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INTRODUÇÃO AO DIREITO I – RESUMOS

1. Lição nº 1

Trata-se de uma cadeira de introdução ao direito, de uma disciplina vestibular (isto é,


passagem/portal de entrada) de introdução/iniciação no horizonte específico da
juridicidade!

Portanto, vamos estudar o direito. Mas como se verá, várias mesmo são as perspetivas
possíveis para abordar este objeto, apenas uma sendo a preferível (normativa). É não é
dos pontos de menor importância – se é que não mesmo o ponto determinante – a
escolha da perspetiva porque havemos de considerar o direito!

Não se duvidará, que a perspetiva adotada apenas poderá ser aquela que se implique nas
particulares intenções deste curso (castanheira neves), e que são duas:

(1) A primeira será a que se evidencia da reposta a esta pergunta: O que queremos
saber, do direito? (Uma resposta do direito)

-Aqui, trata-se da famosa Quid Iuris? O que o direito prescreve, qual a solução que o
direito impõe. Direito como critério de solução de situações concretas.

(2) A segunda, na resposta a esta outra pergunta: Qual o papel que queremos
desempenhar com este saber? (Uma resposta, sobre o direito)

-Aqui, trata-se do Quid ius. Direito problematizado, interrogado. Está-se em causa o


próprio direito, o que é isto de direito – (e aí, podemos estar a falar, quer do direito em
si quer duma problematização dele – Seu sentido, seu fundamento, sua intenção
fundamental etc / Podemos falar da sua objetivação dogmática – normativa ou
conceitual - /ou da metodologia jurídica). Cuida-se aqui de obter uma resposta, sobre o
direito (esperando ser esclarecido acerca dele e de seu pensamento) mas não de uma
resposta do direito (Esclarecido por ele)

Ora, como parece claro, a segunda questão é de uma delicadeza muito maior do que a
primeira!

1
O que se propõe aqui (com C neves e J. Bronze) é saber o direito como juristas, isto é.

Considerar o Quid Ius, nos exatos termos em que os juristas, no desempenho de sua
atividade específica (prática), não podem deixar de o considerar (ou de levar
implicitamente considerado)!

 O melindre está em compreender exatamente, qual a intenção com que o


jurista se dirige ao direito, aquela particular intenção no cumprimento da qual
ele “se define como jurista”. Qual é?1

Ora antes de ver, analisemos. Se nos orientássemos pelo que usualmente pensa a
doutrina, diríamos que um jurista, é todo aquele que conhece de uma certa forma o
direito – O conhece no modo geralmente praticado pela ciência do direito (pela
perspetiva epistemológica).

Isto implica o que:

-Que o direito tenha de ser considerado como um simples objeto de conhecimento;

-Que o jurista, tenha só uma intenção de ciência (seja apenas o sujeito de um


conhecimento) e que este seu conhecimento, distinga-se dos conhecimentos próprios
das outras ciências, somente pela especialidade do seu conhecer (especialidade que
muitos veem apenas no objeto, outros no modo de conhecer).

 Ora, isto (para castanheira neves e para José Bronze) é duvidoso. De modo a
comprovar, acrescentam duas observações ementares:

a. A primeira – Antes do positivismo e cientismo, predominantes no século XIX,


e daí herdados pelo pensamento jurídico ainda hoje predominante, não se
pensava no jurista como um “mero cientista”, como alguém que concebia o
direito, numa indiferença objetiva, vendo nele algo que pura e simplesmente “de
fora” lhe era dado (como um objeto) e que ele aceitaria, com o mesmo
descompromisso com que em qualquer ciência se aceita o dado objeto que lhe é
próprio.

1
É sobretudo deste ponto, que dependerá a escolha da nossa perspetiva! Na realidade, se fossemos
pelo que atualmente se defende, teríamos de considerar a perspetiva epistemológica.

2
- Verdadeiros Juristas2: Direito seria antes, em si mesmo, um princípio normativo/uma
intenção axiológico-prática, que o jurista era chamado a assumir, e realizar (Portanto,
em cuja explicitação se não mesmo constituição/ou (re) reconstituição) concorria = lhe
cumpria realizar no mundo de ação prático-social!

NOTA: Portanto, houve um desvio na intenção (que o jurista se dirige ao direito) – E


poderíamos nos perguntar: Terá sido uma irredutível aquisição histórica, um tão só o
fruto de discutíveis pretensões ideológicas e de duvidosos postulados metodológicos?

b. A segunda – Não deixa de ser estranho que, sendo decerto o jurista aquele que
tem no direito, o sentido e o conteúdo intencional da sua atividade (seja de
pensamento seja decisória), aquele que pensa, ajuíza ou decide em termos de
direito, possa ele, no entanto, ver no direito apenas um objeto (Portanto, um
“Quid que transcende como “dado”, a sua atividade, em lugar de ser o sentido e
o conteúdo assumido-constituído por esta atividade!)

Compare-se com o caso de um físico. Para este, a física não é um objeto dado do seu
conhecimento! A física é o conteúdo do seu pensamento ou oque, no particular modo do
seu pensamento, se vai constituindo!

O físico não é o que se dirige “de fora” para a física, que vê nela apenas algo que está aí
pronto para ser conhecido3. A física não está “de fora” do seu pensamento, é antes
aquilo que ele explicita. (Física é alvo do pensamento de um físico, vai se constituindo
no interior deste! -Não é um objeto dado-acabado, que apenas esta a ser analisado por
fora)

Ora, se nós queremos, como juristas, assumir o direito como a dimensão (objetivo-
intencional) da nossa atividade, nossa perspetiva deverá ser então a “natural”, não
qualquer outra que desde logo erigisse uma prévia e particular explicação/explicitação.
Diremos que nossa atitude (Perspetiva natural) é similar a de fiéis-teólogos4 do direito.
2
Não é aquele que conhece o direito conseguido, mas aquele que assume a intenção do direito,
colaborando no ato do seu histórico constituir-se/reinventar-se
3
Atitude que será já, sem dúvidas, a de um historiador da ciência, do sociólogo da cultura, ou de todos
aqueles que, não querendo ser cientistas da física, se propõe a saber o que diz, o que ensina esta
ciência. O físico assume a ciência por dentro, (o pensamento-conhecimento da física).

4
Para a teologia, a religião é uma reflexão sobre a fé, pressuposta na assunção da própria fé (É preciso
acreditar). Por outras palavras, tanto um ateu como um cristão ou um agnóstico, poderão debater
sociologicamente, filosoficamente, historicamente etc, sobre a religião. Mas um teólogo, é um crente,
que assume (sua crença) e problematiza racionalizantemente – nota que os distingue bastante de
simples praticantes – a sua fé.

3
I. Perspetiva Epistemológica5 - Mais usual nos dias de hoje!

Também, pois o direito é um objeto que aí está, aberto ao nosso conhecimento (Ciência
do direito)

O que realmente caracteriza esta posição (Aliás, a mais comum e dominante) é o seu
sentido mais teorético, ao pretender constituir o pensamento jurídico em termos de
uma teoria científica do direito, como objeto.6

O que antes de mais, quase sempre lhe vai à porta, é o oferecer de uma determinada
noção, uma definição de direito, que objetivamente caracterize e simultaneamente o
delimite doutros objetos afins – do mesmo/similar “genus”7

 Ora esta perspetiva vem trazer 3 consequências metodológicas:

-1ª – O direito teria de conceber-se necessariamente como um objeto positivo.


Analisado “de fora”, algo já dado-acabado. Ora, decerto que esta consequência de
caráter metodológico, entra em concordância com o positivismo jurídico, ainda
dominante.

-2ª – O pensamento jurídico desviar-se-ia, como pensamento científico (teorético) que


devia ser, para os problemas teoréticos da conceitualização e sistematização, com
sacrifício dos problemas normativo-jurídicos, vendo na sua intenção os conceitos 8 e o
sistema e não a concreta discriminação do justo e injusto.

Assim é que um eminente pensador9 – e profundamente influente no pensamento


jurídico – Pôde dizer que o problema metodologicamente decisivo para este novo
pensamento, seria o da conceitualização.

5
Epistemologia teoria do conhecimento (sentido lato)

6
Compreende aquele pensamento puro e simplesmente em termos de ciência, com a estrutura
teorética duma ciência. Daí, e de acordo com as exigências metodológicas de um pensamento deste
tipo, que seja a sua primeira preocupação a de postular o seu objeto – mediante uma definição – um
objeto distinto dos das demais ciências.

7
É o que sucede nas páginas iniciais da maioria dos manuais de introdução ao direito atualmente.

8
Poderemos confirmar que, foi precisamente na linha de um anticonceitualismo que se verificou uma
das mais significativas/decisivas revisões metodológicas do pensamento jurídico – e no sentido de o
recuperar para uma intenção verdadeiramente normativa!

