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BLOCO DE ESTUDOS DE FILOSOFIA

DO DIREITO
Diogo Chiquelho (21545917)

Universidade Lusíada – Norte (Porto)


Direito – 4º ano
Filosofia do Direito

Ao Núcleo de Estudantes de Direito e Solicitadoria

Da Universidade Lusíada – Norte (Porto)

_____________________________________________________________________________

Consideração Inicial:

Estimado colega, mais um Bloco de Estudos, desta vez da unidade curricular de Filosofia do
Direito. Importa considerar-se o que já tem vindo a ser hábito: este trabalho é fruto da minha
leitura, análise e interpretação das várias aulas assim como da vária bibliografia que é indicada
a seguir. Bibliografia esta recomendada e seguida pelo docente. Neste sentido, confesso - e foi
nesse âmbito que se fez tal trabalho - que apesar de poder ser uma preciosa ajuda ao estudo,
não obsta a que possam constar imprecisões e erros no texto, sejam elas técnicas, jurídicas,
ortográficas e/ou científicas. Neste sentido, quero salvaguardar que se poder fazer um estudo
aprofundado o próprio leitor/estudante isso será o ideal, salvaguardando-se destas questões.
Nenhuma responsabilidade será do autor ou do NEDSULP independentemente do caso que
possa surgir no âmbito do aqui notado e salvaguardado. Por fim desejamos o maior sucesso
nesta unidade curricular, assim como em qualquer outra.

Um bem-haja académico,

Diogo Chiquelho.

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Bibliografia:

Filosofia do Direito, de Arthur Kaufmann; Fundação Calouste Gulbenkian – Serviço de Educação


e Bolsas

Filosofia do Direito e do Estado, Volumes I e II, de Luís Cabral de Moncada; Coimbra Editora; 2ª
Edição, 1955 Reimpressão

Filosofia do Direito – Fundamentos, Metodologia e Teoria Geral do Direito, de Paulo Ferreira


Cunha; Almedina; 1ª Edição

Nótulas de História e Pensamento Jurídico (História do Direito), de António dos Santos Justo;
Coimbra Editora; Reimpressão

1
Diogo Chiquelho
Filosofia do Direito

I. Introdução
Essência, conteúdo e posição sistemática da Filosofia do Direito
(…) a filosofia do direito tem a ver com o direito “correto”, “justo”: ela é a doutrina da justiça. É
assim uma das primeiras frases com que Kaufmann inicia a sua obra1. Ora, imediatamente que
se entende que a Filosofia do Direito tem uma dimensão que é intransponível para o bom
direito, para o direito justo, algo que precisa, claramente, de resposta e só a Filosofia do Direito
conseguirá almejar tal resposta. Assim o é, porque para se saber o que é o direito justo, para se
saber como se cria direito justo e para se saber como se aplica esse direito justo criado tem que
se ter uma perceção além-jurídica, uma perceção e noção daquilo que serão Homem, a
sociedade, o próprio Estado, etc. Posto isto, adianta-se já que as três grandes perguntas que visa
a Filosofia do Direito ir respondendo são: O que é o direito justo? Como se cria o direito? E como
se aplica o direito? Face a estas perguntas, só uma posição transistemática consegue aquela
resposta. Uma posição que não se cinja apenas ao já criado, ao vigente, pois aí não se consegue
abrir o pensamento a uma amplitude capaz de responder a tantas questões prévia. E é aí que se
coloca a Filosofia do Direito, mas voltaremos já a isto.
A Filosofia do Direito não se quer afastar da Filosofia. É “mais uma” área dela, mas a divisão
entre a Filosofia em geral e a Filosofia do Direito deve ser ténue, quase invisível, porque, e lá
está, aquelas questões ainda agora referidas precisam de amplitude, e não de barreiras
castradoras. Só nessa amplitude é que é possível ao filósofo do direito responder às questões
que lhe surgem, àquelas que referimos acima, porque ele tem que ter, para a formulação da
resposta, uma pré-compreensão, um pré-juízo, daquilo que é o Direito, daquilo que é a
Filosofia, mas ainda da sociologia e de outras áreas do saber. Ter essa pré-compreensão do que
é o Homem, da ratio das coisas é algo basilar à construção filosófica.
Filosofia do Direito “vs.” Dogmática Jurídica
Já muito fomos ouvindo falar da dogmática jurídica ao longo do curso. E já muita dogmática
jurídica fomos estudando, espera-se.
A dogmática jurídica, para o seu estudo, parte de matéria dada, parte de pressupostos que se
limita a analisar e que dá como verdadeiros logo à partida2. Quer isto dizer que a crítica que a
dogmática jurídica faz ao que estudo é puramente intrasistemática, porque não pergunta o que
está acima e antes desse direito, daqueles pressupostos e cinge-se a isso. Não há uma
capacidade de distanciamento do vigente, do positivado, e de uma ascensão que permita pensar
além-sistema. E isto não tem qualquer problema. Aliás, a doutrina tem enorme importância,
como se sabe. A dogmática jurídica não terá qualquer problema se permitir que se faça um
pensamento transistemático, que opere a Filosofia do Direito, para que os “problemas
fundamentais” sejam então, aqui sim, discutidos. Assim o será porque, como já vimos, na
Filosofia do Direito é onde há um pensamento e uma argumentação além-sistema, capaz de
ultrapassar esses muros.
Quer isto dizer que a Filosofia do Direito e a dogmática jurídica se distinguem pelo âmbito de
operação, mas ambos se pretendem e devem estar numa relação de alteridade, como lhe chama
Kaufmann, ou seja tendo cada um o seu espaço de estudo, pelo que desde que respeitado o
espaço de cada uma das áreas então estará segura aquela relação3.

1
Da obra referida na bibliografia; pág.11
2
Ex datis
3
Por exemplo, será problemático já quando a dogmática jurídica entende que o pensado e discutido pela
Filosofia do Direito deve ser um problema da política, e não um problema filosófico.

2
Diogo Chiquelho
Filosofia do Direito

Filosofia do Direito “vs.” Teoria do Direito


Deve-se notar que é ténue ou mesmo invisível a separação entre estes dois âmbitos. Aliás, não
é possível - e nem Kaufmann não o faz – fazer uma distinção clara. As duas distinções que se
notam são tão subtis que não conseguem criar uma clareza neste versus. Uma das diferenças é
que a Filosofia do Direito dedica-se mais a pensar o conteúdo das normas, enquanto que a Teoria
do Direito tende mais a dedicar-se à forma do direito, contudo é impossível separar substâncias
de formas e, portanto, a distinção é imprecisa. Mas uma e outra abordam as questões principais
da outra, pelo que há áreas cinzentas. A outra diferença são os motivos de cada uma das áreas:
é que a Filosofia do Direito, como vimos, opera na Filosofia, com e dentro dela, ao passo que a
Teoria do Direito quer-se emancipar da Filosofia, não se quer bastar aí. Mas novamente: é algo
de tão impreciso.
Por sua vez, há algo que cria semelhanças, que as aproxima e que torna a distinção muito
complicada: é que ambas têm uma amplitude transistemática. Tanto a Filosofia do Direito como
a Teoria do Direito não se bastam no direito criado e têm capacidades de ascenderem a um
pensamento de maior fundo.
Por grande aproximação e ténues diferenças só no caso concreto é que é possível dizer-se se
uma tese pertence à Filosofia do Direito ou à Teoria do Estado, se bem que nada impede que
um tema seja de ambas as áreas.
Seguindo aquilo que segue Kaufmann e aquilo que é o programa desta unidade curricular
seguiremos essa ótica e apresentam-se já a seguir duas teorias, que são da Teoria do Direito,
mas que importam à Filosofia do Direito.
A Teoria Pura do Direito
Esta teoria tem como autor Hans Kelsen. Para este, e como a designação indicia, quer-se a
pureza do Direito, ou seja, quer-se afastar do Direito e da ciência jurídica aquilo que não
propriamente isso. Kelsen, um neo-positivista, tem por base que tudo o que pode ser verificado
logicamente é que deve ser relevante, e o restante não tem sentido e nesta teoria isso notar-se-
á claramente.
Com isto, percebe-se já que o que Kelsen fará é “separar as águas”, de modo que a ciência
jurídica encontre a sua pureza. Para tanto começa logo a separar aquilo que é o “dever” e aquilo
que é o “ser”: o dualismo metódico. O dever será a norma, ao passo que o ser será o anterior, a
explicação, e aquilo que, portanto, afastam os “puros do direito”. A contrario sensu o que releva
nesta Teoria será o dever, a perspetiva normativa. E sendo positivista assim não poderia deixar
de ser: o que importa é a norma e, mais, é a forma da norma e nunca os seus conteúdos,
precisamente porque a justiça é relativa, “um belo sonho da humanidade” como ele diz, o que
quer dizer que não pode ser verificado logicamente e daí ser irrelevante, como vimos acima. O
conteúdo das normas é, para Kelsen, um problema da ciência política e não da ciência jurídica.
Para “libertar” totalmente o direito e chegar à sua pureza então devem distanciar-se dele a
psicologia, a sociologia, a política, etc, acabando por importar apenas e só o procedimento de
criação e a forma das normas.
Isto levará a tão-só que vigore o ato de subsunção, ou seja que seja potenciada ao máximo a
relação previsão-estatuição, algo que conhecemos bem da Introdução ao Direito. Uma norma
tem uma previsão que verificada impulsiona a estatuição, onde consta a consequência jurídica.
E na teoria pura do direito será isto apenas a vigorar, pelo que independentemente do caso
concreto, desde que se subsuma este caso na previsão normativa então necessariamente terá
de se produzir a consequência que a norma estipula para aquela previsão. É o silogismo jurídico
na sua pureza e simplicidade de operação, não passando disso, efetivamente porque apenas e
só o que releva é o “dever”, como vimos acima. Se relevasse o “ser” então já seria questionável
e, quiçá, mutável a norma jurídica no caso concreto através, por exemplo, da equidade. Desde

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Diogo Chiquelho
Filosofia do Direito

que a norma jurídica preveja algo como ilícito, algo como um delito, então deve-se-lhe
obediência e quem não o fizer sofrerá com um ato coercivo pelo ordenamento jurídico. E sim,
isto permite mesmo que sejam admitidos absurdos normativos, que se deva obediência a
normas completamente sem qualquer sentido, mas se são normas então devem ser respeitadas,
obedecidas. O próprio Kelsen admitiu isto mesmo.
Se se cinge a obediência ao direito a este mero processo de “imputação”, então o Estado está
obrigado a impulsionar a consequência jurídica a quem não cumprir com a previsão normativa.
Mas aqui surge outra questão: o que obriga o próprio agente estadual, o próprio órgão estadual,
de aplicar a sanção? Kelsen responde a isto dizendo que o próprio órgão estadual tem sobre si
um dever similar àquele que deve fazer cumprir. É que há uma norma jurídica que o obriga a
aplicar uma sanção a quem incumpra outras normas jurídicas e, portanto, se incumprir esta
norma jurídica será ele também sancionado por um seu superior hierárquico. E aqui surge então
outra pergunta: e o que é que ou quem é que obriga o topo da cadeia hierárquica a atuar? Para
Kelsen aqui entra o “mínimo de metafísica”, dizendo que a Grundnorm - a norma fundamental -
tem este fundamento de direito natural e que obriga tudo o que está abaixo de si a atuar. E o
mesmo acontece no plano das normas. Veja-se que as normas estão numa ordem hierárquica -
relembre-se a Pirâmide Kelseniana do Direito, também ela abordada em Introdução ao Direito -
na qual no topo da pirâmide está a lei fundamental e abaixo de si as leis e decretos-lei, e por aí
em diante. Pois, para Kelsen há a tal Grundnorm, que está dotada de metafísica para que essa
possa tornar as demais obrigatórias. Esta Grundnorm está fora da pirâmide, ela não é real, mas
é hipotética e tem o “mero” propósito de conferir validade a toda a pirâmide. Ela confere
validade e obrigatoriedade à mais alta norma da pirâmide das normas e, em cadeia, umas vão-
se validando às outras e tornando-se obrigatórias, conforme vimos.
Posto isto, bem se vê que nem os positivistas conseguem fugir ao direito natural, à metafísica.
Nem Kelsen, que quis afastar tudo o que não fosse verificado logicamente do direito consegue
tornar o direito tão puro como ele queria, porque até ele cedeu ao direito natural, apesar de
que num “mínimo indispensável”.
A Teoria da Legislação
Com o pós-Segunda Guerra Mundial entendeu-se que já se estava além tanto do positivismo
como do naturalismo. Aqui dirige-se mais para a metodologia do direito, criticando algo que
vimos na Teoria Pura do Direito: um silogismo de modus barbara não é suficiente e a aplicação
do direito é um processo mais complexo do que esse. Este modus barbara é, por exemplo,
aquele silogismo que vimos na Teoria Pura do Direito em que bastava um caso concreto
subsumir-se numa previsão normativa que impulsionar-se-ia a consequência jurídica, sem mais.
Na teoria da legislação quer-se um processo de ida-e-volta, um processo no qual o “dever” e o
“ser”, a norma e o caso concreto respetivamente, vão comunicando e ajustando-se. Assim, a
norma jurídica não passará de uma “hipótese normativa”, ao passo que o caso concreto será
uma “situação de facto”. Se a norma é, à partida, nada mais do que uma hipótese então isso não
quer dizer que ela imediatamente aplicar-se-á à situação de facto. A situação de facto reclama
uma justiça e a hipótese normativa irá responder a justiça que é capaz de oferecer. Se houver
correspondência então há uma aplicabilidade, pelo que se não houver aquela também não
haverá esta.
Ao mesmo tempo pode inverter-se este processo. A própria criação do direito deve notar isto.
Notando os princípios de direito, então o legislador olha para várias situações de facto que
merecem ser reguladas, aglomera-as apenas dada a sua “essência” e prevê para elas uma
consequência jurídica, mas a norma é criada também de forma a que haja a tal correspondência
entre o “dever” e o “ser”. E assim terá que ser, porque nenhum ato é igual, todo o
circunstancialismo que rodeia a forma, o porquê, o como, etc da prática de um ato é quase

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Diogo Chiquelho
Filosofia do Direito

impossível de ser sempre igual, o que quer dizer que nem sempre terá de ser igual a
consequência aplicada. Isto é algo que aconteceria na ótica da Teoria Pura do Direito, porque
ficou claro que para eles não interessa o caso concreto: se ele se subsume na previsão então
obrigatoriamente tem que se impulsionar a consequência jurídica e ponto.

II. A questão do direito natural e do positivismo na História da


Filosofia do Direito
Se queremos perceber a filosofia jurídica atual, então importa conhecer a do passado. Aliás, falar
em passado na Filosofia é algo meramente cronológico, histórico, e que influenciará o
pensamento filosófico, mas como todos os temas na Filosofia são discutíveis e as perguntas que
se levantam nunca se esgotam então importa perceber-se a resposta do passado, para que se
conheça a resposta contemporânea. E ao fim ao cabo são perguntas que já enunciámos supra
que vamos colocar aos pensadores do passado e ver qual a sua resposta: perguntaremos o que
era, para eles, o Direito justo, perguntaremos como é que, para eles, se criava o Direito e
perguntaremos como é que, para eles, se aplicava o Direito. E estas perguntas são as que se
colocam nos nossos dias, porque a resposta a estas perguntas leva-nos também a concluir se o
Homem tem total disponibilidade do Direito – ou seja, se tudo o que o Homem configura e cria
como Direito será válido – o que se confunde com o Positivismo Jurídico, ou se, em
contrapartida, há limites a tal disponibilidade, o que se confunde com o Direito Natural.
Outra coisa que ainda permitirá estudar-se a História Filosófico-jurídica é retirarem-se princípios
jurídicos universais e transversais a todos, ou a quase todos, povos e épocas, o que se
configurará como os fundamentos gerais do Direito.
1. Do mythos ao logos
Só tem relevância começar a falar-se na Filosofia quando o Homem deixa de pensar tudo apenas
e só no Cosmos, mas começa a olhar também para si, época esta arcaica e pré-filosófica do
séc.VII aC. Nesta fase tudo se justificava mitologicamente, contudo começaram a levantar-se
certas questões que levaram a que o pensamento tivesse que se fundar mais na Razão, porque
a justificação mitológica não era capaz de esclarecer fenómenos e regularidades racionais. Estes
fenómenos da física, que impulsionaram este pensamento agora mais dentro do logos, também
fizeram questionar se na metafísica não haveria certas regularidades, certas leis. Só após esta
época além-mitologia é que se pode falar na Filosofia, porque antes o pensamento era
meramente mitológico. (…) a natureza das leis do Estado foi durante muito tempo julgada
idêntica à das restantes leis do Cosmos (…) dentro da qual o homem vivia encaixado como uma
parte no todo, sem nenhuma espécie de autonomia. O universo continha-o a ele e ele, contido
no universo, contemplava-o e refletia-o, como um espelho reflete uma imagem, sem perguntar
por si nem pela natureza do fenómeno que reside nessa reflexão4.
2. A Antiguidade Greco-Romano
2.1. Pensamento Jurídico Grego
Com Heraclito (± 500 aC) o Cosmos como que se anima, ganhando agora uma vertente
intelectual, ou seja este olhou dinamicamente para o universo e conferiu, assim, ao logos o
poder que domina os acontecimentos. Assim, este foi o primeiro a opor o pensamento dinâmico
à imagem estática e objetivista das primeiras doutrinas jurídicas ocidentais e, também assim, é
aqui diferenciada (pela primeira vez) a justiça das normas humanas e a justiça natural, o direito

4
Citamos Cabral de Moncada in bibliografia indicada; Vol.I, pág.11

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Diogo Chiquelho
Filosofia do Direito

positivo e o direito natural, apesar de estes ainda serem pensados ainda essencialmente como
unidade5.
Os Sofistas
Cerca de um século mais tarde, os sofistas mantiveram esta ideia dinâmica de Heraclito, mas
agora já quiseram perceber qual a relação entre a tal “lei humana” e a “lei da natureza”.
Contudo, dada a fase de Atenas, estes tenderam a relativizar olhando para o Homem como
sendo “a medida de todas as coisas”, segundo Protágoras. (…) perdendo toda a fé numa verdade
de valor universal, entronizou, como único tema sério e digno da Filosofia, a vontade humana
empírica, a sua medida e as suas possíveis realizações6. Se assim o é, então a lei é a pura vontade
humana e toda a verdade é arbitrária e, lá está, relativa e subjetiva, nada alinhada com qualquer
objetividade.
Se há Estado então é porque os Homens convencionaram nesse sentido, o que quer dizer que,
dado tudo isto, os sofistas foram os primeiros positivistas, porque negaram a metafísica ao
entregaram à subjetividade e relatividade humana a disponibilidade de tudo.
Sócrates
Sócrates, apesar de também ele ser um sofista, é, como refere Cabral de Moncada, o novo
fundador da crença na razão humana7, voltando a ligar a lei humana, a lei do Direito e do Estado,
à razão.
Em Sócrates a lei natural (estava) no cerne do homem8, o que quer dizer que é “dentro” do ser
humano que se encontra a razão. O que incumbe, portanto, ao Homem fazer será recorrer ao
seu intelecto, porque através da sua atividade intelectual conseguirá traduzir o racional, a tal lei
natural, em conceitos e dos quais sairá o produto final: a lei humana. Com isto, há uma ligação
da lei humana à lei natural, tendo fundamentos ônticos e não já arbitrários como diziam os
sofistas.
Se assim o é, então para este filósofo o Estado não será um produto de convenção social, mas o
Estado é sim imprescindível para o Homem e nenhum Homem consegue viver fora do Estado.
Se o Homem não consegue viver fora do Estado, porque precisa necessariamente dele e
inatamente fará parte dele, então terá que haver obediência às leis do Estado e isto é mesmo
um dever, porque para Sócrates o bom cidadão deve obedecer também às leis más para não
encorajar o cidadão perverso a violar as boas9.
Apesar de tudo isto, Sócrates teve o Bem, a Virtude, a Verdade e o conhecimento como sendo
o mesmo, não tendo aprofundado além da consciência humana, o que vem dar abertura aos
filósofos que se lhe vão seguir, até porque como não retirou do Homem a razão e a natureza
então não se pode ser chamado um verdadeiro naturalista, porque o único logos que seguiu foi
um puramente individual e que serviu mais para contrapor o sofismo.
Platão
Este autor tem o auge das suas ideias filosóficas na sua obra Teoria das Ideias. Platão vai beber
dos sofistas e vai beber de Sócrates. Dos primeiros retira o relativismo do conhecimento
empírico, o que quer dizer que dos sentidos humanos não pode surgir nada de absoluto, os
sentidos humanos não são conducentes à certeza. Do segundo retira o facto de que é no
Homem, na razão humana, que está a validade das coisas. Mas bebe, ainda, dos Eleates quanto
à crença de que as Ideias têm uma realidade ontológica, ou seja têm um fundamento além do

5
Citamos Arthur Kaufmann in bibliografia indicada; pág.33
6
Citamos Cabral de Moncada in bibliografia indicada; Vol.I, pág.14
7
In bibliografia indicada; Vol.I, pág.14
8
Citamos Arthur Kaufmann in bibliografia indicada; pág.34
9
Todos os itálicos são citações nossas de Santos Justo in bibliografia indicada; pág.15

6
Diogo Chiquelho
Filosofia do Direito

meramente formal e, portanto, é um crente na metafísica. Convém conhecer-se algo basilar da


sua obra filosófica basilar antes de se conhecer a sua obra jusfilosófica.
No que toca à teoria filosófica dele deve começar por se entender que Platão faz uma divisão
em dois mundos. Num dos mundos, o mundo sensível, conseguimos retirar aquilo que os
sentidos nos dão, aquilo que é “palpável”, é o mundo físico e, como vimos, aqui é tudo relativo.
No outro dos mundos, o mundo suprassensível, temos as Ideias, é um mundo que fica além do
que é físico, é algo já metafísico. Assim sendo, dada esta divisão e dado que o produto do mundo
sensível será sempre relativo, então só o que (também) constar do mundo suprassensível é que
é real. Não bastará ver-se algo, este algo terá que ser correspondido nas Ideias para ser real:
nisto se baseia o dualismo platónico.
Indo então, agora sim, ao pensamento platónico do Direito e do Estado, o que se notará é que
este autor irá conceber tanto um como o outro no tal mundo suprassensível.
Para Platão, o Estado e o Direito são condições indispensáveis à vida humana e só o Homem que
se insira no Estado é que conseguirá a perfeição moral e almejar o Bem. A maior das virtudes
será a justiça, porque é esta que consegue criar harmonia entre as demais virtudes e, no Estado,
a justiça só se alcança se cada Homem cumprir a função a que se destina. Ora, se cada um
cumprir a sua função para o bem comum então haverá justiça e esta função definir-se-á
mediante a classe em que cada Homem se insira: a razão, que domina; a coragem, que atua; e
o senso que obedece, o que será respetivamente correspondente à classe dos sábios, que o
dominam; a dos guerreiros, que o defendem; e a dos artífices e agricultores, que o devem nutrir10.
Posto isto, pode já notar-se que o Estado de Platão será um totalitário, porque o indivíduo vive
nele, mas vive para ele e para cumprir o papel nele. Por sua vez, ao Estado incumbe a educação
dos Homens e uma que seja igual, porque uma educação igual conseguirá evitar dissídios entre
os Homens, sendo que as mulheres e a propriedade eram comuns: o comunismo platónico,
como lhe chama Cabral de Moncada11. Esta era a visão de Platão para o Estado que retratou
bem na sua obra República.
Apesar deste idealismo, onde se situaria o Estado perfeito para Platão, o próprio autor vem dar-
se por “derrotado” nesta sua teoria e, portanto, na obra Leis vem apresentar o substituto, o que
seria o melhor, em segundo lugar, dos Estados possíveis, como ele chama. O primeiro Estado, o
da República, era um Estado que fora pensado para Homens que fossem perfeitos, mas estes
como não existem então Platão cria um Estado para Homens terrenos. Neste Estado das Leis o
comunismo platónico desaparece: o Estado deve ser agrário e com pequenos proprietários, para
que por aí se combata a miséria, mas também a riqueza, sendo que para isso a terra passará a
ser propriedade da família e nela se manterá por via da sucessão. No que toca ao poder, este
não deveria ser definido pelo nascimento, mas sim por via de eleições do povo, sendo que o
mercado deve ser regulamentado e a usura deve ser combatida. Há, também, limitação à
procriação, pelo que a família é controlada. Quanto ao direito penal o que se deve visar é a
correção, a intimidação e a defesa social e o agente criminoso é tido como um doente, pelo que
ou é corrigível ou é morto.
Aristóteles
Aristóteles tinha em Platão o seu mestre, portanto nele terá as suas bases e o rompimento com
a sua teoria não será brutal. Aliás, Aristóteles também seguia as posições de Sócrates, dos

10
Citamos Santos Justo in bibliografia indicada; pág.15
11
Cabral de Moncada vem alertar que este comunismo não é como o moderno, de Marx e Engels, porque
nestes o comunismo é de produção, ao passo que o comunismo platónico é de consumo; in blbliografia
indicada; Vol.I, pág.21, nota de rodapé (I).

