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§8

TÓPICA E CIVILÍSTICA
I. Em geral, aceita-se que uma disciplina especifica seus
pontos de vista relevantes de um modo quase completo. Admi-
te uma determinada quantidade de topoi elaborada até o mo-
mento, e deixá os demais de lado. Estes últimos, no entanto,
podem ir ganhando importância, em maior ou em menor me-
dida, no curso de situações que variam incessantemente.
Quando isto acontece, facilita-se seu ingresso passo a passo pe-
la via da legislação ou de um modo imperceptível, mas nem
por isto menos eficaz, pela via da interpretação. É claro que
isto ocorre de uma maneira contínua (1). Uma diligente e
constante reedificação e ampliação do direito, que cuida que
a estrutura total da atividade jurídica conserve sua solidez,
sem perder flexibilidade, forma o núcleo peculiar da arte do
direito.
Quando Ihering, há cem anos, indicou que um direito
positivo não pode ser entendido sem a categoria do interesse
(2), emergiu, primeiro na doutrina civilista e depois em outros
campos da disciplina jurídica (3), um topos que foi aumentan-
do continuamente o seu peso .e que paulatinamente foi exer-
cendo uma influência de não pouca importância sobre o
caráter mesmo da jurisprudência. A famosa teoria do interes-
se, que tem sua base em Ihering, esforçou-se em tornar aplicá-
vel ao trabalho jurídico seu modo de pensar (4). A múltipla
articulação do conceito de interesse (5), a qual, ao final, foi
transformada numa articulação de fatores vitais a serem consi-
derados constantemente (6), forneceu um grande número de
novos argumentos jurídicos aos quais, em boa parte, não se
pode negar reconhecimento.
A grande importância desta nova escola jurídica não resi-
de, no entanto, unicamente nisto, posto que, como já disse-
88 D a v i d V ie w v g

mos, a introdução de um novo ponto de vista em si não cons-


\ titui nada de extraordinário Sua importância decisiva parece
ÍX consistir muito mais no fato de que permite dispor de meios
adequados para revisar os fundamentos de toda a disciplina a
^ partir da própria praxis jurídica que lhe serve, com razão,
vS sempre como guia (7). Suas formulações mediante a utilização Cl
Ç jN io conceito de interesse, do conflito de interesses (8) ou de
suas possibilidades são, na maior parte dos casos, muito apro-'
priadas para pôr em dia as perpétuas aporias fundamentais de
^ toda a disciplina.

Nela, trata-se simplesmente da questão do que seja justo


aqui e agora. Esta questão na jurisprudência, a menos que se VI
possam mudar as coisas, é iniludível. Se não se colocasse esta
eterna questão acerca da justa composição (de interesse) e da «
retidão humana, faltaria o pressuposto de uma jurisprudência / J
em sentido próprio. Esta questão irrecusável e sempre emer- . ^
/g f r r J t ■

gente é o problema fundamental de nosso ramo do saber. Co- £


mo tal, domina e informa toda a disciplina. r*

Pode-se aceitar que qualquer disciplina especializada se \ y ’


constitui através do aparecimento de uma problemática qual- 'v
quer. Neste sentido, Max Weber escreve: «Temos de partir,
no meu entender, de que, em geral, as ciências e aquilo com
que elas se ocupam se produzem quando surgem problemas de
um determinado tipo que postulam alguns meios específicos
para sua solução» (9). Porém, enquanto algumas disciplinas
/t ó ? jtü

podem encontrar alguns princípios objetivos seguros e efetiva-


mente fecundos em seu campo, e por isto são sistematizáveis,
há outros, em contrapartida, que são não-sistematizáveis, por-
que não se pode encontrar em seu campo nenhum princípio
que seja ao mesmo tempo seguro e objetivamente fecundo.
Quando este caso se apresenta, só é possível uma discussão
problemática. O problema fundamental previamente dado
toma-se permanente, o que, no âmbito do atuar humano, não .
é coisa inusitada. Nesta situação encontra-se, evidentemente, a
jurisprudência (10).