9
E. Lask

4
Com efeito, vemos atualmente os juristas mais preocupados sem saber se o pensamento-
conhecimento jurídico, é ou não uma verdadeira ciência/ como deve constituir-se para
ser tal, do que em propriamente saber se ele decide ou não correta e justamente os
concretos problemas jurídicos e como deve constituir-se para melhor e mais justamente
os resolver!

Isto não parece correto! É como se o direito, estivesse apenas no dado/na matéria a
elaborar, e não fosse ele a própria substância, dimensão essencial, sentido e intenção do
pensamento jurídico!

NOTA: A tal ponto isto, que poder-se-ia dizer que se tende a construir uma “ciência do
direito sem direito” – Para traduzir a ideia da preferência à ciência (epistemologia) do
que que a ideia de direito.

-3ª – É um corolário das duas anteriores – A realização do direito na vida social (isto é,
a sua concreta aplicação), ter-se-ia por uma operação posterior, um problema autónomo
que, quando muito10, acrescia aos problemas verdadeiramente próprios da ciência do
direito!

Mas mesmo quando daquela forma não se pensa (nota 9), sempre se admite que a
aplicação-realização do direito viria só depois, e que, portanto, a determinação dos
conteúdos normativos se faria independentemente do problema da concreta
realização do direito!

Temos aqui, um dos grandes fatores, mas não o único, de grande cisão entre “teóricos” e
“práticos”. Tal como se o pensamento jurídico pudesse se dar ao luxo de dualizar-se em
duas intencionalidades diferentes e até em duas diferentes metodologias!

10
Quando muito, pois em coerência com a intenção meramente cognitiva desta ciência do direito, não
falta quem entenda não lhe pertencer de todo este problema! No caso destes, uma vez conhecido o
direito, a sua aplicação seria uma mera operação lógica ou então caberia apenas aos “práticos”

5
ATENÇÃO: O grande erro está, em nos esquecermos que o pensamento jurídico é
(deve ser) desde o primeiro momento e, em todos os outros, na sua própria essência, um
pensamento prático-normativo, chamado a assumir uma ideia prática (O direito, a
justiça), uma ideia que não poderá ser pensada, sem uma certa intenção de realização e
só é pensável, através do problema/problemas da sua realização.

Pensamento jurídico como = iurisrudentia11! Um “saber prático da justiça”, é um


pensamento axiológico-pessoalmente enucleado (esclarecido) e dialógico-
argumentativamente estruturado.

É um pensamento prático-normativo, e isto pois os problemas decidendos emergem, em


termos controversiais, no horizonte do mundo da vida!

-Por outras palavras, a racionalidade não é lógico-dedutiva, mas prático-analógica, não é


monológica, mas dialógica, não radica em premissas (Em pessoalmente anónimas e
circunstancialmente indiferentes, afirmações apodíticas), mas em argumentos (isto é,
fundamentos de significação contextual, e de reconhecida validade numa pressuposição
intencional).

A “forma mentis” do jurista (Advogado/juiz etc) é assim, dialético12 argumentativa,


pois o que lhe é pedido, é que pondere prudencialmente 13 e decidida, em termos
normativamente fundamentados, controvérsias que se manifestem no âmbito de
situações histórico14-concretas, que se devam ser consideradas juridicamente relevantes
(produzam efeitos jurídicos)

11
Segundo Ulpinus: Era o conhecimento das coisas divinas e humanas, a ciência do justo e do injusto, D.
1.1. 10.2.). Isto ignificava que a jurisprudência era a ciência do direito, o saber prático da justiça,
iures(julgar) e prudentia (saber).

12
arte de argumentar ou discutir, através do raciocínio e com o objetivo de demonstrar algo (e aqui,
consoante o jurista, temos alguns tipos – convencer ou persuadir)!

13
Qualidade daquele que, atento ao alcance das suas palavras e dos seus atos, procura evitar
consequências desagradáveis; circunspeção; ponderação – É alguém moderado.

14
= Verdadeiro, que realmente existiu, que não é inventado

6
NOTA DO MANUAL:

-Este curso de introdução, não vai deixar de tematizar, ainda que de forma sumária, a
problemática da metodonomologia, na aceção a explicitar, dentro em pouco tal-
qualmente deverá assumir o jurista decidente!

 O paradigma do jurista referido acima, vemos logo:

-No caso de um juiz – Ora, a um juiz cabe mobilizar a “constituenda” normatividade


jurídica vigente, para decidir judicativamente os problemas justificadamente
qualificados como juridicamente relevantes, e que sejam institucionalmente do seu
múnus. E deverá o fazer, com a preocupação de convencer o pensamento jurídico,
tomado como “auditório argumentativo” da justeza da mencionada decisão.

-No caso de um advogado – Só que aqui é diferente. Um advogado tem,


compreensivelmente, uma preocupação precipuamente estratégica, tendendo assim a ver
no direito, um instrumento ajustável (“uma cera modelável”) à realização de seus
interesses. Por isto mesmo, visa primordialmente persuadir os interlocutores com que
eventualmente se confronte.

 Em SUMA:

A perspetiva epistemológica, acaba por implicar que tenhamos de entender o direito


como algo que nos é dado, já definido e acabado (não pondo assim outros problemas,
que não os de uma adequada ou exata determinação de seu conteúdo objetivo), a
elaborar segundo uma intenção apenas racional-sistemática e no plano teorético-
abstrato.

Não pode assim ser! Na verdade, sabemos que o direito não nos é dado-acabado, vai se
constituindo a medida em que se realiza! É algo por que se luta, tendo sido um
problema e uma das mais relevantes tarefas no esforço de nossa civilização. Ele não
pode refugiar-se no “céu dos conceitos”, naquele plano teorético-abstrato, pois é a mais
pura seiva/néctar (e exigência) da vida real e concreta.

7
II. Perspetiva especulativa/ filosófica

Efetivamente! Se partirmos do princípio que o direito nos dirige determinados deveres e


imputa responsabilidades, é perfeitamente compreensível que se questione o porque, se
isto é válido ou não etc? Ou então com que fundamentos? Formulam-se especulações!

Apesar de uma perspetiva puramente filosófica não dever ser aceite, parece que vamos
ao encontro dela, já que é nossa intenção (a do Prof. C. neves /J. Bronze),
maioritariamente, O QUID IUS!15 – Saber o que é isto do direito!

NOTA: Apesar do direito e do pensamento jurídico terem um imediato e irredutível


momento filosófico – Por estarem situados diretamente no mundo do espírito, dos
valores e das ideias – Uma coisa é a especulação filosófica acerca do direito, outra, é a
compreensão do direito como a dimensão intencional, do pensamento jurídico dos
juristas.

A especulação filosófica16, encara aquele ponto (Quid ius) numa outra perspetiva
problemática e mediante outra atitude espiritual!

Ora a filosofia – essencialmente especulativa 17 – apresenta uma problemática de


intenção estritamente racional-ideal, assumida numa atitude de puro desinteresse
reflexivo!

NOTA: Ou melhor, só com aqueles interesses que o homem tem na compreensão do Ser
e de si próprio nele. Refletir 2filosoficamente algo, é assim referir este algo, à
inteligibilidade18 do homem e do ser.

15
Só que, como alerta castanheira neves, o interesse pelo quid ius, deverá ser um interesse que
devemos ter como juristas!

16
Ainda que, Castanheira Neves não a autonomize, em razão dum elencado de específicos problemas
(metafísicos, ontológicos, axiológicos, gnosiológicos etc)

17
Especulativo: Indagação intelectual/racional, feita de forma autónoma ou independente de
fundamentos empíricos; investigação teórica

18
Qualidade de inteligível - Que só pode ser compreendido através da utilização da inteligência, em
detrimento dos sentidos; que só existe na ideia: Platão opõe o mundo inteligível ao mundo sensível.

8
É este tal desinteresse que levou Hegel a dizer que a filosofia deve guardar-se de querer
ser edificante!

Ora pensar filosoficamente o direito, é pensar nestes termos. No entanto, nós estamos já,
interessados em compreender o direito, como a dimensão atuante do jurista – como
aquela ideia edificante que ele (o jurista) visa realizar.

O que em todos os pontos (a considerar neste curso – C – neves) geralmente remetidos


para a filosofia do direito, queremos saber, é:

- Em que termos, o Jurista deve assumir o direito, em ordem a fazer dele a justa
dimensão da sua função e atividade (=prática)

-O que é (ou o que deverá ser) para ele o direito e de que modo, sendo “isto” para ele o
direito, é chamado ao desempenhar-se da tarefa de o explicitar e realizar na vida
humano-social.

Ora mesmo a filosofia, pressupõe uma acabada experiência jurídica, de modo a refletir
sobre ela da forma atrás aludida! Nós, queremos alcançar, pelo contrário, o sentido que
há-de orientar esta nossa experiência a adquirir.

