do sujeito (Idem:57).

A isto acresce que não existe nenhum conteúdo que esteja a priori determinado a preencher a
falta da estrutura: a decisão se dá sempre num contexto e é portanto, sempre parcialmente
determinada. Ou seja, nunca existe uma situação de total desestruturação, mas apenas de
parcial desestruturação. Uma pluralidade de conteúdos se coloca, assim, em cada contexto,
igualmente passíveis de assumir a função de representantes da plenitude ausente da estrutura.
Mas como isto se dá sempre em contextos concretos, estes “factualmente limitam a
indecidibilidade estrutural, limitando também o escopo dos conteúdos que podem, a qualquer
momento, representar o papel de representação universal” (Idem:58). A função de
preenchimento da falta da estrutura é, para Laclau, propriamente hegemônica: um
elemento particular (um significante, um discurso, um projeto, um ator coletivo, etc.)
assume a função do universal, encarnando a plenitude da estrutura. A tendência do
singificante a “esvaziar-se” de um conteúdo demasiadamente literal e abrir-se a “descrever”
outros conteúdos, substituindo outros significantes e assumindo assim uma característica mais
universal ao mesmo tempo em que não deixa de manter uma relação espectral com seu
significado “original”, esta tendência é, para Laclau, o que torna a política possível e a
hegemonia a expressão mais adequada desta.

Assim, se a indecidibilidade da estrutura, ou seja, a não-naturalidade da forma dominante de


organização social e política, é o que enseja o momento da política e da hegemonia - e a
insistente denúncia desta pretensa naturalidade das relações sociais, do esquecimento em
relação a suas origens históricas e contingentes é o que caracteriza a desconstrução -, é preciso,
por outro lado, uma teoria da decisão tomada sobre um tal terreno indecidível que recoloca a
questão do sujeito, e que venha a suplementar a desconstrução. Pois esta decisão é (1) auto-
fundamentada; (2) exclusionária (pois requer que alternativas sejam excluídas em favor de uma);
e (3) dividida internamente entre ser uma decisão e ser apenas uma dentre outras possíveis (cf.
Idem:60). Numa palavra, essa decisão só pode ser hegemônica. Desta maneira, o sujeito da
falta, a política e a hegemonia tornam-se momentos que se requisitam mutuamente. Por ser
constitutivamente dividido/incompleto, o sujeito se vai construindo por sucessivos atos de
identificação. Por não operar num terreno previamente delimitado e dotado de uma lógica própria
de funcionamento e desenvolvimento, mas historica e contingentemente tecido, esse sujeito
parcial pode refazer ou subverter a ordem vigente, apontando para outras possibilidades de
organizá-la, particularmente nos momentos em que esta falha (ao faltar com suas promessas, ao
impedir que mudanças ocorram, ao forçar a aceitação de suas soluções e alternativas como as
únicas possíveis, ao se deparar com impasses e ameaças).

Mas pela sua condição, este sujeito só terá sucesso se for capaz de se alçar para além de sua
particularidade, interpelando e coordenando uma variedade de outros e/ou suas demandas; dito
de outra maneira, o significante que representa este sujeito precisa se tornar o ponto de
amarração, o ponto nodal, de uma série de investimentos de sentido que expressem o
descontentamento com a ordem vigente, com a desordem produzida por ela, e dar nome a um
projeto alternativo, um mito de reconstrução da comunidade em sua completude perdida ou
agredida pelo discurso vigente/dominante. Esta situação traduz o primado da política na
instituição da sociedade e realça o caráter hegemônico da política como nova lógica do social
advinda da experiência do deslocamento “inaugurada” pelo capitalismo e pela democracia
moderna.
Capítulo 4
MOVIMENTOS SOCIAIS, IDENTIDADE E PLURALIDADE DO
SOCIAL

U
ma das características dos chamados novos movimentos sociais a partir dos anos 70 foi a
da experimentação com uma concepção estratégica da ação coletiva que não exigia a
"amarração" entre todas e cada uma das iniciativas, com vistas a um efeito de mudança
totalizador que colocasse a sociedade num novo patamar. Ainda que as razões para esta visão
plural ou fragmentada - dependendo da opinião do observador - não fossem as mesmas em
cada caso44, o certo é que, na conjuntura que se abre com esse deslocamento da idéia de um
ator histórico operando no nível dos fundamentos do social (cf. Laclau, 1996c), cobra interesse a
questão de como articular uma nova compreensão da subjetividade simultaneamente
reminiscente da idéia de individualidade e privacidade ou intimidade 45 a uma outra, da virtude
pública da participação numa sociedade plural (cf. Mouffe, 1996:83-99), como condições para
uma renovação do pensamento e da prática democráticas. Foram também os novos movimentos
sociais que reintroduziram questões de identidade no debate político, excluídas que haviam sido
pela vigência do neutralismo liberal pelo qual o espaço público não comporta reivindicações
fundadas em idéias substantivas do bem, devendo limitar-se a definir procedimentos e princípios
universalistas que possibilitem a todo cidadão - de preferência a título individual e/ou por meio da
representação política - o acesso aos processos de tomada de decisões. Ao insistirem no vínculo
entre demandas e reivindicações de identidade e comunidade, os movimentos recolocaram na
agenda do debate político ocidental a relevância da tradição civico-republicana e a necessidade
do liberalismo relativizar seu puro procedimentalismo, e levar na devida conta as interferências
de concepções do bem sobre as demandas trazidas pelos diferentes atores para as esferas
públicas da sociedade.

Para compreender como a crise do universalismo e a emergência de formas pluralísticas de ação


coletiva, extensivas não somente à natureza da competição entre múltiplos atores, mas também
à própria composição interna destes últimos, se vinculam à problemática da identificação, é
preciso tecer alguns comentários sobre a trajetória recente dos movimentos sociais. Na seção 3
do capítulo 2, viu-se que os movimentos contribuíram, num procedimento ambíguo, para quebrar
o discurso totalizante da política e ampliar a zona de intervenção política, na medida em que os
atores não mais são vistos como comparecendo à cena histórica para desempenhar um papel
definido por alguma filosofia da história, mas fazendo diferença num duplo sentido: por dotarem
sua intervenção de uma produtividade específica, ao invés de se portarem como meros
joguetes de um drama universal, e por demarcarem especificidades produtivas, ou seja,

44
Pode-se dizer que no caso europeu e norte-americano, o caminho pluralístico deveu-se à fratura da imagem de ator
histórico, catalizador e dirigente de uma mudança global, e à abertura de espaço para intervenções mais pragmáticas
e localizadas. Já no caso latino-americano, na vigência das ditaduras militares ou da crise econômica que vitimou
aqueles países, a alternativa pluralística deveu-se mais a critérios de possibilidade/oportunidade da ação coletiva: era
simplesmente mais produtivo explorar múltiplas e localizadas formas de demanda ou contestação do que esperar
pelas condições para um ataque frontal ao estado.
45
Digo reminiscente para sublinhar que, por um lado, não se trata simplesmente de um retorno à idéia de um
indivíduo coeso, centrado e oposto à sociedade, nem de um insulamento do sujeito em torno de si mesmo, de seus
interesses, de seu espaço próprio ao abrigo de qualquer publicidade ou de qualquer contextualização numa
comunidade. Por outro lado, dadas as condições históricas e sociais em que emerge esta preocupação, a exposição
pública dos indivíduos enquanto agentes sociais, sob a forma de participação política ou de sua presença nos meios
de comunicação de massa, não pode prescindir de uma esfera de privacidade, ou seja de liberdade pessoal para ser e
fazer diferentemente dos demais sem ter que ser perscrutado e julgado publicamente por isto a todo mom ento, bem
como de individualidade, ou seja, de uma linha limítrofe entre as demandas coletivas ou comunitárias de seus
envolvimentos políticos e o momento do recuo, da pausa ou da resistência a deixar-se diluir numa massa ou triturar
por uma ordem política de contornos totalitários.
construindo demandas instrumentais e identitárias que não se dissolvem numa identidade maior
e mais importante e que buscam reconhecimento para as diferenças sociais, culturais, éticas,
sexuais, etc. que expressam.

Trata-se, porém, agora, de dar ênfase à importância que os movimentos passaram a dar a
questões de identidade, na medida em que a constituição do ator coletivo que articulava a
demanda se deu, na maioria dos casos, simultaneamente à referida articulação. Em torno das
demandas se constituíram formas de ação coletiva que vieram a assumir a designação de
movimentos sociais, de modo que, como bem adverte Melucci (1991), um movimento social é
antes o resultado que o ponto de partida de um processo que inclui a identificação e articulação
de uma carência como demanda, a mobilização de um conjunto de pessoas e a construção de
"aparatos" ou organizações que não somente representem seus membros, mas construam e
interpretem, no confronto ou nas alianças com outros atores, suas necessidades e identidade.

Para tanto, na primeira parte do capítulo, explorarei como, em torno do campo definido pelos
movimentos sociais se foi elaborando uma nova problemática sobre a política, a ação coletiva e
a questão da subjetividade na qual a dimensão cultural, simbólica da ação é tão importante
quanto a expressiva. Os atores coletivos que levam o nome de movimentos sociais, então,
tornam-se o protótipo de uma concepção do sujeito e da ação coletiva na qual faz todo sentido a
forma da psicanálise colocar o problema do sujeito. Um recorte temporal ajudará a tecer uma
narrativa que procura dar conta de diferentes momentos do desenvolvimento dessa percepção:
anos 70 (emergência, problematização da concepção tradicional da ação coletiva, expectativas
de mudanças substantivas nos moldes da idéia de revolução); anos 80 (visibilidade, desafios
colocados pela conjuntura de recuo político nos países avançados 46 e de redemocratização dos
países latino-americanos e do sul da Europa, sinais de limite ou cansaço da estratégia
movimentalista); anos 90 (crise dos movimentos, desilusão com suas perspectivas, discurso
sobre o declínio do político, crise da crise dos movimentos).