Pois bem, se é certo que a tópica é a techne do pensa-


mento problemático (of. supra, § 3 (I), a jurisprudência, co-
Tó p ic a e Ju r is p r u d ê n c ia 89

mo uma techne que está a serviço de uma aporia, deve corres-


ponder à tópica nos pontos essenciais. É preciso, por isto, des-
cobrir na tópica a estrutura que convém à jurisprudência.
Tentaremos fazê-lo, estabelecendo as três seguintes esigên-
cias:
1. A estrutura total da jurisprudência somente pode ser
determinada a partir do problema.
2. As partes integrantes da jurisprudência, seus conceitos
e proposições têm de ficar ligados de um modo específico ao
problema e só podem ser compreendidos a partir dele.
3. Os conceitos e as proposições da jurisprudência só po-
dem ser utilizados em uma implicação que conserve sua vincu-
lação com o problema. Qualquer outra forma de implicação
deve ser evitada.
Trataremos de discutir com mais detalhe cada um destes
três pontos, selecionando, para cada um deles, um exemplo
marcante da civilística alemã atual.
II. Frítz von Hippel propôs em 1930 uma nova ordenação
do direito privado, desenvolvendo suas idéias fundamentais
com uma grande concisão em seu trabalho Zur Gesetzmassig-
keit juristischer Systembildung.
' Para simplificar a exposição de seu pensamento, o autor
coloca-se na posição do legislador e começa constatando que,
onde, quando e como seja, todo ordenamento jurídico tem de
ser construído com a pretensão de ser justo (11). O legislador
tem, pois, de perguntar-se se sua escolha de ordenamento se
ajusta a esta pretensão. As possibilidades de ordenamento que
não se ajustem a ela têm de ser rejeitadas. As demais ficam
submetidas à seleção, a qual terá de se realizar em uma
conexão total com a realidade e, por isto, é sempre uma
tarefa histórica. (12). O estabelecimento de um direito privado
entende-se, pois, de acordo com Gustav Hugo e Walter
Burckhardt, como uma escolha histórica de um ordenamento
que se adeque às exigências da justiça. Esta permite uma
«participação- imediata de cada "membro da comunidade
jurídica na ordem contínua da convivência social», isto é, a
autonomia privada (13). Responde-se assim, em um determi-
nado setor, à pergunta em torno do ordenamento justo, po-
i
90 Da v i d v i e w y g

rém, ao mesmo tempo, abre-se para várias perguntas posterio-


res. «Edificação do direito privado» é «sinônimo de necessida-
de de dar uma resposta positiva a esta imanente pergunta
duradoura, com cuja regulação se realiza, em nosso planeta,
uma forma de organização semelhante» (14). Qualquer que
seja o modo como se tropece com aquela pergunta, e indepen-
dentemente de que se tome ou não consciência dela, «tudo o
que se organiza jusprivatisticamente tem de responder de fato
àquela perguntai permanente através desta execução.» (15).
Este imanente conjunto de problemas forma, então, a
''"procurada sistemática deste direito privado. «Podemos
ordenar, comparar e conceber a massa de conhecimentos de
direito privado como respostas históricas a determinadas per-
guntas permanentes sobre um determinado conjunto de pro-~
blemas, e julgar dentro deste limite sua estrita legalidade e
^ exatidão» (16). «Esta permanente construção de uma relação
de direito privado» se realiza, na opinião do autor, em duas
partes. Ao primeiro círculo de problemas, ele chama «negócio
jurídico»; ao segundo, «perturbação da relação» '(17). Cada
um deles compreende por sua vez seis questões, que «se en-
contram entre si em uma fixa relação'de construção» (18). Na
medida em que o legislador «responde a estás perguntas, cria
um código civil» (19). y ’
---- ------------------- - . ■B
O mais notável deste ensaio é que a ordem (sistema enr
sentido amplo) a que se aspira já não é procurada no direito
positivo. Encontra-se, para o direito positivo, um «contrapos-
to» que se apresenta como uma tessitura de questões. É um ,
conjunto de problemas conectado através da questão da justi- I
ça como questão fundamental. Em conseqüência, toda regula-'
mentação jurídica aparece como uma tentativa de responder a
esta pergunta, levando em conta as condições históricas. O au-
tor concebe, acertadamente, por isto, a maior parte das singu-
MÉIÉÉIMUlMMifeÍÉÉÍMâMÉttflfíÉãcúiíi