 É assim por exemplo que nós não podemos começar por discutir aqui, se o
conceito de direito é um conceito “a priori” ou “a posteriori”, nem se quer
mesmo procurar neste conceito (de que se ocupa a filosofia, aliás) a chave para a
nossa tarefa!

Esta questão, pressupõe toda uma experiência do direito que ainda não possuímos, e
partir do conceito sem esta experiência, seria o mesmo que partir de um Dogma 19, que
nos impunha uma certa conceção do mundo jurídico, quando nós é que queremos aceder
esclarecidamente a este mundo.

EM SUMA:

A filosofia pergunta pelo Quid essencial/ideal do Ius - pressupondo ele como seu objeto
de reflexão.

19
proposição apresentada como irrefutável

9
Contrariamente, nós, como juristas, perguntamos pelo quid intencional que o
pensamento jurídico manifesta e cumpre como ius.

III. Outras Perspetivas

 Perspetiva Sociológica

Claramente. Poderemos abordar o direito de uma perspetiva sociológica também, já que


este é, tal como a política, um fenômeno social!

-Perspetiva Histórica do Direito

-Perspetiva Semiótica do direito (Engloba: Perspetiva iconológica + Perspetiva


linguística)

-Perspetiva Literária (Law in Literature - direito na literatura + Law as literature –


direito como literatura + Law as narrative – direito como narrativa)

-Direito e cinema

10
IV. A perspetiva adotada – Perspetiva Normativa (Castanheira Neves/José
Bronze)

A perspetiva adotada pelo prof. Doutor Fernando José Bronze, que vai de encontro com
o que sempre defendera o autor Castanheira Neves, cruza-se com as outras, mas não se
reduz a nenhuma delas.20

“É uma perspetiva normativa de encarar o direito, o que significa que – O direito, vai
surgir-nos não como algo já dado acabadamente em algures, e a que apenas
tivéssemos de perguntar “o que deve ser, relativamente a quaisquer circunstâncias e
para todos os momentos em que o saber deste dever-ser tenha para nós interesse, não.

O direito surge como algo que nele próprio é um dever-ser, um princípio normativo,
uma intenção axiológico-prática, que nós mesmos somos chamados a assumir e a
realizar!

Exemplo: O direito fosse dado acabado, num todo de proposições de dever-ser. Se


assim fosse, só na intenção destas proposições haveria este caráte-r de dever-ser, e nós,
perante seu conteúdo, apenas teríamos de o apreender. O que quer dizer que, o que
destas proposições aprendíamos, era o seu conteúdo lógico (pensamento que elas
exprimiam) – pelo que nossa atitude de apreensão nada teria de normativa em si mesma
(era lógico-cognitiva).

Considere-se, entretanto, as mesmas proposições normativas, só que vistas não como


direito dado, mas como soluções de problemas de direito, suscitados em face de
determinadas circunstâncias sociais e num certo tempo (= Quid Iuris – Como normas
jurídicas). Ora neste caso, só poderemos compreende-las como tais, e mesmo utiliza-las
como critério de solução para problemas análogos, se nós próprios (re) assumirmos a
intenção normativa que as informa, compreendendo-as naquilo que elas são!

Isto é: A intenção de afirmar e realizar o direito, naquelas particulares situações que


suscitaram os problemas de direito.

20
Na perspetiva normativa, resulta que o direito não é considerado exclusivamente como um fenómeno
social (embora inegavelmente o seja), nem como um puro objeto de especulação (não obstante
também o possa ser) e nem como um mero dado cognoscível (apesar de também o ser!)

11
Temos de ser nós próprios a assumir/realizar o direito, mas como intenção ou princípio
normativo, ainda que, com o apoio ou através/por intermédio daquelas proposições,
desde que queiramos as compreende-las normativamente.

NOTA: As proposições não são o próprio direito! O direito – é a intenção normativa,


que as transcende, e que elas pretenderam cumprir de certo modo.

Pensemos ainda mais – Na mutação de circunstâncias e em todo dinamismo temporal.


Como podemos nós corresponder-lhes em termos de direito, senão pondo nós próprios,
novos problemas de direito?

 Tudo isto vale por dizer que, somos chamados a compreender o direito “por
dentro”, pois somos também sujeitos da sua intenção, afirmação e realização!

NOTA: É esta a perspetiva que [castanheira neves] indica como a natural como
juristas – Pois o verdadeiro jurista, não é aquele que conhece o direito conseguido, mas
sim, aquele que assumindo a intenção do direito, colabora no ato do seu histórico
constituir-se.21

-É natural, não apenas por ser a metodologicamente mais natural, mas também, e
sobretudo, por ser aquela perspetiva que está em coerência com o que nós (C.Neves),
independentemente de uma especializada experiência jurídica, e só com nossa
experiência humano-cultural e social, imediatamente pensamos ser o direito!

E não só: É a única dentre todas que se adequa/entra em conformidade, com à


específica tarefa de um jurista = Profissionais que pegam na intenção central do
direito, para a projetar regulativamente (Hoc sensu, judicativo-decisoriamente) na
realidade social!

 Atenção: Diferencia-se do sociólogo, filósofo ou do epistemólogo! Que já não se


adequaria, pois:

i. Sociólogo – Ao estudar o fenómeno social – direito

21
Muitas vezes, não propriamente uma constituição, mas um reinventar (J-Bronze)

12
É alguém que diferente do jurista, não está propriamente comprometido (vinculado)
com o objeto que estuda, pelo contrário – Distancia-se dele. O objeto que pretende
analisar, é-lhe heterónomo. (Submetido à vontade de outras pessoas – Ordem jurídica –
Legislador)

ii. O filósofo

Reflete especulativamente sobre o eventual sentido da normatividade jurídica, mas não


adentra no campo da sua realização (aplicação) concreta.

iii. Epistemólogo

Muito preocupado em descrever o direito nos seus diversos quadrantes ou em reduzi-lo


crítico-explicativamente a certos referentes, pode mesmo chegar a formar uma “ciência
do direito, sem direito.”

Será utilizada uma perspetiva essencialmente normativa, o que não fará com que as
outras percam 100% sua relevância, aparecendo num momento ou outro – de modo
complementar, quando for oportuno. São subsidiárias, instrumentais.

 Ponto da situação: Normativamente perspetivado, o direito, ainda poderá ser


considerado de dois diferentes modos/dois sentidos (que já vimos acima)

A. Direito como Critério de Solução de situações concretas (Quid Iuris)

Um jurista poderá pretender resolver uma situação circunstancialmente controvertida –


imaginemos, do sr. Arrendatário, de um herdeiro, de um arguido num processo penal ou
disciplinar etc. Em todas estas hipóteses, o direito, surge como CRITÉRIO DE
SOLUÇÃO! Por outras palavras:

-Todas estas questões, são questões de direito (Ou Quid Iuris/Juris), em que se vai
perguntar, o que de direito se pode dizer neste caso em concreto? o que o direito
prescreve?

-O direito neste sentido, é um pressuposto (para a resposta), mas não é ele próprio
interrogado/problematizado pelos sujeitos!

13
B. Direito problematizado (Quid ius)

Poderá suceder, de problematizar-se o direito, isto é, colocar-se a questão do Quid Ius -


– O que direito? O que é isto a que designamos direito?

Como se viu, é uma questão muito mais delicada, e que tem um certo privilégio! – Quer
por ser ela, a mais importante e fecunda numa cadeira de introdução ao direito, tal e
qual caracterizada, quer porque aquela primeira, como mais a frente se verá, nunca
desonera o jurista do esclarecimento da questão do QUID IUS (O que é o direito)22

NOTA: Apenas desoneraria, se o direito fosse algo já nos fosse algo dado, isto é,
cognoscível antes da sua aplicação concreta! Se efetivamente, mesmo antes de
aplicar, soubéssemos tudo o que é direito, exaustivamente. Mas isto é insustentável!
(Direito não é algo dado/possível de conhecer antes da sua realização concreta!

É que só podemos prever (dar como sabido antes) o típico, o genérico (geral), o comum
(Abstrato), e os problemas da vida surgem sempre, na realidade, com certas
singularidades e especificidades (casos concretos). O que se quer dizer com isto,
paralelo Generalidade/abstração normativa a necessidade de se resolver casos
concretos/específicos.

Naturalmente que critérios pré-objetivados no sistema jurídico, como as normas legais,


os precedentes jurisdicionais, os modelos práticos elaborados pela doutrina (doutrina) –
Podem ser mobilizados para orientar a decisão dos problemas concretos!

-Normas legais sobre os contratos podem, devem e são utilizadas para a solução de um
problema jurídico envolvendo um contrato concreto

Todavia, impor-se-á sempre uma intervenção mediadora, que consiga vencer a distância
entre o caráter geral e abstrato das normas, eventualmente mobilizadas, e a natureza
particular e concreta do caso, o que, a seu tempo, nos levará a reconhecer, entre outros,

22
São indissociáveis! Andam sempre de mãos juntas.

14
limites normativo-intencionais às normas jurídicas!23 Tudo o que significa que, o
direito, vai se constituindo, a medida em que se realiza, e não é algo dado!