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Filosofia do Direito

Sofistas e dos Eleates que Platão seguia e que referimos acima, contudo o peso de cada uma das
fontes foi diferente.
Platão, vimos nós, era um idealista, porque o seu Estado das Ideias fora um que estava ligado
ao mundo suprassensível, intimamente ligado às Ideias. Pois bem, em Aristóteles isso manter-
se-á, contudo, ele nutre um carinho especial pelo conhecimento empírico e pelo que é sensível.
Naquele que vimos que era o dualismo platónico – a divisão dos mundos sensíveis e
suprassensíveis – Aristóteles vem introduzir uma mudança: ao invés de dois mundos há duas
tendências, em que a primeira é especulativa e que duvida daquilo que é sensível e do
empirismo enquanto fonte do conhecimento e, a segunda, é a empírica que terá já nas coisas
sensíveis o objeto único do conhecimento. Se se quiser criar alguma correspondência, estas duas
tendências aristotélicas corresponderão, respetivamente, ao mundo suprassensível e ao mundo
sensível da Platão. Mas a diferença não é aquela, mas sim o facto de Aristóteles querer combinar
as duas tendências e cindi-las. Como nos diz Cabral de Moncada12 Meteu, por assim dizer, as
Ideias platónicas dentro das coisas (…) o que levou a que as Ideias deixam de existir separadas
das coisas num mundo transcendente e inalterável, e passam a existir e a viver no interior das
próprias coisas e realidades sensíveis. E aqui está a inovação aristotélica face à tese idealista do
seu mestre: se em Platão o sensível e o suprassensível eram realidades, mundos, separados já
Aristóteles como que pega no mundo suprassensível e coloca-o no seio do mundo sensível,
formando como que um só. E por ter mantido aquela posição idealista de Platão, mas ter trazido
até ao mundo sensível o suprassensível então também é um naturalista, pelo que Aristóteles é
um naturalista-idealista.
Posto isto, em Aristóteles as Ideias – como lhes chamava Platão – passam a ter a designação de
Formas e as coisas, o produto dos sentidos, passa a chamar-se de Conceitos. Mas note-se que
isto não retira força ao que será central no conhecimento: as Formas, as Ideias. Enquanto (…)
Sócrates julgava encontrar a lei natural no cerne do homem e Platão nas Ideias, Aristóteles viu
a natureza como inerente aos dados objetivos. A conformidade à natureza é, segundo ele, o
melhor estado dum ente13.
Vista esta teoria filosófica de Aristóteles, está-se agora preparado para conhecer a sua posição
quanto ao Estado e quanto ao Direito.
Novamente, em Aristóteles o Estado é imprescindível ao Homem. Se o Homem é um animal
político, como nos diz este pensador, então ele necessariamente viverá no Estado e de acordo
com o Direito, porque só assim consegue alcançar o completo desenvolvimento da sua natureza
e a sua essência. O Homem tem a sua essência traduzida numa certa atividade que terá um fim.
Este fim é o da sua felicidade e autorrealização e isto só se alcança através do pensamento, da
razão. E razão não será nada mais do que moderação e equilíbrio, o meio-termo. Ao mesmo
tempo, este equilíbrio será a base das virtudes e, entre todas as virtudes, a mais importante é
a justiça que será o que dará conteúdo às leis, ao Direito. E por sua vez – neste percurso que
tem que ser lido e relido calmamente para se perceber a sequência aristotélica – justiça não
será nada mais, nada menos do que igualdade. E traduz bem isto Kaufmann14 quando refere
que O cerne da justiça é a igualdade, não se trata aí todavia de igualdade formal ou numérica
mas sim proporcional ou geométrica.
Este pensador divide a noção de justiça em duas: a justiça distributiva (relação vertical Estado-
cidadão, em que se repartem os bens e as honras públicas pelos cidadãos de acordo com o
mérito) e a justiça sinalagmática (relação horizontal cidadão-cidadão) que se divide, esta última,

12
In bibliografia indicada; pág.25
13
Citamos Arthur Kaufmann in bibliografia indicada; pág.34
14
In bibliografia indicada; pág.34

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Diogo Chiquelho
Filosofia do Direito

em justiça comutativa (justiça dos contratos) e em justiça judiciária (justiça extraobrigacional).


Mas Aristóteles sabe também que a justiça não é suficiente para reger a vida em sociedade,
porque esta é abstrata e os casos concretos, por vezes, precisam de algo menos rígido para que
a aplicação do direito seja eficaz, pelo que Aristóteles coloca a equidade com estas funções,
como critério corretivo da justiça.
O Estado será um produto da natureza, algo que será de se retirar do que já dissemos acima, e
a menos que o Homem seja um deus ou seja bruto então viverá nele e para ele. Como este
pensador nos diz na sua obra Politica, o “todo” está, ontológica e metafisicamente, antes das
partes. Quer isto dizer que aquele ideal de Estado totalitário também se mantém aqui, assim
como a sua função de educar os seus integrantes, algo que tem vindo a ser quase que transversal
no pensamento da Antiguidade grega, como vimos. Além disto, algo que o mestre não fez, mas
fê-lo Aristóteles foi olhar para as várias instituições que integravam o Estado: lá está, uma visão
mais empirista ao passo que Platão se ficava pelo idealismo. O filósofo, assim sendo, referiu-se
à família, referiu-se às cidades, aos municípios, etc.

Após Aristóteles, o Homem passa a ser cosmopolita, ou seja o pensamento deixa de ser tanto
para o Homem que vive na pólis, para o Estado-pólis, mas para ser para o Homem que vive num
todo bem maior, o “cidadão do universo”, o cidadão do império. Ocorre isto, dada a agregação
da Grécia Antiga ao Império Romano, que tinha esta perspetiva universalista.
Isto vem criar uma alteração no pensamento que, como veremos já de seguida com os estoicos,
os epicuristas e os céticos, cortarão alguma da linearidade que vinha no pensamento desde
Sócrates, a Platão e aqui até Aristóteles.
Os estoicos
Quebrando com aquele baixar do plano metafísico até ao plano sensível e integração da razão
no seio daquele sensível em que Aristóteles baseou o seu pensamento, os estoicos como que
retornaram a Platão e voltaram a elevar o logos a um nível superior e daqui derivaria tanto as
leis da natureza comos as leis humanas. Mas esta elevação foi feita como nunca antes: os
estoicos elevaram a razão a um nível de divindade, em que ganhou a conotação de “alma” do
mundo. Portanto, desta razão adviria tudo e, assim, há uma contraposição como nunca antes
entre o direito positivo e o direito natural.
E muito pelo que dissemos antes de abordarmos o pensamento estoico, desvalorizou-se o
“político”. Esta desvalorização serviu para agora ver os Homens como integrantes de um
universo onde eram todos iguais pela razão. A pólis estava a desvanecer e o Estado já não era
uma Estado-cidade, mas um Estado-império, ou seja houve uma alteração por substituição
daquela “cidade antiga” por uma comunidade que ligava os Homens universalmente15, pelo que
se começa a promover a dignidade da pessoa humana. O Homem deve viver em liberdade, e
para tanto a lei universal - que substitui a lei da cidade - é aquela pela qual o Homem se deve
reger o que quebra as barreiras políticas e o homem é considerado cidadão dum Estado
universal, sem Estados particulares16. Não obstante isto, os estoicos também não esquecem e
dizem mesmo que um dos maiores deveres do Homem será participar ativamente na vida da
comunidade e isso ser-lhe-á mesmo imposto pelo direito natural.

15
Deve notar-se que na pólis em que se baseava o pensamento socrático, platónico e aristotélico o Estado
era um totalitário, em que direitos individuais não seriam bem uma realidade, porque o Homem teria que
necessariamente integrar o Estado e servi-lo.
16
Citamos Santos Justo in bibliografia indicada; pág.16

9
Diogo Chiquelho
Filosofia do Direito

Os epicuristas e os céticos
Para os epicuristas o universo não passa de matéria e nada haverá mais do que matéria, ou seja
negam logo qualquer metafísica. Se assim é o Homem não deve preocupar-se com o que não o
permite ser feliz e tranquilo, ou seja ele deve abstrair-se de todo o sofrimento para que tenha o
domínio de si mesmo e para que seja moderado. Para tanto o Homem deve também abstrair-se
do Estado e das suas lides, porque isso será algo que entrava o Homem no seu percurso de
abstração de tudo o que o inquieta e faz infeliz.
Além disto, o Estado não passará do produto de um mero acordo que surge entre os Homens
para que daí tirem vantagens e se defendam mais eficientemente. Do mesmo acordo surge o
Direito e aí nada haverá que se seja justo, ou seja o Direito é o que os Homens tenham acordado
que ele será, o que quer dizer que os epicuristas eram contratualistas e, assim, positivistas,
muito pela má imagem que tinham do Estado e pela recusa de que a natureza não era justa, o
que impediria o Direito de o ser também.
Já quanto aos céticos a sua designação diz muito: há uma grande crítica ao conhecimento pelo
que renasce o relativismo sofista, de que falámos. Tudo o que provém do conhecimento humano
nunca será absoluto, mas será sempre relativo. Não há o belo, o feio, o justo ou o injusto e o
Homem abstém-se, por isso, de fazer juízos, cingindo-se – no máximo – a fazer juízos de
probabilidade: ele nunca dirá que algo é belo, mas dirá que algo será provavelmente belo. Se a
razão não garante a verdade e a certeza do saber e, por isso, não é possível conhecer a natureza
das coisas e a natureza do homem, o direito natural torna-se uma impossibilidade: só podemos
considerar o direito positivo, fruto da vontade arbitrária de quem o cria17, o que quer dizer que
teremos o positivismo jurídico pela negação do direito natural, até porque isso se nota não só
através da diversidade dos sistemas jurídicos dos diferentes povos, como das próprias
vicissitudes e constantes transformações do direito na vida do mesmo povo18.
2.2. O pensamento jurídico romano
Se na Grécia tivemos todo o pensamento que explicámos, já em Roma não temos uma mesma
forma de abordar a Filosofia do Direito.
A verdade é que em Roma pairava um pragmatismo que os levava a dedicarem-se mais a
metodologias do que propriamente a reflexões. Como nos diz Santos Justo19 Dominados por um
pensamento voltado para a ação (actio) de que deriva o direito (ius), os jurisconsultos romanos
não se dedicaram a reflexões filosóficas. Apesar disto a influência filosófica grega é notória – daí
que sejam estes dois povos estudados aqui juntamente – tendo ido pescar ideias dos estoicos,
de Aristóteles, etc.
Nesta fase, a jurisprudência tinha um papel fulcral no seio do Direito. O Direito tinha várias
fontes e o magistrado podia afastar a lei, corrigi-la se o caso concreto o merecesse. O magistrado
tinha funções consultivas dando pareceres quanto a certos casos, tinha funções de
aconselhamento de particulares nos seus negócios jurídicos e tramitava os processos, mas como
nos diz Pomponius e que nos cita Santos Justo O Direito não pode subsistir se não houver um
jurisperito por quem diariamente possa ser aperfeiçoado.20 Esta era a sua função primordial, a
sua função mais vigorosa, porque era no magistrado que estava a separação do justo do injusto
e como a própria Lei das XII Tábuas se mostrou caducada para muitos casos então pela

17
Citamos Santos Justo in bibliografia indicada; pág.18
18
Citamos Cabral de Moncada in bibliografia indicada; Vol.I, pág.43. Este autor também é claro quanto
aos céticos quando diz que, para estes, nenhum direito natural existe; todo o direito é positivo (…).
19
In bibliografia indicada; pág.20
20
Constare non potest ius, nisi sit aliquis iurisperitus, per quem possit quotodie in melius produci; in
bibliografia indicada; pág.21

10
Diogo Chiquelho
Filosofia do Direito

interpretação e integração (de lacunas) a jurisprudência produziu princípios, normas e regimes


jurídicos capazes de colmatar certas lacunas.
3. O Cristianismo e o pensamento da Idade Média: a escolástica
Em 330 o imperador Constantino confere o título de capital do Império Romano a
Constantinopla, no Oriente, retirando, portanto, esse título a Roma, no Ocidente e, ao mesmo
tempo, transfere-se para aí. Isto deixa o Ocidente algo que à deriva, sem uma gestão
propriamente clara o que permitiu que a Igreja se impusesse. Constantino deixa no Ocidente
uma margem de crescimento para a Igreja, na medida em que era esta quem podia manter a
ideia de universalidade que de certa forma se perde com este “abandono” pelo Imperador. Ao
passo que no Oriente o imperador toma a religião cristã como religião oficial e deixa bem claro
que está acima da Igreja, no Ocidente a Igreja tem espaço para proliferar à falta de poder
político, assistindo-se aqui à supremacia do poder religioso sobre o poder político.
No mesmo seguimento, o Império Romano do Ocidente vai decaindo, efetivando-se a sua queda
total em 476 muito devido à invasão de povos bárbaros aos quais os romanos não conseguem
fazer frente. Estes povos vão-se instalando ao longo de todo o território e cada um deles tem a
sua noção de Estado, de nação, de direito ou de território aliado a um estilo de vida rudimentar
o que significa um retrocesso civilizacional, muito por força de que tudo isto vai contra a visão
universalista que pairava no ideal romano. Note-se do que falámos já supra: com Roma havia
um só Direito para todo o vasto território e o cidadão deixa de ser um da pólis para ser do
império, do universo, dum todo. Rotas comerciais, direito, instituições, etc perdem-se e uma
economia de subsistência é reerguida o que deixa bem claro o tal retrocesso civilizacional.
Mais uma vez, e perante isto, é a Igreja quem vem ter um papel de renovação do ideal
universalista, uma vez que é a única com capacidade de tocar todos os territórios “ex-romanos”
porque note-se que no Ocidente o poder político era deficitário.
A renovação da figura de Jesus, na sua divindade e a fé na sua palavra é uma das impulsionantes
das teses cristãs e isto faz renovar um novo homem cristão muito pela mão do apóstolo S.Paulo
a quem Cabral de Moncada chama de segundo fundador do Cristianismo21. Esta renovação do
Cristianismo promoveu um confronto entre essas ideias e as ideias filosóficas greco-romanas,
mas essa luta viu o Cristianismo a aproveitar estas ideias para se reforçar. Nesta relação surgiu
a necessidade da Igreja, do Cristianismo, ter as suas teses filosóficas e é neste sentido que nos
surgem os autores que estudaremos em seguida, como filósofos cristãos, notando-se
inspirações dos gregos. Mas como dissemos, na origem está S.Paulo que retornou ao direito
natural estoicista mas conferiu-o a Deus, ou seja promove o teocentrismo na medida em que
tudo advinha da Sua vontade ao mesmo tempo que a justiça conheceu critérios não já
meramente intelectuais mas também religiosos, como a fé. A relação não era já entre o Homem
e o Estado, mas sim entre o Homem e Deus, até porque o Estado em todas as suas formas fora
criado por Deus22. Isto quer dizer que se se desrespeita o Estado desrespeita-se a vontade de
Deus e, portanto, por esta via o Homem também regulava a sua relação com Deus, mas a
comunidade seria toda uma unidade sem que se desconsidere cada um dos seus integrantes,
devendo ser respeitada a dignidade de cada um. Estas são as ideias base ensinadas por S.Paulo
e sobre as quais se renova o Cristianismo e se impulsionam as demais teses que se inserem nesta
filosofia escolástica.

21
Ambos os itálicos são citações do autor referido, in bibliografia indicada; Vol.I; pág.46.
22
Omnis potestas a Deo; “Todo o poder é devido a Deus”

11
Diogo Chiquelho
Filosofia do Direito

Santo Agostinho
Santo Agostinho de Hipona23 foi o verdadeiro doutrinário da Igreja e que escreve A Cidade de
Deus24 cuja obra vai importar ideias do Antigo e do Novo Testamento, mas ainda a Platão e aos
Estoicos. Relembre-se que o pensamento cristão vai buscar muito ao pensamento clássico, pois
veja-se o que diz Kaufmann: A filosofia jurídica medieval marcada pelo Cristianismo
caracterizou-se sobretudo por ter procurado filiar a sua nova doutrina cristã na herança da
filosofia antiga (principalmente Platão e Aristóteles)25.
Este autor divide dois planos – como dividiu Platão – tendo o por um lado a “Cidade de Deus” e,
por outro, a “Cidade terrena”. Não há uma correspondência entre a primeira destas Cidades à
Igreja e entre a segunda destas Cidades e o Estado, porque ambas aquelas Cidades são do plano
suprassensível. A “Cidade de Deus” representa a vivência daqueles que pretendem ir ao
encontro dos ideais cristãos, segundo o espírito e a justiça e, portanto, esta Cidade só se
efetivaria aquando da morte e ida para o “reino dos céus”. Já a “Cidade terrena”, a civitas
terrena, representa já a vivência de acordo com o egoísmo, apenas para satisfação dos seus
interesses e necessidades e nada mais do que isso. Quer isto dizer que não há a tal
correspondência, aliás há até uma interligação de ambas as Cidades. Quem vive de acordo com
a civitas dei será direcionado para o céu e quem vive de acordo com a civitas terrena será
direcionado para o demónio, muito por força do egoísmo com que viveu. Esta divisão só é feita
aquando da morte do ser, porque antes a vivência é sempre no mundo sensível e a passagem
ao suprassensível só se faz aquando da falência da carne. A Igreja e o Estado eram apenas uma
via do mundo sensível que permitiam este percurso: quem vivia de acordo com a Igreja chegaria
à civitas dei e quem vivia exclusivamente de acordo com o Estado seria alguém que não poderia
senão almejar chegar ao reino do demónio26. O Estado não seria algo de teoricamente mau, aliás
se ele existe é porque isso foi a vontade de Deus, mas a verdade é que S. Agostinho não
conheceu nenhum Estado capaz de realizar a vontade de Deus, de permitir que o Homem vivesse
de acordo com a civitas dei. Ele tem, portanto, uma perspetiva pessimista da política, dado que
não vê no Estado a prossecução da justiça que se traduz na entrega a cada um daquilo a que
tem direito. O Estado era, com isto, uma mera agregação dos Homens para que houvesse uma
participação comum quando necessário, ou seja era algo de interesseiro o que fez com que o
Estado fosse um meio para se efetivar uma forte ambição de domínio e poder e, com isto, abria
portas para se viver de acordo com a civitas terrena e não mais do que isso.
Posto isto, vê-se bem que S. Agostinho mantém a divisão platónica de dois mundos, uma visão
dualista, se bem que agora com conceitos diferentes. Perante esta visão pessimista de S.
Agostinho, a proposta que o autor faz é precisamente a da conversão do Estado ao
Cristianismo e subordinação à Igreja. Com isto, a vida seria já uma que necessariamente
acordava com a civitas dei: o Direito Natural proviria de Deus e, portanto, tudo o resto estaria
conforme ao Seu ensinamento. Isto permitiria que a relação fosse já não uma apenas entre o
Homem e o Estado, mas entre o Homem e Deus, uma relação já não apenas política, mas
também espiritual.
No que toca ao Direito, o sentido vai ao encontro disto acabado de dizer: a justiça é a aquilo
que a vontade divina disser que é justo. Como S. Agostinho o diz: Justo é simplesmente o que
Deus quer e só porque o quer. Quer isto dizer que o Direito Natural agostiniano era um
desprovido de conteúdo, pois veja-se que Santo Agostinho “reduz” a uma vontade o Direito
Natural e não nos dá uma justificação que não seja o mero “porque sim”. Caímos, portanto,

23
Diocese argelina da qual era bispo Agostinho
24
Civitas Dei
25
In bibliografia indicada; pág.35
26
Por isto, a civitas terrena também é designada por diaboli.

12
Diogo Chiquelho
Filosofia do Direito

numa falta de conteúdo que o autor não supre. Se o Homem seguir a vontade de Deus e todos
os princípios que daí advêm então o Homem alcançará a salvação eterna e viverá, lá está, de
acordo com a civitas dei. Os conceitos de Aristóteles e dos Estoicos perdem-se no sentido em
que já não há tanto um intelectualismo ou um naturalismo, mas sim um voluntarismo e um
eticismo cristãos. Voluntarismo porque a sujeição à vontade de Deus é algo que exige que o
sujeito se predisponha ele mesmo a isso, que se entregue a Deus, à sua ética que se traduz, ao
fim ao cabo, naquilo que Ele quiser: uma discricionariedade divina. Já nada tem a ver com uma
ideia intelectual ou racional ou nada tem a ver com a natureza, mas apenas com um ideal ético-
voluntarista.
Veja-se que se é a vontade de Deus que produz o Direito e se o Estado deve sujeitar-se à Sua
vontade o que se tem, ao fim ao cabo, é a primeira conceção de Estado de Direito, porque o
Estado se subordina ao Direito: o Direito é o que Deus quer e o Estado deve subordinar-se a
Deus, pelo que o Estado está abaixo do Direito, devendo-lhe obediência.