lares proposições do direito privado positivo como uma massa


de respostas históricas parciais a um conjunto de problemas
previamente dado. 7
Esta simples e consequente dicotomia pergunta-resposta é
extraordinariamente frutífera e devemos esforçar-nos em nos
aprofundar nela, ligando-a com o atual curso do nosso pensa-
mento. A citada dicotcmia significa que em nossa disciplina
TÓPICA E JURISPRUDÊNCIA 91

tudo se orienta, de um modo reiterado e concludente, para


sua aporia fundamental, que encontra sua formulação na per-
gunta pelo ordenamento justo. Esta dicotomia conduz, exata-
mente, a entender o direito positivo, em sua função de respos-
ta1, como uma parte integrante da busca do direito. Significa
‘que o elemento produtor da unidade de nossa disciplina se en-
contra na aporia fundamental. De fato é muito difícil ver on- p
de deve encontrar-se uma unidade plenamente significativa. ) £
Indica, ademais, como tem de buscar-se uma estrutura ade- V
quada para nossa disciplina. Posto que o problema fundamen- F
tal conserva sempre o lugar dominante, produz-se uma relação ^
mediata ou imediata entre o direito positivo e tudo o que sur-
ge ao redor dele, com este problema.Je claro que todas aS j
“partes integrantes desta busca do direito têm de permanecer ) ^
Wcessariamente dependentes, e que não é lícito, por isto, ten- í .
’\ar desligá-las de sua raiz problemática e ordenãrlas depois J ^ ^
isoladas em st mesmas. Nàó éstàò, em apsòluto7em situação I ^
oe desenvolver um arcabouço semelhante, a partir de si pró- ^
/prías. Projeto de sistema que contrarie este ponto de vista se / \
elimina, em geral, por si só, e é, apesar de toda a sua beleza I V \
cientifica, praticamente inutilizâvel.________ J ^
A estrutura total da jurisprudência, como dissemos mais \ ^
acima (cf. I, 1), só pode ser determinada a partir do proble- \ ^
ma. Isto é o que demonstra, no fundamental, Fritz von Hippel \ j
de um modo convincente. Ao tomar posição de uma determi-
nada maneira frente ao problema fundamental (por exemplo,
a autonomia privada parece justa), origina-se um conjunto de
questões que se pode determinar com bastante precisão e que
% baliza o âmbito de uma disciplina especial, por exemplo, o do
I direito privado. Toda a organização de uma disciplina jurídi-
ca se faz partindo do problema. Quando se diferenciam certas
l í séries de questões do modo indicado, agrupam-se ao redor de-
p la s as tentativas de resposta do respectivo direito positivo. Na-
| turalmente, estes quadros de questões não devem ser sobreesti-
| mados em sua constância. Sua formação depende de alguns
pressupostos de compreensão que não são imutáveis. O único
efetivamente permanente é a aporia fundamental. Porém isto
não impede que, com freqüência, uma situação de longa du-
ração permita formular certos complexos de perguntas perma-
nentes. Em suas linhas fundamentais e em suas conexões, têm
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geralmente um alto grau de fixidez, do mesmo modo que as