 Mas o jurista, apenas poderá empenhar-se de forma adequada nesta constituição


(as mais das vezes, não uma constituição propriamente inovadora, mas sim, uma
reconstituição ou uma redensificação24, mediatizada pela nova experiência com
que se confronta) da normatividade vigente… pressupondo o sentido do direito.

Então, mas referimos o jurista empenhar-se nesta tarefa de constituição. Com isto não se
estaria a ceder a pequenos desvios e, sobretudo, a violar as intenções políticas que se
manifestam no princípio constitucional da separação de poderes e no princípio
democrático?

-Estes princípios, se bem analisados (o que exige a sua leitura com outras normas
constitucionais) dizem-nos que só a representação popular é que possui legitimidade
para constituir direito (lei, decreto-lei etc). O autor está a afirmar que também os juristas
concorrem na sua constituição. Está-se, portanto, a contrapor (com o tempo, se verá
com qual justificação) e a antepor, a específica validade do direito, às puras intenções
políticas. Por outro lado, ao fazer isto, o autor está também a defender às microscópicas
exigências concretas da vida, mesmo que os macroscopicamente postulados sistemas de
planificação lhes resista.

Em suma quanto a perspetiva adotada: O autor decidiu por uma (não misóloga) linha
problemático-culturalmente marcada, em detrimento duma orientação mais analítico-
descritiva, pelo que o curso, pretenderá ser muito mais uma introdução ao mundo dos
problemas e às preocupações culturais25 que marcam o universo da juridicidade, do que
uma análise da estrutura, dos conceitos ou da linguagem deste universo.

23
Jurista apenas poderá ajuizar do mérito jurídico dos problemas concretos com que institucionalmente
se veja confrontado, se tiver pré-compreendido o particular sentido, das devenientes exigências que
inervam o direito!

24
Cada nova experiência que se faz, não dimensiona apenas, objetivamente o corpus iuris (corpo do
direito) – mas reconstitui também, subjetivamente, o próprio jurista, na medida em que afina a
prudência que dele se reclama.
25
 É um conceito de várias aceções, sendo a mais corrente, especialmente na antropologia, a definição
genérica formulada por Edward B. Tylor segundo a qual cultura é "todo aquele complexo que inclui
o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, a lei, os costumes e todos os outros hábitos e capacidades
adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade"

15
 Sendo assim, por onde começar?

- Seria bem possível começar pela palavra direito! – Ou da análise do lugar que este
ocupa em nossa cultura (que é uma cultura de direito). Mas o autor prefere outra
abordagem inicial, quase que maiêutica: Vai buscar mobilizar, desde o princípio, o
saber do… não saber do que seja o direito, isto é:

-Vai partir do pouco que já se sabe do direito, para o conseguir compreender


profundamente. E isto é absolutamente possível já que, não só em introdução, mas em
outras cadeiras (direito constitucional por exemplo), todos nós, querendo ou não,
mesmo não estudantes, tem uma certa prática, uma experiência com o direito (as vezes
sem saber)

-E o que se propõe a fazer, de modo inicial, é a fenomenologia destas nossas


experiências jurídicas – tendo em vista a criação duma base.

A. A “Docta Ignorantia”

O mundo é um só e nós somos muitos, o que nos coloca diante do problema inabalável
– A sua repartição. E não é algo contemporâneo, muito menos precisamos da escala
global para falar deste problema. Em boa verdade, bastaria que houvessem dois
indivíduos num ambiente, e certas regras (mínimas) já teriam de ser criadas – de modo a
permitir a boa convivência.

A verdade é que, cada um de nós gostaríamos, talvez, de aceder livremente ao mundo,


frui-lo desta forma. No entanto, isto é impossível. Vivemos em sociedade, e as outras
pessoas são, assim, mediadoras deste acesso. Mas num cenário imaginário, mesmo que
o pudéssemos, o que acontece é que iríamos repartir o mundo sendo aquilo que somos,
isto é, pessoas com uma autodeterminação muito diferenciada.

E isto não seria muito bom – já que voltaríamos a um estado de natureza (do tipo que já
nos referira muitos dos autores contratualistas)

16
Neste estado, apesar de poder fruir de tudo, viveríamos num constante clima de
anarquia – o que não pode ser! (Guerra de todos contra todos, Hobbes)

Portanto, para isto não acontecer, foi preciso que todos se empenhassem 26 na instituição
de uma ordem (a ordem jurídica), onde estejamos todos incluídos tal como somos – isto
é, como sujeitos com uma inviolável dignidade ética (como pessoas – seres humanos),
logo, com direitos e deveres, liberdades e responsabilidades.

Em suma, ainda não sabemos quase nada do que sejam dogmaticamente o direito, mas
já dispomos desta “docta ignorantia27” que acabou de recordar-se. Esse nosso
“quotidianamente experienciado saber, daquele vasto não saber” (direito), poderá
ser imediatamente mobilizado por nós para comunicarmos uns com os outros sobre o
direito, e até assumido por quem deve empenhar-se na tarefa de ensinar a refletir, de
modo dialeticamente articulado, as coordenadas que estruturam, os problemas que
dinamizam e o sentido que perpassa esse horizonte temático.

Direito – É precisamente isto, esta ordem caracterizada por uma radical matriz ética- (A
pessoa é para ele o indisponível) – E é por isto mesmo que, ao longo de toda a história,
o sentido do direito sempre acompanhou a variação das compreensões que o homem foi
tendo de si mesmo ao longo dos tempos. (= portanto, acompanhou as variações morais/
éticas)

 Mas retomando o olhar para o Jurista

É um profissional técnico, um mediador (não necessário – apesar de que na maioria dos


casos o será) a quem comunitariamente se atribui legitimidade para poder ajuizar (de
forma decisória) de alguns de nossos direitos e deveres.

26
Para além da organização de um poder político

27
Docta ignorantia, ou ignorância aprendida, é uma expressão latina que designa as limitações do
conhecimento humano. O homem sabe e afirma o que é verdade, mas de forma incompleta e parcial.
Como consequência, ele deve estar constantemente ciente das limitações pessoais e descobrir nesta
consciência o início do verdadeiro wis dom. A frase em si vem de Santo
Agostinho (Epist. 130.28; Patrologia Latina, ed. J. P. Migne, 33:505) 

17
A. Qual deve ser a sua atitude perante o direito/qual deverá ser a sua intenção?

Ora poderá ser, nos termos deste autor, basicamente duas:

(1) Ou uma atitude mais técnico-profissional – Em que o jurista pretenderia então,


de modo a ser um advogado, juiz, diplomata, consultor etc, conhecer as leis (ou
melhor dizendo – os critérios pré-objetivados28 no sistema jurídico) para os
aplicar às controvérsias que surgissem, mas sem qualquer comprometimento
cultural com o direito, exercendo um ofício puramente técnico (só deveria
atender aos meios existentes, sem problematizar os fins29)

-Nesta hipótese, o direito “seria dado” ao jurista, que o mobilizaria como objeto – O
jurista atuaria vestindo o hábito de um “empregado taxativo, do tipo destes que vem à
nossa porta ler o contador da eletricidade e da água e nos passam a nota de consumo.

(2) Uma outra atitude mais criticamente comprometida com os próprios


objetivos práticos do direito.30

-Nesta, o direito é para o jurista uma tarefa que o toca/que o instiga: a fazer o que?

“A cavar no terreno processual, contra o espírito de patranha31 dos litigantes, a rábula32


dos causídicos, a letra imediata do código… até encontrar a “linfa” pura da sua
intencionalidade prático-normativa.

28
Doutrina, normas jurídicas, precedentes judiciais (Nos termos do CPC, é a decisão judicial tomada à luz
de um caso concreto, cujo elemento normativo pode servir como diretriz para o julgamento posterior de
casos análogos.

29
A imagem e semelhança de um empreiteiro, que receberia do dono da obra a indicação de que,
imagine-se, uma ponte a construir-se, destinava-se à peões (ou poderia ser ao tráfego rodoviário, ou
circulação de comboios). Ora o empreiteiro não problematiza os fins, quer lá saber disto. Apenas
escolheria os materiais e os processos mais adequados, de modo a terminar a obra pedida. Exatamente
como um jurista, descomprometido culturalmente com o direito – Exercendo um ofício puramente
técnico.

30
Posteriormente se verá, em que termos, com que limites, em que condições, a através de que
processos metódicos.

31
história mentirosa; engano, falsidade, patranhada

32
Advogado (jurista) que embaraça as questões com artifícios

18
(3) Por qual optar?