Na última parte, oferecerei algumas pistas hermenêuticas para a análise política contemporânea
no Brasil dos temas propostos ao longo do trabalho. Não sem antes advertir que não pretendo
que a leitura proposta seja uma dedução logicamente decorrente do que veio antes: a tomada de
posição política é carece de fundamentação última num sistema de regras estável e algorítmico;
se ela recorre sempre a razões para postular as alternativas que abraça, não pode jamais
esquecer-se de que, de um lado, o sentido de uma decisão é sempre construído retroativamente,
depois do passo dado, e de outro lado, de que o conteúdo de uma decisão poderá sempre ser
"falsificado" por outras tomadas a partir das mesmas razões alegadas e que a questionam seja
na qualidade do seu diagnóstico, seja na adequabilidade de suas proposições.

1. Os movimentos sociais e a saga de uma nova concepção do sujeito da política:


do preâmbulo ao epílogo and back again

Pode-se dizer que uma parcela significativa das teorias da subjetividade que se distanciaram da
perspectiva clássica do ator social como sujeito homogêneo, definido a partir de uma posição
fixa na esfera da produção ou no contexto de um drama histórico universal, transparente a si
mesmo (ou alienado de seu verdadeiro ser), o fizeram tendo como pano de fundo os movimentos
sociais. Num primeiro momento, deu-se uma certa glorificação eufórica em relação ao potencial
mudancista dos novos atores, produzida pela transposição destes para o lugar do sujeito
histórico. Apenas o que antes era prerrogativa de uma classe ou uma instituição sociais agora
era compartilhado por uma multiplicidade de agentes. A origem destes movimentos numa certa
mutação política da esquerda socialista projetava sobre eles a missão de renovarem a história. A
partir de inícios dos anos 80 já se podia perceber uma certa desilusão com esta expectativa, por
exemplo, na obra de Manuel Castells, um dos mais festejados teóricos movimentalistas. E aos
poucos foi-se generalizando a postura oposta de avaliar os movimentos como essencialmente

46
Refiro-me à avalanche neoliberal desencadeada pelas vitórias de Margareth Thatcher na Grã-Bretanha e de Ronald
Regan nos Estados Unidos.
integracionistas, politicamente confusos e mesmo um desserviço, no longo prazo, a anseios mais
gerais de mudança social e política substantiva (cf. Castells, 1983; Scott, 1990; Vigevani, 1988).

Duas perspectivas narrativas se mostram assim: entre os anos 60 e 80, os movimentos são
vistos como atores de uma fratura na representação unificada do político 47, intrinsecamente
progressistas e lugares privilegiados da mudança. Nos anos 90 (em alguns casos, já no fim dos
anos 80), surge uma percepção dos limites dos movimentos, dada a tendência a pensá-los como
substitutos dos "velhos" atores, o que levou a um desencantamento com a sua putativa
capacidade de operar mudanças profundas no âmbito institucional, mais a revelação das aporias
das políticas de identidade, neste caso, pela perda de capacidade de negociação devido ao
purismo e à intransigência política ou ao cansaço mesmo com a militância exaustiva e sem
resultados na proporção esperada.

A crise dos anos 80 colocou quatro questões para os movimentos e seus teóricos: (1) os
movimentos não são um substituto do proletariado, nem têm um projeto abrangente de
sociedade nos moldes da representação moderna da mudança, herdada da teoria social do
século 19 (cf. Somers e Gibson, 1995; Laclau, 1994; 1996c; Melucci, 1989); (2) o Estado não é
meramente o inimigo, de forma que se pode atuar em algumas áreas no seu próprio interior (que
já não é mais pura internalidade estatal, pois se define pela presença de setores não-estatais -
ONGs, conselhos, fóruns, etc.); (3) a diferenciação interna no campo popular - ONGs se definem
como atores políticos independentes dos movimentos e associações populares, embora
articuladas a estes; (4) a articulação entre diferentes sujeitos, anteriormente dissolvidos no
campo popular, inicialmente vista como estratégia de sobrevivência política, como soma de
interesses particulares, numa conjuntura adversa à politização (início dos anos 90, com a maré
rompante do discurso neoliberal, no caso brasileiro, marcada pelo decisionismo maníaco da era
Collor), posteriormente, vai dando lugar à percepção, por parte de alguns atores (especialmente
as ONGs), de que esta soma altera a identidade das partes. Momento em que a prática desses
atores passa a se nortear por caminhos próximos da leitura pós-estruturalista48.

Por outro lado, os anos 90 trazem uma percepção de que não somente há muitos espaços da
política, mas também se quer preservar alguns espaços da politização (e não simplesmente da
política convencional). Passados os anos de intensa mobilização seja em função da
consolidação de uma multipolaridade política e cultural onde os movimentos poderiam atuar, seja
em luta pela democratização do estado e da sociedade, no caso dos países latino-americanos,
os militantes vão se deparando com um duplo reconhecimento: (1) o de que a mudança seria de
mais longo prazo do que esperavam, e exigia outras estratégias que não a dedicação em tempo
integral, freqüentemente sublimando outras demandas pessoais em função do "projeto"; (2) o de
que se a política está em toda parte, nem tudo se reduz à lógica da política, especialmente não
ao ritmo estafante e ao estilo exposto da militância. Assim, sem terem que se tornar
conservadores, cínicos ou indiferentes, muitos militantes passaram a valorizar questões de
realização pessoal, ou diante das frustrações com os resultados pífios que a democratização
realmente existente proporcionou, investiram em maior profissionalização ou em projetos de
menor impacto ou custo.

47
Zaretsky resume o processo, para o contexto americano, dizendo que a nova forma de vida política que emergiu
nos anos 60, e que vem a ser chamada nos anos 80 de "política de identidade", "tinha duas características principais:
primeira, uma ênfase na diferença, ao invés da comunalidade; segundo, a comunidade de identidade local ou
particular - tal como o lesbianismo ou a comunidade afro-americana - era vista como o ponto central de identificação
do eu" (1995:198).
48
Conforme Zaretsky, “[o] pós-estruturalismo, portanto, contribuiu para a complicação da política de identidade pela
introdução do que é às vezes denominado de política da diferença, uma política que visa menos ao estabelecimento
de uma identidade viável para suas bases do que à desestabilização das identidades, uma política que evita termos
tais como grupos, direitos, valor, e sociedade em favor de termos tais como lugares, espaços, alteridade e posições
de sujeito, uma política que visa a descentrar ou subverter, ao invés de conquistar ou afirmar” (Zaretsky, 1995:200) -
representação comum das implicações da concepção desconstrutivista da identidade, cada vez mais retificada pelas
qualificações de autores afinados com ela, como o próprio Derrida, Laclau, etc.
Projeto ambíguo, pois ao mesmo tempo pretende resistir à operação de processos constitutivos
dos atores coletivos (identificação, relação com o Outro, deslocamento, antagonismo),
apostando numa certa condescendência do tempo, que voltaria a abrir portas de intervenção
política mais propicias, bem como numa esfera mais "tranqüila" de fruição comunitária que traga
compensações mais imediatas do que a promessa do gozo pleno numa sociedade totalmente
transformada. Ambíguo também, porque busca resguardar seja uma esfera da gratuidade que
não se pauta por uma economia do cálculo e da troca, isto é, do interesse; seja uma esfera da
intimidade e do fútil, não preocupada em produzir qualquer acréscimo de civilização ou de
mudança estrutural ou em se fixar na exposição da esfera pública, mas em
cultivar/aumentar/assegurar realização, felicidade e descanso do ativismo e da labuta diários.
Ora, este projeto de ampliação do não calculável e da intimidade pode sempre resvalar para a
perda do senso de ação pública ou para o recuo puro e simples em relação à mobilização e
participação coletivas, com implicações negativas para as lutas dos grupos subalternos contra o
arranjo de forças vigente. Nessas condições, exige-se uma grande sutileza no levantamento de
bandeiras de gratuidade e restrição do alcance da politização, de forma a assegurar que a
afirmação de uma pluralidade de dimensões ou lugares não redutíveis uns aos outros, mas
relativamente autônomos, não dê lugar ao encapsulamento destes espaços e à despolitização.

Os anos 90 também trazem a crise da crise dos movimentos, ou seja, uma outra maneira de
olhar para a contribuição destes últimos que não os mensura pelos parâmetros de uma
concepção unificada da política (isto é, estadocêntrica), nem do ator histórico hegelo-marxista (a
classe universal revolucionária). De qualquer forma, exige-se menos dos movimentos, sem
abandonar a perspectiva de que estes possuem, sim, um caráter transformador. Apenas a
mudança tem aqui um novo caráter, refletindo um diferente olhar sobre a sociedade e sobre a
capacidade dos atores sociais de encarnarem o princípio de universalidade que representa a
aspiração de mudança/crítica da ordem vigente (como vimos na última seção do capítulo
49
anterior) . Os movimentos sociais - e de resto, a ação coletiva - passam a ser vistos segundo
outros critérios:

Primeiro, o de sua pluralidade, ou seja, a observação trivial de que a ação social se faz a partir
de uma multiplicidade de agências. A diferença é que não se trata de mera constatação, depois
resolvível por meio de um esquema de identificação das demandas ou atores relevantes ou
principais, classificando as demais como acessórias e secundárias, e subordinando-as às
primeiras. Isto sempre se fez. Como agora já não se parte da idéia de sociedade como dotada
de um centro irradiador de efeitos ou uma topografia de níveis superpostos (infra/superestrutura),
as lutas adquirem especificidade e autonomia relativa, não podendo ser simplesmente resolvidas
por "encaixe" ou "rotulação"50.