soluções. Cabe à Sociologia do Direito a tarefa de investigar
com mais detalhe as relações que aqui existem, ainda que sem
cair em um sociologismo todo-poderoso e unilateral.
III. Justificado que a jurisprudência precisa ser conceb
como uma permanente discussão de problemas e que, portan-
to, sua estrutura total deve ser determinada a partir do pro-
blema, buscando pontos de vista para sua solução, resulta que
seus conceitos e suas proposições têm de estar ligados ao pro-
blema, de modo especial. Isto é relativamente fácil de com-
preender no que se refere às proposições de conteúdo jurídico.
Em compensação, não é assim tão evidente que os conceitos
tomados isoladamente têm também de ser entendidos exata-
mente do mesmo modo. Isto acontece sobretudo quando aque-
les conceitos, em seu aspecto exterior, recordam as já conheci-
das definições em cadeia. Em nossa disciplina, no entanto, só
podem ser entendidos em relação com a aporia fundamental e
têm de ser analisados de acordo com ela.
Isto foi salientado recentemente (1952) de um modo mui-
to agudo por Josef Esser, que, em um trabalho sobre os
Elementos de Direito Natural do Pensamento Jurídico Dogmá-
tico e Construtivo, (20), acentuou de uma maneira expressa e
convincente que os «conceitos que em aparência são de pura
técnica jurídica» ou «simples partes do edifício» da jurispru-
dência só assumem seu verdadeiro sentido a partir da questão
da justiça. Indica, por exemplo, que o conceito de «declara-
ção de vontade» só pode ser entendido em nossa disciplina co-
mo uma «fixação de princípios de justiça na questão da
vinculação jurídico-negocial e da confiança jurídico-negocial»,
ainda que o direito positivo não o assinale assim, de maneira
expressa. Se não se mantém este significado, não se compreen-
de a especial aplicação jurídica que em muitos casos se faz do
citado conceito. Não se compreende, por exemplo, que exis-
tam casos em que é preciso impugnar uma «declaração de
vontade» e ressarcir os prejuízos da confiança, ainda que se te-
nha provado que faltou previamente qualquer «vontade de de-
claração». Isto é algo extraordinariamente surpreendente para
um pensamento dedutivo, sem a inserção de um significado
adicional, pois se deveria aceitar que no caso de falta de «von-
t ó p ic a e Ju r is p r u d ê n c ia 93

tade de declaração» a impugnação de uma «declaração de


vontade» não pode sequer ser levada em consideração. Não
obstante, a jurisprudência recorre a isto, no caso de que lhe
pareça justo, com a finalidade de proteger a confiança da ou-
tra parte contratante. O mesmo vale quando temos falta irre-
conhecível de uma vontade negociai, na responsabilidade por
uma aparência de direito, em caso de procuração inneficaz ou
quando se tomou possível a utilização de sobrescritos,
carimbos etc. (21). O jurista converte em «declaração», de um
modo aparentemente arbitrário, uma carta de conteúdo nego-
ciai que seu autor não enviou, mas que chegou a seu destina-
tário em conseqttência de manipulação estranha. O conteúdo
de conceitos jurídicos, como os de «parte integrante» de uma
coisa ou «parte integrante essecial», é formado, no campo do
direito, por «juízos de valor e de interesse sobre publicidade,
unidade de bens econômicos, proteção de seu valor funcional
e de seu interesse de investimento e, por fim, juízos sobre a
preferência, por exemplo, do interesse do credor de poder exe-
cutar uma coisa ou determinar seu destino real» (22). A vista
de uma propriedade é considerada, em caso de necessidade,
como uma «qualidade» do im óvel. A cham ada
«impossibilidade» da prestação pode ser delimitada diante de
outros casos de impedimento adimplemento, especialmente os
de risco persistente e execução forçada do devedor, através de
valorações de interesses. Produzem-se assim transformações de
conceito, como as de «impossibilidade econômica», «inexigibi-
lidade» etc. «O mesmo», diz o autor jusdficadamente, «ocorre,
ainda que menos claramente, com todos nossos conceitos»
(23). E ainda enumera vários outros.
O autor fala, como se vê, a linguagem dos teóricos da ju-
risprudência dos interesses, porém já saiu fora dela. Chega a
dizer que não só a proposição jurídica «mas também o concei-
to mesmo está pré-qualificado através de juízos de interesses,
de tal maneira que a subsunção aparentemente lógica é uma
reintegração de um juízo de interesse, que estava encerrado in
nuce no conceito jurídico». E acrescenta: «Porém, como ne-
nhuma norma positiva preordena este juízo, ele se funda no
direito natural» (24). Em conseqüência, cada conceito tomado
isoladamente se liga através da questão da justiça com verda-
des do direito natural.
94 David Viewyg