Ora, um jurista deve compreender a especificidade da sua tarefa e sobretudo, o sentido


dos problemas culturais que o direito lhe coloca, tomando uma atitude ativa, isto é,
envolvendo-se neles, ao invés de, com grandiosa indiferença, se limitar a jogar “o seu
jogo de xadrez”. (Referindo-se metaforicamente a primeira das opções). – Não deve ser
um mero cientista!

Prof. volta a realizar uma analogia (Símile) com os filósofos:

-Assim como os filósofos, preocupados com questões éticas, não podem deixar de
cuidar tanto da concreta determinação das ações axiologicamente louváveis, como das
pressuponentes e constituendas questões de saber o que é o bem, o dever ser, etc,
também os juristas, só poderão ajuizar do mérito jurídico dos problemas concretos com
que institucionalmente se vejam confrontados, se tiverem pré-compreendido, o
particular sentido das devenientes (que passam a ter existência) exigências que inervam
o direito.33

E daí que, a hoje em dia crescente (E pragmaticamente inevitável) “especialização” dos


juristas – ao separá-los cada vez mais daquele horizonte de sentido – concorra
simultaneamente para a instauração de condições propícias à “instrumentalização do
direito” (para a sua subordinação a fins… prático-normativamente espúrios34)

33
Tudo o que significa que o direito, vai se constituindo, a medida em que se realiza, e não é algo dado!

34
adulterado; falsificado / não autêntico; não genuíno

19
Lição nº 2

1ª – Parte – O direito

 Capítulo 1º - O Problema do direito

Na lição anterior fora justificada a perspetiva adotada de encarar o direito, segundo o


autor do manual: A perspetiva normativa.

Portanto, devendo ser a nossa uma perspetiva normativa, temos que assumir o
compromisso prático do direito, o que implicará a sua compreensão por dentro, não sua
mera descrição por fora. (daí falar-se desta, também como uma perspetiva interna35). Por
isto, não se poderemos nos reduzir a meros turistas, vagueando no universo da
juridicidade!

*Parafraseando Hegel – Impõe-se começar pela experiência que temos do direito em


nossa vida (docta ignorantia) pois, se queremos aprender a nada, o primeiro passa é,
lançarmo-nos afoitamente à água.

Sendo membros duma comunidade de direito, fazemos logo, por esta razão elementar,
uma experiência dele. Por isto mesmo, sabemos alguma coisa daquilo que de não
sabemos tudo- do direito. Temos dúvidas sobre o direito, mas estas, apenas poderão ser
formuladas, quando estamos em condições de pré-compreender, aquilo que ainda não
compreendemos totalmente!

 Esse saber, do não saber do que seja o direito, resulta da experiência cultural que
quotidianamente fazemos, numa sociedade em que o direito se afirma como uma
sua dimensão estruturante – numa cultura de direito como a nossa.

Na verdade, sendo nós muitos (porventura, mesmo demasiados) e o mundo apenas um,
estamos compelidos a reparti-lo!

35
O jurista não se assume apenas numa perspetiva técnico-profissional (daquele que conhece
absolutamente todo o direito em vigor e o projeta mecanicamente na realidade), mas assume também
uma atitude criticamente comprometida, a da compreensão do sentido do múnus (dever/obrigação)
que abraça. Ser jurista não é apenas conhecer o direito vigente e aplicá-lo mecanicamente. Ser jurista
implica, assim: • um caminho crítico-reflexivo; • a assunção internamente da intencionalidade que a
normatividade jurídica oferece; • uma reflexão sobre a realidade, que não lhe é alheia

20
Portanto, cada pessoa a nossa volta revela-se como um meio/um obstáculo – como
factor positivo ou negativo (nem sempre é negativo) - do acesso livre de cada um ao
mundo: Todos nós somos mediadores da fruição livre do mundo por parte dos outros.

Exemplos concretos:

a. O outro poderá ser um fator de uma melhor fruição do mundo por parte de cada
um – aí estão as associações por exemplo, nas suas diversas modalidades
(culturais, desportivas, socio-económicas, educativas/académicas (AAC) ou
também as sociedades comerciais, os condomínios etc)

b. Poderá ser, um obstáculo do acesso livre de cada um ao mundo – Por exemplo, a


propriedade. Se este livro é meu, está vedado às outras pessoas o acesso, para
qualquer fim, sem minha autorização. As estradas, limitam a circulação a deus
dará dos veículos.

Ora o direito tem a ver com a nossa inter-relação social (com o encontro que nós
estabelecemos uns com os outros no mesmo mundo, que compartilhamos). O seu
domínio específico, é o do problema da (normativamente adequada) delimitação e
compossibilitação das nossas relações, no horizonte do mundo que pretendemos
compartilhar.

Todas estas relações sociais, são regulamentadas por um certo “Estatuto de Direito”
que: Vai definir as faculdades, as responsabilidades, os deveres, os ónus, de cada um
dos intervenientes (na relação).

Por isto mesmo é que, o direito nos toca, extensa e profundamente36

36
Cada vez mais, extensa e profundamente, porque, em consonância com o modo de ser das sociedades
dos nossos dias, não param de aumentar tanto os domínios da vida social invadidos pelo direito, como
as relações entre os particulares, ou entre estes e a comunidade, regulamentados pela ordem jurídica.

21
*Mas ter em atenção: O direito toca nossas vidas (as “invade”) extensa e
profundamente, mas não totalmente! O que quer dizer que não se reduz a vida social ao
âmbito do juridicamente significativo! Se o fizéssemos:

-Instituiríamos um unidimensional, absorvente e inumanamente aterrador universo


nomocrático37. Não pode ser assim. (O mundo, as relações de todas as ordens, reduzir-
se-iam ao âmbito do direito)

 O que é preciso saber é: Há certas relações sociais da nossa vida, que se


subtraem sim a um determinado estatuto jurídico: No entanto, e como fora feita
a ressalva, o direito não poderá arrogar-se… “o direito” de resolver (disciplinar)
todos os problemas do homem (da vida humana). E isto porque?

-Pois existem muitos outros tipos de relações no nosso mundo, que não estão no âmbito
do direito! Alguns exemplos:

- O primeiro mandamento católico impõe logo, para além do amor a Deus, o amor ao
próximo. Ora, estas relações que os próximos estabelecem entre si, são chamadas
relações de absoluto38, relações também de pessoa a pessoa, mas sem aquela
necessidade mediação do mundo! (Pense-se nas relações familiares ou de amizade e
amor, no seu sentido mais nobre 39) Nestas, o mundo aparece ainda, só que apenas como
um pano de fundo, e por isto mesmo, é que estas são um exemplo de relações que se
subtraem ao âmbito do direito.

-O mesmo poderá dizer-se, mutatis mutantis, para a cortesia, que destina a tornar menos
áspero o nosso encontro com os outros. Claramente, existem boas razões para nos
saudarmos uns aos outros quando nos encontramos, principalmente se for pela primeira

37
Nomocracia - Governo liderado pela lei em que os próprios líderes não podem facilmente alterá-las.
Significa: Regido por leis

38
A título exemplificativo: A parábola evangélica dos trabalhadores da Vinha – O senhor da vinha pagava
a mesma soldada (quantia com que é pago o trabalho de criados, operários) aos diversos trabalhadores,
independentemente da hora a que se tivessem apresentando ao trabalho, pois considerava cada um
deles como um absoluto incomparável! Um dos trabalhadores, que tinha começado a trabalhar mais
cedo, protestou, pois pretendia que eles fossem relativizados – em função do tempo de trabalho
prestado – uns perante os outros.

39
Claramente, nas relações familiares podem surgir problemas! Imagina-se aquando da expetativa de
uma herança, ou então, nos problemas que, por vezes surgem, aquando da repartição duma sucessão já
aberta. Nestes casos, o mundo aparece de permeio.

22
vez. Mas se é verdade que isto não é obrigatório a ninguém 40, também é verdade, que o
cumprimentar não faz com que ninguém adquira um direito

 Numa palavra de síntese (que apenas se eliminará totalmente duma redutora


equivocidade, se articulada com um conjunto de observações precedentes)
diremos que:

-O DIREITO, tem a ver com as relações intersubjetivas suscitadas pela problemática da


partilha do mundo (mundo surge como elemento mediador)

-A fé religiosa, a amizade, o amor a cortesia etc, por outro lado, tem a ver com as
relações que imediatamente estabelecemos, como pessoas.41 (“Eu puramente pessoal)

NOTA: O direito regula, portanto, o estatuto (os vários estatutos) das nossas relações
sociais. E muito embora se associem também importantes valores ao direito, o certo é
que, para já, é preciso atentar que o direito nos relativiza, enquanto que, no
âmbito daquelas outras relações, os outros são sempre um absoluto/ incomparável.