Uma tese como esta leva a que a Igreja se tornasse também numa instituição dominante.
Domínio este apenas possível no Ocidente, pois como vimos no Oriente o imperador manteve
sempre a Igreja sob seu controlo, ao passo que no Ocidente um vazio político permitiu que a
Igreja se afirmasse. Os povos germânicos que haviam invadido o Ocidente e que levaram à queda
do Império Romano nesta parte do globo eram diversos e cada um deles trazia a sua própria
ideia de Estado, a sua ideia de nação, o que significa que a única instituição que resta no
Ocidente capaz de manter a unidade e o universalismo era apenas a Igreja, já à altura com
organização e domínios.
A Igreja é obrigada a olhar para tamanhas diferenças entre os povos e a adaptar-se a elas, tendo
considerado a existência de várias nações distintas o que fez com que a Igreja, dentro de toda
esta universalidade, tivesse que operar territorialmente e quase como que casuisticamente. Em
França, com Carlos Magno, isto foi notório: a relação entre o político e a Igreja era uma ideia
que servia ambos para o alcance universal, sendo que seria o Papa quem estaria acima do poder
régio, coroando-os. Pela Igreja os Estados conseguiam ir sendo reconhecidos como tal, deixando
de serem apenas uma Nação para se definirem como um Estado, devendo para tal de se
converter ao Cristianismo e ao poder papal. Esta supremacia do espiritual sobre o temporal vai
manter-se até ao séc. XV, só aí equilibrando-se e, mais tarde, vai ganhar supremacia o temporal
sobre o espiritual.
Além disto, com a queda do Império Romano do Ocidente a cultura e o saber que restavam
estavam na Igreja. Os povos germânicos que haviam invadido o Ocidente eram rudimentares e
de baixa cultura, pelo que a única que restava era a que estava armazenada nos mosteiros.
São Tomás de Aquino
Santo Agostinho é o nome maior da Filosofia cristã até ao séc. V ao passo que São Tomás de
Aquino vai sê-lo até ao séc. XII. Vimos bem que em S. Agostinho o pecado tinha um efeito fulcral
para diferenciação entre aqueles que viviam segundo a “Cidade de Deus” ou aqueles que viviam
segundo a “Cidade terrena” e que os faria direcionar para diferentes mundos suprassensíveis.
Em S. Agostinho este pecado original era intrínseco ao ser humano ao passo que em S. Tomás
de Aquino o pecado não tinha tamanha força e o Homem tinha em si algo de bom, uma virtude
original. Posto isto, se Agostinho era mais pessimista, pode-se dizer que Tomás era bem mais
otimista. Muito isto se deve aos panoramas históricos em que se inseriam cada um daqueles
autores: S. Agostinho viu um mundo em desconstrução com a queda do Império Romano do
Ocidente e o retrocesso civilizacional ao passo que S. Tomás já viu um mundo em reconstrução
e os novos Estados a formarem-se.

13
Diogo Chiquelho
Filosofia do Direito

Outra divergência entre os dois autores passa pela relação vontade-intelectualismo e entre
bem-justo. Santo Agostinho conferiu à vontade de Deus toda esta força, advindo daí tudo. Já
São Tomás toma Deus como um ser de natureza intelectual e o bem seria produto da Sua
vontade, mas que teria sempre que atentar a essa natureza intelectual. O que à partida parece
confuso tem uma distinção clara: é que Santo Agostinho não limita a vontade de Deus e São
Tomás já o faz, porque obrigando-O a notar o intelectualismo então diz-Lhe que Ele não pode
deixar de querer o bem. Significa isto, ao fim ao cabo, que a vontade de Deus olha agora a Razão.
Posto isto, São Tomás de Aquino como que retorna a Aristóteles e importa o conceito de Razão,
mas agora a Razão passa pela inteligência divina e cumpre a função de regulador da lei natural,
como vimos. A lei natural provém de Deus, mas vê-se regulado pela Razão. Por sua vez, a lei
natural desdobra-se tanto em lei moral como em lei jurídica e esta última pode ser Direito
Natural ou pode ser Direito Positivo. Assim, pode-se dizer que quanto ao Direito o vazio que
Agostinho nos apresentou se desvanece aqui. Não se sabe bem em que se pode retratar o Direito
Natural em Santo Agostinho dado que a Sua vontade terá sempre de ser aceite e cumprida, ao
passo que em São Tomás há já um critério regulador que dá a entender que o conteúdo nem
sempre será arbitrário, será um sempre regulado pelo intelectualismo, pela Razão que
garantirá sempre que a Sua vontade será justa. Como nos diz Lesley Levene: A abordagem de
São Tomás de Aquino ao argumento da razão versus fé é a de que estes são independentes mas
complementares, sendo a primeira subserviente sem ser subordinada.
No que toca ao Estado, São Tomás vai importar novamente as ideias de Aristóteles: O Homem é
um animal social. Por assim ser, faz parte da sua natureza esta organização da sociedade, como
faz parte da natureza a família, ou seja, é algo que toca o instinto fundamental do Homem. Olha-
se para o Estado numa perspetiva otimista, como sendo necessário para assegurar a paz e a
segurança e visa prosseguir o bem-comum, na medida em que o Estado deve permitir que o
Homem o seu bem-estar material para que ele trate das suas lides suprassensíveis, um bem-
estar espiritual. E este bem-estar espiritual já é uma relação entre o Homem e a Igreja à qual o
Estado é alheia, e como o bem-estar espiritual é superior ao material então o Estado é como
que um meio onde o Homem se insere e onde este poderá tratar da sua relação com a Igreja,
daí que também os fins temporais (a História, o Estado, etc) devem estar subordinados aos
espirituais e, consequentemente, o Estado, que representa os primeiros, à Igreja, que representa
os segundos, em tudo o que a estes últimos se refere (…)27. O Estado deve subordinar-se à Igreja
numa ótica de coordenação porque os fins serão os mesmos. Isto permite até que não só
podem, como devem ser desrespeitadas as leis que sejam injustas, porque essas fugiram à
regulação pela Razão e defende até que seja afastado um tirano, porque este vai contra a lei
divina, poder este que o Papa dispunha precisamente por estar acima do poder régio.
4. Pensamento jurídico moderno
4.1. Renascimento
A partir de meados do séc. XV notam-se dois fenómenos na História da Cultura: o Humanismo e
o Renascimento. A promoção de uma nova conceção de vida distinta da que ocorria durante a
Idade Média impulsionou um incentivo no próprio Homem ocidental. A par disto, motivaram-se
os Descobrimentos, inventou-se a imprensa, deram-se passos na investigação científica,
começaram-se a notar traços do capitalismo moderno, etc o que necessariamente motivou
teses distintas das anteriores, teses que tinham o Homem como um capaz, tinham uma
perspetiva mais antropocêntrica do que a teocêntrica que se notava até então.

27
Citamos Cabral de Moncada in bibliografia indicada; Vol.I; pág.84

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Diogo Chiquelho
Filosofia do Direito

Ao fim ao cabo, o que se vai notar é um início de primazia do temporal sobre o espiritual, ou
seja o político sairá do jugo do religioso e emancipar-se-á, quebrando a ideia de Estado de Direito
que vinha até então, porque até aí o Estado estava subordinado à Igreja e ao Direito que
provinha da vontade divina. O abstrato cai, ganhando relevância o concreto, o individual e o
Direito Natural vai-se construir sobre o próprio Homem em si.
Nicolau Maquiavel
Machiavelli é um teórico que vem romper com tudo o que vem sendo dito. Desde logo, porque
o abstrato não lhe interessa. A ele interessa-lhe o concreto, a realidade, ao passo que como
vimos na Grécia, em Roma ou na Escolástica havia sempre uma teoria por detrás de uma
aplicação mais material. É, como diz Cabral de Moncada, o tipo consumado do “pensador
existencial”, na sua oposição ao do “pensador abstrato”28.
Para o autor, a natureza passa por uma luta constante entre forças sem uma qualquer
organização, vigorando na natureza uma anarquia entre essas forças. No mesmo sentido
funciona a sociedade, ou seja os Homens estão individualmente a construir o seu percurso – o
individualismo – de acordo com as suas necessidades e impulsos egoístas – o pessimismo – e,
portanto, a sociedade será composta por uma série de acontecimentos sem uma grande
sequência lógica e, por isso, precisam de um líder, um príncipe, que trilhe esse rumo, sem o qual
vigorará um fatalismo, porque os Homens só de per si não conseguem alcançar o bem. O líder
terá que se um portador de virtude (virtú) e só com ele algo de útil é que se consegue alcançar
na sociedade. A virtude passa pelo civismo, pela dedicação ao bem comum e pela criação e
gestão de Estados livres através do trabalho dos líderes políticos. Esta virtude era a qualidade
máxima do indivíduo e só o governante que fosse portador dela é que levaria a sociedade a
grandes feitos, pois caso contrário Sem ela, os homens corromper-se-iam necessariamente29. E
o político virtuoso será aquele que siga os conselhos que o próprio autor lhes dá em O Príncipe.
Machiavelli aconselha o Príncipe a não ter receio em adotar os meios que ache necessários para
alcançar os fins que pretende, por exemplo não deve temer a prática de crueldades ou de violar
a palavra dada ou os tratados quando lhe seja conveniente e, portanto, o “maquiavelismo”
consiste precisamente na ideia de que “os fins justificam os meios”. Este ideal que diríamos ser
pouco ou nada ético não é uma preocupação do autor, pois relembre-se que ele não se preocupa
em nada com as ideias abstratas, mas preocupa-se sim com eficácia e eficiência política e, com
isto Uma tal circunstância não deixa de fortalecer a opinião daqueles que sempre viram no “Il
Principe” mais um receituário de bons conselhos de amigo (…) do que um verdadeiro tratado de
Ética política. O seu propósito foi, não dizer-nos o que o Estado deve ser, mas aquilo que ele é 30.
Se assim o é então o Estado e o Príncipe não têm de se preocupar em dar justificações ou em
subordinar-se à Igreja. Simplesmente isso será mais um entrave às possibilidades que o Príncipe
deve ter na sua esfera para poder então, segundo a virtú de que falámos já, alcançar os fins que
almeja. Permitir que a Igreja coartasse em alguma medida o Príncipe seria coartar os meios
disponíveis, a sua vontade. Por isto, assiste-se nas ideias de Machiavelli a uma autonomia entre
o político e o espiritual.
Estas ideias nunca chegaram a vingar, pois a reforma era tanta que chegou a ser escandalosa à
época se bem que o autor teve um papel relevante em aconselhar os governantes dos séculos

28
In bibliografia indicada; Vol.I; pág.97
29
Citamos Cabral de Moncada in bibliografia indicada; Vol.I; pág.99
30
Citamos Cabral de Moncada in bibliografia indicada; Vol.I; pág.102

15
Diogo Chiquelho
Filosofia do Direito

seguintes31 – e até os da atualidade -, em promover a autonomia do político e na ótica


individualista e concreta que afastava a tamanha teorização que se assistia até então.
Jean Bodin
Se Machiavelli era um “pensador existencial” voltado ao material e concreto, Bodin era um
clássico no que toca ao pensamento abstrato e teórico. A França da sua época, da segunda
metade do séc. XVI, era uma marcada por conflitos de índole religiosa e, portanto, o autor agora
em análise tem em atenção a necessidade de reforço do Estado. Para este efeito, Bodin vai
reforçar o conceito de soberania, clarificando-o. Define-o dizendo que Soberania é o poder que
acima de si, afora Deus, não admite outro e que, por natureza, é em si mesmo ilimitado e
permanente. Releva muito este conceito, desde logo, porque vigorava muito o feudalismo, uma
tendência que permitia aos nobres quase que serem superiores ao próprio poder régio dentro
das suas terras, aí cobrando impostos e fazendo as suas leis o que tornava o Estado em algo,
nem que seja aparentemente, curto na sua autoridade. Com aquela noção que o autor dá
percebe-se que o Estado não deve permitir que ninguém o limite, a não ser Deus. Note-se que
esta ideia de soberania não quer promover a ideia de absolutismo: o soberano ainda admite
Deus acima de si e considera o Direito Natural – muito fundado na vontade de Deus -, mas não
afeta certas instituições marcantes da esfera privada do sujeito, tais como a família ou a
propriedade. O soberano estava, assim, apenas acima do Direito Positivo e não acima do Direito
Natural, de Deus e até de certas instituições tidas como sagradas, mas ainda as leis
fundamentais32. Retorna à ideia de Direito Natural, deixando bem claro que este já não é do
domínio do Príncipe, pois este só toca o positivado. Importa deixar aqui claro aquilo que Santos
Justo refere ao dizer que A soberania, que tanto pode pertencer a um monarca como ao povo
ou a um corpo de nobres, compreende, em primeiro lugar, o direito de fazer leis, mas quem as
faz não lhes parece estar sujeito: permanece-lhes superior 33. Quer isto dizer que de facto
imediatamente levamos o conceito de soberania até ao monarca, mas em bom rigor o autor
refere que essa soberania pode ser exercida pelo próprio povo, apesar de ser avesso à
democracia.
Posto isto, Bodin – nem Machiavelli - nunca clarificou a distinção entre a soberania e o soberano
o que, ao fim ao cabo, fez com que se confundisse soberania com a pessoa que seria o soberano.
Ambos os autores olham para o Estado como um carente de algo que o fortifique, se bem que
Machiavelli nos seus conselhos permite uma vasta amplitude à sua atuação, ao passo que Bodin
tentou clarificar as barreiras intransponíveis pelo Estado e seus governantes. Apesar disto, e
apesar do que dissemos acima quanto à distinção entre soberania e absolutismo, a verdade é
que o conceito de soberania servirá para promover as monarquias absolutistas, entendendo-se
soberania como algo de totalmente alheado de limitações o que, como vimos, não foi a intenção
nem a ideia de Bodin.

31
Ao fim ao cabo o que Machiavelli fez foi dizer em voz alta aquilo que todos, ou antes, muitos,
particularmente os príncipes, diziam já em voz baixa e, mais que diziam, praticavam. Citamos Cabral de
Moncada in bibliografia indicada; Vol.I; pág.107
32
Que, em França, Bodin dizia serem essencialmente duas: a lei sálica que impedia as mulheres de
acederem ao trono e a lei que proibia que todo o património do reino fosse alienado. Havia ainda uma
outra que passava pela não sujeição a novos impostos do povo sem estes consentirem, mas Bodin deixa
a ressalva que tal consentimento pode ser ultrapassado em caso de necessidade, o que ao fim ao cabo só
dá mesmo um grau de intocabilidade àquelas duas primeiras.
33
In bibliografia indicada; pág.44

16
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Filosofia do Direito

4.2. Período barroco


Hugo Grócio
Este autor holandês insere-se num movimento continuador do humanismo, mas que tem uma
visão mais voltada para o futuro e toda a sua tese constrói-se nessa vertente, não obstante ir
estudando os fenómenos passados e tendo-os em conta na formação da sua proposta.
Grócio fora inspirado pelo humanismo, pelas ideias de liberdade individual e ainda pela ideia de
que a guerra deve ser regulada e as relações entre os Estados devem reger-se segundo o Direito.
A verdade é que Grócio, na segunda metade do séc. XVII, encontra uma Europa com Estados já
fundados e soberanos, mas com reticências em relacionarem-se entre si a não ser pela guerra,
muito por força de rotas comerciais ou por força da religião, pois note-se que houve revoluções
cristãs que promoveram as ideias protestantes de Lutero. Por isto, a obra de Grócio visa
precisamente antecipar situações conflituosas e, prevenindo-as, defendia um direito acima do
direito dos povos que rege-se essas relações, mesmo em momentos bélicos: o Direito das
Gentes. Enquanto que Machiavelli só se preocupou com os interesses vitais das repúblicas, Bodin
com a construção jurídica da ideia de soberania (…), Grócio tomou sobretudo a peito defender a
ideia de tolerância entre os povos cristãos, a união das confissões cristãs e a juridificação e
humanização da guerra34. Sim, apesar de “fronteiras bem fincadas” e de fraco relacionamento
transfronteiriço na Europa ainda vigorava a religião cristã, contudo a ideia universalista de que
já falámos foi-se desvanecendo em função do individualismo. Temos aqui, portanto, a criação
do direito internacional moderno, evoluindo até ao nosso atual Direito Internacional Público
sendo indubitavelmente este um dos grandes contributos do autor.
A vida em sociedade é necessária porque o instinto humano assim o indica: é a tal ideia
aristotélica de que O Homem é um animal social. Para este autor o Homem agregou-se em
sociedade perante a necessidade de transitar de um estado de natureza para o estado social,
algo que se fez mediante um contrato social, o que significa que temos aqui um retorno a teses
contratualistas quanto à origem do Estado. Mas este conceito de contrato social é, em Grócio,
um conceito mais histórico e até factual do que propriamente abstrato ou intelectual, pelo que
este contrato – que em muitos autores não passava de uma ficção que servia para justificar a
origem do Estado – é aqui algo mais real, o que levava a que houvesse tantos contratos sociais
quanto constituições políticas.
O povo era o detentor do poder – e o povo, em Grócio, é conceito confundido com Estado – e
que passou para o governante a soberania, contudo ele não explica bem como é que ocorre a
tal entrega pelo povo ao governante dessa soberania, ou seja não clarifica bem como opera esse
momento democrático. Mas sabe-se que uma vez feita esta transição então o povo perdia esse
poder em prol do príncipe e as ações do governante estavam, por isso, legitimadas porque como
nos diz Santos Justo35: o contrato social funciona como uma “praesumptio juris et de jure36”
segundo a qual os atos praticados pelos governantes se entendem consentidos pelos súbditos.
Mas nem por isto se pode dizer que a soberania de que dispunha o governante, o príncipe, era
ilimitada. Hugo Grócio deixou claro que as limitações que conhecia esse poder passavam pelo
direito natural, pelo direito divino e pelos direitos das gentes. Grócio defendia um Estado
submetido ao Direito, lutando contra a tese de Machiavelli que permitia ao Estado não conhecer
entraves para alcançar os seus fins.
O Direito Natural – que também limitava o príncipe – consistia em algo superior ao próprio
Estado e até ao próprio poder divino, a algo que valia só por si mesmo porque o justo será justo

34
Citamos Cabral de Moncada in bibliografia indicada; Vol.I; pág.154.
35
In bibliografia indicada; pág.45.
36
Presunção inelidível.

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Diogo Chiquelho
Filosofia do Direito

e o bom será bom: a matematização da ideia de Direito. Se assim o é nem Deus pode evitar que
o justo deixe de o ser, da mesma maneira que não pode alterar o resultado de que dois mais
dois resultará em quatro. O Direito Natural é, em Grócio, muito inspirado por Platão porque
procura sempre esta ideia de justo e de bem e está acima não só do que é empírico, mas até do
que é suprassensível, o que quer dizer que na divisão dualista platónica de mundo sensível e
mundo suprassensível o Direito Natural será um que se pode encontrar neste segundo, mas que
vale por si mesmo, é autónomo.
Thomas Hobbes
À medida que nos vamos afastando da escolástica e da Idade Média também vamos assistindo
ao fenómeno da laicização, dando-se ao Direito Natural uma visão mais antropocêntrica e
quebrando com a teocêntrica que havia à altura. É nesta sequência que o inglês Hobbes se vem
colocar também. À época vai-se assistindo a uma revolução científica em que as ciências são
cada vez mais desenvolvidas através da matemática e da lógica e, portanto, Hobbes vem
importar aquilo de que já falámos em Grócio que é a matematização, fortemente inspirada na
conceção de Galileu de que o conhecimento científico da natureza só alcançava até onde podia
chegar precisamente a teoria matemática do movimento37. Ao fim ao cabo, para construir seja
o que for tem de se ir até ao elemento mais simples para a partir daí se construir tudo, ou seja
explicando-se a maior das simplicidades consegue-se ir explicando toda a construção feita até
se chegar ao complexo, sendo isto algo de lógico e matemático. E é isto que o autor faz também
na sociedade: ele desconstrói-a até ao seu elemento mais simples, ao seu átomo, ou seja o
indivíduo e quanto a este Hobbes diz que o Homem é caracterizado simplesmente por ser feroz
e insociável de egoísmos e era essa a sua natureza: uma visão pessimista da natureza humana
que se pautava bem na ideia de homo homini lupus38. Com esta caracterização do “átomo” então
naquela explicação que demos já se pode ir contruindo o complexo. O Homem tem a
necessidade de passar desse estado de natureza – que é feroz, egoísta e no qual os Homens se
acabariam por devorar uns aos outros – para um Estado Social, abdicando daquela natureza
para ser substituída por uma paz que é interesseira, mas estável. Este Estado, por sua vez, é
originado por um contrato, no qual os Homens – dada aquela perspetiva totalmente pessimista
da natureza humana hobbesiana – conferem ao Estado um poder total e absoluto39. O Estado
além de absoluto deve ser omnipotente, totalitário e toca em todas as vertentes, sejam elas
políticas, sejam elas espirituais40. Mas no mesmo sentido de Grócio, Hobbes também refere que
a origem de tamanho poder estadual é o povo, mas esta democracia está apenas e só aqui,
porque uma vez atribuída pelo pacto social ao Estado o poder então nunca mais é recuperável,
se bem que o povo pode bem escolher a quem entrega o poder: se a um monarca ou se a uma
assembleia, pois para Hobbes é indiferente. Sem este Estado - sem este Leviatão - nada mais
sobrará que não, diríamos, a destruição total da espécie.
Quanto ao Direito Natural segue-se a mesma ótica de matematização e de pessimismo na
natureza humana o que leva a que o Direito deva ser respeitado para conservar a sua vida e os
membros do Estado, o que quer dizer que o Direito Natural não passará daquilo que a Razão
diga que deve ou não ser feita de acordo com aquele fim de manutenção da espécie. O direito
à autoconservação é o topo do Direito Natural e, por isso, o Homem evitará o que poderá
conduzir a conflitos como incumprir contratos, desrespeitar a propriedade dos outros ou a sua

37
Citamos Cabral de Moncada in bibliografia indicada; Vol.I; pág,168.
38
“O Homem é um lobo para o Homem”
39
(…) o único pacto é o contrato social que fundou a cidade e constituiu ipso facto, definitivamente, a
autoridade absoluta do imperante. Citamos Cabral de Moncada in bibliografia indicada; Vol.I; pág,176.
40
Hobbes, para representar este Estado omnipotente, ímpar, utiliza a figura de um monstro: o Leviatão
(Leviathan) precisamente pela força que lhe quer dar.