Temos de deixar este ponto entre parênteses, pois ele não


pertence estritamente ao nosso tema. Em troca, as discussões
em tomo da relação dos conceitos tomados isoladamente com
a aporia fundamental possuem uma especial importância para
o curso de nosso pensamento.
Nelas salienta-se, de imediato, com toda a clareza, que a
teoria do interesse permite, como já dissemos, uma formula-
ção incisiva da questão da justiça e, por isto, conduz, de um
modo gratificante, ao problema medular em torno do qual gi-
ra toda a jurisprudência. Neste sentido, o autor, tanto aqui
como no resto de sua obra jurídico-científica (25), alude de
uma maneira reiterada e convincente a uma imutável e em to-
da parte subjacente tarefa jurídica. É indubitável que se tem
que dirigir o olhar para a aporia fundamental se se quer com-
preender algo como jurista.
Daí resulta, com especial clareza, que a dedução, que,
como é natural, é imprescindível em todo pensamento, aqui
não desempenhà de nenhum modo o papel de liderança, nem
pode desempenhar o que às vezes se podería desejar para ela e
o que lhe correspondería se existisse um sistema perfeito. Deci-
siva é antes a escolha especial de premissas, que se produz co-
mo conseqüência de um determinado modo de entender o
direito, à vista da aporia fundamental. O exemplo da «decla-
ração de vontade» ilumina esta idéia de uma maneira muito
clara. Dado um sistema dedutivo, no sentido que examinamos
mais acima, suposta sua correção, ele teria de oferecer, no ca-
so do exemplo; um procedimento que fosse progressivamente
dedutivo. Não obstante, diante do problema, é necessário in-
troduzir novos pontos de vista e a cadeia de conclusões que es-
tes abrem raramente é grande, posto que se interrompe conti-
nuamente por sucessivos pontos de vista, tão logo semelhante
operação pareça necessária à vista do problema. Produz-se as-
sim uma tessitura que é completamente diferente da axiomáti-
ca, e que, como a princípio recordávamos, Vico descrevia pa-
ra contrapô-la ao então moderno modo de pensar. Aí onde o
problema toma e conserva o primeiro lugar, portanto sendo
preciso buscar respostas em colocações sempre novas, a tessitu-
ra conceituai que se apresenta não pode ter outro aspecto. Se
uma dedução produz alguns resultados que não são satisfató-
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| rios como resposta à questSo central, é preciso interrompê-la


! por meio de uma invenção, como no exemplo anterior se fazia
! com o conhecido topos da «proteção da confiança» (26). To-
dos os conceitos què se formam têm a função de servir de
rfteios auxiliares a uma discussão de problemas, no modo indi-
| cado. Têm, utilizando nossa terminologia, o caráter de topoi e
Esser chama-os também topoi em nosso sentido (27).
Todo este procedimento constitui para uma mentalidade
lógica uma questão incômoda, pois supõe uma perturbação da
dedução, ante a qual não se pode estar seguro em nenhum
t momento. Por isto, dificilmente será ouvido em nossa discipli-
na quem não dispuser de um conhecimento jurídico suficiente
de premissas, isto é, quem não tiver aprendido onde podem e
f devem inserir-se novas premissas à vista do problema funda-
mental, nos quadros de um determinado modo de entender o
direito, sentindo-se, ao contrário, autorizado ou, se possível,
obrigado a continuar imperturbavelmente a dedução iniciada.
A mesma operação que para uma mentalidade lógica é tão
perturbadora constitui, no entanto, o elemento fundamental
da tópica.
IV. Como última mostra característica de estrutura tópica
na doutrina civilista atual, mencionaremos o trabalho de
. Walter Wilburg «Entwicklung eines beweglichen Systems im
| burgerlichen Recht» (28). As explicações deste discurso do rei-
tor de Graz, de 22 de novembro de 1950, respaldam no essen-
L ciai a posição que sustentamos mais acima (I, 3), ao estabele-
cer o requisito de que os conceitos e as proposições dà juris-
| prudência só podem ser utilizados em uma implicação que
s mantenha vinculação com o problema e que qualquer outra
forma de implicação tem dê ser evitada.
|i.
ff Wilburg é da opinião de que nosso direito civil está para-
flisado em um sistema rígido e de que tem, por isto, de tomar-
|s e móvel. A atual imobilidade, repousa, no entender do autor,
i por uma parte, no fato de que os conceitos civilísticos frequen-
j temente se vinculam a enganadoras representações corporais,
!e, por outra parte, no fato de que muitos dos princípios ci-
vilísticos, aos quais, crê-se, devemos manter-nos fiéis, são me-
Inos fecundos do que parecem e até atuam como empecilho.
96 DAVID v ie w y g