 O direito, não sendo pessoalmente o mais relevante para nós, é, todavia, muito
relevante em nossas vidas. É que ele atua intensamente sobre nós, nos mais
variados campos da vida! (É em seu nome que tribunais julgam, que advogados
apoiam seus clientes etc42

E se até agora, foi-se falando que estamos no direito, apenas com a nossa “face
societária”, com nosso “eu social”, e que, com o nosso “eu puramente pessoal” estamos
fora do direito, é preciso ter em atenção, que estas duas esferas, apenas analiticamente
são discrimináveis! Na realidade, constituem dois polos dialéticos, que se condicionam
reciprocamente.
40
Em teoria, já que, em certas carreiras como a militar, a saudação poderá ser obrigatória. Entretanto,
nestes casos o que temos é uma continência juridicamente imposta e não um cumprimento
aconselhável ou recomendável por cortesia.
41
Mas é um terreno movediço este. De modo a compreender a… imbricação operativa das categorias
que se acabou de contrapor, lembre-se apenas que às esferas da… privacidade e da intimidade, que
integram a amizade, não pode deixar-se de reconhecer uma particular relevância... jurídico-dogmática
(constitucional/penal – Veja-se os direitos à reserva sob a intimidade da vida privada etc).

42
E do ponto de vista da extensão, é também relevantíssimo – “Então não começamos nós a ser
atingidos pela apertada rede de compromissos sociais que o direito regulativamente institui, ainda antes
de sermos, e não continuamos a sê-lo quando já nem sequer somos? Referindo-se a abrangência da
normatividade – em particular aqui, o direito civil! – Normas que disciplinam desde nascituros até
mesmo protegendo depois da morte.

23
A. A ordem jurídica

a.1 O porque de uma ordem jurídica? – (Não é tão preciso)

Antes de procedermos com a análise da ordem jurídica, devemos compreender, uma


questão prévia – Porque razão carecerá o homem de uma ordem? Lá chegaremos.

(1) A vida humana em sociedade

Ora é um dado da experiência comum – todos podemos o confirmar pela simples


observação do que se passa a nossa volta – que o ser humano vive em sociedade. A
humanidade específica do homem, está intrínseca e inseparavelmente ligada à sua
sociabilidade!

Imagine o local onde nascemos/onde realizamos nossas atividades do dia-dia: Uma


cidade, uma vila, independentemente. Foi ou é, com certeza, um aglomerado humano,
onde habitam/coexistem muitas famílias, pessoas, cujos membros, porventura se
conhecem, até se entreajudam.

Na passagem para o século XXI, Portugal tinha dez milhões de habitantes, repartidos
pelo continente e pelos arquipélagos. Cada um destes três territórios, encontram-se
divididos administrativamente por tantas capitais de distrito, tantos concelhos, e não sei
quantas freguesias, sendo certo que em cada um, haviam povoações, lugares habitados
por seres humanos, que coexistiam.

Ora isto acontece em Portugal e acontece com maior ou menor intensidade no mundo
todo. A verdade é que, todos vivem em aglomerados humanos, coabitando, convivendo,
cooperando.

E tudo isto, porque?

 Faz parte da natureza humana, da humanidade, a sociabilidade, esta tendência


para viver em sociedade, esta nossa necessidade de se juntar e se organizar em
comunidades.
24
-É vivendo em grupo que os homens falam, conversam, geram amizades, afetos,
constituem família: É uma necessidade vital e psicológica.

-É em grupo que os homens se defendem melhor das ameaças da natureza e de ataques


de indivíduos com tendências mais agressivas: É uma necessidade de segurança.

-É em grupo que os homens podem proceder a divisão do trabalho fazendo cada um


apenas o seu ofício, podem trocar seus bens e serviços pelos dos outros etc: É uma
necessidade económica

-Em grupo, os homens organizam-se melhor par fazer face às agressões ou ameaças
violentas provenientes de comunidades exteriores, vizinhas ou distantes, que os
pretendam destruir, dominar: É uma necessidade de defesa militar.

-É em grupo, que os homens se sentem integrados num projeto coletivo e geram


lideranças, capazes de os manter unidos no essencial e empenhados na satisfação das
suas principais necessidades coletivas: É uma necessidade política.

Portanto, o homem precisa, e gosta de viver em sociedade. Já Aristóteles 43, grande


filósofo grego, exprimira muito correta e sinteticamente esta condição humana
referindo:

“O homem é, naturalmente um animal político”. Porque foi “feito para viver em


sociedade44”. Assim “aquele que pela sua natureza (…) não o for, ou é uma
criatura degradada ou um ente superior ao homem”: “aquele que não pode pôr
nada em comum na sociedade, ou que não sente necessidade de nada (da parte
dos outros homens), não é membro da cidade – Não pode deixar de ser um
bruto, ou um Deus”. Porque, “como cada um é incapaz de se bastar a si próprio
em situação de isolamento”, há necessariamente “em todos os homens uma
tendência natural para uma tal associação” (a vida em comum com outros
homens).

43
Também S. Tomás de Aquino: Ubi homo, ibi societas – Onde está o homem, haverá uma sociedade.

44
Viver em sociedade nesta época era participar ativamente na vida política da polis.

25
 Mas a pergunta que fica é: Será sempre assim? Não existem exceções, graus de
intensidade?

Ora, temos exemplos de pessoas atualmente que dependem menos da sua interação
social com outras: No domínio mais psicológico, seres humanos introvertidos. Ou
também indo além, pode-se falar nos eremitas, indivíduos perdidos, aventureiros e meio
do deserto/floresta/ilha45 etc

Mesmo nas hipóteses mais extremas e, supondo que elas realmente ocorreram. O traço
comum, podemos o dizer, a todos eles, é que apenas sobreviveram durante tanto tempo,
pois levavam consigo, numerosos instrumentos e bens que tinham adquirido a outrem
aquando ainda viviam em sociedade.

Isto sem contar de todo o desconforto que passaram, e medo constante de serem
atacados por alguma fera/ou nativos selvagens, o que fazia com que insistentemente
lutassem para sair daqueles locais. Sentiam falta de alguém para conversar, e
consideravam sua situação a mais mísera que um ser humano poderia enfrentar. Apenas
muito tempo depois, foram se habituando um pouco mais, deixando seus desejos de
lado. Logo que lhes surgira a oportunidade, saíram de suas ilhas e retornaram para suas
casas.

De tudo o exposto, parece não se poder acreditar, como tese geral extensível a toda
humanidade e a todas as épocas, na viabilidade e na comodidade da vida solitária.

45
Na literatura, O exemplo de Robinson Crusoé, vivido completamente só numa ilha deserta durante 28
anos, ou no cinema, o náufrago.

26
(2) Necessidade Original das instituições (Perspetiva Antropológica)46 – Resposta
a pergunta – Como se caracteriza a vida humana, vivendo em sociedade?

Já sabemos que somos seres naturalmente sociais, inclinados para a vida em sociedade!
Agora resta-nos entender, como é que se caracteriza, esta nossa vida em sociedade.

Nós homens, carecidos dum aparelho instintivo ou outro que determine e dirija
certeiramente nossas condutas, necessitamos de criar as chamadas instituições, isto é,
estruturas de organização social dotadas de certas regras de conduta, garantindo assim a
segurança nas relações entre os homens, ao mesmo tempo que permitem a cada homem
encontrar-se e definir-se num contexto ou universo significativo”.

É nas instituições, (familiares, educativas, económicas, culturais, desportivas, políticas,


etc47.) com as suas regras/princípios próprios, que o homem aprende viver regradamente
em sociedade com os outros.

São elas que instituem as coordenadas (funcionado assim como uma bússola) que
permitem ao homem encontrar um rumo de ação e, sobretudo, achar uma definição de si
próprio face a todo caos de seus impulsos sumamente inespecíficos e sem direção!

O organismo humano carece, portanto, de meios biológicos necessários para


proporcionar estabilidade à sua conduta e onde ele possa se definir/encontrar. Por isto
mesmo, diz-se que não temos um “mundo próprio” como os outros animais 48. Somos
seres, numa certa, aceção, “deficientes”, marcados por uma incompletude essencial.
Mas por isto mesmo que não nos achamos enclausurados num “mundo próprio” é que
nos dizemos, ao mesmo tempo, seres “abertos para o mundo”, de um modo que,
incompletude e abertura estão correlacionados, como dois aspetos dum único
fenómeno. Qual?

 Esta nossa incompletude e a consequente abertura, radicam biologicamente, no


próprio inacabamento de nosso desenvolvimento ontogenético!

46
J.Batista Machado.

47
O estado, as igrejas, as empresas, as associações, escolas, estádios, cidades municípios, freguesias,
regiões autónomas,
etc
48
Os animais são biologicamente completos. Seus instintos, já ditam formas invariáveis e estáveis de
conduta!

27
Durante o primeiro ano de vida (extra-uterina) o homem estaria ainda, na fase do
desenvolvimento fetal, fase extremamente plástica na qual se dariam desenvolvimentos
importantes do organismo já separado do corpo materno!