18
Diogo Chiquelho
Filosofia do Direito

vida ou integridade física, etc. Já o soberano deveria garantir que o Estado não se dissolveria
para assegurar a paz, dispondo para tanto de um poder, como vimos, absoluto e ilimitado. É
àquela autoconservação que tudo está subordinado, incluindo o Estado, o que quer dizer que o
Estado está subordinado ao Direito, porque se o Direito Natural traduz-se naquele direito de
autoconservação e se o Estado está adstrito a ele então o Estado tem que ser de Direito.
Em Hobbes fica clara a quebra com algumas noções que a Escolástica e algumas das posições
que fomos vendo supra foram apresentando. Desde logo, Estado e Direito não era a mesma
coisa, mas distingui-los seria irrelevante, porque o Estado é o único a produzir o Direito e sua
autoridade. Também se perde a relação Igreja-Estado no sentido em que só um “senhor” deve
ser absolutamente respeitado, pelo que a Igreja se deve subordinar ao Estado41. Como nos diz
Cabral de Moncada, Hobbes como que põe a civitas dei de S. Agostinho de pernas para o ar e
inverte as suas intenções: se neste se deveria viver de acordo com a “Cidade de Deus”, naquele
que aqui estudamos agora deve viver-se mais de acordo com a “Cidade-terrena”.
Hobbes é original porque aplica um método científico e matemático à construção do Estado e
do Direito e toma a soberania como um conceito importante e de origem democrática, mas que
rapidamente e irreversivelmente se converteria numa monarquia absoluta e totalitária. Com
esta perspetiva científico-matemática e natural o autor inspira bastante os autores que
estudaremos em seguida: Locke e Rousseau, Sem ele, inclusivamente, Locke e Rousseau não
seriam possíveis42. Quanto à questão da soberania condutora ao absolutismo e totalitarismo
este autor fora bastante criticado porque a sua inspiração britânica era tudo menos totalitária,
mas, opostamente, altamente liberal e, ao mesmo tempo, Hobbes era um burguês e liberal,
tendo até interpelado o Estado a intervir no mínimo possível. Por isto se diz que este
totalitarismo de Hobbes era individualista, na medida em que o Estado existiria para garantir a
paz e conservar a espécie para que com isso o indivíduo pudesse realizar-se, daí que se diga que
há efetivamente um totalitarismo, mas que servia até propósitos de individualismo, ou seja um
totalitarismo individualista. Por tudo isto, Hobbes deve ser considerado um liberal equivocado
(…)43.
4.3. Duas das tendências: um olhar para trás e um olhar em diante
A Neo-escolástica
Durante o período barroco assiste-se a uma discussão entre aqueles mais tendentes à Idade
Média mesmo que inspirados pelo humanismo e entre aqueles que segundo o humanismo
querem uma quebra com a Idade Média e só querem seguir em frente.
A primeira destas posições – a que não quer esquecer o estudado na Idade Média mesmo que
tocados pelo humanismo – foi predominante na Península Ibérica e é nisso que se baseia a neo-
escolástica. Quer-se uma Igreja novamente dotada de supremacia, queria-se o espiritual
novamente sobre o temporal, e considerava-se que Deus havia entregue ao povo o poder e que
este, através de um contrato social, transmite-o ao governante que exercerá o seu papel nos
termos acordados, podendo ser destituído caso incumpra e até pode ser morto. Esta é a linha
de pensamento de Francisco Suarez que vem combater a ideia de que o poder régio é um poder
recebido diretamente de Deus e, por isso, o governante está adstrito a cumprir as obrigações a
que se submeteu no contrato até porque o Direito Natural tem a sua fonte na Razão humana.

41
Esta quebra com a Igreja que Hobbes faz é definitiva e nunca mais voltará a ter a força que tinha até se
chegar às teses hobbesianas.
42
Citamos Cabral de Moncada in bibliografia indicada; Vol.I; pág,179.
43
Citamos Cabral de Moncada in bibliografia indicada; Vol.I; pág,182.

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Filosofia do Direito

A Escola de Direito Natural Racionalista


Na sequência daquilo que dissemos para introduzir a neo-escolástica, a Escola de Direito Natural
Racionalista é já aquela que segue aquela vertente que quer olhar em diante e não tem qualquer
interesse em olhar para os ensinamentos provenientes da Idade Média.
Esta é a escola que “vence” e é a tese dos autores que vimos, como Hugo Grócio, Thomas Hobbes
e John Locke, que veremos em seguida. Esta escola quebra a ideia de Direito Natural medieval
metafísico-religioso, muito motivadas pelas guerras religiosas promovidas pelas reformas
protestantes e luteranas que a Igreja sofreu, mas ainda dado o cientismo a que se assistiu que
motivou a crença na Razão humana. Esta crença vincada no Homem dá-lhe confiança e tem-no
como um ser que não precisa de mais nada para vingar, algo que irá motivar também tendências
positivistas, porque o Homem conseguirá fazer códigos perfeitos, pelos quais seja possível
dirimir tudo.
Posto isto, acaba por se promover a falência do Direito Natural, na medida em que se o Direito
Natural basear-se-á na Razão humana e se o Homem é capaz de fazer Direito Positivo perfeito
então esse Direito escrito será necessariamente a transposição da Razão Humana para o papel
o que faz com que o Direito Natural não tenha um papel lá muito relevante até porque, ao fim
ao cabo, o Direito Natural e o Direito Positivo têm exatamente a mesma fonte: a Razão Humana
e acaba por não fazer sentido terem-se dois conceitos que exprimam exatamente o mesmo.
5. Pensamento jurídico contemporâneo
5.1. O Iluminismo e o pensamento jurídico-político
No séc. XVIII vive-se uma época em que se questiona tudo, especialmente o passado. Muito por
força do contacto com outras religiões e ainda da reforma protestante e de Martinho Lutero que
criou uma divisão na fé cristã começou-se até a questionar qual seria a verdadeira fé, pelo que
toda esta época é marcada por um forte racionalismo e pela secularização, ou seja rompe-se
com o teológico e os textos bíblicos não estão livres de serem discutidos e criticados. Há uma
quebra com as questões espirituais, altamente metafísicas e abstratas o que quer dizer que se
quebra com o romantismo, pelo qual tudo era muito teórico e, lá está, não tinha linhas muito
claras. Dá-se uma hipertrofia da razão, como lhe chama Cabral de Moncada, porque tem-se uma
Homem capaz de tudo explicar através das ciências, não só no plano das ciências naturais mas
também nas ciências sociais: Nada terá agora validade, se não conseguir justificar-se perante o
tribunal da razão44.
Outras marcas da época é o naturalismo, pelo qual o Homem tem-se com um ser do mundo
natural assim como tudo o resto; o cientismo que transmitia que tudo pode ser explicado através
das ciências, em especial a matemática, a física e a química; o individualismo, que transmite
valores de liberdade, igualdade e de propriedade e estes são direitos naturais, mesmo anteriores
ao próprio Estado e, portanto, não se transmitirão para o Estado aquando do contrato social; o
estatismo, que confere ao Estado uma posição reguladora no que toca àquele individualismo,
de modo a que isso não afete a sociedade. A verdade é que se virmos bem, já nos autores que
vimos supra como Hugo Grócio ou Hobbes esta ideia de individualismo existia em parte, mas
não se tinha como uma prioridade, ou seja a liberdade era um ponto de partida, mas não era
bem um ponto de chegada: recorde-se que, por exemplo, a democracia esgotava-se logo ao
início da formação do Estado quando o povo entregava ao governante a soberania e que não
recuperaria. Pois, aqui no Iluminismo é precisamente isso que se vai notar: a liberdade individual
será ponto de partida e de chegada, assim como outros direitos que agora terão a conotação de
originários ou naturais e que, por isso mesmo, serão intocáveis pelo Estado.

44
Citamos Cabral de Moncada in bibliografia indicada; Vol.I; pág,199.

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Diogo Chiquelho
Filosofia do Direito

Todo este Liberalismo seria uma tendência “óbvia”, pois veja-se que antes era já uma realidade
mais abstrata e que servia o propósito de construir a sociedade, contudo agora servirá um
propósito bem mais ativo e claro, um propósito que não só está na base, mas sob o qual andará
sempre todo o funcionamento do Estado. Além disso, à época assistem-se a revoluções, entre
as quais a inglesa de 1688 que implementa um governo liberal e parlamentar e da qual advém
o famoso bill of rights. Ao mesmo tempo começa a notarem-se traços de uma economia e de
uma indústria a quererem despoletar, algo que se vem consumar com a Revolução Industrial
cujo início será em 1760.
John Locke
Este autor inglês olha para o conhecimento racional como sendo a mais nobre função e atividade
humanas e, aliás, a própria filosofia seria precisamente nada mais nada menos do que o
conhecimento racional. E antes de qualquer coisa importa perceber-se a origem das ideias, pois
só percebendo-se isso é que se pode construir sobre elas toda a filosofia. Para Locke as ideias
são produto dos sentidos e das sensações, ou seja está na base um grande empirismo, e não há
tal coisa como “ideias inatas”, ou seja se tudo provém da experiência, do empirismo, então o
Homem não tem em si ideias aquando do seu nascimento, pois essas vão sendo adquiridas pela
experiência do Homem ao longo dos tempos. Todo conhecimento é adquirido, pela educação,
pelo hábito e pela tradição. Se assim o é então noções éticas e religiosas são ideias que também
são adquiridas e não inatas ao Homem e por isso mesmo é que há povos sem qualquer ideia de
Deus.
Posto isto, a técnica para construção do Estado e do Direito lockeano será a mesma: perceber o
“átomo”, as bases na sua mais simples forma, para a partir daí ser possível perceber-se o
complexo, algo que já vimos que não é necessariamente inovador. Por isto mesmo, Locke
também volta ao indivíduo no seu estado-de-natureza, contudo este Homem não é um ser feroz
ou naturalmente mau como o era em Hobbes. Opostamente, Locke olha para esse estado como
um de liberdade, em que os Homens dirigiam as suas ações livremente, sendo limitados pela
sua autoconservação e a dos outros, pelo que este estado-de-natureza é um em que ninguém
se sobrepõe a ninguém e todos os seus integrantes são iguais. Na base da sua doutrina está a
ideia de que o Homem é naturalmente socializável45. Problema surge quando falam as paixões
humanas que geram inconvenientes e para estes serem combatidos então só o Estado social é
que pode prevenir isso e dirimir esses inconvenientes. Assim sendo, mais uma vez através de
um contrato social os Homens transitam do seu estado natural para este Estado. Mas perante
este contrato social há uma substancial diferença daquilo que acontecia em Hobbes. No
contrato social hobbesiano os Homens transmitiam ao Estado o poder e todos os seus direitos
o que originou um absolutismo. Já o contrato social lockeano rejeita essa integral alienação de
direitos, pelo que aquando do contrato social há certos direitos inalienáveis que o Estado não
recebe, pura e simplesmente porque eles são irrenunciáveis e intransmissíveis. Se o Estado em
Hobbes tinha em si todos os direitos dos Homens então claro que esse Estado teria abertura
para ser absoluto e totalitário, algo que Locke acautelou e permitiu que a sua construção fosse
a de um Estado liberal. A saber, são aqueles direitos inalienáveis o direito à propriedade privada,
à vida, à segurança, ao direito de resistência e a liberdade de consciência e de religião: Renunciar
a esse mínimo de liberdade, seria o mesmo que destruir-se46. Perante este panorama, o fim do
Estado não será outro que não o de permitir o gozo pacífico e seguro da propriedade, de
assegurar a paz, a segurança e o bem-estar para que as pessoas gozem dos seus direitos.

45
Citamos Santos Justo in bibliografia indicada; pág.46.
46
Citamos Cabral de Moncada in bibliografia indicada; Vol.I; pág,215.

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Diogo Chiquelho
Filosofia do Direito

Nesta sequência Locke apresenta alguns pressupostos para que seja eficaz este Estado: não
pode haver qualquer chance de poderes absolutos em benefício de um soberano. A soberania é
da comunidade e, mais, do indivíduo e no máximo ela pode ser delegada temporariamente em
alguém mas a título de representação; Dentro do Estado as leis devem ser reconhecidas e
legitimadas através da votação favorável pela maioria, sendo o poder legislativo o poder
supremo do Estado; O poder do rei é um mais voltado para a execução e para a representação
do Estado externamente e notando-se incompetência para essas lides então a comunidade pode
revoltar-se contra o poder régio, se bem que Locke não clarifica em que é que isto se concretiza;
Deve ter-se clara a divisão de poderes, para que uns não abusem dos outros, pelo que o poder
legislativo seria entregue a uma maioria representativa do povo, o poder executivo era
incumbência do rei, pelo qual ele exercia a administração mas também a justiça e o poder
federativo era também uma incumbência régia mas já na vertente voltada para as relações
externas47. Todavia, quem é investido da autoridade pública não a pode utilizar arbitrariamente,
exatamente porque lhe é confiada para tutelar os direitos de cada um. Se abusar, viola o contrato
e o povo retoma, ipso facto, à sua soberania originária48.
Locke acredita ainda que o Direito Natural existe e tem ligações divinas transcendentes e que
servirá para reger os Homens aquando do seu estado-de-natureza, mas também para reger a
vontade das maiorias no Estado social e político. Locke tem isto em consideração porque ele
próprio teme os excessos em que se podem traduzir a vontade das maiorias e sabe que mais do
que essa vontade, interessa a vontade do povo. Surge, portanto, aqui uma dicotomia e uma
tensão entre dois conceitos, duas vontades: a vontade da maioria vs. a maioria do povo. O
Homem cria o Direito através do poder legislativo devendo-lhe, por isso, respeito dado esse
Direito transparecer a sua vontade, se bem que se tem sempre o problema de se perceber se ali
está a vontade da maioria ou a vontade do povo. Neste receio do autor está a sua vertente mais
intelectualista, porque ele antecipa a possibilidade de a maioria não transparecer a vontade do
povo, aquilo que ele realmente quer e necessita, sendo que a vontade da maioria pode apenas
transparecer a vontade privada daqueles que representam o povo.
Por último, Locke peca pela falta de uma visão universalista, ou seja a sua tese está muito voltada
para a Inglaterra à sua época, uma que corta com uma governação absoluta e que transita para
uma liberal. Como nos diz Cabral de Moncada Locke, ao contrário de Rousseau, estava depois, e
não antes da revolução49. Assim sendo, estas ideias de Locke não seriam mais do que uma
conveniência britânica, não obstante terem um papel fulcral na inspiração de outros autores.
Jean-Jacques Rousseau
Saídos de Inglaterra, as ideias de John Locke inspiraram bastante demais pensadores. Entre eles
Rousseau, francês, que pega nessa tese – e noutras – dá-lhes um certo cunho pessoal e isso
motivará até a própria Revolução Francesa.
Rousseau segue a ideia de que é preciso partir-se do indivíduo, do concreto, para se construir a
sociedade e o próprio Estado, algo que já vem claro dos autores anteriores. Ora, a ideia que este
autor tem quanto à natureza humana é já oposta àquela que tinha Hobbes: para Rousseau o
Homem não é um ser mau por natureza, aliás ele é “essencialmente bom” por natureza, mas
uma vez inserido na sociedade ele é corrompido, é depravado, e, portanto, é preciso atuar-se
no sentido de o Homem voltar à sua essência boa. A proposta deste autor francês será, assim,
muito baseada nesta ideia de que o Homem tem que dar um passo atrás, no sentido em que

47
Aqui a divisão de poderes é tripartida, mas ainda não é a divisão que temos na conceção atual que passa
pela divisão legislativo-executivo-judicial. Esta divisão vem apenas mais tarde com Montesquieu.
48
Citamos Santos Justo in bibliografia indicada; pág.46.
49
In bibliografia indicada; Vol.I; pág,221.

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Diogo Chiquelho
Filosofia do Direito

deve afastar-se da sociedade que o corrompeu para corrigir isso mesmo: quer-se um regresso
do Homem à natureza. Mas este regresso não é para uma natureza no seu ponto de vista
selvagem, não é um estado animal e de impulsos, mas sim um estado em que vigorará a natureza
racional humana, produto de um conciliar entre a lei natural e a vontade divina. Rousseau olha
para Deus como um transcendente, mas esta transcendência vem apenas conferir à natureza e
ao Homem um princípio ético de bem e de virtude e, por isso mesmo, o Homem – assim como
a natureza – será bom se obedecer à lei natural que Deus colocou, porque ele foi o Criador. E,
por esta ideia basilar, era tido como um otimista no que toca à ideia cristã.
Compreendido isto, então será mais fácil de se compreender a sua tese quanto ao Estado e
quanto ao Direito. Para Rousseau quer-se perceber como se legitima o Estado e para tal tem
que olhar para o contrato social que origina o Estado. Os Homens teriam através do contrato
social abandonado o estado-de-natureza, pelo facto de perceberem que apesar de ser vantajoso
esse estado, as desvantagens eram superiores e por interesse o Homem abdica de alguma da
sua liberdade natural para ganhar uma outra espécie de liberdade, mas, mais do que isso, para
ganhar segurança50. Nesta transição, Rousseau segue a ideia de Locke no que toca a haver uma
esfera de direito que não transitam para o Estado social, pois são inalienáveis, entre estes
direitos está precisamente a liberdade. Ou melhor: os direitos até transitam para o Estado
social, contudo esses direitos naturais são convertidos em direitos civis e imediatamente são
devolvidos aos indivíduos. Mas o que é preciso esclarecer é como ocorre isto, como consegue
o Homem sair do seu estado-de-natureza, em que ele é um ser bom, para passar para um Estado
social e ainda assim manter os seus direitos, entre eles a liberdade, quando antes esta era
garantida. Pois bem, Rousseau diz que isto conseguir-se-á se o Homem garantir que o Estado
em que se vai inserir é um que defende e proteja fortemente o indivíduo e os seus bens e,
também, que cada um deles não obedeça afinal senão a si mesmo, ficando tão livre como
dantes. Ao fim ao cabo, o Homem tem de se organizar de forma que o Estado em que se insere
leve a que ele não tenha que respeitar outra coisa que não a si mesmo.
E isto consegue-se por um conceito que Rousseau vem incluir e que vem muito ao encontro da
dicotomia já apresentada por Locke entre vontade do povo e vontade da maioria: a vontade
geral. Rousseau nunca deu um conceito bem claro quanto a isso, mas percebe-se que o que ele
quer separar é a vontade proveniente da necessidade do corpo moral e coletivamente visto da
vontade da maioria que se baseava na vontade psicológica de cada um dos membros e que se
traduziria apenas por uma maioria. É este conceito o central na tese de Rousseau, porque é ele
que permitirá harmonizar a vontade empírica e a liberdade de cada um dos indivíduos que se
inserem no Estado com as exigências que o Estado importa. Desde logo, o indivíduo quando se
entrega à comunidade entrega-se totalmente, de modos a que se todos se entregam totalmente
então todos perdem, mas todos ganham o que os outros entregam, pelo que ao fim ao cabo
conserva-se o que já se tem: passa-se assim de uma liberdade natural para uma liberdade
política e civil. E dentro desta liberdade política o exercício da liberdade consiste precisamente
em respeitar a vontade geral e se o Estado se vê obrigado a atuar para obrigar o indivíduo a
respeitar aquela vontade então ao fim ao cabo está a obrigá-lo a ser livre. Portanto, o Estado é
soberano, algo que se traduz num poder absoluto que visa precisamente cumprir a vontade
geral. E esta soberania também é inalienável e não admite representação, pelo que o autor em
causa repudia a forma de administração representativa e parlamentar como a que existia na
Inglaterra de Locke. Não obstante isto, os governantes são um corpo intermediário entre o

50
Conta Santos Justo que a vida naquele estado-de-natureza era uma vida feliz e livre, mas isso tudo se
perde quando um certo sujeito demarcou uma parcela de terreno e afirmou que aquilo era dele, nascendo
a propriedade privada e daí emergiram os conflitos desvantajosos; in bibliografia indicada; pág.50

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Diogo Chiquelho
Filosofia do Direito

soberano e entre os súbditos e servem o verdadeiro soberano que é o povo e, portanto, o povo
pode substituir ou destituir o governante.
Assim sendo, Rousseau acaba por ter um direito que se ancora na ideia de Deus enquanto
Criador de tudo e, portanto, a natureza do Homem será boa, na medida em que o Homem
também é produto de Deus. Assim, a vontade geral na qual se deveria traduzir a lei acaba por
se confundir com essa vontade, ao passo que também se confunde com o Direito e tem-se aqui
uma confusão conceitual o que vai gerar, por sua vez, que lei e Direito sejam aquilo que a
vontade geral queira e apenas porque o quer e, dado o risco de muitas vezes não se ter a vontade
geral mas apenas a vontade das maiorias então toda a premissa pode cair e aquilo que seria um
Estado liberal pode rapidamente transformar-se num Estado autoritário e totalitário. Não se
sabe bem quem será o “porta-voz” dessa vontade geral, as leis que os Homens produzirão serão
incontestáveis, porque se os Homens são justos então a lei que eles produzem será justa, etc e
tudo isto leva mesmo a que o próprio autor venha dizer que a sua democracia nunca existiu nem
poderá jamais existir. A verdade é que o autor quis tanto fugir do absolutismo hobbesiano como
do liberalismo lockeano e acaba por ter uma tese bastante contraditória e utópica, mas que
mesmo assim não deixa de impulsionar a Revolução Francesa e ainda de dar alento ao
positivismo que viria a emergir, como veremos.
Emmanuel Kant
Este autor vem marcar notoriamente o panorama filosófico à época, dizendo-se mesmo que há
um antes de Kant e um pós Kant.
Ele arranca da ideia de centrar o Homem no conhecimento, fazendo tudo o resto gravitar em
seu torno, dando-se um primado do elemento subjetivo na construção do conhecimento
racional. A Razão humana passa, como nunca antes, a ter um papel mais ativo na elaboração da
ciência. E o que o Homem deve procurar é a Forma que se traduz naquilo que se pode retirar
dos sentidos e através da experiência, a Matéria. Mas o que importa mesmo é o fenómeno e
não o nómeno, o que quer dizer que interessa é que tenham ocorrido os factos e não a sua
essência, a sua substância, pois isso é relativo. Aliás, este conhecimento kantiano é duplamente
relativo: relativo quanto aos fenómenos, porque, lá está, ignora a essência das coisas e só sendo
possível conhecer a forma das coisas, mas é ainda relativo ao sujeito que conhece, pois um outro
indivíduo conhecerá de outra forma até porque o conhecimento é algo situado no tempo e no
espaço e, por isto, volátil.
A par disto, Kant apresenta também uma outra vertente, agora mais voltada para o sollen, ou
seja para o domínio do dever-ser e não tanto voltada para o sein, do ser. São dois domínios que
não têm contacto entre si. O mundo do dever-ser está representado pelo imperativo categórico
de fazer o bem, mas o bem e o mal são distinções que variam consoante o tempo e o espaço.
Como pressupostos (mas também ainda, em si, imperativos categóricos) do cumprimento deste
imperativo categórico deve o Homem ser livre moralmente, liberdade esta que tem de aceitar
que a imortalidade da alma efetivar-se-á pelo que o Homem poderá sujeitar-se a sofrer sanções
numa vida futura. Se assim o é então também terá que ser pressuposto a crença em Deus.
Posta que fica assim a ideia geral da filosofia kantiana então passaremos a conhecer agora a sua
posição quanto ao Direito e quanto ao Estado, o qual veremos que será um modelo idealista e
abstrato, um modelo mais teórico do que voltado para uma aplicação efetiva. Neste ponto a
posição de Kant bebe muito dos conceitos enunciados já nos autores iluministas de que temos
vindo a falar.
O Direito Natural de Kant é um que se passa a ter mais como um Direito Racional, na medida
em que o que se pretende é que se realize a liberdade do Homem, pelo que o Direito Natural
kantiano servirá mais uma vertente “regulativa” do que propriamente “constitutiva”. Quer isto
dizer que não ir-se-á fixar um conteúdo para o Direito Natural ou concretizá-lo, mas ele servirá