Limitar-nos-emos a examinar este segundo ponto ao qual


o autor também atribui maior peso. A respeito, ele explica:
estes princípios, que se citam reiteradamente e que em sua
aplicação aparecem algumas vezes demasiadamente amplos e
outras, ao contrário, demasiado estreitos, só proporcionam al-
guns resultados efetivamente aceitáveis quando são ligados à
idéia de justiça, sendo, neste sentido, primeiro dissecados e,
depois, recompostos. Por exemplo: o princípio de igualdade
dos credores sem garantia real, vigente no direito falimentar,
não nem sempre satisfaz de uma maneira absoluta. Dever-se-ia
introduzir a idéia de persecuçâo de valor, de tal maneira que
fosse possível permitir a um credor, de quem o devedor rece-
beu um valor que ainda existe no patrimônio deste, satisfazer-
se sobre este valor antes que os demais credores. Contra esta
idéia, opõe-se, com efeito, um conhecido princípio: a saber, o
que estabelece que o crédito, como direito pessoal, só obriga o
devedor e não pode ter, por isto, eficácia contra terceiros.
Não obstante, este princípio teve de sofrer uma considerável
série de limitações através da idéia, já admitida, de impugna-
ção pelos credores (29).
Outro exemplo que tem sido discutido com freqíiência:
tomado de uma maneira literal, o princípio nem o turpitudi-
nem suam allegans auditur pode conduzir a alguns resultados
insatisfatórios. No caso de um empréstimo condenável, o
princípio significa uma proibição da condictio e, por isto, en-
tendido sem modificação alguma, impediría ao agiota recla-
mar a restituição do capital emprestado, o que claramente su-
poria um ganho injusto para o mutuário. Para evitar resulta-
dos inaceitáveis, é preciso remediar as coisas. Com outros
princípios que o autor recolhe ocorre algo parecido. Em toda
parte, mostra-se o mesmo quadro: tomados de um modo abso-
luto, estes princípios são inaplicáveis; vivem antes, como nós
diriamos, da relação com o problema respectivo e com o res-
pectivo modo de entender a justiça, e têm, por isto, de ser
continuamente diferenciados. Isto se prova com especial clare-
za nas doutrinas entre si de certo modo aparentadas do enri-
quecimento ilícito e da responsabilidade por danos, às quais o
autor dedica uma atenção especial, com apoio em suas pró-
prias monografias (30). O direito de danos, que ele chama o
«centro nervoso do direito privado» (31), oferece ocasião para
t ó p ic a e Ju r is p r u d ê n c ia 97

que ele tente uma solução construtiva do difícil problema dos


princípios, que consiste, para dizê-lo brevemente, em acumu-
lar no campo do problema da responsabilidade por danos
várias proposições diretivas em uma forma móvel. Não é
possível extrair do direito de danos positivo vigente um único
princípio onicompreensivo. Antes, os princípios são vários: o
princípio da culpa, o da causalidade, o do risco e o da equi-
dade. Segundo W ilb u rg , que estudou o assunto
minuciosamente (32), cada um destes princípios tem a utópica
pretensão de traspassar o círculo de sua competência e aspirar
ao monopólio. Para impedi-lo, é necessário unificá-los me-
diante um jogo conjunto, diversificando quatro elementos que,
separados ou juntos, conduzam à responsabilidade. Estes qua-
tro elementos são: I
1. Uma falta que seja a causa do evento danoso e que es-
teja do lado do responsável. Esta falta tem um peso distinto
segundo seja devida à culpa do responsável ou de seus auxilia-
res ou não seja devida à culpa, por exemplo, conseqüente de
um defeito material não identificado de uma máquina.
2. Um risco que o causador do dano criou por uma em-
presa ou posse de uma coisa e que levou à ocorrência do da-
no.
3. A proximidade do nexo causai que existe entre a causa
que origina a responsabilidade e o dano produzido.
4. O equilíbrio social da situação patrimonial do prejudi-
cado e do prejudicador.
O julgamento do caso concreto faz-se pela concorrência e
intensidade de cada um dos elementos apontados (33).
Este arcabouço é em si vantajosamente elástico, de sorte
que em cada momento pode recolher as mudanças de modo
de pensar e, além disso, pode ser facilmente complementado.
No que interessa ao nosso tema, contém um modo especial de
tratar os princípios.
A este respeito, o autor opina que o equívoco em que
atualmente se incorre advém de que os princípios estabeleci-
dos, que em si mesmos possuem bom sentido, aspiram, como
diz, ao monopólio (34), e de que a doutrina dominante os to-
ma como princípios absolutos» (35).
98 DAVID VIEWYG