Segundo, o de sua natureza compósita. Um ator coletivo se constitui pela demarcação de um


campo, em que uma série de relações estão implicadas. Há relações de antagonismo que são
responsáveis ao mesmo tempo pela borda, fronteira que é o máximo até onde o movimento pode
ir "sem deixar de ser o que é". Do lado de lá da fronteira está o outro, no sentido negativo (e
49
Para mencionar alguns trabalhos nesta perspectiva, v. Melucci, 1991; Doimo, 1995; Dagnino, 1994; Alvarez,
Dagnino e Escobar, 1996; Slater, 1994, 1996; Ottman, 1995; Burity, 1997c.
50
Kirstie McClure apresenta o paralelo desta perspectiva na tradição pluralista no mundo anglo-americano, a qual, em
suas diferentes encarnações (em torno da Primeira Guerra - Laski, Bentley -, depois nos anos 50/60 - Dahl, Truman -
e em meados dos anos 80 com Laclau e Mouffe), se opôs sempre a concepções unitárias, totalizantes do espaço
político, bem como à idéia de uma agência soberana unificada ou de leis/processos políticos e sociais de
determinação. Ela explica: "Esta oposição, além do mais, em todos os três casos, tem insistido na pluralidade
irredutível do social, especificamente enquanto ela se exprime na pluralidade ou multiplicidade de grupos sociais. Para
as três gerações pluralistas, entretanto, entende-se que a capacidade de aglutinação [valence] política desses grupos
não possui qualquer base ontológica necessária. Em outras palavras, eles não são uma expressão política de 'tipos
naturais' ou essências, mas surgem antes como entidades políticas contingentemente constituídas: isto é, emergem a
partir da dinâmica de lutas específicas oriundas do domínio do social, e são elaboradas como 'políticas' por um
processo de articulação" (1992:115). Trata-se de sujeitos sociais compósitos, lugares de pertencimentos ou
identidades múltiplas e intercruzadas, sendo o "sujeito de direitos" visto como cidadão de um estado apenas um e não
necessariamente o mais importante destes atores coletivos.
mesmo pejorativo) do termo, o inimigo, aquele ou aquilo cuja subsistência, vitalidade ou avanço
representa uma ameaça fundamental à identidade do ator em questão. Há também relações de
proximidade, definidas pelo conjunto de outros atores ou de discursos com os quais o ator e,
digamos assim, sua problemática, mantêm afinidades, por confluência ou por serem
diferencialmente afetados pelo outro. Estudar e compreender um ator coletivo, por exemplo, um
movimento social, requer que se recorte uma área de movimento, ou se reconstitua(m) a(s)
rede(s) de apoios que sustentam ou promovem a demanda ou problema em torno da/o qual se
institui o movimento.

Nessas áreas ou redes podem contar-se, conforme o caso, outros movimentos; organizações
profissionais, religiosas, culturais; partidos políticos; agências estatais; grupos informais, etc.,
que via de regra não estão presos à territorialidade do movimento e exercem efeitos sobre ele,
ao invés de meramente apoiá-lo subsidiariamente. O importante é que o ator nunca é um grupo
isolado, por mais forte ou representativo que seja do ponto de vista numérico. Em tempos de
retração política, marcado por uma retórica oca sobre a morte das ideologias e o primado da
eficiência e da racionalidade instrumental, nada mais contemporâneo do que o reconhecimento
da necessidade de desenvolverem-se formas de articulação por parte do campo dos movimentos
que possam reforçar o caráter político não somente das questões e repertórios de ação
mobilizados pelos movimentos, mas também dos próprios vínculos "técnicos" ou "instrumentais"
existentes entre os diferentes setores da sociedade e do estado.

O terceiro critério, relativo à experiência da identidade, o da hibridez da identidade do ator


coletivo, antítese da afirmação de identidade como pura expressão de um ser previamente
existente (real ou potencialmente, aguardando os meios de seu pleno desenvolvimento).
Definida relacionalmente, por um lado, e acumulando uma história de identificações passadas (o
que Freud chamara de "investimentos de objeto abandonados"), por outro, nenhuma identidade
pode jamais alegar ou (re)encontrar-se com a pureza da origem. Não há origem, mas traços de
traços; não há pureza, mas enxertos sobre enxertos. O espaço da ação coletiva, política como
cultural, torna-se, no dizer de Homi Bhabha, intersticial, um "in-between" produzido quer pela
reinscrição da tradição em cenários contemporâneos, quer pelo intercurso de experiências, falas
e corpos "pertencentes" a outras paragens, quer pela parcialidade das conquistas que foram
possíveis de alcançar. Um espaço, bem entendido, onde as coisas não se passam
pacificamente, sujeito a contestações e a conflitos e, pela sua "indefinição", sempre passíveis de
rejeição em nome de mais clareza e nitidez, mais incisividade e intransigência. O espaço
intersticial de identidades híbridas é terreno para os avanços numa sociedade pluralista como
também para os recuos das políticas fundamentalistas de identidade. Semente de convivência
plural, pode também desaguar no desatamento da agressividade e da intolerância 51.

Contemporaneamente, o hibridismo da identidade se conjuga a duas implicações, nem sempre


assumidas por todos os atores, mas reivindicadas por quantos insistem em articular toda esta
complexidade de remissões à problemática e experiência da democracia: o multiculturalismo e a
condição de diáspora/errância identitária.

A questão a que visa responder o multiculturalismo é a de como respeitar e legitimar a


especificidade das diferentes comunidades, étnicas ou culturais, abrindo-lhes espaços
diferenciados na sociedade e no estado, sem privar-se da possibilidade de uma certa
convivialidade social. O paradoxo do multiculturalismo é trabalhar com a afirmação simultânea da
radicalidade das diferenças e da ordem social como comunidade de iguais. Esta simultaneidade
é paradoxal porque uma lógica da pura diferença em princípio descartaria toda idéia de

51
De forma bastante concisa, Bhabha se interroga sobre estas possibilidades que espreitam as políticas de
identidade: "Como se formam sujeitos no interstício [in-between], ou em excesso, da soma das 'partes' da diferença
(geralmente soletradas como raça/classe/gênero, etc.)? Como vêm a ser formuladas estratégias de representação ou
de empowerment nas demandas concorrentes de comunidades onde, apesar de compartilharem histórias de privação
e discriminação, o intercâmbio de valores, significados e prioridades podem nem sempre ser colaborativos e
dialógicos, mas profundamente antagonísticos, conflituais e mesmo incomensuráveis?" (1994:2).
universalidade, mas pela mesma razão instauraria um agregado babélico que dificilmente se
sustentaria. O seu sucesso mais acabbado seria também seu fracasso mais retumbante.

A questão é enfrentada por Laclau em "Sujeito da Política, Política do Sujeito" (1997). Ele
argumenta que é duvidosa a perspectiva de sucesso desta formulação, mantida a oposição entre
particularismo e universalismo que anima em larga medida os discursos multiculturais. Primeiro,
a afirmação radical da legitimidade das diferenças não pode prescindir de um contexto pluralista
e de outras diferenças culturais, uma vez que nenhum grupo social situado numa comunidade
maior vive uma existência monádica. Segundo, se afirmar simplesmente o direito à diferença
implica em afirmar o direito de todo outro grupo a existir, sem que uns interfiram no jeito de ser
dos outros, então o resultado do multiculturalismo seria o sancionamento do status quo. Se,
entretanto, ao menos alguma(s) das demandas de um grupo forem compartilhadas por outro(s),
o que convenhamos freqüentemente ocorre, então há algo que impede tais grupos de serem
puramente diferentes dos demais.

Por isto, continua Laclau, todo grupo que tenta afirmar a sua identidade de forma inteiramente
distintiva ou contrastiva se depara com dois perigos, opostos mas simétricos: (1) ao afirmar sua
identidade tal qual ela já é, o grupo se condena à marginalidade, à folclorização ou a qualquer
que seja a situação em que se encontrar, uma vez que a economia das relações entre os grup os
seria regida por uma lógica puramente diferencial, não havendo o que atribuir a assimetrias de
poder; (2) ao se insurgir contra a sua situação e ir à luta, o grupo terá que atuar num terreno que
vai além dos limites de sua identidade, envolvendo outros grupos e instituições cujos recursos
suportam o status quo contra o qual lutam; assim, pode ocorrer que o grupo consiga transformar
as instituições vigentes ou que venha a ser cooptado por elas. Qual dos resultados prevalecerá
nunca se poderá dizer antecipadamente. Donde a conclusão de Laclau: "O que é certo, porém, é
que não existe qualquer mudança histórica de vulto em que não seja transformada a identidade
de todas as forças intervenientes. Não existe possibilidade de vitória em termos de uma
autenticidade cultural já adquirida. A crescente percepção deste fato explica a centralidade do
conceito de “hibridização” nos debates contemporâneos" (1997:12). E, mais adiante: "[a]
hibridização não é um fenômeno marginal, mas o próprio terreno em que as identidades políticas
contemporâneas são construídas" (idem:13).

Falar de multiculturalismo é falar, assim, do contexto social em que se coloca hoje a discussão
sobre a diversidade e o pluralismo (cultural, religioso, racial, de gênero, etc.), onde se destaca a
tendência ao aprofundamento das diferenças e das desigualdades entre comunidades
supostamente homogêneas ao mesmo tempo em que numerosos grupos excluídos encetam
uma caminhada de reconstrução de suas identidades (auto-asserção). Diferenciação interna que
acentua a hibridização e alarga a zona cinzenta da negociação da identidade: clivagens
generacionais, ideológicas, religiosas, políticas, de gênero, de renda e graus de acesso a
oportunidades e privilégios; encontros com indivíduos ou grupos de outras origens identitárias
com os quais se desenvolvem laços de identificação ou solidariedade ou se experimentam
sentimentos de rejeição ou reserva; apelos institucionais à uniformidade ou à paciência;
exposição às promessas e exigências do mercado.

Nesta direção, poder-se-ia falar do surgimento de uma situação multicultural quando a


coexistência de diferentes identidades ultrapassa o umbral da assimilação, da indiferença ou da
apartação e abre espaço para um contencioso onde se cobra reconhecimento das diferenças. A
criação de um espaço público em que a diferença cultural se torna reconhecida e onde se passa
a efetivar a negociação dessas diferenças (o que implica permanentemente em demandas,
pressões, conflitos, acordos e manobras) designaria uma política multicultural, onde a luta
hegemônica sublinhada por Laclau tem lugar.