É nesta fase, em pleno processo de um desenvolvimento que diríamos ainda como que
embrionário, que o organismo humano vai entrar em contato com o ambiente externo e
inter-relacionar-se com ele, num processo de aprendizagem absolutamente radical.

NOTA: Isto dá-se, através da primeira, e talvez mais importante instituição em que o
homem está inserido e começa a ser socializado – A família. É através desta que
começa o radical processo de aprendizagem humano, em que somos expostos ao
ambiente social.

O processo pelo qual se forma o substrato da pessoa humana, se produz, portanto, em


inter-relação com o ambiente, mais ainda, num estado de exposição a este ambiente
(proporcionada, num primeiro momento, pela instituição família).

Ontogeneticamente inacabado, “abandonado” pelos instintos (nele muito rudimentares e


inespecíficos) aberto para o mundo, mas por isto mesmo, inseguro e desorientado =
exposto ao caos, o homem necessita radicalmente das tais instituições. Estas,
servirão de base a um consenso sobre o certo e o errado, sobre o justo e injusto, sobre o
que vale e o que não, garantindo assim a segurança nas relações entre os homens, ao
mesmo tempo que permitem a cada homem encontrar-se e definir-se num contexto
significativo.

NOTA: São de grande variabilidade as instituições, de povo para povo, cultura para
cultura (o que se comprova por vários estudos antropológicos).

Tudo o exposto parece clarificar a essencialidade das instituições na vida humana, bem
como daquela necessidade radical que as dá vida - que postula absolutamente sua
constituição – sem, todavia, determinar seu conteúdo.

28
O homem participa na formação e modificação destas, funções que deve desempenhar
de forma consciente e responsável:

-Não só do caráter que as instituições tem de produto humano, modificáveis


historicamente (=ao longo do tempo) pela sua ação!

-Mas também da necessidade radical que os homens tem delas 49, para que possam ser
e coexistir humanamente e entender-se entre si.

A vida em sociedade desenvolve-se, assim, em torno destas estruturas de organização


social – das instituições50. Estas são, como visto, criadas/modificadas pelo próprio
homem, que tanto necessita delas, e são ainda, um produto cultural!

INSTITUIÇÕES - (Noção de Ilse Schwidetzki) – Os instintos não


determinam o homem, tal como o fazem no animal, formas estáveis e
invariáveis de conduta. Ao invés disto, cada cultura destaca, da multiplicidade
dos modos de conduta humana possíveis, determinadas variantes, elevando
estas a padrões de conduta socialmente sancionados que são vinculantes51
para todos os membros do grupo. Estas representam para o indivíduo uma
libertação, já que lhes retira (facilita a prossecução) do grande ónus de ter de
tomar muitas decisões, funcionando como que uma bússola, guiando o homem
através da multiplicidade de impressões e estímulos que o inundam, como ser
aberto para o mundo!

Em todas elas (e agora já contando com a opinião do Porf. Doutor Freitas do Amaral),
tem de haver uma certa autoridade social, que recebe um poder diretivo destinado a:

-Estabelecer regras de conduta para todos os membros do grupo (Poder normativo)

-Tomar decisões concretas relativamente a cada problema do dia-dia (Poder decisório)

49
Delas, e das suas respetivas autoridades sociais!
50
É um produto cultural, variando seu conteúdo consoante os mais diversos fatores. Aliás, como refere
(Anatol Rapoport), cultura, apesar de ser um termo bastante vago, poder-se-á entender-se como “a
totalidade dos objetos criados pelo homem, regras, expetativas, padrões de conduta e interação,
atitudes e crenças que constituem um “meio-ambiente (em larguíssima medida simbólico) edificado
pelo homem!

51
Quanto a esta vinculatividade, poderá variar. Como vemos nas normas da ordem moral. Na ordem
religiosa por exemplo, a vinculatividade é relativa. Um árduo fiel, poderá seguir a risca e considerar cada
preceito religioso com todo o cuidado. Na ordem de trato-social, poder-se-á considerar a risca todos os
preceitos, com o medo da segregação social. Na ordem jurídica também, com o medo de ir para a
cadeia. O mesmo não podendo dizer-se para a ordem moral…

29
-Impor, com autoridade, as regras de conduta e as decisões concretas aos respetivos
destinatários, e caso estes não as cumpram, aplicar-lhes as correspondentes sanções
(Poder sancionatório)

Fazer regras, tomar decisões e aplicar sanções – Eis as funções em que se traduz o
exercício do poder diretivo pela autoridade social, no seio da comunidade humana.

NOTA: No âmbito da um estado, estas três funções, como parece lógico, são
desempenhadas pelos três poderes do estado de que já falava Montesquieu no século
XVIII – Legislativo, executivo e Judicial.

E não é apenas ao nível dos estados que é indispensável este tal poder diretivo de uma
autoridade social de que nos fala Freitas do Amaral:

-Acima dele também o é (Nas comunidades supra-estaduais – Ois, Igreja católica


universal, empresas multinacionais etc)

Abaixo dele também (seja nas famílias, nas paróquias, nos clubes desportivos, nas
empresas, nas freguesias, municípios etc).

 Mas, porque isto – Porque a necessidade – em cada instituição – de uma


autoridade social dotada de poder diretivo?

-Não seria possível que os homens, vivendo em sociedade, prescindissem duma


autoridade acima deles? Não poderiam eles entender-se, livre e espontaneamente,
quanto às regras mínimas a observar por todos, quanto as decisões concretas
indispensáveis e, também, quanto às sanções a aplicar em caso de desobediência?52

52
É um tema interessante que foi alvo de grandes debates intelectuais entre três grandes filósofos dos
séculos XVII e XVIII: Thomas Hobbes, John Locke e J.J Rousseau. Professor Freitas do Amaral faz uma
grande análise das perspetivas destes autores, doutrinas contratualistas. Adota a visão de Locke, que
considera ser a mais adequada para a hipótese de explicitar o que ocorre se o homem voltasse a viver
(ou o que terá ocorrido enquanto viveu…) numa sociedade humana não dirigida por qualquer
autoridade social (=estado natureza)

30
(3) O que seria da Vida dos Homens em Sociedade sem a tal

A resposta a esta pergunta surge quase que espontaneamente – bastando pensar o que
aconteceria nas instituições:

-Numa família – E se retirássemos nossos pais/ou quem exercesse o poder


paternal/tutela. Filhos, irmãos entrariam constantemente em conflito dentro de casa.

-Numa empresa – Pública ou privada, onde não fosse feita a fiscalização do


cumprimento das regras pelo respetivo órgão.

-Numa grande cidade, à hora de ponta, onde o tráfego rodoviário intenso estivesse a
circular sem intervenção da polícia rodoviária.

-Num estádio/ou clube desportivo onde decorre um campeonato, se não houvesse


árbitro.

Instintivamente sentimos dentro de nós, por força do raciocínio e pela experiência, que
o resultado seria sempre, necessariamente, a anarquia e o caos. Mas vale realçar que
nem todos pensam assim (Rousseau por exemplo).

Como se disse (Nota 49) o professor Freitas do Amaral perfilha no essencial a teoria
contratualista de John Locke, sendo ainda de sua opinião que, nos dias atuais, a
existência das tais autoridades sociais com o seu poder diretivo – ou seja, a nível
nacional = estado – é ainda mais necessária do que no tempo de Locke, fundador do
Liberalismo.

Como se sabe, o estado Liberal precedeu o estado social e democrático de direito – E


estes, diferentemente daqueles, já não tem a seu cargo, apenas a garantia dos direitos e
liberdades individuais (negativos) e da ordem e segurança públicas, vai bem mais longe:

-Empenha a maior parte dos seus recursos financeiros na promoção do desenvolvimento


económico, na satisfação dos direitos positivos, no combate ás desigualdades sociais e
no progresso da educação, da ciência e da cultura. Passou a ter funções ativas, de

31
promotor do bem-estar, da solidariedade social e da qualidade de vida. É um estado
social de direito, não apenas um estado de direito!53

Ora parece evidente que, de modo a atender a toda estas exigências, o estado social e
democrático de direito precisa promover e fazer funcionar grandes serviços públicos
nacionais – De saúde, segurança social, transportes coletivos, educação, habitação
económica, bolsas de estudo, fomento da economia etc, aspetos que os indivíduos
isolados, ou mesmo agrupados em pequenas associações, nunca seriam capazes de
obter.

A autoridade social – Sobretudo a nível nacional – mas também as outras, são, pois,
mais do que nunca, indispensáveis:

a. Em primeiro lugar, para evitar a anarquia e o caos, garantindo a paz, segurança


pública e uma justiça imparcial.

b. Mas também, para combater a pobreza, a incultura e as desigualdades sociais,


assegurando o desenvolvimento económico, a justiça social, e o progresso
educativo, cultural e científico.

O estado atualmente configura-se cada vez mais - como um agente do progresso e da


civilização dos povos:

-Não só dos desenvolvidos, em busca de maior progresso económico, tecnológico e


científico e do acesso das massas à arte, à ciência e à cultura.