Os-pontos dei vista criticados são, no entanto, indispensá-


veis se se sustenta que a jurisprudência é sistematizável no sen-
tido proposto, pois, neste caso, é necessário encontrar alguns
axiomas que possam ser colocados na cúpula de toda a disci-
plina ou, pelo menos, de uma parte dela. Não se pode levar a
mal que os princípios aspirem ao comando, quer dizer, à cate-
goria de axiomas.1Esta é, neste contexto, por assim dizer, sua
tarefa. Este caminho é totalmente correto, se se quer projetar
um sistema lógico que esteja isento de objeções. Parece tam-
bém muito recomendável, porque possui um aspecto extrema-
mente teórico.
Desde os dias do mos geometricus possui um valor de
exemplaridade, porém nem sempre tem o suficiente respeito
pela respectiva disciplina especial. A imponente matemática
chamou a atenção sobre ele. O sentido prático também con-
duz a ele. Até a economia de pensamento prefere um procedi-
mento que promete fornecer um máximo de teoremas corretos
e aplicáveis, partindo de um mínimo de proposições centrais.
Tudo parece falar em favor desta via, salvo, justamente,
a experiência do trabalho quotidiano dos juristas. Wilburg
fornece abundantes exemplos que demonstram como, em "
qualquer parte, oís princípios têm de ser quebrados, limitados ;
e modificados, o que para nenhum jurista representa algo que j
seja substancialmente novo. O jurista sabe que há de enfrentar
com muito cuidado as proposições colocadas como princípios
de sua disciplina, que «desfrutam da reputação de axiomas»
(36). De um ponto de vista sistemático, isto seria algo sobre-
maneira estranho.
A raiz de tudo está simplesmente em que o problema to- ?
ma e conserva a primazia. Se a jurisprudência concebe sua ta-
refa como uma büsca do justo dentro de uma inabarcável ple- i
tora de situações, tem de conservar uma ampla possibilidade
de tomar de novo posição com respeito à aporia fundamental, ?
isto é, de ser «móvel». A primazia do problema influi sobre a
techne a adotar. Uma tessitura de conceitos e de proposições j
que impeça a postura aporética não é utilizável. Isto é válido ;
especialmente para um sistema dedutivo. Por causa do inabar- j
cável de sua problemática, uma jurisprudência assim concebi-
da tem um interesse muito maior em uma variedade assiste- ;
1
Tó p ic a e JURISPRUDÊNCIA 99

mática de pontos de vista. Não é inteiramente correto


qualificá-los como princípios (Grundsatze).

Ter-se-lhes-ia de chamar mais exatamente proposições di-


rçtivas (Leitsatze) ou topoi, segundo o critério de nossa investi-
gação, posto que não pertencem ao espírito dedutivo-
sistemático, mas a um espírito tópico, como a terminologia de
tipo científico assinala em nosso campo, não raras vezes, em
uma direção falsa.

No sentido analisado, Wilburg oferece, de modo conse-


qüente, em seu sistema móvel para o direito de danos, uma
implicação de proposições jurídicas, que obtêm sua vinculação
a partir do problema, evitando vinculações «principiais». Seu
projeto ajusta-se assim à idéia de um catálogo diferenciado de
topoi. Considerando-o com toda a precaução como um mode-
lo para um desenvolvimento de Direito Civil, poder-se-ia dizer
que este desenvolvimento deve consistir em uma diferenciação
dos catálogos jurídicos de topoi, o que significaria um desen-
volvimento da jurisprudência conforme a configuração que
possuiu desde o seu berço.

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