Modificando-se ligeiramente a forma de colocar a questão, pode-se também dizer que a


hibridização - ao menos para os grupos subalternos - implica ainda numa experiência de
diáspora, de estar fora de lugar, des-locado, longe de casa. Em alguns casos, literalmente, por
conta dos fluxos migratórios que conduzem as pessoas de um lugar para outro em busca de
alternativas ou de melhores chances de sobrevivência ou sucesso.

A diáspora contemporânea, provindo de uma história de séculos, já não se limita, mas está
sempre associada a alguma forma de migração. A migração produz normalmente situações de
desenraizamento, estranhamento, confusão, angústia e pressões relativas à aquisição das
coordenadas culturais necessárias a fazer a "tradução" da vivência social e subjetiva de onde se
vem para o novo contexto onde se passa a ficar e vice-versa. A migração, seja espacial seja
existencial, instaura contextos de transição em que mesmo quando reafirmamos nossa
identidade original, o fazemos reinventando-a ou salvaguardando o que restou dela num tecido
que inclui marcas e apetrechos de diversos momentos da jornada.

Mas a diáspora não se conclui com a migração e a violência simbólica e física da "aculturação".
O seu elemento distintivo é precisamente a permanência de uma espécie de excedente que
resiste a toda tentativa de fazer-se em casa no novo contexto e de tornar-se um a mais entre os
outros. Excedente que relembra sempre a impossibilidade de total assimilação do modo de ser e
que pode ser vivenciado como vitimização - quando é justificativa para discriminação e exclusão
- ou como resistência - quando está associado à (re)asserção de um cerne do qual não se quer
abrir mão e que é motivo de orgulho, prazer ou força para sobreviver e reclamar inclusão 52.

Nesse caso, a diáspora vem sob a forma de uma errância em que ou se está aberto a mudanças
significativas de rumo ou se "vaga" insatisfeito pelas alternativas com as quais se cruza. A
errância como busca de algo (o falo, o objeto perdido) que nunca se apresenta ou se deixa
representar como tal, inteiramente, algo simultaneamente sedutor e evanescente, para sempre
recuando para um horizonte que nunca chega. Errância que produz efeitos contraditórios: a
angústia da desorientação, que oscila entre arroubos de tenacidade e depressão; o desespero
da entrega sem reservas a ela, uma espécie de salto no escuro da não-identidade, como no
caso da paciente histérica de Monique David-Ménard que mencionamos no primeiro capítulo
(seção 2); o paradoxo da existência bífida, entre o sim e o não, o desejo e a satisfação, opção a
um tempo resignada e rebelde; ou o recuo à autoridade e rotina tranquilizadora da tradição, da
autoridade, da força.

Os três critérios que analisei acima apontam para essa outra visão que questiona o discurso
sobre a crise dos movimentos, no que este tem de desencantado e histérico, sem deixar de levar
a sério as objeções levantadas por ele, uma vez que admite se tratarem de pontos em que a
identificação falhou e a distância entre a demanda e o desejo uma vez mais se apresentou. Não
se está argüindo que as diversas leituras enfeixadas nesta representação encontrem aí o seu
lugar sempre a partir da problemática da identificação. Antes, é ao tomar este significante como
ponto nodal de uma perspectiva do sujeito social como constitutivamente cindido, marcado pela
sua relação antagonística com um outro, e definido em função das questões e situações com
que se depara e dos outros sujeitos com que se relaciona, que se pode oferecer esta solução
hegemônica para o problema.

2. A formação de atores coletivos: uma narrativa dos caminhos da política no


Brasil pós-1974

Mudemos de terreno uma vez mais, e tracemos um quadro da ação coletiva no cenário politico-
social recente da democratização brasileira, de forma a ilustrar alguns dos pontos discutidos ao
longo do trabalho. Segundo o caminho seguido nos dois últimos capítulos, não se trata de fazer
uma psicanálise da ação coletiva no país, mas de trabalhar com conceitos que foram evoluindo
do diálogo com a psicanálise e que revolvem em torno das noções de deslocamento,
antagonismo, identificação imaginária, dialética entre demanda e desejo, caráter hegemônico do
processo de construção de um ator coletivo a partir de múltiplas identidades e formações
discursivas. Nos mantemos distantes, como na primeira parte do capítulo, só que mais ainda, do

52
Um vívido relato desta situação pode ser lido em Presmanes (1996:1-2).
estilo argumentativo, e nos lançamos num exercício que se não pretende ser "didático", assume
que o processo de designação concreta das categorias e procedimentos teoricamente
elaboradas se presta mais à narrativização do que à demonstração apodíctica de suas
"verdades"53.

A categoria de deslocamento é fundamental para a compreensão do processo político que se


abre com as iniciativas de abertura política, especialmente a partir de 1974. Inicialmente, ela se
aplica à identidade das chamadas forças populares do período pré-64. O golpe militar havia
impingido uma primeira derrota àqueles grupos, que selou o destino da alternativa populista, e a
repressão pós-AI-5 havia desbaratado a esquerda revolucionária (que vinha aos poucos se
descolando do campo comunista antes referenciado no PCB, já desde antes do golpe). Dupla
derrota que leva a esquerda a experimentar uma crise de identidade. Deslocamento, portanto,
ligado a uma derrota política para os setores conservadores, civis e militares, representantes de
uma alternativa tecnocrática e autoritária de modernização. O período militar representou ainda
uma outra fonte de deslocamento para a identidade dos grupos politicamente derrotados no
campo liberal e de esquerda, mas de efeitos mais amplos ainda. Trata-se do acelerado processo
de modernização capitalista do país, induzida a partir de uma aliança estratégica entre o estado
autoritário (seu núcleo militar e a burocracia civil) e setores do empresariado, que não somente
rompeu com a associação classicamente estabelecida na literatura liberal entre democracia e
modernização, mas acabou levando à emergência de novas categorias sociais, notadamente um
setor de ponta da classe trabalhadora, ligado à grande indústria.

Assim, temos não somente um outro cuja presença impunha constrangimentos ou ameaças
vitais para os chamados setores populares (o campo das oposições mais o das organizações e
movimentos sociais que sobreviveram à repressão, ainda que manietados a rígida censura e
intervenção), mas mudanças estruturais - na economia e na sociedade - que colocavam sérios
desafios para a identidade tradicional de liberais e esquerdas. Os anos 70 encontram as
oposições e a esquerda em desorientada busca de alternativas de recomposição, no momento
em que dificuldades de reprodução política do modelo (especialmente clivagens internas levando
a problemas sucessórios) e sinais de esgotamento do modelo de desenvolvimento acelerado
com endividamento externo (instados por fatores externos e internos) levam o regime a encetar
uma tentativa de auto-reforma. É neste momento que a "opção" pela exploração das
contradições do regime e ocupação dos estreitos espaços de participação política permitidos vai
levar a uma "descoberta" de que a vigência de uma democracia, mesmo na sua forma liberal
clássica, já representaria uma alternativa infinitamente mais promissora do que a reformulação
do modelo de modernização autoritária.

Do ponto de vista das oposições, a fronteira com o antagonista, o regime militar, já parecia
natural, dada a rígida repartição do espaço político que a ditadura impunha entre os seus
apoiadores e opositores. A representação dual daquele espaço aparecia assim como um dado.
Condições dadas para que a produtividade política de uma relação amigo/inimigo do tipo
schmittiano se colocasse. Como se constituía cada campo?

Ao contrário da leitura espontânea feita pela quase unanimidade dos atores, a associação entre
regime militar, efeitos perversos do modelo de desenvolvimento, incompetência gerencial sobre
as políticas estatais, corrupção política, manipulação eleitoral, insensibilidade social e
agravamento das condições de vida da população e tantos outros signos da negatividade, da
própria negação da ordem comunitária, nunca esteve ao abrigo de contra-evidências e contra-
argumentos. Foi um trabalho hegemônico "costurar" esta associação, até o ponto em que a
democracia proposta se definia por ser contra "tudo o que aí está".

Há uma óbvia relação imaginária em operação aqui, cujo efeito ao mesmo tempo dramatizava as
virtudes do lado de cá, dos democratas, dos perseguidos, dos descontentes, dos reprimidos e

53
Retomo nesta seção, reelaborando livremente, uma série de fragmentos narrativos de uma leitura dos anos 80
produzidos em diferentes oportunidades (cf. Burity, 1994; 1997a; 1997b) e acrescendo observações sobre os anos 90.
debitava na conta do regime toda sorte de dívidas e agravos que se pudesse associar com
aquele. O que seria talvez igualmente óbvio, mas jamais perceptível enquanto a relação dual
prevalecesse, era a relacionalidade entre a unidade das forças oposicionistas (construída por
uma cadeia de equivalências entre posições, grupos e discursos altamente diferentes seja na
sua forma seja no seu conteúdo, todos lançando ao regime demandas que não possuíam
qualquer unidade interna substantiva a não ser o seu impacto excessivo e potencialmente
desestabilizador sobre a capacidade de administração ou repressão do regime) e a unidade do
regime (construída sobre a "evidência" da ameaça subversiva como obstáculo à existência de
uma ordem como condição necessária para o progresso e como uma ardilosa teia de
contestação que poderia proceder de toda parte e desencadear um efeito dominó de
desestabilização da alternativa).

No limite, nenhum dos dois campos correspondia exatamente à representação que de si fazia o
inimigo. Mas cada parte tinha certeza de poder enumerar todos os indicadores que objetificavam
suas acusações à outra e simultaneamente produziam um efeito de solidez e inelutabilidade para
as soluções apresentadas por cada uma: não havia porque não recusar toda e qualquer iniciativa
do regime como irresponsável, equivocada ou manipulatória; não havia como não ler nas
manobras e falas da oposição (já, também, devidamente agrupada para representar "tudo o que
se insurge contra a ordem") o efeito desintegrador sorrateiro da subversão, do comunismo, da
anarquia, da negação da moral e dos bons costumes e dos fundamentos cristãos da sociedade
brasileira.