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Diogo Chiquelho
Filosofia do Direito

para regular se tudo está conforme ao preceito que se quer fazer cumprir: a tal liberdade do
Homem. Perante isto, o Direito será um critério para permitir a liberdade do Homem em si,
mas também nas relações com os outros permitirá a liberdade com os outros. Mas a moral
tem também uma mesma função, mas Kant distingue-os e deixa clara a sua separação: é que a
moral está no domínio interno, no domínio das intenções e dos motivos e, portanto, não há uma
expressão externa disso pelo que não é coercível, não pode ser juridicamente sancionado, ao
passo que o Direito já recai sobre aquilo que se exterioriza, sobre as ações em si que serão, por
isso mesmo, sancionáveis. Apesar disto, em Kant a moral tem uma grande relevância porque
por esta atitude interna do indivíduo se percebe se ele quer ou não ir ao encontro do imperativo
categórico.
Dissemos que não só o Direito servirá para garantir a liberdade do indivíduo, mas também para
regular as suas relações com os outros para que esses também possam ser livres. O Homem é
um ser dotado de liberdade e a sua vontade livre pode e deve ser exercida, mas cada um dos
Homens deve adequar o seu arbítrio à liberdade dos outros, pelo que se concebem aqui
restrições ao arbítrio, mas não à liberdade. Quer isto dizer que Kant distingue arbítrio e
liberdade: a primeira é, ao fim ao cabo, o fazer aquilo que bem apetece, sem mais ao passo que
a segunda é o que tem já um valor racional e moral. O arbítrio deve ser, por isto, regulado e
controlado para que a liberdade não seja coartada, pelo que à custa do arbítrio deve sempre
garantir-se mais liberdade. As limitações que cada Homem, no estado civil, sofre na sua esfera
de ação particular, são portanto restrição do seu arbítrio, mas não da sua liberdade. Todo o
direito está ao serviço da liberdade51.
Perante esta ideia, Kant vem dizer já que o Homem do estado-de-natureza é um que já se rege
juridicamente, havendo já personalidade, propriedade e negócios jurídicos, mas o que falta a
este estado é o poder público, tribunais e afins que, ao fim ao cabo, venham tutelar os direitos.
Por isto, Um tal estado não é pois prejurídico, mas jusnaturalístico, porque nele há já Homens
dotados de razão, e onde há razão há direito52. Já há direitos subjetivos e privados anteriores ao
Estado, faltando apenas o Direito Público. Assim sendo, para se completar precisamente esta
tutela então tem que se passar para um Estado, pois só este será um “completamente jurídico”
e, por isso, garante o direito privado. Ao fim ao cabo temos aqui uma distinção entre Direito
Público e Direito Privado: no estado-de-natureza o Direito Privado já existe, como vimos, mas
falta-lhe o Direito Público que o garanta, pelo que se vem recuperar aqui a divisão de justiça
distributiva e de justiça comutativa de origem aristotélica, como vimos a seu tempo. Em Kant, o
Estado social ou civil também se funda por via do contrato social, mas este contrato é imposto
em nome da razão para que seja formado um Estado que é o ideal e segundo a Razão e só
assim se consegue uma ordem jurídica total. Por isto, o contrato social também é uma vertente
mais regulativa do que constitutiva - mas não é um facto histórico - na medida que serve um
propósito, que serve para chegar ao fim e não tem um peso tão significativo substancialmente
como tem em autores que fomos vendo. E, por isto, o contrato social kantiano diverge do
hobbesiano e do lockeano porque estes eram produtos algo egoístas e interesseiros e diverge
também do de Rousseau, porque este era algo mais arbitrário, ao passo que o de Kant era um
contrato mais universalista e, portanto, não tanto individualista.
No que toca ao conceito de vontade geral de que falámos em Rousseau e que ele confundiu
bastante a pontos da sua teoria ter sido bastante contraditória, Kant dá-nos algumas respostas.
O autor diz-nos que a vontade geral será uma expressão universal da Razão e o indivíduo que
ganha força de legislador tem, por essa via, forma de garantir o imperativo categórico de que

51
Citamos Cabral de Moncada in bibliografia indicada; Vol.I; pág,260.
52
Citamos Cabral de Moncada in bibliografia indicada; Vol.I; pág,261.

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Diogo Chiquelho
Filosofia do Direito

falámos supra e de tutelar a liberdade. Ao fim ao cabo a vontade geral traduzir-se-á na vontade
racional de cada um dos sujeitos que integra a comunidade em função de ser cumprir o
imperativo categórico e se conseguir almejar a legislação que seja universal. Quer isto dizer
que há um retorno a ideias universalistas e vem-se quebrar precisamente com o individualismo
e “atomismo” que vimos em autores anteriores: (…) Kant considera que a vocação da
humanidade é a formação de um Estado único53.
5.2. O Humanitarismo
O Humanitarismo é uma tendência que toca essencialmente o Direito Penal e Processual Penal,
desde logo no concernente aos fins das penas, dos quais é representante Cesare Beccaria.
Vigorava, até então, um ideal ético-retributivo, pelo que agora tocam-se os fins de prevenção
(especial e geral) – A explicação religiosa da pena como expiação é substituída pelas ideias de
necessidade e utilidade (…)54 - ao mesmo tempo que a rainha das penas é precisamente a pena
privativa de liberdade, pois sabe-se que o valor mais relevante à época era a liberdade e uma
sanção que coartasse esse valor absoluto seria aquela vista como a mais pesada, contudo esta
sanção conhece o princípio da proporcionalidade, em razão da dignidade da pessoa humana: a
pena de prisão deve ser proporcional à gravidade do delito. Caem, por isso, as penas corporais
muito frequentes à época, precisamente pela força da nova regina poenarum. Esta consideração
pela dignidade da pessoa humana permite um olhar para o arguido com olhos mais
consideravelmente e isso vem-lhe conferir mais direitos: surge o princípio do in dúbio pro reo e
uma estrutura acusatória de processo penal passa a ser uma tendência. Outro princípio ainda
hoje nosso conhecido e seguido que surge no âmbito desta escola é o do nullum crimen sine
lege, pelo qual ninguém pode ser punido sem que ao momento da prática do facto houvesse
uma lei que punisse precisamente aquele ato criminoso, classificando-o como tal.
Toca ainda no princípio da intervenção mínima do Direito Penal ou da necessidade de
intervenção penal, ou seja quer-se que este ramo do Direito intervenha apenas e só na medida
do necessário e imprescindível, dado que a liberdade só pode conhecer restrições na medida do
estritamente necessário e isto tem muitas ligações com o que dissemos nestes últimos autores
quanto ao contrato social, porque vimos que nesses há direitos que o Estado não ganha aquando
deste pacto, havendo direitos anteriores ao Estado, direitos esses que constituem uma esfera
privada que o Estado só toca na medida do necessário precisamente para os garantir.
5.3. Usus modernus pandectarum
Esta escola alemã do “uso moderno das pandectas” tem uma vertente de estudo dos Direitos
nacionais e uma outra vertente que olha precisamente para o Direito Romano tentando
perceber a sua atualidade e, posteriormente, retirar daí conceitos aplicáveis à modernidade.
Usa-se uma orientação racionalista precisamente para se distinguir o direito vivo ou atual e o
direito caduco ou peculiar a Roma, só interessando o direito atual 55.

Com a morte de Hegel, autor que se segue a Kant56, retorna-se às influências da Revolução
Francesa com o individualismo, do liberalismo, do cientismo e até se chegar ao positivismo. Mas
antes de Hegel vigorou um movimento antirrevolucionário e romântico que nada mais nada
menos quis do que contrariar os ideais liberais revolucionários franceses e todos os seus
dogmas, querendo-se reforçar ao absolutismo, a vontade de Deus como originária do poder

53
Citamos Santos Justo in bibliografia indicada; pág,51.
54
Citamos Santos Justo in bibliografia indicada; pág,52.
55
Citamos Santos Justo in bibliografia indicada; pág,53.
56
Autor que muito bem poderia ser estudado, mas que não consta do programa desta unidade curricular
aquando da redação deste Bloco.

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Diogo Chiquelho
Filosofia do Direito

régio e do próprio Estado. Posto isto, este movimento romântico irá opor-se ao Iluminismo e à
perfeição da razão, algo que até, aliás, se vai notar na arte através da espontaneidade,
sentimentalidade e já não tanto ponderado e racional. Este movimento romântico alemão é
aquele em que se insere Kant e Hegel. Como vimos, Kant foi um autor com uma tese muito
idealista e indo até ao seu cúmulo, dando à metafísica um forte pendor, algo que nunca mais se
vai recuperar.
A verdade é que no pós-Hegel recuperam-se os ideais iluministas e revolucionários de que o
Homem é perfeito, livre, capaz e toda a razão ronda-o. Por isto, a metafísica teve-se como
desnecessária, porque se o Homem é perfeito então a sua obra também o será, o que irá
impulsionar o positivismo. Repudia-se a metafísica, tem-se o conhecimento relativo que provém
da apreensão de uma causalidade mecânica, pelo que nunca se conhece a essência das coisas
mas apenas a relação que elas têm com outras, ou seja a sucessão de acontecimentos ou coisas
que representa a tal visão mecanicista do conhecimento. Na ética os atos vão ser medidos pelo
utilitarismo, na medida em que não interessa os interesses, intenções e motivações do
indivíduo, mas sim o que ele alcançou, o que quer dizer que tudo é medido pelo resultado e não
se quer ligar tanto ao plano interno do Homem. Será uma fase em que, por isto tudo, promover-
se-á muito a técnica jurídica das codificações perfeitas, porque a razão humana é perfeita e de
tudo capaz, sendo também capaz de fazer códigos fechados em que tudo se resolve sem ser
necessário recorrer-se a outras fontes.
Estas tendências positivistas surgem no plano da sociologia francesa por Augusto Comte, mas
que rapidamente quebrou essas barreiras e estendeu-se a tantas outras áreas. O positivismo em
sentido restrito foi este que foi ao encontro do positivismo sociológico de Comte ao passo que
o positivismo lato é o fenómeno no qual se encontram as demais teses positivistas de outras
áreas como o Direito, a política, entre outras áreas.
5.4. Positivismo exegético francês
Na sequência das tendências que fomos dando nota, com especial foco no que toca à
centralidade que o Homem teve de modos que o seu produto era um perfeito, pelo que a sua
razão era capaz de tudo e esse tudo era um tudo fechado, que não necessitava de nada mais a
não ser isso então as teses positivistas não tardam a desenvolver-se.
Nesta escola há identidade entre Direito, lei e justiça, pois veja-se que se segue o conceito de
Rousseau de vontade geral e se esta expressa-se através da lei e apenas por essa via então ao
fim ao cabo o Direito reduz-se à lei e a nada mais. Além disto, a lei será sempre justa porque o
próprio destinatário é o autor da lei, e veja-se que se baseia aqui na ideia de separação de
poderes de Montesquieu entre poder executivo, o judicial e o poder legislativo, este último do
qual são emanadas as leis, e o poder legislativo é exercido por uma assembleia representativa
e, por isso, pelo próprio Homem e o Homem não fará leis injustas para si mesmo.
A lei, portanto, única fonte de Direito, é interpretada numa ótica subjetivo-histórica, pelo que
o sentido da lei é aquele que lhe tiver sido dado pelo seu autor à altura em que foi feita, opondo-
se e recusando-se uma interpretação objetivo-atualística, que interpretaria a lei de acordo com
o momento em que ela será aplicada. A interpretação deve ser teleológica e não meramente
literal, mas a ratio que se procura é aquela que tinha o autor da lei aquando dua sua produção.
E no mesmo sentido, se as leis que eram produzidas e, na sua sequência as codificações, eram
perfeitas e a mais nada seria necessário recorrer para dirimir os casos que surgissem então pode-
se mesmo dizer que nunca havia um problema de lacunas e de sua integração. Antes disto, se o
juiz se via perante uma lacuna então ele procurava nas fontes de direito interno a sua integração,
recorrendo subsidiariamente ao direito estrangeiro e em última instância recorria ao
governante para que ele ditasse a decisão. Ora, com esta tendência positivista cuja lei é perfeita
e fechada então o magistrado não pode senão resolver o problema dentro da lei, por exemplo

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Diogo Chiquelho
Filosofia do Direito

através da analogia. Mas será sempre dentro da lei e nunca fora dela. Se isso não for possível
então só resta uma de duas respostas: ou o magistrado não conhece bem o sistema jurídico ou
então o problema não é jurídico. Note-se que isto era uma ideia tão vincada que Bugnet tem a
famosa afirmação que expressa precisamente isto: Só conheço o Código de Napoleão.
Quanto ao poder judicial e ao magistrado o que se pode dizer é que se a lei é sempre perfeita,
é justa e fechada então o juiz não passará de um mero técnico que faz um exercício de
subsunção e impulsiona a decisão, através de um silogismo judiciário puro: la bouche de la loi.
Aplica-se a lei ao caso concreto e decide-se consoante isso e nada mais. O juiz não questiona da
justiça da decisão, da justiça que a norma tem para oferecer ou da justiça que o caso concreto
reclama. E outra coisa não seria de se esperar: então se a lei é perfeita e sempre justa, como
vimos, então porque se preocuparia o magistrado em discutir o caso, a lei, a justiça? (…) pois a
sua função consiste, tão-só, num trabalho quase mecânico de aplicação-repetição da lei
mediante um elementar silogismo dito judiciário (…)57.
Esta tese suscita algumas críticas. Desde logo, percebe-se que esta posição exegética,
incontestável, é insustentável, pois fica impedido de perceber da justiça do caso concreto, da
norma, da decisão, etc. Claro que tal posição conduziria a decisões injustas, sendo nada mais
nada menos o positivismo exegético do que um grande abuso58 e ter-se um juiz que nada mais
é do que um técnico judiciário que mecanicamente aplica uma lei a um caso e escreve o que daí
advém só vem reforçar isso mesmo, pois nunca se sabe se foi justa ou não a decisão que dali
adveio. No mesmo sentido se vai quanto à questão de se achar que a lei será sempre justa, algo
que não merece muita discussão e se percebe com alguma facilidade que não é verdade: vemos
ainda nos nossos dias leis que são aprovadas por uma assembleia representativa e que nem por
isso se evitam que sejam emanadas leis injustas. Por último, mas em nada menos importante,
achar-se que um sistema está livre de lacunas é ser altamente ingénuo. Lacunas são inevitáveis,
porque algo de impossível é conseguir prever a imprevisibilidade da vida. Uma norma nunca
consegue tutelar todas as situações concretas da vida, porque o quotidiano leva a que os seus
contornos sejam constantemente diversos.
5.5. Escola histórica do direito ou do romantismo alemão
Para esta escola a principal fonte do direito não seria já a lei, mas sim o costume. Se cada povo
tem a sua cultura, a sua arte, etc então também terá o seu Direito o que se traduz no costume.
O espírito de um povo vai traduzir-se na sua língua, nas suas letas, artes, mas também no Direito.
Se assim o é então o que a jurisprudência deve fazer é um levantamento desses costumes,
interpretá-los e retirarem-se, dessa atividade, conceitos jurídicos. No primeiro momento, o
momento histórico, reúnem-se os costumes e num segundo momento, o momento científico,
aqueles são interpretados para que sejam produzidos conceitos jurídicos, contudo o que se vem
notar é que o momento científico acaba por ter muito mais atenção do que o momento
histórico, ou seja por inspiração kantiana a fase racional vai-se sobrepor à fase histórica, o que
quer dizer que o costume perde alguma relevância. A ideia apresentada quebra com o que o
positivismo exegético vem defender e todos os ideais revolucionários franceses: a codificação
deve ser afastada, pois a lei deve ser renegada na medida em que se é interpretada subjetivo-
historicamente então torna-se cristalina. A lei terá apenas, no máximo, uma função instrumental
de fixação dos costumes. Além disto, na ótica de Savigny, a Alemanha ainda não estaria
preparada para um código. Opostamente, Thibaut achava que um código alemão seria
pertinente para unir a Alemanha. A verdade é que ambos tinham razão no que diziam.

57
Citamos Santos Justo in bibliografia indicada; pág,55.
58
Diz Mitteis em Le Droit Naturel que este positivismo legalista é o pior abuso do pensamento jurídico que
se conhece na História do direito alemão.

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Diogo Chiquelho
Filosofia do Direito

Esta é uma escola romântica porque se baseia no espírito do povo, o que conduz à relevância
dada ao costume, e isto retorna à metafísica o que leva a que seja uma tese que se sujeite a
imensas críticas.
É de se notar que dentro desta escola surgem ainda duas outras: a vertente germanista, que se
voltava mais para o estudo do direito germânico, e uma vertente romanista, voltada mais para
o estudo do direito romano. A verdade é que é a vertente romanista a que mais vinga o que gera
controvérsia, porque se estava a estudar um direito que não era do “seu” povo. Se o Direito
varia de povo para povo então a escola alemã deveria estudar o costume alemão, ao passo que
está a estudar o direito romano, sendo paradoxal. Aliás, o direito romano não é uma vertente
mais histórica e circunscrita, mas é sim o completo oposto: é um direito imperial, um direito
com uma visão universalista e que quebra as barreiras dos povos, ou seja lá está mais uma
contradição com a ideia central desta escola histórica do direito. Por estas contradições todas,
esta escola acabaria por se perder e para emergir no seu lugar a Jurisprudência dos Conceitos.
5.6. Jurisprudência dos Conceitos
Como que numa mutação da escola anterior, surge esta escola.
A ideia de que se parte é a de que o Direito está carregado de conceitos, os quais se podem
organizar numa pirâmide conceitual como lhe chama Puchta e o Direito reduzir-se-ia a essa
pirâmide.
Perante um problema seleciona-se o conceito mais específico sob o qual ronda o problema. Esse
será a base da pirâmide, mas pode não ser capaz de apresentar a solução para o problema.
Assim deve seguir-se para um conceito seguinte, com o qual tenha relação o caso, mas também
o primeiro conceito, sendo este agora ligeiramente mais amplo do que o primeiro. Mas este
conceito pode não oferecer ainda a resposta e nesta sequência vai-se sucessivamente até se
encontrar um conceito capaz de dar a resposta necessária ao problema. À medida que se vai
procurando conceitos estes vão sendo cada vez mais amplos, o que quer dizer que à medida que
se sobe a pirâmide os conceitos vão sendo cada vez menos específicos para irem sendo cada vez
mais latos, o que quer dizer que no topo da pirâmide estaria o conceito mais amplo possível.
Mas é curioso isto porque veja-se que uma pirâmide terá uma forma triangular em que o ângulo
superior tenderá a fazer com que a parte superior da pirâmide seja cada vez menos do que a
base do triângulo. Mas ao mesmo tempo os conceitos que estarão no espaço superior, mas
menor, da pirâmide serão os conceitos que precisamente precisam de mais espaço, por serem
os mais amplos, sendo que os mais específicos estarão no sítio onde há mais espaço, não
precisando tanto dele. Por isto, como que se teria de inverter a pirâmide quanto à sua forma,
para seguir aquela sequência.
A interpretação da lei é feita com o sistema do positivismo exegético francês, ou seja numa
perspetiva subjetivo-histórica, e nisto se traduz a jurisprudência inferior de Ihering. A
jurisprudência superior focar-se-ia na elaboração dos conceitos necessários para compor a
pirâmide conceitual partindo daquela interpretação da lei para isso, ou seja a lei é sempre ponto
de partida para esta construção. A lei é intocável e nunca posta é em causa, partindo-se sempre
do pressuposto que ela é justa e assim será necessariamente a decisão, o que obviamente é
falacioso e ingénuo, até porque como no positivismo exegético acredita-se que não há lacunas,
porque a pirâmide conceitual tudo conseguirá esclarecer.
No mesmo sentido que também vai o positivismo exegético, aqui também se olha para a
pirâmide conceitual como perfeita e fechada. Aí se encontra a resposta para dirimir a querela,
pelo que se se chegar ao topo da pirâmide e não houver resposta então das duas uma: ou o
magistrado não conhece todo o sistema conceitual ou então a querela não é de Direito. Mas, ao
mesmo tempo, cada vez que se vai subindo na pirâmide vão-se tendo cada vez conceitos mais
amplos, o que significa que quanto mais se sobre na pirâmide então cada vez mais nos afastamos

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Diogo Chiquelho
Filosofia do Direito

do caso concreto para irmos cada vez mais para o abstrato, ficando cada vez mais difícil dar a
justiça que o caso concreto precisa e merece.
5.7. Positivismo normativista
Voltamos ao “início”. Quando tentámos separar a Filosofia do Direito da Teoria do Direito
referimo-nos à Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen. Era desta corrente que nos referíamos,
que vem no séc. XX gerar tensão no pensamento positivista dando grande enfoque ao momento
normativista. Não voltaremos a explicar essa teoria, tal seria redundante e já dedicámos
bastante tempo a explicá-la e a criticá-la supra, pelo que para aí remeto59. Contudo, importa que
se saiba enquadrar nesta corrente tal teoria.
Esta corrente vem realçar o rigor da dimensão normativista, da dimensão formal e estrutura do
Direito, o que indubitavelmente é relevante, mas peca pelo afastamento da dimensão axiológica
do Direito. Como nos diz Santos Justo60 é um conjunto de normas consideradas na sua
autonomia formal, desligadas do fundamento normativo que as transcende e da realidade social
em que atuam e, mais à frente, diz-nos que Por isto, o direito reduz-se a uma peculiar técnica de
controlo social essencialmente coativa. Se a axiologia está afastada então também está
impossibilitado o debate do conteúdo do Direito e das normas que são emanadas o que abre
portas para que o Direito se torne numa ferramenta de controlo social: a dimensão normativista
é relevante em razão da segurança, mas a sua visão axiológico-valorativa permite que o Direito
olhe além da segurança.
5.8. Positivismo sociológico
Estamos perante uma corrente que se foca muito no empirismo e no dinamismo da vida em
concreto, pelo que ignora e nega o formal. Confrontando esta corrente com a do positivismo
normativista que temos imediatamente antes é olhar para uma reação, porque
indubitavelmente se os normativistas olhavam estritamente para o formal, estrutural, já os
positivistas sociológicos não querem nada disso, aliás, renegam-no.
Os positivistas sociológicos olham o Direito como um facto social, pelo que ele se concretiza no
caso concreto e não tanto através do normativismo, mas muito através da convicção e
sensibilidade do julgador, o que quer dizer que o próprio julgador pode afastar as normas, o que
fará recair tudo num puro decisionismo e num puro casuísmo o que será perigoso e altamente
instável. Com isto, criticam-se as perspetivas sociológicas por quebrarem tanto com a dimensão
normativista, a qual é importante e cuja importância – apesar de ser de se criticar a sua teoria –
foi notada e reforçada por Kelsen na Teoria Pura do Direito. É que a dimensão normativa é
irrecusável, como também o é a dimensão axiológica, pelo que se recusarmos isto perdemos o
jurídico e acabamos por ter nada mais nada menos do que apenas Psicologia do Direito e
Sociologia do Direito.
O realismo jurídico norte-americano
No positivismo sociológico norte-americano tem-se uma recusa da Jurisprudência dos
Conceitos, por se achar ser uma conceção fraca e incapaz de acompanhar a mudança. Vigora
um forte empirismo, pelo que os juristas não devem olhar para os tradicionais conceitos, mas
olhar sim para a vida e para a realidade. Assim, o Direito dever-se-ia construir olhando-se para
as causas que o motivam e para o fim que almeja e as decisões judiciais é que comporiam esse
Direito: um decisionismo, casuísmo. O estudo mais relevante que, neste plano, deveria ser feito
pela ciência jurídica era o de estudar as probabilidades de um julgador decidir num ou noutro
sentido o que implicava que se estudassem aqueles que seriam os fatores determinantes para
uma decisão.

