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Referência bibliográfica:
FOUCAULT. Michel. Nascimento da biopolítica: Curso no Collège de France (1978-1979). Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.
Gostaria de me situar mais ou menos nessa época [século XVIII], e aí creio que
somos obrigados a constatar uma transformação importante que vai, a meu ver,
caracterizar de modo geral o que poderíamos chamar de razão governamental
modema. Em que consiste essa transformação? Pois bem, numa palavra, ela
consiste na instauração de urn princípio de limitação da arte de governar que já
Razão governamental não seja extrínseco como era o direito no século XVII, [mas] que vai ser
Conexões intrínseco a ela. Regulação interna da racionalidade governamental. (p. 14)
01 moderna e princípio de
entre o arquivo
fev. autolimitação da arte 0 que permitiu a sua emergência, como é que isso se deu? (p. 18)
e o presente
de governo Pois bem, é essa, a meu ver, a questão na autolimitação pelo princípio da
verdade, é essa a formidável cunha que a economia política introduziu na
presunção indefinida do Estado de polícia. Momento evidentemente capital já
que se estabelece em seus lineamentos mais importantes, não, é claro, o reinado
da verdade na política, mas certo regime de verdade que é característico
precisamente do que poderíamos chamar de era da política, cujo dispositivo
básico continua, em suma, sendo o mesmo ainda hoje. (p. 24)
Afinal de contas, foi esse mesmo problema que eu me coloquei a propósito da
loucura, a propósito da doença, a propósito da delinquência e a propósito da
sexualidade. Em todos esses casos, não se trata de mostrar como esses objetos
ficaram por muito tempo ocultos, antes de ser enfim descobertos, não se trata
de mostrar como todos esses objetos não são mais que torpes ilusões ou
produtos ideológicos a serem dissipados a [luz] da razão que enfim atingiu seu
zênite. Trata-se de mostrar por que interferências todas uma serie de práticas -
a partir do momento em que são coordenadas a um regime de verdade -, por
que interferências essa série de práticas podem fazer que o que não existe (a
loucura, a doença, a delinquência, a sexualidade, etc.) se tornasse porém uma
Digressões coisa, uma coisa que no entanto continuava não existindo. Ou seja, não [como]
Série de práticas/ um erro – quando digo que o que não existe se torna uma coisa, não quero dizer
01 explícitas
Regime de verdade/
fev. sobre o que se trata de mostrar como um erro pode efetivamente ser construído -, não
Saber-poder
método como a ilusão pode nascer, mas [o que] eu gostaria de mostrar [é] que foi certo
regime de verdade e, por conseguinte, não um erro que fez que uma coisa que
não existe possa ter se tornado urna coisa. Não é uma ilusão, já que foi
precisamente um conjunto de práticas, e de práticas reais, que estabeleceu isso
e, por isso, o marca imperiosamente no real. O que não existe como real, o que
não existe como pertencente a um regime de verdadeiro e falso é esse
momento, nas coisas de que me ocupo atualmente, que assinala o nascimento
dessa, bipolaridade dissimétrica da política e da economia. A política e a
economia, que não são nem coisas que existem, nem erros, nem ilusões, nem
ideologias. E algo que não existe e no entanto está inscrito no real, estando
subordinado a um regime que demarca o verdadeiro e o falso. (p. 26-27)
Pois bem, esse momento cujo principal componente procurei indicar é, Trecho usado como disparador
portanto, o momento que se situa entre Walpole, de que falava, e outro texto.
Walpole dizia: quieta non movere: não se deve tocar no que está quieto".
Conselho de prudência, sem dúvida, e ainda se estava na ordem da sabedoria
do príncipe, ou seja, se as pessoas estão quietas, se as pessoas não se agitam, se
não há descontentamento, nem revolta, pois bem, fiquemos quietos. Sabedoria
do príncipe. Ele dizia isso, creio, por volta dos anos 1740.
desmembrar
Escolha das
Em 1751, um artigo anônimo é publicado no Journal economique; foi escrito
01 Autolimitação da fontes
fev. razão governamental na verdade pelo marques d'Argenson", que acabava naquele momento de
abandonar os negócios na França. O marques d'Argenson, lembrando-se do que
o comerciante Le Gendre disse a Colbert - quando Colbert lhe perguntou: "0
que posso fazer pelos senhores?", Le Gendre respondeu: "0 que o senhor pode
fazer por nós? Deixai-nos fazer'''' -, d'Argenson, nesse texto sobre o qual
tornarei, diz. Pois bem, agora o que eu gostaria de fazer é comentar este
princípio: "deixai-nos fazer", porque, mostra ele exatamente esse princípio
essencial que todo governo deve respeitar, deve seguir em matéria econômica.