Neste contexto, tanto a emergência de uma dupla estratégia de encaminhamento da


democratização quanto de novos atores com o potencial de encarnar personagens
ansiosamente "esperados" no drama da história nacional vão contribuindo para construir uma
imagem unificada do sujeito da mudança política e social anti-autoritária - o povo brasileiro que
quer a democracia - mas já se defrontando com problemas identificatórios. Com a resposta de
certa maneira inesperada da população ao discurso oposicionista nas eleições de 1974 e 1978,
o projeto de auto-reforma do regime acaba ensejando uma oportunidade para um processo
menos previsível, mas que envolvia conversões estratégicas. Assim, a dupla estratégia dizia
respeito à via autonomista e à via transicional de ultrapassagem da ditadura. A primeira se
baseava no reconhecimento de que tinha que haver outros espaços a partir dos quais desferir
golpes às estruturas entrincheiradas do estado autoritário. Estes espaços tanto incluíam como
excediam o domínio institucional. Ou antes, era desde fora deste último que se podiam alargar
os espaços de intervenção e enfim derrotar o regime. Mas não havia muito como recusar a
participação institucional, já que eram diminutos os espaços sociais de mobilização aberta.
Mesmo no caso das greves operárias que levam à emergência do novo sindicalismo, havia uma
preocupação de dar densidade propriamente sindical - isto é, economico-corporativa - às
reivindicações, embora elas aí sofressem o efeito de sobredeterminação de toda luta particular
sob uma ordem autoritária: ela tem sua identidade dividida entre ser apenas uma reivindicação
concreta, pontual, e ser uma possibilidade ou exemplo de insubordinação contra a ordem e o
germe, catalisador ou estopim de uma nova ordem. Por exemplo, em condições de controle e
inibição à organização autônoma em relação ao padrão corporativista estatal de organização
sindical, quanto mais fossem "estritamente sindicais" as demandas por livre e direta negociação
entre trabalhadores e patrões, mais seriam percebidas como sutis formas de contestação.

A estratégia autonomista se subordinava a um cálculo (e um esforço construtivo que implicava


numa aposta) quanto à força da sociedade civil, pensada como o que sobrava ou se subtraía às
instituições referendadas pelo regime, para constituir-se numa alternativa desde fora ao regime,
uma democracia de base. E boa parte dos avanços que se foram consolidando neste campo -
seja no front sindical, seja no dos movimentos associativos, de raça, de gênero, e outros, se
deveram aos grupos referenciados nesta estratégia. Uma mudança na relação entre intelectuais
e política acompanhava a definição desta estratégia, com lições tiradas da linha gramsciana
(tanto no que esta tinha de leninista quanto de soreliano).
Os movimentos sociais são "descobertos" neste contexto e logo transformados no princípio etico-
político por excelência da estratégia autonomista: eles eram novos, reivindicativos, intransigentes
em suas demandas vis-à-vis os padrões transformistas clássicos da política brasileira, móveis e
"camaleônicos" o bastante para se adaptarem a circunstâncias diferentes. Em princípio, os
autonomistas não reconhecem seu papel articulatório, nem a pluralidade de agentes e
organizações que eram incluídos nesta definição de movimento social como um ator específico,
delimitável e identificável com a precisão de uma descrição fotográfica. Numa sociedade
"apática" ante a dureza da repressão ou da intimidação, a ousadia dos movimentos fazia
convergir para eles a grande esperança de uma nova irrupção das massas na cena política,
desta vez para derrotar uma ditadura militar e reinventar a própria (velha) esquerda em seu
discurso e práticas.

Nova classe operária, novos atores sociais, parcial descentramento da idéia tradicional de uma
"aliança operário-camponesa": o campo da democracia de base inclui setores da(s) igreja(s), da
imprensa liberal, da intelectualidade acadêmica, os estudantes, "os movimentos sociais", os
diversos partidos de esquerda que, desde inícios dos anos 80 já se faziam contar, tudo isto
somando-se aos "velhos" operários, trabalhadores rurais, partidos comunistas, etc. Um leque de
setores cuja unidade dependia, rigorosamente, da sintonia do regime com todos os efeitos
negativos do deslocamento produzido pela mudança na forma do estado e na configuração
economico-social moderna do país.

Esta estratégia, fica claro, não admitia a possibilidade de negociar uma saída do autoritarismo,
exceto pela derrota do bloco no poder e/ou tendo como interlocutores exclusivamente as forças
de oposição. Não se podia mudar o estado de dentro. A democracia emergiria como um projeto
integralmente alternativo, desde baixo, que excluía em princípio composições com o status quo.

A segunda estratégia desenvolveu-se à medida que se ampliou a ressonância institucional do


movimento de oposição. Com a manutenção ao nível formal do aparato representativo e da
escolha entre governo ou oposição - inovação dos militares brasileiros no contexto latino-
americano -, contra todos os casuísmos que só atestavam a perda de espaço político do regime,
acendeu-se a expectativa de uma transição pela via eleitoral que representava no fundo uma
opção não-autonomista. Não obstante a opinião disseminada - e, em larga medida, correta - de
que uma transição preservaria parte das instituições e/ou dos grupos de apoio ao autoritarismo,
lançava-se uma hipótese que expressava um saudável realismo: talvez este era a única saída
para os impasses previstos para uma estratégia puramente autonomista. A condição para que a
estratégia transicional não representasse uma solução no interesse da preservação do próprio
regime era que ela assumisse um compromisso duradouro com a reforma das instituições e o
resgate da dívida social acumulada por décadas de acumulação e desenvolvimento excludentes.

Um lugar subsidiária, se não instrumental, para os movimentos sociais; um horizonte temporal de


longo prazo (quase cúmplice da forma como o projeto de auto-reforma do regime se anunciara);
um encaminhamento que subordinava a lógica insurrecional e de pressão externa à uma de
representação e participação institucionalizada; uma lógica de alianças com setores
descontentes do bloco no poder com prioridade sobre a lógica da pressão sobre todo o bloco a
partir do campo estrito das oposições eram as consequências da via transicional.

O que vinculava todos estes grupos à democracia? Não um acordo substantivo quanto ao
conteúdo do termo, não uma unidade estratégica com vistas a sua consecução, não uma
homogeneidade de setores e grupos em sua composição. A identificação com a democracia se
dava a partir de investimentos objetais múltiplos - democracia como promessa de liberdade de
expressão religiosa, como liberação de costumes, como maior interação entre líderes e
liderados, como racionalização do processo político, como átrio da equalização de condições
(Tocqueville), como nome atualizado do socialismo, como perspectiva de dignidade humana dos
pobres, como fim da tortura, como pluralismo ideológico, como direito de reclamar e exigir sem
sofrer danos físicos ou morais, como possibilidade de nos alçarmos à modernidade e aos frutos
do desenvolvimento, como objeto de investigação dotado de referentes empíricos para além de
pretensões deontológicas - enfim, uma pletora de motivos, não inteiramente conciliáveis entre si
e mais ainda, até certo ponto unilaterais, ou seja, dispostos a interromper ou moderar o perfil
oposicionista tão logo suas demandas particulares fossem razoavelmente contempladas no novo
arranjo.

A democracia traduzia, assim, um assentimento geral (e eticamente vinculante para alguns


segmentos) em relação ao potencial e os limites da política nas sociedades contemporâneas,
quer dizer, o "fato" (somente patente para quem já o divisava no horizonte de sua adesão
democrática) de que nada pode ser legitimado caso não consiga o apoio (ou a não-oposição) da
maioria, por meio de regras e procedimentos previamente determinados; mas, por outro lado, o
"fato" (somente patente para quem já assumia o horizonte da via transicional), nenhuma
mudança abrupta, totalizante tampouco pode ser alcançada por meio dessas regras e
procedimentos. Em outras palavras a democracia teria que ser inscrita como um qualificativo da
transição, donde a frequência com que apareceram juntos: transição democrática, transição à
democracia.

O caráter barrado do outro em quem se projeta a resposta final para o furo do real não tardou a
ser percebido, primeiramente pelos autonomistas, depois pelos que de dentro da estratégia
transicional, permaneciam "exigentes" de maior "conteúdo" para as práticas e instituições da
nova democracia. A perpetuação e ampliação de espaço de velhos setores das elites
dominantes no novo pacto de poder, beneficiada pela "inocência" da retórica liberal-democrática
(diga-se de passagem, que boa parte do liberalismo que foi identificado como interlocutor da
esquerda transicional teve que ser literalmente inventado por esta, somente correspondendo
muito parcialmente a interlocutores reais), incompetência na condução da política econômica
(especialmente na luta contra a inflação e o deficit público), erros de avaliação política
(especialmente quanto à possibilidade de conter o lado conservador da aliança sob a hegemonia
da esquerda democrática), extrema timidez das iniciativas na área social, demagogia e mesmo
casos de corrupção no governo de transição foram dessublimando a aura da democracia
realmente existente.

Nem a via transicional era garantia de chegada à "democracia desejada", nem a construção da
"democracia necessária" coincidia naturalmente com as aspirações dos amplos segmentos da
população que transferiram à democracia sua aposta de realização coletiva e mesmo individual.
Um "excedente" de demandas e expectativas de gozo permanecia que implicava muito mais do
que a agenda da transição admitia e reavivava a promessa contrafactual da via autonomista:
agora era até possível redescrever a transição como uma continuidade do autoritarismo por
outros meios, e repetir insistentemente a proposta de uma alternativa "nítida", não pactuada com
as antigas elites, nem com seus novos aliados da antiga oposição. Assim é que nas eleições
presidenciais de 1989 como que se assiste a uma reinstauração do debate sobre as tarefas não
realizadas da transição. Um candidato inteiramente identificado com a via autonomista desponta
como a grande possibilidade de fazer-se o que deveria ter sido feito, principalmente na ausência
de qualquer candidato minimamente viável afinado com a via transicional. Capaz de interpelar
quase todo o campo do “novo” associado às mudanças econômicas, sociais e políticas das duas
décadas anteriores, Lula acenava com a possibilidade de se reeditar a fronteira do momento em
que nascera a transição, só que agora com “a gente certa do lado certo”.