59
Supra in Filosofia do Direito “vs.” Teoria do Direito, A Teoria Pura do Direito; págs.3 e 4
60
In bibliografia indicada; pág.63

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Diogo Chiquelho
Filosofia do Direito

O realismo jurídico escandinavo


Para os escandinavos releva a jurisprudência a qual se traduz no estudo pelo jurista do caso
concreto em função de perceber as suas causas sociológicas, ou seja, opera um puro casuísmo.
Nada é inobservável empiristicamente, pelo que se tudo é aferido em função da experiência
então não releva em nada o racionalismo humano, criticando inclusive o direito tradicional por
ele se referir a conceitos irreais. Se assim o é então o tal jurista, através do estudo e confronto
entre o que é externo – os comportamentos – e o que é interno – as ideias e os sentimentos –
conseguirá aferir dos motivos psicológico-sociológicos que irão construir o Direito. O julgador,
perante esta informação e estudo sociológico e atendendo à sua ideia de justiça, decidirá o caso
concreto mesmo sem olhar para qualquer norma.
5.9. Escola de Direito Livre alemã
Estamos perante uma escola que se situa já no séc.XX e que arranca da crítica ao positivismo
jurídico, tentando reafirmar o papel que o juiz deve ter na realização da justiça. O juiz não é um
mero técnico, o ordenamento jurídico tem outras fontes que não apenas a lei e o sistema tem
lacunas61. Veja-se a quebra que se tem com a escola positivista e veja-se ainda que estas
considerações são ainda hoje visíveis no Direito.
Quer-se tanto quebrar com o positivismo jurídico que se cai na fundamentalidade da decisão do
juiz, ou seja a decisão que o julgador tem é o elemento central do Direito, o que faz cair também
esta escola num forte decisionismo, o que a aproxima, quanto a isto, das correntes sociológicas.
Será fonte de direito a vontade do magistrado e este pode mesmo divergir da lei se fundamentar
que se o legislador fosse agora legislar então fá-lo-ia de forma diferente ao que está
efetivamente legislado, se a lei não oferece uma solução indubitável ou se a lei se notar injusta.
Nestes casos o juiz “é livre de fazer o seu Direito”, daí o nome da Escola.
É meritório desta corrente a importância dada a uma decisão judicial na concretização da justiça,
mas é meritório ainda o facto de se desconfundir a lei e o Direito e a importância que o caso
concreto ganha. Por sua vez, a queda no forte decisionismo é já criticável, pois cada juiz acaba
por ganhar uma autonomia tal que cada um decidirá da maneira que achar que deve decidir –
através da sua vontade, intuição subjetiva do que é justo, consciência jurídica e sentimento do
que é o Direito - gerando um clima de incerteza para o Direito. Ignorar-se e afastar-se a lei não
pode, portanto, ser uma via utilizada pelo que esta escola acaba por não vingar e esta não pode
apenas servir para fundamentar a posteriori uma decisão, pois para esta Escola a lei é mais um
elemento que dá sentido, ou não, à decisão adotada pelo juiz, porque acaba por não se recorrer
a ela previamente a ser feita a decisão.
5.10. Jurisprudência dos Interesses
Estamos face a uma Escola que procura a teleologia das normas jurídicas, procura a ratio e o fim
da lei, pelo que a lei releva para esta Escola, sendo que ao fim ao cabo, o que se quer perceber,
é qual o interesse que a norma jurídica protege: a cada norma corresponde um certo interesse
que o legislador, na opção feita, visou tutelar. Note-se que é uma Escola ainda hoje muito aceite
entre nós.
A obediência à lei pelo juiz deve ser feita de forma inteligente, ou seja perante a solução que a
lei oferece para um conflito de interesses o julgador olha para ela, não de forma cega,
incontestável, mas sim numa ótica construtiva percebendo da justiça que o caso concreto
reclama e corrigindo a lei se notar que a vontade do legislador se alterou com o decurso
temporal. Quer isto dizer que esta obediência inteligente62 à lei passa por um olhar atento pelo

61
(…) contra a plenitude do sistema jurídico afirmou que, no direito legal, há tantas lacunas como palavras;
Citamos Santos Justo in bibliografia indicada; pág.69
62
A expressão é de Heck

31
Diogo Chiquelho
Filosofia do Direito

juiz à lei, não devendo contorná-la à partida, até porque esta é produto da vontade da
comunidade jurídica, a qual opera pelo legislador o qual está legitimado por aquela para tanto,
mas perante o conflito de interesses concreto que ele tem que dirimir ele deve olhar para o
interesse que a norma jurídica aplicável tutelou e aplicar tal norma, contudo a inteligência passa
muito por perceber que a lei não deve ser aplicada cegamente, pelo que se o legislador teria
legislado de forma diferente ou se a justiça reclamada pelo caso concreto e a justiça abstrata
oferecida pela norma não se relacionarem então o juiz está legitimado a interpretar
corretivamente a lei.
No que toca a lacunas, algo bastante debatido por estas últimas Escolas e correntes que temos
vindo a estudar, estas são tidas como existentes, porque é impossível que o legislador consiga
prever e intervir perante todos os conflitos de interesse. O ordenamento jurídico é lacunoso e a
forma de integrar lacunas passa pelo recurso à analogia: olhando-se para interesses similares
que outras normas jurídicas tutelam então o legislador pode aplicar essa solução por analogia
ao seu caso concreto. Perante a impossibilidade de integração via analogia a solução passará
por recurso aos juízos de valor sociais e, em último recurso, o juiz recorre aos seus próprios
juízos de valor.
Esta Escola não esquece o papel da ciência jurídica e frisa que a sua tarefa será prática, devendo-
se ocupar dos problemas normativos e sua formulação e sistematização. Os problemas
normativos são a tarefa principal da ciência jurídica, os quais devem ser tratados por ela para
que o juiz possa aplicar as normas ao caso concreto e para enfrentar os problemas de integração
de lacunas e quanto à formulação, tarefa secundária da ciência jurídica, deve-se conseguir dar
uma perspetiva clara do conjunto do Direito, tendo-se uma eficiente sistematização.
Perante tudo isto, esta Escola tem a vangloriar-se da quebra que conseguiu com a Jurisprudência
dos Conceitos e de ter conseguido dar alguma autonomia ao juiz, não afetando a importância
da decisão e do caso concreto na concretização da justiça, mas sem pôr em causa a obediência
à lei e as questões de segurança e certeza jurídicas. Por outro lado, pecou por não ter conseguido
olhar para todos os interesses que relevam no panorama jurídico, principalmente no Direito
privado (deficiência sociológica), por não ter conseguido separar o objeto e o fundamento da
valoração, pelo que a ratio das normas tornou-se trabalho da interpretação das lei e não mais
do que isso (deficiência criteriológica) e, por último, porque a ciência jurídica falhou na sua
tarefa secundária de sistematização do ordenamento jurídico, o que impossibilitou uma visão
transversal mas clara do todo do Direito (deficiência sistemática). Por estas críticas, mas diria
que em especial pela deficiência criteriológica, esta Escola acaba por se ter como uma que seria
um positivismo jurídico sociológico, porque tendo trazido tanto para o caso concreto questões
que deviam ser vistas no plano teórico então tornou isso em fatores psicológicos e sociais que
iriam ser submetidos a um tratamento empírico-sociológico.
5.11. Neopositivismo
Como nos diz Cabral de Moncada63 Os começos do século XX são a época por excelência dos
“…ismos”, embora muitos destes ismos acompanhados do prefixo “neo”. Esta Escola tenta
recuperar e, de certa forma, salva o positivismo. Refere, desde logo, que foi uma má aplicação
das leis pelos juízes durante a II Guerra Mundial que permitiu muito do que se conhece, contudo
a verdade é que o problema é bem anterior à aplicação da lei, sendo sim um problema da sua
aprovação, dado que as leis nazis, por exemplo, foram aprovadas através Assembleias
representativas.
Considera-se que há efetivamente valores que são superiores ao Direito positivo, algo que soa
imediatamente a paradoxal, porque se se considera que há algo superior ao Direito positivo

63
Citamos Cabral de Moncada in bibliografia indicada; Vol.I; pág,361.

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Diogo Chiquelho
Filosofia do Direito

então a ideia basilar positivista de negação de tudo que seja metafísico e até axiológico perde-
se. Mas isto não é necessariamente negativo, pois como nota Santos Justo64 o atual positivismo
não é a ideologia forçosamente conservadora e imobilista ao serviço da ordem estabelecida e
reconhece-se que o jurista também “pode dizer não” a um direito que considere injusto.
Apesar de tudo esta é uma Escola ainda hoje vigente, com exemplos positivistas no nosso
próprio Código Civil com a primordial fonte de Direito a ser a lei e a negação do costume
enquanto tal (cfr.arts.1º a 4º CC), as regras de interpretação da lei são se pendor essencialmente
positivista (cfr.art.9º e 10º CC) e veja-se que há juízes a aplicara a lei cegamente ainda hoje nos
nossos tribunais. A própria conceção de que preferimos a segurança em detrimento da liberdade
nos nossos dias é de pendor positivista.
5.12. Jusnaturalismo contemporâneo
Perante o flagelo da II Guerra Mundial tornou-se quase inevitável o retorno do jusnaturalismo,
porque olhar-se para o Direito como a mera vontade do legislador fora o que deixou ao arbítrio
dos governantes extremistas o decorrer da II Guerra Mundial65.
A verdade é que este Direito natural não será um como os demais, ou seja o seu retorno não
será necessariamente tido como tal, desde logo porque não é munido de grande conteúdo,
porque é tido como uma pura forma que funciona como Direito suprapositivo e cujo conteúdo
é mutável com o tempo e com o espaço, pelo que é difícil defini-lo substancialmente dada esta
variabilidade.
Foi uma corrente que vingou na Alemanha e se espalhou pelo mundo civilizado, principalmente
até à década de 60.
5.13. Doutrina da natureza das coisas
Para esta corrente há uma certa ordem natural que marca as relações interpessoais. A ordem
metafísica da natureza e a objetividade das coisas devem fazer com que o Direito se adapte a
elas, porque senão o resultado a que se chega pode mesmo ser injusto e inoperante. Isto parece
algo similar ao jusnaturalismo, mas se se vir bem não o é: o Direito Natural coloca-se acima das
relações da vida ao passo que esta doutrina se coloca mesmo ao pé das relações da vida e das
coisas. Mas a verdade é que a doutrina da natureza das coisas nada tem a ver com isso, com as
coisas, mas o que vai fazer será nada mais, nada menos, do que um juízo de valor às relações
interpessoais para que com esse produto se funde o Direito. Ora, isto não tem nada a ver já com
a natureza das coisas ou das relações, mas terá a ver sim o juízo de valor pelo que o Direito
acabaria por olhar para tal juízo de valor do que propriamente para tal natureza. Nas palavras
de Santos Justo66 (…) introduz nelas uma tensão jurídica que transmuda a sua fisionomia
empírica.
5.14. As soluções entre nós
Ao longo de todas estas páginas fomos tentando responder a três perguntas: o que é o Direito
justo? Como se cria o Direito justo? Como se aplica o Direito justo? E a verdade é que fomos
encontrando respostas diferentes de autor para autor e se quanto à criação e a aplicação até
fomos saindo esclarecidos, já quanto à primeira das questões não ficamos tanto. Mas, afinal, o
que é o Direito justo?
Para nós, muito por força da nossa herança greco-romana, pertencemos à civilização que tem
como ponto de partida o Direito e não o Estado, ou seja antes de se construir o Estado temos o
Direito e este estará acima do Estado: um Estado de Direito. Além disto sabemos que o Direito

64
In bibliografia indicada; pág.76
65
Como nos diz Gustav Radbruch Esta conceção da lei e a sua validade, a que chamamos positivismo, foi
a que deixou sem defesa o povo e os juristas contra as leis mais arbitrárias, mais cruéis e mais criminosas.
66
In bibliografia indicada; pág.79

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Diogo Chiquelho
Filosofia do Direito

é dinâmico para que ele consiga acompanhar a evolução dos tempos o que o faz situar-se
historicamente, tendo sempre “cada Direito” um contexto social e histórico que motivou a sua
concretização, daí que também releve bastante o caso concreto.
Uma das respostas que nos é dada vem de Batista Machado que nos diz que o critério para
perceber da justeza de uma norma passa pela ideia de Direito que exista. E tal ideia não tem
vigência própria, mas está evidenciada na comunidade e está também no Direito positivo o que
faz com que a ideia de Direito tenha uma polaridade positiva e uma polaridade transpositiva.
Posto isto, o legislador não cria Direito positivo, apenas o produz, porque o seu autor está na
comunidade e naquelas evidências que a comunidade partilha e que se vão traduzir na ideia de
Direito que dá àquele Direito justiça: a nascente é a comunidade e o legislador é apenas a fonte.
No mesmo sentido, quando o magistrado aplica a lei está a ser o porta-voz da comunidade e do
Direito que dela advém pelo que pode afastar-se dos desígnios que o legislador adotou quando
produziu aquela que foi a ideia da comunidade, porque o magistrado considera que se expressa
melhor tal ideia se forem afastados os desígnios do legislador, o que se traduz na possibilidade
do juiz afastar a lei.
Já Castanheira Neves, que se insere na Jurisprudência da Valoração, diz-nos que se deve partir
da dimensão axiológica, do valor da norma, para se fundamentar a dimensão normativa, o que
quer dizer que vem inserir à Teoria Pura do Direito de Kelsen esta dimensão axiológica, dado
que para Kelsen, como sabemos, releva apenas a dimensão normativa. E esta dimensão
axiológica é composta por três níveis: os princípios normativos, depois pelos princípios
fundamentais (irrenunciáveis juridicamente como a igualdade, a legalidade, etc) e, por último,
o respeito pela dignidade da pessoa humana que vem permitir que haja diálogo comunitário. A
composição destes níveis é feita por recurso aos valores que compõem o momento histórico-
cultural e a comunidade em que um problema surge e que são ditados muito pela ética naquele
contexto. Cumpridos estes níveis, porque a dimensão axiológica é o prius da dimensão
normativa, então estava validado o Direito positivo e a dimensão normativa, com especial
enfoque para o último nível da dignidade da pessoa humana, pois este seria o critério último
para conhecer da validade e justiça do Direito.
Ainda no seguimento de Castanheira Neves importa notar-se que o percurso que o autor faz
para responder à terceira pergunta – como se realiza o Direito? – é o percurso seguido e que dá
resposta a tal pergunta. E tal percurso é o seguinte: partindo-se do caso concreto, questionando-
se de forma a perceber da justiça que este caso reclama é que se passa para a norma jurídica
que será também ela questionada de modos a se perceber a justiça que esta norma é capaz de
oferecer e mediante as perguntas feitas as respostas podem ser diversas. Gera-se um “diálogo”
entre o caso concreto e a norma geral e abstrata até se chegar a uma conclusão: ou há similitude
entre a norma jurídica e o caso concreto e aplica-se tal solução, ou há analogia entre a justiça
requerida pelo caso concreto e uma outra norma suja justiça oferecida é análoga, estando
perante um caso de integração da lacunas, ou há inadequação entre a justiça requerida pelo
caso e qualquer justiça oferecida o que vai gerar um impasse, porque o julgador terá que
aguardar pelo legislador até que ele dê uma solução, até que ele legisle no sentido em que a
lacuna possa ser integrada. Vemos aqui a segurança a operar em detrimento da justiça.

III. Preocupações atuais


Nota introdutória: Estamos perante o último grande tema programático desta unidade curricular,
contudo, dado o tema que é, importa serem feitas algumas breves considerações.
Este tema terceiro será composto por uma série de, como é sua designação, temas que merecem
discussão e que suscitam preocupação na atualidade dos nossos dias, pelo que não serão temas que
encontrarão resposta. O que importa aqui é saber enquadrar-se cada um deles de modos a que se saiba

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Diogo Chiquelho
Filosofia do Direito

debatê-lo e que se dominem os conceitos que rodeiam a preocupação debatida. Mais: recorri a alguma
bibliografia extravagante que foi recomendada pelo docente, pelo que mais uma vez – além desta
informação já estar constante na Nota Introdutória a este Bloco – é importante salvaguardar-se que, pela
ambiguidade das temáticas e sua subjetividade na análise – inerente à Filosofia - , o aqui escrito é fruto
da minha análise e produto da minha interpretação. Aconselho o leitor a não se limitar a isto, mas a ler
criticando(-me) e promovendo o tal sentido crítico em função de conseguir transpor nas suas palavras o
aqui escrito, mas mostrando capacidade para tocar em outros temas que não toco mas que podem ser
importantes e fazer valorar uma resposta em momento de avaliação. Além disto, este terceiro tema tende
a ser volátil de ano para ano, pelo que se alerta o leitor que irão apenas ser aqui abordados os temas
eleitos programaticamente pelo regente da unidade curricular aquando da redação deste Bloco.
A posição do Direito perante a economia num mundo global
Fomos estudando muitas vezes a questão da autonomia do Direito, por exemplo, em Kelsen
vimos a autonomia normativa na sua Teoria Pura do Direito e vimos também a autonomia
axiológica com a jurisprudência da valoração. Contudo, nos dias que correm e que vivenciamos
esta autonomia merece debate, novamente.
A barreira estadual tem-se vindo a desvanecer o que quer dizer que o conceito de fronteiras, o
princípio da territorialidade, tem vindo a ser posto de parte em razão de, cada vez mais,
conceções transnacionais. Veja-se o exemplo paradigmático de Organizações Internacionais que
cada vez mais são dotadas de poderes, com os Estados a alienar alguma da sua soberania em
razão do empoderamento destas OIs para que elas possam legislar vinculativamente além-
fronteiras e harmonizar ordens jurídicas, de modos tal que em alguns casos até se podem notar
sanções para Estados que desconsiderem isto. Mas mais do que isto, e onde se quer aqui tocar,
é na questão da economia e no plano comercial. Hoje cada vez mais conhecemos o conceito,
não de empresas multinacionais, mas de transnacionais. Empresas capazes de circular entre
Estados, entre fronteias, saltando de uns para os outros sem sequer olhar para o direito nacional
de cada um destes, conseguindo “colocar-se” nas prateleiras dos postos de venda facilmente e
sem grandes entraves. São empresas, por isto, que fazem desvanecer o tal conceito de fronteira
e que afetam a territorialidade pelo que têm um caráter globalizante, mas que não se ficam por
aqui. Tocam todos os aspetos da nossa vida, influenciando escolhas em vários os aspetos e
marcando presença no nosso quotidiano, mas ainda porque cada vez mais é frequente
assistirmos a que estas empresas não se cinjam só a um mercado, mas dada a sua força
económica, comercial e até política conseguem marcar presença num muito vasto número de
mercados, pelo que o seu caráter é também totalizante. Estamos perante organizações privadas
que são “do tamanho do mundo” e que, por isto, conseguem ser maior do que qualquer Estado,
enfraquecendo-o e tornando-o cada vez menos autónomo, porque cada vez mais sente
necessidade o Estado de recorrer a estes privados. Gera-se uma influência destas grandes
organizações junto do Estado, designadamente junto do poder político e legislativo, através do
famoso lobbying, por exemplo. Fica, assim, altamente comprometida a autonomia axiológica do
Direito, porque o poder legislativo está condicionado, pelo que se diga até que a jurisprudência
dos valores não seja até a mais adequada, mas sendo sim mais adequada a jurisprudência dos
interesses o mais vigente atualmente, dado ser o atual jogo de interesses económicos o que
cada vez mais dita o ritmo e destino que vai seguir o Direito.
Cidadania universalista vs. cidadania diferenciada
O modelo ocidental, a cultura ocidental, pauta-se por uma certa identidade entre os vários
Estados. Há uma certa linha que atravessa todas as nações integrante deste modelo, por
exemplo, a consideração pela democracia como modelo político por excelência, os valores
basilares prosseguidos, etc. Assim, por esta comunhão generalizada, tender-se-ia a afirmar que,
neste sentido – e não obstante afloramentos que emergiriam de Estado para Estado e de nação

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Diogo Chiquelho
Filosofia do Direito

para nação – a cidadania que se notada era universalista, pela partilha de valores, de conceções,
entre outros.
Uma visão mais ponderada na sociedade atual leva-nos a uma outra conceção que quebra com
tal universalismo. Os fluxos culturais e migratórios foram, são e tenderão a ser intensos num
sentido ascendente e com os Estados a integrarem, em si, comunidades estrangeiras em número
significativo. São culturas diferentes, conceções diferentes, valores diferentes e modelos
diferentes pelo que o conceito de identidade se desvanece. O pensamento jurídico não pode
esquecer que há “estilos de vida” muito diferentes, os quais se conectam com economias
paralelas, culturas alternativas, etc67 e, portanto, falamos de Uma cidadania diferenciada que
permite uma pluralidade de universalismos diferentes68. Se o nosso modelo ocidental dava por
adquiridos alguns destes valores e afins então sentir-se-á agora, no mínimo, confrontado com a
diferença e com a necessidade de os repensar. A ideia de intocabilidade em certos conceitos
quebra-se, pelo que, nem que seja no nosso consciente, aquando confrontados com a diferença
no dia a dia, iremos sentir o desconforto do “eu não penso ou faço assim” e teremos que dirimir
a querela entre saber se o que eu faço, penso ou sinto e se aquilo que eu não faço, penso ou
sinto, mas que outros fazem, pensam ou sentem há debate construtivo possível.
E a cidadania diferenciada motiva a nossa adaptação porque se quer o respeito pela dignidade
da pessoa humana, visão esta importante para que o diálogo intercultural seja possível e que
não seja uma relação de guerrilha. Pelo diálogo se tem uma cidadania diferenciada em a
integração e a progressão são pilares fortes, impossibilitando sequer a construção do pilar da
discriminação, pelo que Todas estas questões (…) têm de ser tratadas “com pinças” e sem
preconceitos69. Além disto, esta é a posição que qualquer bom jurista tem que adotar, pois como
nos diz Paulo Ferreira da Cunha70 Um exercício importante é o de metermo-nos na pele “do
outro”. Só se chega a bom juiz (sabemos já que um advogado é o primeiro juiz de uma causa,
como dizia um grande causídico francês) quando se consegue ponderar, realmente, os diferentes
pontos de vista. E quem diz juiz, diz, antes dele, bom legislador.
E neste sentido a questão passará ainda por saber, quanto ao Direito, quais serão os seus limites:
até que ponto pode coartar a liberdade em razão da segurança. Retorna-se a tensão constante
e terna liberdade-segurança em que necessariamente o incremento de uma afetará a outra.
Saber onde está o limite, quer da liberdade quer da segurança, e qual será o meio-termo perfeito
é um dos principais temas que se gera, ainda hoje, em torno do Direito e que impede, muitas
vezes, a consensualidade.
O Homem na sociedade de risco
O Homem inserido na sociedade de risco é o Homem que perdeu o seu “casulo protetor”. O
isolamento, as tradições e os vínculos comunitários começaram a perder-se, com Zygmunt
Bauman a referir precisamente que a fugacidade de tais vínculos tornam-nos líquidos, não
sabendo nós bem a perceber até se se gerou ou não um vínculo relacional. E esta liquidez
relacional nem permite a segurança representada por um círculo em que nada de novo surge e,
portanto, está-se em loop constante o que permite uma previsibilidade e uma certeza, mas ao
mesmo tempo não permite uma linha contínua representativa da evolução, incerta e
imprevisível. O que permite será sim uma intermitência, um tracejado, porque as relações são
de tal maneira fugazes que ora parece firme um vínculo, ora se nota que já não há vínculo, pelo

67
Citamos Paulo Ferreira da Cunha in bibliografia indicada; pág.529.
68
Citamos Alberto Ribeiro de Almeia in Sociedade de risco – uma perspetiva jurídico-filosófica, V. A
segunda modernidade; pág.7.
69
Citamos Paulo Ferreira da Cunha in bibliografia indicada; pág.530.
70
In bibliografia indicada; pág.530.