Nesse momento ele colocou claramente o princípio da autolimitação da razão
governamental. (p. 27-28)
E para que as temáticas deste se mostrem quem sabe um pouco mais
claramente - pois afinal de contas que interesse tem falar do liberalismo, dos
fisiocratas, de d'Argenson, de Adam Smith, de Bentham, dos utilitaristas
inglese, senão porque, claro, esse problema do liberalismo está efetivamente
colocado para nós em nossa atualidade imediata e concreta? De que se trata
Conexões
01 quando se fala de liberalismo, quando a nós mesmos, atualmente, é aplicada
Liberalismo entre o arquivo
fev. uma política liberal e que relação isso pode ter com essas questões de direito
e o presente
que chamamos de liberdades? De que se trata nisso tudo, nesse debate, de hoje
em dia em que, curiosamente, os princípios econômicos de Helmut Schmidt
fazem um eco bizarro a esta ou aquela voz que nos vem dos dissidentes do
Leste, todo o problema da liberdade do liberalismo? Bem, é um problema que é
nosso contemporâneo. (p.30-31)
(...) depois de situar um pouco o ponto de origem histórico nisso tudo, fazendo
aparecer o que é, a meu ver a nova razão governamental a partir do século
01 Razão governamental Escolha das XVIII, darei um pulo para a frente e lhes falarei do Iiberalismo alemão
fev. liberal fontes contemporâneo, já que, por paradoxal que seja, a liberdade nesta segunda
metade do século XX - enfim, digamos mais exatamente, o liberalismo - é uma
palavra que nos vem da Alemanha. (p. 31)
0 que seria preciso fazer se quiséssemos analisar esse fenômeno, absolutamente Faz a mesma digressão referindo-se à
fundamental a meu ver na história da govemamentalidade OcidentaJ, essa loucura, às instituições penais, à
irrupção do mercado como princípio de veridicção, seria simplesmente efetuar, sexualidade.
relacionando entre si os diferentes fenômenos que eu evocava há pouco, a
inteligibilização desse processo, mostrar como ele foi possível... Isto é, não se
trata de mostrar – o que de todo modo é uma tarefa inútil – que ele teria sido
17 Mercado como Digressões necessário, tampouco que é um possível, um dos possíveis num campo
jan. princípio de veridição explícitas determinado de possíveis. Digamos que o que permite tornar inteligível o real e
mostrar sirnplesmente que ele foi possível. Que o real é possível: é isso a sua
inteligibilização.
Digamos de maneira geral que temos aqui, nessa história de mercado
jurisdicional, depois veridicional, um_desses incontáveis cruzamentos entre
jurisdição e veridição que é sem dúvida um dos fenômenos fundamentais na
história do Ocidente moderno. (p. 47)
Vocês veem que isso tudo - quer se trate do mercado, do confessional, da
instituição psiquiátrica ou da prisão, em todos esses casos, trata-se de abordar
sob diversos ângulos uma história da verdade, ou antes, de abordar uma
história da verdade que está acoplada, desde a origem, a uma história do
direito. Enquanto, com muita frequência, o que se procura fazer é uma história
do erro ligada a uma história das proibições, o que eu lhes sugeria era fazer
uma história da verdade acoplada à história do direito. História da verdade
entendida, é óbvio, não no sentido de que se trataria de reconstituir a gênese do
verdadeiro através dos erros eliminados ou retificados; uma história do
verdadeiro que tampouco seria a constituição de certo número de
racionalidades historicamente sucessivas e se estabeleceria pela retificação ou
pela eliminação de ideologias. Essa história da verdade tampouco seria a
descrição de sistemas de verdades insulares e autônomos. Tratar-se-ia da
genealogia de regimes veridicionais, isto é, da análise da constituição de certo
direito da verdade a partir de uma situação de direito, com a relação
direito/verdade encontrando sua manifestação privilegiada no discurso, o
discurso em que se formula o direito e em que se formula o que pode ser
verdadeiro ou falso; de fato, o regime de veridição não é uma certa lei da
verdade, [mas sim] o conjunto das regras que permitem estabelecer, a propósito
de um discurso dado, quais enunciados poderão ser caracterizados, nele, como
verdadeiros ou falsos. Fazer a história dos regimes de veridição e não a história
da verdade, e não a história do erro, e não a história da ideologia, etc., fazer a
história da veridição significa, é claro, renunciar a empreender mais uma vez a
tal crítica da racionalidade europeia, a tal crítica do excesso de racionalidade
europeia, que, como vocês sabem, foi incessantemente retomada desde o início
do século XIX, sob diversas formas. [...] A crítica do saber que eu lhes
17 História da verdade X proporei não consiste, justamente, em denunciar o que haveria de - eu ia
3
jan. história dos erros dizendo monotomamente, mas isso não se diz – então o que haveria de