Contudo, a via autonomista se deparava naquele momento, no auge de suas perspectivas de


vitória, com a crítica destruidora da “queda do muro”, signo da inviabilidade e do fracasso final,
repetiu-se maniacamente, do socialismo e de qualquer proposta de esquerda. A crítica ao estado
intervencionista e ineficiente costurou num só tecido velhos fantasmas da política brasileira (o
estatismo corporativista, o patrimonialismo e o paternalismo da legislação social e trabalhista) às
alternativas ao capitalismo, agora vistas como historicamente ultrapassadas - a social-
democracia se enredara na chamada crise fiscal; o socialismo simplesmente começava a
desmoronar. Por mais que o discurso da esquerda autonomista tivesse insistentemente - e bem
antes das eleições - se demarcado de e criticado abertamente o socialismo burocratizado
realmente existente, o efeito de atrelamento daquela a este amplo campo da “presença indevida”
do estado na (auto)regulação social foi fortíssimo. E, finalmente, o momento serviu para
despertar na esquerda o reconhecimento de que o raio de abrangência dos setores organizados
e politicamente ativos da sociedade era muitíssimo menor que se acreditava: as grandes massas
passavam ao largo da interpelação do discurso autonomista. Não obstante um segmento
bastante representativo do eleitorado ter respondido positivamente ao chamado de um novo
projeto de democratização para o país, quase igualmente resignou-se ao estilo presunçoso e
espetacular do candidato finalmente eleito. A esquerda autonomista adentra os anos 90 numa
crise de tal profundidade que nem mesmo o afastamento de Collor em 1992 foi capaz de
interromper o ciclo de desestruturação que se abrira com a derrota eleitoral de 1989.

Os efeitos desmoralizantes da derrota de 89 também atingiram de cheio os movimentos sociais e


o setor da intelectualidade que nele depositara suas esperanças. No caso dos movimentos, a
repentina perda de plausibilidade de uma alternativa rupturista - pela pequena ressonância de
massas, pela dissolução dos referenciais concretos (por criticados que fossem, “estavam lá”,
exibiam a força de uma evidência), pela verdadeira barreira anti-participacionista que a nova
conjuntura política passou a assumir - os desorientou. Perderam em capacidade de mobilização,
seu repertório de ações aparentemente se esgotou, seu “projeto” como que se desfazia no ar.

Na academia, a "crise dos paradigmas" acompanhou a crise de militância de muitos intelectuais.


Com exceção dos economistas, que continuaram a ter e aspirar a uma função pivô no novo
arranjo, uma significativa parcela dos intelectuais não só descobriram outros espaços de
investigação e de articulação social e política, como assumiram um perceptível distanciamento
vis-à-vis o estado e as coisas da política, bem como vis-à-vis os movimentos. Outros objetos de
sedução ou a melancolia da perda do objeto mudança-radical passaram a animar novas
estratégias intelectuais das quais a profissionalização foi um dos efeitos perceptíveis.

No campo popular, as organizações não-governamentais credenciam-se cada vez mais a


liderarem o processo de interlocução com o estado, nos seus diversos níveis, mas
principalmente no nível local. Dotadas de uma competência técnica, uma estrutura ágil (apesar
de ter sido atingida por inúmeros processos de downsizing decorrentes da redução do apoio
financeiro da cooperação internacional) e um senso de ação que não operava com categorias de
totalidade como critério fundamental, as ONGs mostraram-se ao mesmo tempo focadas e
flexíveis ou pragmáticas o bastante para assumirem uma identidade própria de “ator político”, em
relação a sua auto-imagem anterior, de estruturas “a serviço do movimento popular”. No campo
das ONGs, o cruzamento da crise ideológica, da crise de mobilização e da crise de paradigmas
analíticos se deu talvez muito mais intensamente do que em outros setores do campo “de base”,
principalmente por ser aí um processo reflexivamente provocado.

É importante perceber como esta desmontagem ao mesmo tempo tão extensiva e tão intrigante -
pois a sua necessidade está longe de se demonstrar por si só - exprime um abalo sísmico na
hegemonia ainda exercida pelo campo da (centro-)esquerda (em inteira desproporção ao seu
número) no cenário político-cultural do país, anunciando uma nova configuração político-
ideológica sob hegemonia liberal-conservadora. O novo ponto de condensação da ordem
exorbitou e transtornou os eixos de referência das identidades que gravitavam em torno da
esquerda, dispersando-as para se rearticularem segundo novos critérios ou a novos
parceiros. É este o momento das “surpresas”, quando se vai descobrindo - muitas vezes a
contragosto - que antigos companheiros de luta se bandeiam para o lado do “adversário”, ou
caem no cinismo, no ceticismo, na indiferença. Quando se percebe que bandeiras tão
rigorosamente justas são facilmente rechaçadas pelo retorno de um discurso da carência,
escassez ou indisponibilidade de recursos, necessidade de racionalização ou priorização de
certos cursos de ação sobre outros, ou simplesmente descartadas por terem “envelhecido” ou
perdido apelo de massa, por não “venderem” mais...

Pode-se compreender por quê, no caso, todos os esforços de recomposição do campo popular,
todos os sinais ou experiências bem sucedidas de alternativas à doxa vigente são ignorados ou
lançados na vala comum das exceções ou dos casos “interessantes” a serem replicados,
reproduzidos em escala, numa variedade de outros contextos, pela mão de outros sujeitos e
articulados a outros sistemas de referência (valores, modelos, estratégias, etc.). O efeito
ideológico de reiteração da naturalidade e da pura facticidade das coisas - “só um louco não vê
que é assim”, ou “todos sabem que”, ou “não há como não admitir que” - acompanha toda
hegemonia e transforma-a igualmente num regime de verdade. Ante a fortaleza de suas
evidências uma formação hegemônica busca reduzir toda oposição a um desvio ou quimera. Aos
olhos de quem se encontra sob o regime de verdade hegemônico, as alternativas apresentadas
não somente soam, como literalmente são, improváveis, desarticuladas e equivocadas. É
somente um contexto de deslocamento da identidade hegemônica que permite dar alguma
plausibilidade à proposta mítica que provém dos antagonistas à ordem vigente. Isto se viu por
diversas vezes na política nacional recente - e resultou em oscilações da opinião pública ou do
eleitorado com efeitos concretos sobre projetos políticos ou políticas públicas.

Outra possibilidade aberta pelo afrouxamento do vínculo antes exercido pela imagem do campo
democrático como incluindo todas as posturas anti-autoritárias, liberando as identidades para se
rearticularem segundo outros critérios, tem a ver com a banalização de certas bandeiras -
temas ou recursos estratégicos - que se desgastam e se privam de vínculos com os conteúdos
originariamente associados a elas. Tome-se os exemplos da idéia de alianças ou composições
de frentes políticas, no âmbito da política institucional, ou da idéia de parceria entre diferentes
atores sociais na implementação de objetivos sociais.

No caso das alianças, sua produtividade retratava uma série de conclusões estratégicas a que
tinham chegado os setores oposicionistas nos últimos anos do regime militar. Primeiro, o duplo
reconhecimento de que não se tinha forças para avançar sozinho - uma vez que a crise do
regime não se manifestava como perda de sua capacidade repressiva, mas decorria da sua
perda de capacidade de se legitimar por meio da performance econômica e do acirramento de
divergências internas quanto o caminho a seguir (incluindo-se o problema da sucessão) - e de
que era possível explorar essas divergências internas em benefício da democratização.
Segundo, uma idéia mais sofisticada da multipolaridade do processo de mudança política, que
levava a admitir que interesses distintos pudessem compartilhar uma série de elementos comuns
seja quanto aos meios de que se utilizarem para realizá-los, seja quanto à expectativa positiva
de que a ampla vigência democrática proporcionaria um medium mais favorável à consecução
de cada objetivo. Não era preciso, portanto, concordância em tudo, só se precisava assumir
cuidados em relação a quem teria a hegemonia do processo. Terceiro, uma percepção de que a
política nunca se dá entre atores homogêneos e radicalmente distintos entre si, mas no espaço
de negociação que os diferentes atores definem. As alianças, então decorreriam do fato de que
não existe política de classe em sentido estrito, nem qualquer ator sozinho pode realizar
integralmente o seu projeto sem minimamente alterar sua formulação original, seja porque
necessita de apoios e alianças para conseguir a hegemonia, seja porque esbarra na resistência
de outros cujos objetivos lhe são contrários.

Não há, porém, nenhuma garantia de que a costura de uma aliança se configure numa
articulação - entendendo a primeira como um arranjo de forças distintas fundado numa lógica
instrumental, e a segunda uma composição de caráter mais orgânico, mas na qual a identidade
de cada elemento muda decorrentemente. Em outras palavras, não há garantia de que os
grupos ou objetivos “menores” não acabem tendo um peso desproporcional no interior do
arranjo, descentrando-o sistematicamente e desfigurando, a médio ou longo prazo, sua armação
inicial ou seu projeto. Não há garantia de que, pela pressão dos antagonistas, o ator ou projeto
hegemônico não se defronte com a impossibilidade de realizar-se ou mesmo seja induzido a
decisões que o transfigurem ao ponto de torná-lo irreconhecível.

Efetivamente, a política de alianças, no plano político-institucional, efetivada pelos setores de


centro-esquerda e esquerda que compunham o campo das oposições veio, desde então dando
mostras de enfrentar todos estes problemas. Primeiramente, triunfou a perspectiva instrumental
das alianças sobre a “orgânica” das articulações. Isto ensejou uma frouxidão nos critérios de
interpelação e associação que acabou colocando a viabilidade eleitoral como pedra de toque e
teste de consistência das pretensões hegemônicas. No limite, chega-se a uma elasticidade
indefinida para aceitar adesões, ao contrário da lógica da articulação, que assume a
necessidade de mudanças na identidade dos “aliados” como condição ou consequência da
construção do ator coletivo que encabeça o projeto. Dificilmente, esta lógica da aliança escapa
hoje à acusação de puro e simples oportunismo.