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Diogo Chiquelho
Filosofia do Direito

que a linha que tenderia a levar à evolução é constantemente interrompida e, posteriormente,


retornada. E assim o é por, muitas vezes, se achar que um menor número de vínculos relacionais
ou uns menos intensos vínculos permitem que seja o sujeito, o indivíduo, mais livre, mas tal é
altamente falacioso, porque a nossa liberdade constrói-se no contacto social e não
isoladamente. E no mesmo sentido vai Byung-Chul Han que nos diz as próprias relações estão
comprometidas, porque elas não se querem totalmente transparentes, o que o tendem a ser:
só o que está morto é totalmente transparente ou só a máquina é totalmente transparente. E,
por isto, a sociedade positiva esquece-se de enfrentar a dor e o sofrimento, mas opostamente
coloca o amor em fórmula e tenta domesticá-lo, em função de evitar lesões e desconforto. A
positividade e a transparência marcantes desta sociedade tendem a quebrar vínculos relacionais
que deixam o ser isolado, apesar de ele parecer cada vez mais próximo dos pares: (…) uma
relação transparente é uma relação morta, à qual falta toda a atração, toda a vitalidade71.
Esta sociedade de risco nota-se na segunda modernidade muito por força do risco global em
sentido amplo, o que alberga tanto os riscos ambientais como a própria instabilidade dos
mercados financeiros, pela destradicionalização, pela quebra do Estado nas suas funções sociais,
por um capitalismo desenfreado que não conhece regulação que não a auto-regulação, etc. E o
Homem está sujeito a todo o risco, por ser frágil, porque cai desamparado dada a fragilidade
dos vínculos humanos, e por isto subordina-se ao domínio do económico que, como vimos e
vamos ver ao longo destas preocupações atuais, já se impõe ao político e ao jurídico. Temos um
Homem para o risco, pois veja-se que O homem é tanto mais um ser para o risco quando as suas
relações e inter-relações são frágeis, em constante mutação, ou seja descentradas72.
O Homem na sociedade em rede
Estamos perante um tipo de sociedade em que a noção de tempo e de espaço se desvaneceu e
que leva a que a própria ideia de exclusão social se altere, muito por força da revolução
comunicacional e tecnológica que temos vindo a notar e que ainda se nota claramente. Se é
verdade que se demorou séculos até se chegar ao telégrafo, também é verdade que daí em
diante a evolução ganhou uma velocidade brutal e num espaço de décadas o incremento
tecnológico-comunicacional é notório. A sociedade em rede é a sociedade da conexão e da
hiperinformação gerando uma rede complexa. A forma pela qual se comunica e se transmite
informação sofreu, nas últimas décadas, uma mudança drástica e mudando-se a informação
também se muda a verdade social até porque o diálogo, que também se alterou, é fulcral para
gerar a relação com o outro e, com isto, fulcral para a construção humana. E a nossa identidade
se constrói na relação com o outro e esta construção humana está impossibilitada: o outro é
eliminado, o diferente, o diverso quer-se evitar pelo desconforto que gera e, apesar da
revolução tecnológica e comunicacional que temos e que poderiam conduzir ao exato oposto e
fomentar a comunicação, o diálogo, uma proximidade entre diferentes, o que se nota é que cada
vez mais se nota um afastamento o que vai desmotivando o sentimento de sociedade. E no
mesmo sentido vai o enxame de informação – se é que sequer assim se pode chamar – dos
nossos dias, muita dela que chega até ao leitor, ouvinte ou telespectador nem verdadeira é o
que nada colabora na construção de uma sociedade.
E tudo isto não se fica por aqui: a esfera pública contamina-se com aquilo que faz parte da esfera
privada e da esfera íntima e quando assim o é tanto se perde aquilo que é a esfera pública como
se perde aquilo que é a esfera privada e aquilo que é a esfera íntima. Tudo se cofunde num só
pela excessiva exposição dos nossos dias. O espaço público deve ser acautelado para ser um

71
Citamos Byung-Chul Han in Sociedade da Transparência; Relógio D´Água, 2014; pág.15.
72
Citamos Alberto Ribeiro de Almeia in Sociedade de risco – uma perspetiva jurídico-filosófica, VII. Um
homem para o risco; pág.15.

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Diogo Chiquelho
Filosofia do Direito

espaço útil, por exemplo, para o debate político que não seja vazio, assim como o espaço
privado, nem que seja pelos perigos que isso comporta, porque nos nossos dias acredite-se que
uma vez na esfera pública já nunca mais de lá sairá, mesmo perante o direito ao esquecimento
de que hoje tanto se fala que para os seus fins será “melhor do que nada”, mas certamente
insuficiente.
As funções do Estado na era da globalização: um Estado transnacional
Na Idade Média, estudámos, o poder régio era um altamente frágil, tendo acima de si o poder
religioso, designadamente estando adstrito ao poder papal, e abaixo de si o feudalismo, com o
nobre a reger as suas terras e, nessas, dizendo o Direito e cobrando impostos. O poder régio não
tinha grande poder, porque ele estava dominado para cima pelo Papa, mas também muito pra
baixo, pelos senhores feudais. Na sequência começou-se a centralizar na figura do monarca – e
não se confunda monarca com o Estado – cada vez mais poderes, como a administração da
justiça, o poder legislativo (combatendo o costume, etc) e o poder executivo. Chega-se ao
absolutismo, em que Luís XV nos diz que O Estado sou eu, tendo em si todos os poderes. Com a
Revolução Francesa nota-se a divisão dos poderes, mas o Estado já não tinha acima de si
ninguém, tendo o poder religioso desvanecido no forte poder que tinha na época medieval.
Após a Revolução Industrial o Estado volta a ter necessidade de perder poderes para cima,
surgindo as primeiras convenções internacionais e no pós II Guerra Mundial temos o surgimento
de várias Organizações Internacionais, designadamente a ONU, a UE ou a OMC. Para todas estas
organizações o Estado teve que alienar em razão destas alguma da sua soberania, para dotar
estas OIs de algum poder numa crença de que algo maior do que o próprio Estado e em que ele
está inserido será benéfico, tanto para ele como para a ordem internacional. E, por isto, o que
se nota é um certo círculo, retornando-se à perca de poderes do Estado para cima. Se à época
medieval essa perca era representada pela figura do Papa, nos nossos dias é representado pelo
Direito Internacional Público, nos seus tratados e organizações internacionais, especialmente as
supranacionais. Mais uma vez, e porque algumas destas organizações são dotadas de poder
legislativo vinculativo, o princípio da territorialidade desvanece-se, porque legislação e até
ordens e instruções executivas vêm destas organizações que vão além do Estado, que albergam
em si inúmeros Estados e, portanto, para elas o conceito de fronteiras é, pelo menos, um
conceito menos relevante.
Com a Globalização o Estado sentiu a perda dos seus poderes, por excelência para cima, como
vimos, mas curiosamente também os perdeu para baixo, o que volta a aproximar o Estado atual
do Estado da época medieval. Nesta perda de poderes para baixo nota-se um ressurgimento dos
movimentos locais e regionais, o que não deixa de ser curioso, porque se tenderia a achar que
a globalização seria promotora da uniformidade. Assim, a identidade local ressurge e quer-se
até autónomo, com os sujeitos que integram estas comunidades a recusarem, muitas vezes, a
identidade nacional em razão da identidade local (p.ex. a Catalunha a querer afastar-se de
Espanha, a Escócia a querer afastar-se do Reino Unido, etc). Há do bom e do mau nesse
pluralismo. Há o que é irracionalidade, desorganização, contrapoder, hipertrofia do Estado e
afins. E há o que é vera manifestação do princípio da subsidiariedade e como tal útil e saudável73.
Mas recorde-se, ainda, que contribui para a perda de poderes do Estado as organizações
transnacionais privadas de que falámos no tema abordado supra da posição do Direito perante
a economia neste nosso mundo global. A teia do mundo económico assumiu a liderança sobre o
político e o jurídico. Um mundo organizado (por uma série de Organizações Internacionais como
o FMI, o Banco Mundial, a OMC, entre outras) que dita as regras da política económica e

73
Citamos Paulo Ferreira da Cunha in bibliografia indicada; pág.535.

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Diogo Chiquelho
Filosofia do Direito

comercial e molda o mundo jurídico de acordo com as suas necessidades. A estas organizações
associam-se de forma indelével as empresas multinacionais ou, melhor, transnacionais74.
O Estado é fraco e é crescentemente fraco, porque perde poderes em ambos os sentidos: tanto
para cima como para baixo e tem cada vez menos capacidade de intervir só de per si. O Estado
forte e a conceção do que isto será vem da China da Antiguidade, tendo-a como exemplo do que
é um Estado forte, mas obviamente que este modelo também é altamente criticável, pelo que
serve apenas e só para se perceber como se tem um Estado forte. A China do séc.III a.C. era um
modelo que não tinha ninguém acima de si, tendo mesmo o Direito abaixo do Estado (algo que
nós não temos, porque temos o Estado de Direito) e que assenta numa
burocracia/Administração Pública competente baseada na progressão com base no mérito e
capaz de cobrar impostos, com a uniformização da língua escrita que gerou unidade no império,
construiu estradas em razão dessa unificação e as classes intermédias foram afastadas: o
imperador toca diretamente com o povo.
A par deste Estado fraco que nós temos, porque nem que se seja por comparação ao modelo
chinês vemos que há divergências, temos também o problema de a sociedade ser fraca. E esta
sociedade é fraca, porque o seu sentido crítico é fraco, muito porque a fiabilidade da informação
que lhe chega ser dúbia ou até mesmo falsa, muito centrada em escrutinar a esfera privada ou
a íntima das pessoas do que propriamente aquilo que deveria compor a esfera pública, mas
ainda porque o seu Parlamento é fraco. A comunicação social ou não diz nada, ou diz tudo do
que lhe interessa, ou diz o que (devia) interessa(r), mas quando se refere ao que (devia)
interessa(r) coarta a informação ao nível que lhe interessa…e mistura tudo no mesmo saco,
dando o mesmo tempo e ênfase a qualquer tema - desde que venda – o que gera também
uniformidade e indiferença entre o que é relevante e entre o que é mais banal. Tudo pode
tornar-se notícia, tudo está disponível. O que está no primeiro plano, o que está em pano de
fundo, o que é importante, o que não tem importância, o que é tendência, o que é episódio; tudo
se integra numa linha uniforme, em que a uniformidade produz também a equivalência e a
indiferença75 e acrescenta, mais à frente, que o cinismo leva-nos a uma equiparação amoral de
coisas diferentes; quem não vê o cinismo quando, entre anúncios ao champanhe, a nossa
imprensa fala das torturas na América Latina não o verá também na teoria da mais-valia, mesmo
que a tenha lido cem vezes76.
E tudo isto gera mais uma panóplia de poderes: o cidadão não está capaz de intervir
politicamente, de intervir junto do centro de decisão, porque cada vez mais se perde e se
desconhece o local onde está esse centro de decisão. O cidadão – aqui tido como o sujeito ativo
e participativo nas lides políticas – quer votar para um espaço no qual está o centro de decisão,
sentindo-se até desmotivado em fazê-lo se, votando, percebe que afinal aquele não é o centro
de decisão, mas será sim uma organização internacional. Gera-se uma multiplicidade de
cidadanias: a local, a regional, a nacional e, hoje, uma transnacional. E se há uma cidadania
transnacional então poder-se-ia falar de um Estado transnacional, tendo nós um exemplo
paradigmático com o Parlamento Europeu. Contudo, o cidadão ainda não participa nestes
centros de decisão, sentindo-se ele ainda afastado destes verdadeiros centros de decisão.
O Estado dos nossos dias está numa posição delicada, sendo fraco com os fortes (as OIs e as
organizações privadas transnacionais) e tendo tiques de autoritarismo e sendo bastante forte

74
Citamos Alberto Ribeiro de Almeia in Sociedade de risco – uma perspetiva jurídico-filosófica, VI. O
transnacionalismo; pág.11
75
Citamos Peter Sloterdijk in Crítica da Razão Cínica; Relógio D´Água; Tradução de Manuel Resende; 2011;
pág.388.
76
Citamos Peter Sloterdijk in Crítica da Razão Cínica; Relógio D´Água; Tradução de Manuel Resende; 2011;
pág.395.

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Diogo Chiquelho
Filosofia do Direito

com os fracos. O Estado vai alienando em razão dos privados aquelas que eram as suas grandes
funções (ensino, saúde, etc) e cede facilmente perante ele, mas perante os sujeitos, os
particulares em si, tem mão pesada muitas vezes em casos dos mais banais do dia a dia do
sujeito. Não é à toa que nos diz Peter Sloterdijk que Talvez Maquiavel redigisse de novo um
pequeno escrito sobre a arte de governar, não já com o título O Príncipe, mas com o título Do
Estado Fraco (…)77.
O poder económico e o controlo da informação: a feudalização da informação
O Estado controlava a informação no passado, censura esta que era transparente e clara e, por
isto, visível. Nos nossos dias a censura existe, mas essa transparência é inexistente. Censura esta
feita e controlo este feito já não tanto pelo Estado, mas pelas organizações privadas. As grandes
empresas internacionais dominam a informação de forma invisível o que é ainda mais estranho
porque se tem, com isto, privados a coartar a liberdade de outros privados.
Ter-se a informação correta, ter-se a melhor informação, permite uma opinião e capacidade
crítica que permite uma posição política, uma capacidade de escolha esclarecida aquando, por
exemplo, do voto entre outros casos. Se a informação está feudalizada, como o está, isto é
impossível, porque se o que chega às pessoas é informação emanada por um grupo restrito de
grandes privados então serão estes que dominam verdadeiramente, mas invisivelmente, a
informação. E quando alguma informação composta por essência chega vem sempre limitada
no seu conteúdo, que circunscreve a informação àquilo que releva e que se quer que se saiba.
Paradoxalmente estamos numa fase marcada pela hiperinformação e pela hipercomunicação,
mas estas são desprovidas de qualquer sentido: por isto estas tocam a transparência, conceito
este que diverge da verdade. A transparência é típico de uma sociedade da positividade, ao
passo que a verdade é típico de um sociedade da negatividade, porque a verdade implica que
se confronte o outro, o diferente e se lhe imponha a falta da verdade. Por isto mesmo, Mais
informação e mais comunicação não eliminam a imprecisão fundamental do todo. Pelo
contrário, agravam-na78.
E acrescido a tudo isto assistimos a um Estado que se relaciona com estes privados, que até
negoceia com eles e que os torna “fornecedores” do Estado, fazendo-lhes favores e os promove,
quando as suas pequenas e médias e até grandes empresas nacionais ficam desmotivadas.
O terrorismo: o mal no pensamento pós-moderno
Quando se fala aqui de terrorismo fala-se de maldade, fala-se de crueldade e tragédia e fala-se
de terrorismo propriamente dito para exemplificar o que aqui será dito. O mal, seja de que
natureza for, é sempre lidado pelo Homem de alguma forma. Aquando do terramoto, incêndio
e maremoto de Lisboa de 1755 este mal foi imputado a Deus, tendo-se afirmado que fora por
Sua vontade que tal tragédia se tinha despoletado. Mais recentemente, o caso de Auschwitz
gera um vazio de saber como explicar racionalmente tal tragédia, já não podendo ser imputado
a Deus, pois fora um ato humano cruel. Mas e que Homem-pessoa fora capaz de tamanho mal,
algo que pode ser transversal a todo o séc. XX que se notou o mais cruel da História, com um
pendor pesadamente bélico. E o mal deste Homem demonstra que no plano ético o ser humano
não evoluiu nada, não obstante ter evoluído em muitos outros pontos, mas neste ponto a
evolução não foi a que deveria ter sido. Neste sentido, a intolerância do outro (a tal eliminação
do outro de que fomos falando já supra) e a falta de empatia também cedem e se notam

77
In Crítica da Razão Cínica; Relógio D´Água; Tradução de Manuel Resende; 2011; pág.318. Note-se que,
apesar da frase se adequar perfeitamente ao nosso tema, o autor citado levanta-a num confronto que vai
fazendo entre o socialismo vs. capitalismo – se é que assim se pode chamar – e afirmando a falência destes
sistemas atuais.
78
Citamos Byung-Chul Han in Sociedade da Transparência; Relógio D´Água, 2014; pág.20.

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Diogo Chiquelho
Filosofia do Direito

escassos. Isto tudo é o que representa o mal no pensamento pós-moderno, pelo que a maldade,
a intolerância e a escassez de empatia ainda são componentes do pensamento.
O pensamento político na época pós-moderna
Slavoj Žižek refere que estamos numa fase pós-política que significa que o Homem é apático,
que o Homem que está “anestesiado”, já na expressão de Byung-Chul Han. O autor refere que
o capitalismo, modelo político-económico mais notório no mundo ocidental, afirma-se, porque
absorve a cultura e tradição do país em que se está a afirmar e transforma-a de modos a que ela
seja cada vez mais comercial, o que quer dizer que sob uma manta protetora de respeito,
consideração e tolerância se constrói todo um sistema capitalista. A par disto, a sociedade
transparente que é uma sociedade da positividade incapaz de olhar para o diferente, para o
outro, e debatê-lo, tendo sempre uma necessidade de que tudo seja seu par, de que tudo este
conforme à sua ideia, será também uma que contribui para esta política pós-moderna. Esta
conceção de Byung-Chul Han é uma que olha para a política como sendo estratégia e como em
qualquer estratégia nem tudo tem que se saber, há sempre uma margem de segredo que se
deve tutelar em razão do sucesso79, da mesma forma que a economia tem os seus segredos
também os devem ter os políticos. Por isto a sociedade da transparência avança a par da pós-
política. Só o espaço despolitizado é inteiramente transparente. Sem referência, a política
degenera e torna-se referendo80.
O problema é que a sociedade está efetivamente “anestesiada” quando cada vez mais não se
quer que ela seja proprietária de grandes coisas, querem-se pagamentos faseados e fracionados
de coisas que nunca chegam a ser verdadeiramente nossas. É um modelo de servitization, como
se referem a tal modelo os economistas, em que precisamente não se quer uma venda clássica,
em que se paga a pronto o preço e se recebe o objeto do contrato feito, transferindo-se a
propriedade, mas quer-se sim um “compromisso com um serviço”. E neste sentido vai-se
aumentando anualmente o salário mínimo de forma a que seja possível a que as pessoas tenham
acesso às comodidades mínimas, ou seja as pessoas devem ter possibilidades para
ambicionarem na estrita medida que as grandes entidades queiram.
Esta forma de pensar não é nenhum dos modelos clássicos políticos, daí ser pós-político. O
Homem acaba por nem sequer se notar neste “jogo” político-económico, daí estar
“anestesiado”, pelo que nem sequer pode ser critico quanto a ele, daí que seja apático quanto
a ele. O Estado tem colaborado neste sentido, com uma forte privatização dos lucros e com uma
socialização das perdas, permitindo a que os privados vão gerindo este tal modelo pós-político
e deixando o Homem cada vez mais apático. A questão que acaba por se impor é, ao fim ao
cabo, a feita por Paulo Ferreira da Cunha81 quando diz que Um novum está a ganhar vida,
contudo. Porém, resistirá ao economicismo desenfreado? Para muito, foi um sonho que se
tornou pesadelo. É que a verdade é que o Homem está afastado da política, mas outra coisa não
se poderia esperar: se ele tende a expulsar o outro, o diferente, então o seu sentido crítico não
é chamado à colação e se esta sociedade é uma da positividade em que tem aversão ao dizer
não então, mais uma vez, afasta-se da recusa e “deixa-se ficar”. E se a sociedade é transparente,
contaminando o espaço público com as lides privadas, então aquele espaço no qual o sentido
crítico e o debate político haviam de ocorrer estará ocupado com o que não é dali.