continuamente opressivo sob a razão, porque, afinal de contas, acreditem, a
desrazão é igualmente opressiva. Essa crítica política do saber não consistiria
tampouco em pôr a nu a presunção de poder que haveria em toda verdade
afirmada, porque, acreditem também, a mentira ou o erro também constituem
abusos de poder. A crítica que lhes proponho consiste em determinar em que
condições e com quais efeitos se exerce uma veridição, isto é, mais uma vez
um tipo de formulação do âmbito de certas regras de verificação e de
falsificação. Por exemplo, quando digo que a crítica consistiria em determinar
em que condições e com quais efeitos se exerce uma veridição, vocês veem que
o problema não consistiria em dizer, portanto: vejam como a psiquiatria é
opressiva, já que é falsa. Não consistiria nem mesmo em ser um pouco mais
sofisticado e dizer: olhem como ela é opressiva, já que é verdadeira. Consistiria
em dizer que o problema está em trazer à luz as condições que tiveram de ser
preenchidas para que se pudessem emitir sobre a loucura – [...] – os discursos
(...) os primeiros economistas eram ao mesmo tempo juristas e gente que
colocava o problema do direito público. Beccaria, por exemplo, teórico do
direito público essencialmente sob a forma do direito penal, também era
economista. Adam Smith: basta ler A riqueza das nações, nem é preciso ler os
outros textos de Adam Smith para ver que o problema do direito público
atravessa inteiramente toda a sua análise. Bentham, teórico do direito público,
17 Relação direito e Escolha das
era ao mesmo tempo economista e escreveu livros de economia política. E, fora
jan. economia fontes
esses fatos que mostram a pertinência originária do problema da economia
política [ao] da limitação do poder público, vocês o encontrarão o tempo todo
nos problemas colocados no decorrer dos séculos XIX e XX sobre a legislação
econômica, sobre a separação entre o governo e a administração, sobre a
constituição de um direito administrativo, sobre a necessidade ou não da
existência de tribunais administrativos específicos etc. (p. 53)
E é nisso que vocês têm uma continuidade entre os teóricos do direito natural
do século XVII e, digamos, os juristas e os legisladores da Revolução
Via radical e via
17 Escolha das Francesa. (p. 55)
revoluciónária –
jan. fontes
liberalismo
(...) e a questão radical, e a questão do radicalismo Inglês. O problema do
radicalismo Inglês e o problema da utilidade. (p. 56)
O problema atual do que chamamos direitos do homem: bastaria ver onde, em
que pais, como, sob que forma são reivindicados, para ver que, de vez em
17 Conexões com
Direto dos homens quando, trata-se de fato da questão jurídica dos direitos do homem e, no outro
jan. o presente
caso, trata-se dessa outra coisa que e, em relação a governamentalidade, a
afirmação ou a reivindicação da independência dos governados. (p. 57-58)
(...) temos aí dois procedimentos, duas coerências, duas maneiras de fazer, por
assim dizer, heterogêneas. E o que é preciso ter bem presente é que a
heterogeneidade nunca é um princípio de exclusão ou, se preferirem, a
heterogeneidade nunca impede nem a coexistência, nem a junção, nem a
conexão. Digamos que é precisamente aí e nesse gênero de análise que se faz
valer, que é necessário fazer valer sob pena de cair no simplismo, uma lógica
que não seja uma lógica dialética. Porque a lógica dialética, o que é? Pois bem,
a lógica dialética é uma lógica que põe em jogo termos contraditórios no
elemento do homogêneo. Proponho substituir essa lógica da dialética pelo que
17 Lógica da dialética X
I chamarei de lógica da estratégia. E uma lógica da estratégia não faz valer
jan. Lógica da estratégia
termos contraditórios num elemento do homogêneo que promete sua resolução
numa unidade. A lógica da estratégia tem por função estabelecer quais são as
conexões possíveis entre termos dispares e que permanecem dispares. A lógica
da estratégia é a lógica da conexão do heterogêneo, não é a lógica da
homogeneização do contraditório. Rejeitemos, portanto, a lógica da dialética e
procuremos ver (em todo caso é o que procurarei lhes mostrar no curso) quais
conexões puderam manter unidos, puderam fazer conjugar-se a axiomática
fundamental dos direitos do homem e o cálculo utilitário da independência dos
governados. (p.58)
Tomem, par exemplo, a história do direito marítimo no século XVIII (p. 77)
(...) exemplos, quando mais não fosse o que aconteceu por exemplo na
Inglaterra nos dos anos 1930, (...). E a política do Welfare implantada por
Roosevelt, por exemplo, a partir de 1932 (p. 92)
“A mais” de liberdade
24 Escolha das
e crise do dispositivo
jan. fontes Tanto os liberais alemães da Escola de Friburgo, a partir de 1927-30, quanto os
de governamentalidade
liberais americanos atuais, ditos libertarianos (p. 94)
[fim]