O caso da parceria não é menos ilustrativo, embora cumpra que sejamos mais breve a esse
respeito. São conhecidas as dificuldades de reunir recursos materiais e humanos para a hercúlea
tarefa de enfrentar a dívida social que condena milhões de pessoas à pobreza e à falta de
perspectivas. Não é possível esperar-se do estado que assuma todos estes custos,
principalmente à luz do esgotamento do modelo de intervenção estatal vigente no país até
meados dos anos 80. Tampouco pode-se esperar que a boa vontade política de elites
historicamente (e isto se estende ao momento do hoje) descomprometidas com a implementação
de políticas sociais responsáveis e agressivas. Assim, surgem duas frentes para se tentar
remediar a gravidade dos problemas, uma referenciada na iniciativa estatal, outra na iniciativa da
sociedade civil, mas em diversos casos convergindo para um campo que nem é estatal, nem
privado, mas é público. Ambas revolvem em torno das idéias de parceria e solidariedade.

No caso da iniciativa estatal, o exemplo da política social do atual governo é eloqüente.


Claramente comprometido com outras prioridades quase todo o tempo do mandato, o governo
lançou através do programa Comunidade Solidária a bandeira da parceria entre a sociedade, o
governo e a iniciativa privada como forma de contornar a “ausência” de recursos que, dada a
clamorosa urgência da situação, poderia inviabilizar a legitimidade do governo. As formas e os
critérios desta parceria são amplos o bastante para não se cobrar grandes compromissos mútuos
em torno de objetivos e valores concretos. Aparentemente, “solidariedade” é o único significante
que amarra a disparidade de posições de sujeito representadas ou interpeladas pelo programa.
Um dos efeitos dignos de nota desta tendência é o da despolitização das iniciativas de política
social, de forma que a pura filantropia ascende ao mesmo patamar das propostas de trabalho e
mobilização comunitária. Obviamente, não se pode fazer mobilização social de famintos, doentes
e moribundos. A filantropia, o assistencialismo têm, pois, um lugar emergencial inquestionável
(genial e corajosamente percebido no âmbito da sociedade civil, com a Ação da Cidadania contra
a Fome, a Miséria e pela Vida). O que espanta, no entanto, é a intangibilidade do momento em
que se passará da mera provisão à discussão, mobilização coletiva e formulação de políticas que
abalem o status quo da distribuição de renda e do acesso a direitos básicos de cidadania
fundados na justiça e na equidade.

No caso da iniciativa social, a questão da parceria já se coloca nos anos 80 e tem nas ONGs seu
principal locus. É por meio delas que o termo, oriundo do vocabulário da cooperação
internacional (“partnership”), passa a circular no discurso da militância social, para significar uma
forma de relação entre diferentes que não se baseia na assimetria dos recursos (materiais,
humanos, de poder ou simbólicos) originalmente possuídos por cada parte, mas num tratamento
mútuo em pé de igualdade. Não apenas isto, mas a parceria implica algo mais do que realizar
ações conjuntas, exigindo a discussão de meios e fins. A parceria demanda propriamente o que
chamei acima de articulação (novamente, não é acidental que este termo também tenha se
popularizado a partir do jargão das ONGs). Ela certamente implica no reconhecimento de que
não se pode fazer sozinho ou de que o adversário é muito poderoso para ser derrotado sem uma
ação concertada - como no caso da iniciativa estatal. Mas também exige compromissos dos mais
fortes no interior do campo articulatório de respeitar as diferenças e abrir espaço para sua efetiva
expressão e consideração no momento de definir ou executar os cursos de ação necessários.

Tudo o que foi dito nesta seção, aparentemente tão sem conexão com a teorização proposta nos
capítulos anteriores, vai na direção de ressaltar os efeitos analíticos que uma perspectiva como a
sugerida neste trabalho enseja na análise política concreta. O caráter descentrado das
identidades emerge na narrativa como deslocamento, como incompletude e contingência na
formação e no transcurso da ação coletiva, como incapacidade de constituição de um ator
unificado e homogêneo (ou de sua existência previamente às alianças ou articulações), como
fracasso último de toda proposta de estabilização/completude de uma forma de ação coletiva. O
processo identificatório emerge nas tentativas de contornar os desafios, impasses ou ameaças
do antagonismo, da presença do Outro que acena com respostas e soluções para os problemas
não resolvidos ou remanescentes de outras tentativas de ordenação, da pluralidade de visões e
alternativas com que se confrontam (e, em larga medida, têm que negociar) os atores. A
dimensão simbólica - ou sobredeterminada - da atuação social e política, que requer atenção
para os jogos de linguagem em torno dos quais o desejado e o possível têm seus limites
definidos. Cada uma dessas situações se liga a questões políticas com as quais se associam as
categorias de ordem, projeto, hegemonia, participação, articulação, mudança. Minha expectativa
é de que, via outro “estilo” de exposição, as questões colocadas nestes últimos termos, no
decorrer do trabalho, tenham cobrado a vivacidade ou a concretude que as remissões narrativas
à história vivida prometem (e nem sempre cumprem!) assegurar.
CONCLUSÃO

Busquei, ao longo deste percurso, explorar a produtividade da categoria da identificação, tal


como é construída no discursos psicanalítico, para a análise dos problemas da agência/ação
coletiva neste fim de século marcado pela experiência de uma crise de proporções indefinidas.
Obviamente, em cada campo a crise abarca limites conhecidos, não sendo via de regra uma
incógnita. Mas o que a torna indefinida é que, apesar de escutarmos uma miríade de falas de
quem se vê em crise ou a observa em/desde algum lugar, não conseguimos formar dela
nenhuma imagem nítida e harmoniosa (se é que se pode falar isto de uma crise). Há demasiadas
crises e definições de crises para nos permitir um quadro único ... e não obstante a crise se
experimenta em toda parte. Mesmo ali onde se parece não ser afetado pelos seus efeitos
desestruturadores.

Minha investigação não pretendeu resolver todos os problemas com que se defrontam os atores
sociais pela introdução de mais esta variável. O que quis realçar foi antes a possibilidade de sair
da paralisia dos discursos sobre a morte do sujeito sem ter que abraçar a euforia do retorno ao
sujeito livre, soberano e maximizador do liberalismo. Insatisfeito com estas alternativas, fui
buscar - e quão enganosa é esta primeira pessoa! - em alguns dos discursos que vêm pensando
a problemática do sujeito recursos para pensar uma saída para este momento "pós" que nos
atormenta como um enigma. Ciente de alguns outros debates ora em curso - mas de forma
alguma recém iniciados - sobre questões relativas ao saber e ao poder, assumi distância da
pretensão de transformar a psicanálise num novo fundamento para o discurso sobre o(s)
sujeito(s) social(is). E isto seja devido à historicidade e limites do próprio discurso analítico, seja
devido à particularidade do seu ponto de vista face a outras portas de entrada a este labirinto
que nos é a experiência da contemporaneidade.

Sendo assim, foi necessário não somente explicitar a concepção psicanalítica da subjetividade,
mas por em discussão os vínculos entre psicanálise e política e as "extensões" da problemática
da identificação para uma leitura da ação política na contemporaneidade que, por fim, já terá
podido lançar fora a escada em que subiu (como sugeria Wittgenstein se fizesse com seus
conceitos e argumentos) sem precisar negar a contribuição inestimável que dela recebeu.

Duas possibilidades se abrem, no campo das relações entre psicanálise e política para proceder
a um tal exercício de interpretação "aplicado". A primeira seria por o foco na dimensão da
singularidade e explorar a dinâmica das identificações conducente à formação de um ator
coletivo com base nos investimentos de objeto de diferentes indivíduos, à maneira da análise
realizada por Freud, por exemplo, em Psicologia de Massas. A segunda alternativa é, através de
um trabalho de reconstrução analítica, "passar" dos conceitos psicanalíticos aos políticos e vice-
versa, transgredindo a pretensão de possuírem um sentido preciso e estável a ser "negociado"
naquilo que não for essencial, no ato de serem "aplicados". Neste caso, o conteúdo "apropriado"
dos conceitos em ambos os campos é subvertido, por meio de uma série de intervenções que
vão reconstituindo a uns e outros até chegar a um outro lugar que nem corresponde ao solo
pátrio dos conceitos na psicanálise nem na ciência política. Foi este segundo percurso que se
seguiu privilegiadamente neste trabalho. Não que o primeiro seja descabido, mas corre o risco
de reduzir-se a uma espécie de aventura pelo território do outro, com a certeza de poder voltar
na hora em que as dificuldades ou o desconhecido surgirem. O segundo não corre menos o
risco, mas assume-o como sendo parte integrante da viagem e prenúncio de possíveis "extravios
de correspondência".

O resultado é um terceiro campo, resultado do processo articulatório, onde já não se tem


"exatamente" nem a psicanálise nem a política, mas uma politização dos conceitos psicanalíticos
e uma psicanalização dos conceitos políticos. Bi-referencialidade que não se basta, que não diz
tudo e que, no limite, perde de vista o que a outros olhares pareceria "essencial". Menos mal. Um
diálogo nunca esgota qualquer assunto, mesmo. E sabemos bem sobre quantas coisas
transitamos numa boa conversa e por quão pouco tempo nos detemos na exploração de
nuanças e impasses. Eu sei que o discurso acadêmico pretende ser exigente e até mesmo
exaustivo. Não foi este o espírito desta exploração. Ela terá valido se puder ser apreciada em si
mesma, pelo que lança luz numa zona qualquer cinzenta ou obscura de nossas observações, e
não pelo que deixou de incluir ou desdobrar. Também se sabe bem que quanto mais
interlocutores se acercarem de uma conversa, mais inconclusa e não necessariamente menos
parcial ela se tornará. O terceiro campo aqui postulado não é o novo território em que afinal
podemos descobrir a pedra filosofal.