79
Poder significa: jogos estratégicos. Citamos Foucault. No mesmo sentido e com a mesma citação temos
Byung-Chul Han in Sociedade da Transparência; Relógio D´Água, 2014; pág.33.
80
Citamos Byung-Chul Han in Sociedade da Transparência; Relógio D´Água, 2014; pág.19. O autor diz-nos,
quanto à política, que A política é uma ação estratégica. E, por essa razão, há uma esfera secreta que lhe
é própria. Uma transparência total paralisa-a; pág.18.
81
In bibliografia indicada; pág.536.

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Diogo Chiquelho
Filosofia do Direito

A tutela da dignidade da pessoa humana: o pós humanismo


A Escola de Frankfurt veio notar-nos que o Homem está submetido à técnica, à ciência, em que
o Homem é instrumentalizado em razão da técnica e que leva a que seja esquecida a dimensão
de Homem enquanto pessoa.
A conceção que temos hoje da pessoa humana sofreu, claramente, uma evolução. O
reconhecimento da diferença é um tópico que se tem debatido, mas isso levanta outro
problema: devemos ver o sujeito diferente como efetivamente diferente, mas que queremos
tê-lo como igual ou devemos ver o sujeito como efetivamente igual? Enquanto se olhar para o
outro como diferente, mas que se quer como igual então há aqui um pendor discriminatório
implícito, porque se atenta a diferença. Só quando esquecermos a diferença em função de
olharmos estritamente para a igualdade então é que temos o princípio da igualdade na
plenitude, porque a acessão de igualdade que diz que temos de tratar o que é igual como igual
e o que é diferente como diferente tem uma visão discriminatória. E tudo isto não obsta a que
se criem condições de adaptabilidade a quem precisa delas, não manda ao Direito afastar-se
disso, mas manda sim olhar-se para todos como igual, porque a sua diferença não faz diferença,
não sendo nada mais do que um par que temos entre nós. Não basta tolerar a diferença, ir-se
aceitando, mas nem sequer se ver a diferença é o que se quer, pois só aí a discriminação
desvanece.
A nossa compreensão do que é a pessoa alterou-se e que impulsionou a discussão de inúmeros
debates nos nossos dias, por exemplo a eutanásia. O Homem individualista e narcisista parece
começar a ter uma conceção perfeita daquilo que é a pessoa, capacitando-a de tudo, pelo que
a sociedade tem um certo modelo concebido de pessoa e quando se sai desse modelo sente-se
a exclusão e a diferença.
O valor último é a dignidade da pessoa humana, aliás, como vimos, é o fundamento de validade
do Direito e é um valor que permite o diálogo intracomunitário. Quando diverge a conceção
daquilo que é a dignidade da pessoa humana este diálogo pode estar comprometido. Quando,
por exemplo, um sujeito do mundo ocidental no qual a mulher começa a ter o devido
reconhecimento - mas um longo percurso ainda há a ser feito indubitavelmente - é confrontado
com os ideais em que tal dignidade é pouca ou mesmo nenhuma não reconhece validade a estas
disposições, pelo que a infringe até mesmo inconscientemente, porque o seu referencial de
dignidade é diverso daquele.
O futuro da natureza humana: a caminho de uma eugenia liberal
A eugenia – seleção artificial genética de uma espécie – é um ato que não é ignorada pela
História. Termo introduzido por Francis Galton, a eugenia, etimologicamente, refere-se ao
“bem-nascido”. E é conhecido da nossa História precisamente porque as experiências que
tivemos ocorreram, designadamente, na Alemanha nazi, muito em busca da perfeição da raça
ariana. Mas esta experiência era uma de Estado, em que não estava na disponibilidade das
pessoas realizá-la.
A eugenia de que hoje e de que aqui falamos é uma outra, é uma eugenia liberal na qual o sujeito
pode optar, quanto a um filho seu, de selecionar os genes que o comporão, eliminando uns ou
acrescentando outros. Já não é o Estado, pelo menos sozinho, a pensar em eugenia, mas temos
também as pessoas a pensar praticar eugenia negativa ou positiva. A eugenia negativa tem fins
terapêuticos, visando a eliminação de genes que são condutores a certo tipo de doenças,
incapacidades e afins. Ao fim ao cabo é conhecido que um certo gene é promotor de uma
determinada doença e, portanto, é retirado esse gene para, assim, antecipar-se que o ser não
suportará com tal doença. Por isto, a reação comunitária a este tipo de eugenia não tende a ser
tão pesada e com um pendor tão pessimista, até porque é presumível que o ser que estará para

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Diogo Chiquelho
Filosofia do Direito

nascer consente nesta eliminação dos genes em razão de maior saúde, em razão de se impedir
que ele sofra com tal doença. E, por isto, os problemas jurídicos que emergem deste tipo de
eugenia não são tantos. Mas como podem ser eliminados genes também podem ser
acrescentados e, aqui, não se pode ser também dialeticamente passivo como se é na eugenia
negativa. A eugenia positiva visa o melhoramento da espécie através da seleção dos genes que
constituirão o ADN de um ser. Procura-se, ao fim ao cabo, que o ser seja um a roçar a perfeição,
muito por força do neo-narcisismo do atual Homem individualista que nunca se basta com nada
e, acredito eu, que não se bastará com a perfeição. Este tipo de eugenia, indubitavelmente,
levantará problemas ético-jurídicos. Veja-se que o ser perde autonomia na formação da sua
identidade, porque se a identidade é construída no contacto que se vai tendo, quotidianamente,
com o outro então se essa identidade já está “pré-programada” o Homem perderá forma de
traçar as linhas que delimitarão o seu caráter e personalidade. No mesmo sentido, se há tal “pré-
programação” então isso quererá dizer que a incerteza que a vida tem reduz-se, porque quanto
mais determinação houver à partida então o juízo de imprevisibilidade do futuro desvanece-se
e é substituído por um outro que mais tocará a previsibilidade, senão mesmo a certeza.
Habermas, que enuncia e debate este problema, refere mesmo que a utilização deliberada de
técnicas de manipulação genética torna-se algo perigoso, pelo possível ferimento de direitos do
indivíduo objeto de referida manipulação: vemos que o sujeito terá violado o seu direito à
autocompreensão. E neste sentido há uma série de outras incógnitas que emergem: poderão os
pais selecionar os genes de um filho, estando na sua disponibilidade esse direito? E poderão os
filhos até, no futuro, deduzir um pedido de responsabilidade civil pela seleção genética da sua
composição? É que se reconhecermos o tal direito aos pais então estes apenas estarão no gozo
de um seu direito bastante intrusivo sobre a integridade de outrem e tal responsabilidade perde
o sentido. E fará algum sentido presumir-se o consentimento num caso de eugenia positiva,
quando se pré-define um ser e se lhe retira autonomia na forma como traça a sua identidade e
afetando a condição humana na qual a presença da incerteza é constante? Se até o fará na
eugenia negativa, pelos motivos que são, será bastante dúbio poder fazê-lo aqui, até porque a
eugenia é algo de irreversível em que o Homem fica, desde o início, adstrito a uma artificialidade
na sua própria composição genética. Fica impossível o retorno ao status quo ante. Outro
problema que se suscita terá a ver com a igualdade: será despromotor da igualdade reconhecer-
se a eugenia liberal, porque não estará certamente acessível a todos (a seleção genética de um
filho será, sem margem de dúvidas, um processo bastante caro, inacessível à maioria da
população), mas acima de tudo porque os seres do futuro seriam separados entre os portadores
de um certificado de melhoramento genético e outros não e afeta-se, ainda, “a sorte do
nascimento” e o acaso da vida pelo qual os pares deixarão de o ser. Veja-se que uma pessoa
geneticamente modificada e, por isso, melhorada terá bem mais facilidades, em princípio, do
que uma que não foi sujeita a tal seleção artificial. Fica impossível de as fazer “competir”.
Toda esta querela faz-me recordar sempre os videojogos no quais o jogador, no início, tem
oportunidade de criar o seu avatar. Parece esse o caminho que seguiremos no futuro se for
aceite a eugenia liberal, com pais a poderem criar os seus avatares da vida real.
A sociedade da transparência, da positividade e do controlo
Quando Obama, na sua campanha eleitoral à Presidência dos EUA, teve como slogan Yes, we
can demonstrou, sem o querer, a sociedade na qual nos inserimos. Esta passagem do Sim, nós
podemos é uma que pauta bem a dificuldade que se tem, nos dias de hoje, em dizer não e em
enfrentar a negatividade e o desconforto. E porque assim o é, então a sociedade quebra no seu
sentido crítico, porque é muito perante a dor que se fomenta o sentido crítico. Tudo se torna
transparente se perde a sua identidade, se se alisa, se uniformiza, se se torna pornográfico. E a
sociedade está numa constante coação sistemática pela qual sujeita todos os factos sociais a

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Diogo Chiquelho
Filosofia do Direito

uma transformação profunda para que seja eliminado o estranho, para que seja eliminada a
negatividade e, portanto, se uniformize. É quando nos sentimos desconfortáveis com algo que
ficamos motivados em contrapor a causa de tanto e se não temos esse sentido crítico – que se
perde com a eliminação desse desconforto - então também acabamos por ser obedientes sem
mais, acabamos por ficar anestesiados e num estado paliativo, limitando-nos a dizer sim e a
aceitar. Quando se consegue afastar a capacidade de dizer “não”, abduziu-se ou deglutiu-se a
liberdade82.
Ao mesmo tempo, a mesma sociedade da positividade é uma que que também será
transparente. Esta sociedade da transparência misturou as esferas íntima, privada e pública toda
na mesma amálgama o que faz perder a essência de cada uma dessas esferas. Quando se mistura
o privado com o público tanto se perde o que é privado – porque deixa de o ser – como se perde
o público – porque está contaminado com aquilo que deveria ser privado. O Homem de hoje é
um que se abriu à exposição desenfreada, que partilha os seus dados constantemente, que
consente no espaço digital sem saber bem no que está a consentir – a tal sociedade da
positividade – que não só aborda, mas mostra, aquilo que ele é quando isso devia ficar para si e
para os seus. E esta massiva e excessiva exposição retira o valor do exposto: Byung-Chul Han,
numa referência a esta sociedade da exposição, não deixa de fazer um paralelismo com a arte e
os museus, partindo de Benjamin: as coisas que estão ao serviço do culto, valiosas e intemporais,
a existência ultrapassa consideravelmente a relevância de serem expostas. Se as coisas estão
inacessíveis então o seu valor cultural aumenta e a sua essência, mantida muito na incógnita, é
apetecível. Contudo, Na sociedade positiva, na qual as coisas, doravante transformadas em
mercadoria, devem expor-se para “ser”, o seu valor cultual desaparece em benefício do seu valor
de exposição83. Se o Homem é transparente então o Homem é um que se abriu a ser controlado.
Quanto mais nos expomos, mais é possível gerar-se o perigo de se saber quem somos, onde
estamos, com quem estamos e nos damos e tanto mais. Se a vigilância que se notava no passado
era algo mais palpável e tinha um pendor negativo porque lhe estava associada sempre uma
conotação de violência, a dos nossos dias é tida como positiva e tacitamente aceite por nós.
Ficou menos claro tal controlo, mas paradoxalmente ficamos mais disponíveis a ele, e Com
auxílio de uma técnica refinada acende-se a esperança de uma vigilância permanente84. E, por
isto, o panótico de Bentham – o tal que, pelo menos, sentia e notava a vigilância – diverge deste
panótico digital, porque como nos diz Byung-Chul Han Enquanto os habitantes do panótico de
Bentham têm consciência da presença constante do vigilante, os que habitam o panótico digital
creem estar em liberdade85. Na evolução assistir-se-á a uma democratização da vigilância, nas
palavras de David Brin, contudo esta sugestão, na visão de Byung-Chul Han, é utópica porque

82
Citamos Alberto Ribeiro de Almeida in Publicidade e transparência, um artigo da obra Estudos em
homenagem ao Professor António Martins da Cruz; Universidade Lusíada Editora, 2020.
83
Citamos Byung-Chul Han in Sociedade da Transparência; Relógio D´Água, 2014; pág.21. Perante isto,
nunca é demais partilhar uma experiência pessoal na qual enquadro perfeitamente nisto, até porque, em
conversa, percebi ser efetivamente uma ideia não apenas pessoal: em visita ao Museu do Louvre, em
Paris, é incontornável passar-se pela sala 6 do edifício Denon, para conhecer a obra de Da Vinci “Mona
Lisa”. A verdade é que, uma vez aí e perante o belo retrato, o sentimento que me assolou foi, se calhar,
improvável: a imensidão de gente em torno de uma mesma obra retirou-lhe a “piada”, a obra é, quando
comparada com outras da mesma sala, das que chama menos à atenção, mas sem prejudicar,
obviamente, a beleza daquela arte. Verdade é uma – porque o demais é subjetivo e relativo: a curiosidade
que em mim pairava e a vontade de conhecer a obra era imensa quando apenas a via nos livros de História
da escola tendo-se desvanecido imediatamente quando me encontrei perante ela, nunca mais a sua
essência tendo tido o mesmo pendor em mim.
84
Byung-Chul Han in Sociedade da Transparência; Relógio D´Água, 2014; pág.68.
85
Byung-Chul Han in Sociedade da Transparência; Relógio D´Água, 2014; pág.68.

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Diogo Chiquelho
Filosofia do Direito

parte da ideia de a vigilância será de todos por todos, ou seja tanto poderemos ser controlados
como poderemos controlar, eliminando-se tudo aquilo que conduza a uma relação de poder e
de controlo.
E esta sociedade transparente roça muito o facto de pairar um sentimento generalizado de
desconfiança, até mesmo no próximo. Aquele que não expõe, que não saiu debaixo da manta
protetora e que decidiu não contaminar a esfera pública com a esfera íntima e com a esfera
privada é tido como suspeito. O que esconderá ele de tão mau? A sociedade da transparência é
uma sociedade da desconfiança e da suspeita, que, devido ao desaparecimento da confiança,
assenta sobre o controlo86. E sob esta pressão social da constante sobrelotação e sobrecarga de
conteúdo que contamina umas esferas e outras, mesmo aquelas pessoas que não o faziam
começam, sem notar nisso, a fazê-lo. Outra promoção desta época do panótico digital é feita
pelas grandes organizações privadas transnacionais totalizantes, de que já falámos, por força do
seu capitalismo promotor de um consumismo desenfreado e que, por isso, “sensacionalizando”
lança no mercado cada vez mais produtos, serviços, apps, etc que fomentam esta exposição e
como a sociedade não se sacia com nada, sendo uma em constante “fome”, acaba por cair no
jogo cínico destas organizações, que nos vão conduzindo no caminho que pretendem, como
também já vimos supra, por exemplo, com a servitization.
Posto tudo isto, que não nos suba a moral: Hoje, ao contrário do que normalmente se supõe, a
vigilância não se realiza como ataque à liberdade. É, antes, voluntariamente que cada um se
entrega ao olhar do panótico. Sabendo que o fazemos, contribuímos para o panótico digital, na
medida em que nos desnudamos e nos expomos. O habitante do panótico digital é, ao mesmo
tempo, ator e vítima. E parafraseando o mais famoso influenciador de todos os tempos, Jesus
Cristo: Quem de vós estiver sem pecado atire-lhe a primeira pedra!87
A Inteligência Artificial
O Homem tem capacidades inatas, entre elas, por exemplo, de defesa. A manipulação de
símbolos que se traduz, por exemplo, na capacidade de ler, escrever, falar ou contar não é uma
dessas capacidades, pelo que teve que, através da cultura passada intergeracionalmente e
dinamizada intrageracionalmente, ir desenvolvendo tais capacidades por força da
aprendizagem. A pergunta que levanta agora é: será possível conferir tais capacidades a uma
máquina? Adianta-se a resposta, presumível, que é afirmativa.
No pensamento de Hobbes vimos que a revolução científica suscitou o debate quanto ao
pensamento humano e de saber até que ponto seria possível replicar na máquina a capacidade
do Homem. Na Primeira Revolução Industrial a substituição da força humana e animal pela força
da máquina faz criar a ideia da menor dependência do Homem, pois a máquina é já uma
autónoma e o Homem entra como mais uma extensão da máquina, sendo mais complementar
do que propriamente o principal. Com a introdução da combustão e, mais tarde, da eletricidade,
com a Segunda Revolução Industrial, todas as máquinas foram substituídas e a revolução foi
clara: das mais pequenas, como as que temos em casa, às mais industriais das fábricas toda a
maquinaria alterou-se. Aliás equipara-se a revolução suscitada pela eletricidade com a que será
suscitada pela IA, ao acreditar-se que como praticamente todas as casas têm em si eletricidade
e uma vastidão de equipamentos motivados a eletricidade, também no futuro isso acontecerá
com a IA, com as casas a terem em si uma panóplia de equipamentos com tal dotação. No
seguimento da evolução, surgem os computadores que na sua fase inicial estavam limitados a
cumprir com as funções, apenas e só, para as quais foram programados, mas na mesma
sequência evolutiva o computador e a máquina tornou-se inteligente, tornando-se capaz de ir

86
Byung-Chul Han in Sociedade da Transparência; Relógio D´Água, 2014; pág.70.
87
Bíblia Sagrada; Jo 8, 1-11.

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Diogo Chiquelho
Filosofia do Direito

muito mais além do que a sua programação. O Homem conferiu, assim, a máquina como uma
inteligente, capaz de dar respostas que sejam requeridas, mas também de formular outras
respostas e de se adaptar ao novo, criando as suas próprias capacidades de compreensão e de
reação através da aprendizagem. A máquina está capacitada a estudar, a ler e a absorver
informação num hiato temporal absolutamente inalcançável a qualquer humano. Este modelo
de aprendizagem da IA designa-se por deep learning, uma aprendizagem que a máquina faz
autonomamente e de uma forma impossível pelo mero humano, pelo que quem dominar esta
tecnologia terá um domínio substancial no mundo. É um formato de aprendizagem que
autonomiza a máquina na recolha e na absorção da informação em função de, posteriormente,
cumprir uma função: por exemplo, traçar um perfil de consumidores de forma a que o marketing
digital promova o consumo desse sujeito ou, até mesmo, em função de automaticamente
calcular o risco na conceção de um crédito e, com base nisso, conceder ou rejeitar tal crédito.
É possível demarcar quatro vagas de IA: a IA da internet, a IA empresarial, a IA como perceção e
a IA autónoma. As duas primeiras vagas – a da internet e a empresarial – já estão vigentes nos
nossos dias. Por estas vagas, a internet e as empresas conseguem, através de algoritmos,
adaptar, pela perceção do nosso perfil de consumo, o marketing para motivar o consumo do
respetivo sujeito e vai-se até substituindo ao Homem nalgumas funções. A terceira vaga – a da
IA como perceção – já vai além do traçar do perfil pelo controlo dos nossos “cliques”. A IA como
perceção vai captar os movimentos, as reações, etc, ou seja tentará perceber a reação até
emocional do Homem, conhecendo-lhe até traços do rosto que ligará a emoções e a
sentimentos. Esta vaga é a que se começa a notar já nos nossos dias, ou melhor, já por aí anda.
A quarta vaga, que será a última a chegar, é a da IA autónoma que levará a um afastamento do
Homem, porque a máquina inteligente não precisará dele para operar. A autonomia da máquina
será suficiente para cumprir todo um procedimento, analisando até o panorama concreto e
estão capazes de resolver problemas, aliás até porque elas estarão capacitadas a aprender. E já
há traços desta vaga, contudo o seu custo ainda é enorme e a mão-de-obra ainda se consegue
a um nível barato que compensa. Mas a máquina, nesta fase, não precisará de qualquer tipo de
paragem para, por exemplo, repousar, não reclama direitos, etc, sendo muito mais proveitosa
para a indústria do que o próprio Homem.
Ao que faltará chegar será aos robots sentimentais, ou seja capazes de sentir, de se emocionar
e de ter sentido crítico de análise do belo, etc.

Sumário
I. Introdução ................................................................................................................................................. 2
Essência, conteúdo e posição sistemática da Filosofia do Direito ........................................................... 2
Filosofia do Direito “vs.” Dogmática Jurídica ....................................................................................... 2
Filosofia do Direito “vs.” Teoria do Direito .......................................................................................... 3
II. A questão do direito natural e do positivismo na História da Filosofia do Direito ................................... 5
1. Do mythos ao logos .............................................................................................................................. 5
2. A Antiguidade Greco-Romano ............................................................................................................. 5
2.1. Pensamento Jurídico Grego .......................................................................................................... 5
2.2. O pensamento jurídico romano .................................................................................................. 10
3. O Cristianismo e o pensamento da Idade Média: a escolástica ......................................................... 11
4. Pensamento jurídico moderno .......................................................................................................... 14
4.1. Renascimento ............................................................................................................................. 14

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Diogo Chiquelho
Filosofia do Direito

4.2. Período barroco .......................................................................................................................... 17


4.3. Duas das tendências: um olhar para trás e um olhar em diante ................................................ 19
5. Pensamento jurídico contemporâneo ............................................................................................... 20
5.1. O Iluminismo e o pensamento jurídico-político ......................................................................... 20
5.2. O Humanitarismo ........................................................................................................................ 26
5.3. Usus modernus pandectarum ..................................................................................................... 26
5.4. Positivismo exegético francês ..................................................................................................... 27
5.5. Escola histórica do direito ou do romantismo alemão ............................................................... 28
5.6. Jurisprudência dos Conceitos ..................................................................................................... 29
5.7. Positivismo normativista............................................................................................................. 30
5.8. Positivismo sociológico ............................................................................................................... 30
5.9. Escola de Direito Livre alemã ...................................................................................................... 31
5.10. Jurisprudência dos Interesses ................................................................................................... 31
5.11. Neopositivismo ......................................................................................................................... 32
5.12. Jusnaturalismo contemporâneo ............................................................................................... 33
5.13. Doutrina da natureza das coisas ............................................................................................... 33
5.14. As soluções entre nós ............................................................................................................... 33
III. Preocupações atuais .............................................................................................................................. 34
A posição do Direito perante a economia num mundo global .............................................................. 35
Cidadania universalista vs. cidadania diferenciada ................................................................................ 35
O Homem na sociedade de risco ........................................................................................................... 36
O Homem na sociedade em rede ........................................................................................................... 37
As funções do Estado na era da globalização: um Estado transnacional ............................................... 38
O poder económico e o controlo da informação: a feudalização da informação .................................. 40
O terrorismo: o mal no pensamento pós-moderno ............................................................................... 40
O pensamento político na época pós-moderna ..................................................................................... 41
A tutela da dignidade da pessoa humana: o pós humanismo ............................................................... 42
O futuro da natureza humana: a caminho de uma eugenia liberal ....................................................... 42
A sociedade da transparência, da positividade e do controlo ............................................................... 43
A Inteligência Artificial ........................................................................................................................... 45

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Diogo Chiquelho

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