Na consideração do legado psicanalítico, vis-à-vis a política, percebe-se de saída um ponto de


contato e outro de afastamento com esta última. Uma representação tradicional da política anima
a leitura freudiana, que se erige sobre matriz hobbesiana, situando a política no interregno entre
o narcisismo e a guerra. Se isto, por um lado, pode ser apropriado na medida em que remete à
necessidade de que os indivíduos abram mão de suas pretensões de diferença radical em
função da sobrevivência de todos (remetendo-nos a certo debate contemporâneo sobre o
pluralismo das diferenças), por outro lado, se funda numa visão centrada e homogênea da
política, para a qual, no dizer de Birman, “a pulsão de vida ordenaria o campo do poder como
uma figura construída em torno de um centro, mediante o qual se propõe um projeto
identificatório para as individualidades dispersas nas suas diferenças radicais. Com isto, a pulsão
de vida transformaria a dispersão em unidade, constituindo uma massa, pela constituição de
traços comuns entre as singularidades, mediante o ideal identificatório enunciado” (1995:61).

Ora, a idéia da política tendo lugar num centro/como um centro, seja ele ocupado/representado
pela figura do líder ou do governante, seja pelo Estado, é precisamente o que, desde fins dos
anos 60 vem sendo insistentemente posta em questão na teoria e na prática das sociedades
ocidentais. O centro-em-falta, multiplicado e intotalizável (cf. Derrida, 1967) passa a compor uma
representação da política que reclamaria outra articulação do discurso psicanalítico. Nesta,
destacam-se três pontos: (1) a dispersão existe sempre apenas em relação a uma estrutura em
vias de descentramento, nunca havendo diferenças puras previamente a sua unificação integral
(forçada) a um projeto identificatório; (2) a unidade é sempre parcial e contextual, e contudo
indispensável, sendo não somente uma fonte de mal-estar/desajuste social, mas também uma
condição de bem-estar; (3) o discurso clássico da psicanálise não se dá os meios de imaginar
uma configuração política em que o narcisismo das pequenas diferenças encontraria condições
relativas de institucionalização por meio de uma política da diferença e da hegemonia.

Uma coisa é dizer que a ordem política pode ser sempre e a qualquer momento questionada
pelas insatisfações pulsionais das massas (Birman, 1995:62). Outra é dizer que tal ordem é
centrada e que a política - ou o campo do poder - é o que inclui os indivíduos dispersos num
projeto identificatório único (estatal). Se ambas as afirmações são leituras legítimas do legado
freudiano, somente a primeira pode ser mantida nas condições contemporâneas. A figura
freudiana do pai como representante da lei, como responsável pela realização da justiça e a
distribuição equitativa dos prazeres entre os filhos se coaduna à imagem uniforme e centrada do
poder político até meados deste século, mas precisa ser pelo menos relativizada ante o
descentramento da esfera pública do estado para múltiplos centros, espaços públicos não-
estatais (seja na imagem clássica da sociedade civil, seja na mais recente do “terceiro setor”), em
que os projetos identificatórios são plurais e parciais, sendo o desafio não sujeitar-se ou não a
um deles, mas como administrar o pertencimento a vários deles, como dividir bem as lealdades.

Marcada a distância relativa que nos separa da concepção da política com que trabalha o
discurso clássico da psicanálise, nosso esforço foi no sentido de investigar a relação da
psicanálise com a questão da identidade de forma a por em foco nosso problema básico:
interrogar a capacidade do conceito de identificação em dar conta do caráter compósito,
articulado e contingente dos atores coletivos na cena política contemporânea. O resultado da
incursão poderia ser resumido nas seguintes proposições:
O sujeito não é um ente acabado, que penetra no espaço social para aí expressar uma
identidade; tampouco é um ser unificado, igual a si mesmo, que se acerca dos demais para
"trocar" pensamentos e energias.

O sujeito só emerge na e pela ordem simbólica (linguagem, cultura, tradição), por meio da
fixação de/a um significante e, a partir deste, a construção retroativa do que é. É na ordem
simbólica que o sujeito se fixa a um significante (não somente nem definitivamente um, é
certo), que o representará para outro significante (representante de um outro sujeito, etc.).

Esta fixação à ordem simbólica representa um corte na expectativa de plena realização do


sujeito (quando este ainda não o era), instaurando uma deriva de identificações imaginárias
com objetos substitutivos da Coisa ou do Falo perdidos. O sujeito busca no Imaginário a
resposta para sua falta de ser. Dialética desejo/satisfação.

Mas como a linguagem se faz apenas com diferenças (significantes) e não com substâncias
(significados), a verdade/sentido do sujeito não está lá tampouco. A falha não está só do lado
do sujeito, mas ele em princípio entende que apenas se equivocou na sua escolha de objeto e
vai adiante no jogo das identificações.

Com isto a identidade do sujeito nunca está dada ou completa, é um precipitado de


identificações que se foram acumulando ou substituindo ao longo de sua história;

A identificação, por outro lado, não é mera impossibilidade de sentido. Existe fixação, embora
parcial e contingente, em torno de pontos nodais.

O ator coletivo é uma representação sincrônica desta "história de investimentos de objeto


abandonados" e de práticas identificatórias pelas quais significantes vão se tornando pontos
de articulação, ancoragem, de uma variedade de demandas e aspirações. Determinado, além
do mais, por condições histórico-sociais concretas, a abrangência e eficácia da articulação
produzida no processo de surgimento de um ator coletivo nunca está garantida pela origem
de seu núcleo articulador (seja sua posição estrutural, seja a honestidade de seus princípios),
mas é em larga medida função de escolhas ou decisões que anunciam o lugar e o momento
do sujeito em meio às redes de conexões e determinações parciais que constituem o
momento estabilizado e instituído da dinâmica social e política. Decisões que implicam na
exclusão de alternativas ou não conseguem abarcar tudo o que pretendiam e se sujeitam,
então, ao questionamento do outro ou aos impasses de sua própria incompletude.

Contemporaneamente, a questão da identificação aponta para formas de construção de atores


coletivos que não fazem dissolver as diferenças num todo homogêneo, ou as subordinam a um
projeto maior, mas visam a desbastar uma trilha em que um conjunto de demandas por
reconhecimento e legitimidade se somam a outras por satisfação de carências (materiais ou
não). Quando menos, esses atores resistem a ceder quanto à singularidade de suas demandas
ou da forma como entendem que devam ser tratadas e encaminhadas. Isto independe de se o
sentido da ação coletiva é “progressista” ou “reacionário”. Trata-se mais de um sentimento de
que o todo, o universal, o geral, tem que de certa forma dobrar-se à refratariedade do pequeno,
do parcial, do específico, sob pena de tornar-se uma camisa de força ou de promover uma
integração demagógica das demandas, sem consequências reais para os grupos que se vêem
nelas representados.

Como vimos, a plausibilidade desta compreensão se explicitou tanto na “experiência da crise”


como na emergência dos movimentos sociais pós-68. A partir deles e deste seu rebento já
devidamente desmamado que são as organizações não-governamentais esta simultaneidade da
demanda identitária, das práticas identificatórias e das reivindicações coletivas penetra de uma
vez o campo do debate político. Fazer política desde então implica em construir um espaço para
a validação ou reconhecimento de uma demanda, fazê-lo de forma a que esta decorra de um
modo de vida referido a uma comunidade determinada e conceber esta última como um terreno
múltiplo, onde distintos agrupamentos interagem. Fazer política desde então implica em se
assumir a possibilidade de mudanças ao mesmo tempo substantivas e parciais e a necessidade
de uma pluralidade de esferas públicas (em relação ao Estado como ponto único de
convergência da sociabilidade), dotadas de lógicas próprias, mas intercomunicáveis. Embora
esta comunicação nunca seja unívoca, precisando de traduções e de esforços de "síntese"
(hegemonizações), ela enseja aproximações do que pareceria incomunicável, ainda que
somente por um momento e por instrumental que seja a motivação.

O horror com que nossos contemporâneos tomam conhecimento ou se acercam da alteridade -


seja a que os constitui como seres inacabados seja a que os confronta com demandas
"excessivas" - expõe dramaticamente o caráter provocativo das posições psicanalíticas sobre a
identificação. A proximidade do outro se torna fonte de desconforto - desorientação quanto a
quem somos e o que queremos realmente - e de medo/repúdio - a chegada do outro pode ser o
nosso fim! O fascínio com que outros tantos dentre nós recebemos este chamado do outro
denuncia a falsa expectativa de que a proximidade do outro nos seria benfazeja e gratificante.
Despojados de preconceitos e de falsos temores e certezas, poderíamos nos encontrar com a
alteridade e nos aventurar pelos novos caminhos a que ela nos atrair. Como no primeiro caso,
porém, e por motivos opostos, lançar-nos nos braços do outro também pode ser nosso fim. Em
ambos os casos, a sociologização precoce dos nossos fantasmas ou dos nossos devaneios - ou
seja, a convicção de que a eles correspondem entes ou situações objetivos - nos joga na
condenação ou na exaltação inadvertidas de nossa identidade ou da do outro. Se nem sempre
nos damos conta de ou conseguimos resistir a isto, é porque, como suspeita a psicanálise, o
território da constituição e mutação do sujeito não é o do si-próprio, estabilizado, familiar e sob
controle. Se, por outro lado, isto não corresponde a um destino inelutável, a uma rendição ao
outro, a uma reiteração naturalista de fases num drama psicogenético do sujeito humano, é
porque o terreno da constituição e mutação do sujeito é político, se faz com pretensões de
domínio e mitos de recuperação do paraíso perdido que se substituem sem cessar, na saga
desta busca que nos consome ... e não sem boas razões.
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