-Mas dos em vias de desenvolvimento, na sua luta empenhada por um mínimo de


condições de educação, saúde e assistência social, que os retirem da miséria e
proporcionem a seus cidadãos um nível de vida compatível com a dignidade da pessoa
humana.

53
Artigos 9º, 53º a 72º, 80º e 81º da CRP

32
(4) Papéis Institucionalizados

Como vimos, as instituições, são estruturas de organização social criadas/modificadas


pelo homem historicamente, que contém certas regras, escolhidas dentre a
multiplicidade dos modos de conduta humana possíveis, elevadas a padrões de
conduta socialmente sancionados

 Símile com uma peça teatral que está a ser levada à cena!

Uma peça, como um espetáculo, apenas tem existência enquanto:

-Os atores encarnam os seus respetivos papéis (Atores e ações)

-E o fazem respetivamente num determinado cenário

O mesmo sucede com as instituições: Estas, são representadas e adquirem presença real
na experiência humana (existe ou é vigente), através dos papéis encarnados, pelos atores
sociais (O pai, a mãe, O juiz, O réu, o professor, o colega, a namorada etc)

Na realidade da vida quotidiana, no “teatro da vida”, constituído por interações sociais,


se nos deparam “ações” e atores”. Tanto aquelas como estes, conformam-se com certas
regras de conduta (derivados das instituições). Cada um, atua segundo as regras próprias
de sua função, de acordo com sua posição.

Em suma, Batista Machado a referir – A criação de tipos de Papéis é, pressuposto


necessário, da institucionalização do comportamento!

33
De tal modo que, perguntar quais são os papéis que se acham institucionalizados, é o
mesmo que perguntar que zonas do comportamento são afetadas pela
institucionalização, pois:

-Todo o comportamento institucionalizado, coenvolve a existência de papéis que


devem, não só, ser representados em certo contexto institucional, mas também:

-De concerto com outros papéis que deles são complementares dentro do mesmo
contexto.

Assim, por exemplo, o indivíduo que Julga num tribunal. Trabalha na instituição
tribunal. Ao julgar, não está a atuar por si só, enquanto indivíduo, mas enquanto um Juiz
de direito, o que pressupõe necessariamente de sua parte a encarnação de um papel
institucional objetivo e o conhecimento de normas, valores e atitudes que se consideram
próprios de um juiz (de sua função).

Por outro lado, sendo certo que desempenha um papel institucional, não é menos
correto, que o desempenha sozinho. Este seu papel correlaciona-se com o papel do réu,
dos advogados etc

NOTA: Em boa verdade, o desempenho dum qualquer “papel” concreto, nos remete
para o sentido objetivo da instituição em que ele se insere e, portanto, para o
desempenho dos outros papéis que integram a mesma instituição.54

Ao lado de papéis institucionalizados com funções muito específicas, que pressupõe um


conhecimento técnico bastante avançado, como é o caso de um Juiz, de um advogado,
um médico etc, podemos ter também numa sociedade, papéis de grande importância
estratégica, mas que, apenas tem uma função, predominantemente ou exclusivamente
simbólica. Exemplos:

-O rei em Inglaterra

-Presidente da república, num regime parlamentar

Estes papéis de representação simbólica, situam-se quase sempre no setor das


instituições políticas ou no das instituições religiosas.

54
Exemplo clássico é a instituição família. Se falamos no papel mãe, logo imaginamos a instituição =
Família e os outros papéis institucionalizados, pai, filhos etc

34
(5) Principais Áreas Institucionais

Não são todos os setores de atividade, nem todos os aspetos da vida que se acham
institucionalizados. Como refere-nos Batista Machado:

“Apenas aqueles setores que têm um valor estratégico, uma relevância fundamental para
a vida da sociedade:” Mesmo estes costumam a variar bastante de sociedade para
sociedade!

Convém ter presente as principais áreas sociais em que a institucionalização mais


fortemente se evidencia.

a. Esfera da família e parentesco

-Princípios institucionais convergem no sentido da regulamentação das relações da


procriação e relações de sangue entre indivíduos, assim como a socialização inicial de
novos membros de cada geração.

b. Educação

-Em jogo a socialização dos jovens principalmente, a sua transformação em membros


responsáveis da sociedade

c. Esfera económica

-Regulamentando a produção, distribuição e consumo de bens e serviços dentro da


sociedade.

d. Esfera política

-Controlo do poder político dentro da sociedade, manutenção da ordem pública, da paz


externa, mobilização de recursos com vista a satisfação de necessidades coletivas e,
naturalmente, fixação de certos objetivos úteis ao bem-estar da coletividade.

35
e. Culturais

-Promoção de condições que facilitem a criação e conservação de artefactos culturais


(religiosos, artísticos, científicos) e com a distribuição destes “bens” culturais entre os
vários grupo da sociedade.

 Classificação das Instituições

ÁREA
INSTITUCIONAL

Família e parentesco Casamento, filiação, poder paternal etc. Direito da família. Normas
segregadas da instituição família! Daí se falar num direito institucional!

Educação Escolas, universidades, bibliotecas, associações académicas

Económica Contratos, a propriedade, sociedades, associações industriais etc

Políticas O estado, as prisões, os partidos políticos, as freguesias, os municípios,


as regiões autónomas,

Culturais Museus, centros de investigação, universidades,

36
(6) Outras noções para Instituição

a. Linguagem Corrente - Designando ao mesmo tempo, a ação e efeito de


instituir – sendo que instituir significa introduzir, fundar, ordenar, construir e
estabelecer qualquer coisa de estável e durável. Duas ideias merecem destaque:
A de fixar ou estabelecer qualquer coisa/ e a de ordenar (dar um ordenamento
próprio a esta qualquer coisa).

b. Linguagem jurídica – Muitas vezes, utiliza-se esta expressão – Instituição –


para designar complexos normativos (maiores) que se reúnem à volta de
princípios comuns e regulamentam um determinado tipo de relações sociais
(ou um determinado fenómeno social); ou então, para designar a realidade social
que está na base destas relações/fenómenos.

- A família, do matrimónio, propriedade, sucessão hereditária – Instituições

-A mesma designação, podendo se aplicar ao conjunto de normas relativas, por


exemplo, ao direito de propriedade, ao poder paternal, ao direito das sucessões etc

NOTA: Pode-se, porém, querer referir a complexos normativos menores, neste caso,
tratando-se então de institutos: Instituto da propriedade horizontal, da responsabilidade
civil, da legítima etc.

37
c. Pode também designar – Mais a palavra instituto/mas também instituição –
locais/centros onde determinadas atividades e processam por uma forma
organizada!

Aí, é quando se trata de designar uma “obra instituída 55”, entendida como complexo de
elementos pessoais e materiais organizados, com leis e regulamentos (estatutos)
próprios, em ordem a prosseguirem um determinado fim.56

(7) As instituições na vida quotidiana

Temos por verdadeiro que, a realidade quotidiana, é por nós todos apreendida como
uma realidade ordenada. Ou seja: A existência humana em convivência, desenvolve-
se num contexto de ordem, direção e estabilidade.

É sempre tendo em conta esta ordem e confiando nesta estabilidade, que elaboramos
nossos planos de vida!

A realidade da vida quotidiana, apresenta-se-nos, portanto, como algo ordenado,


estável, e simultaneamente, como um mundo intersubjetivo – isto é, como um mundo
que compartilhamos com outros (interação social/convivência com os outros.).

Ora estes outros, são (ou podem ser…) apreendidos por nós através de determinados
esquemas tipificadores, pelo que, surgem-nos como representando certos “papeis” no
“teatro da vida”: Papel de pai, de professor, de mãe, de colega, de polícia57.

Por outros termos, na realidade da vida quotidiana, constituída por interações sociais, se
nos deparam ações e atores. Tanto aquelas como estes, conformam-se com certas regras
de conduta. Cada um, atua segundo as regras próprias de sua função, de acordo com sua
posição. Ora tudo isto que falamos, depende da referida a ordem, com a qual temos nós
de sincronizar nossas ações e projetos.

- Mas a questão que fica é: De onde deriva esta tal ordem e a sua estabilidade, que
enquadra nossa vida todos os dias?

55
Uma nova Pessoa coletiva, um serviço público etc

56
É assim que falamos em instituições hospitalares, de ensino, prisionais, da medicidade, de medicina
legal, de estatística etc

57
Papéis Institucionalizados

38
 Das normas e princípios incorporados nas diversas instituições 58 – que
regem os comportamentos dos membros da sociedade – configurando a tal
ordem social, uma realidade ordenada e estável – sentido amplo.

Instituições que como vimos, são um produto Histórico-Cultural, muito variado


consoante os casos. As regras nelas contidas, são um produto Histórico-social! É com
base nestas que aprendemos a nos comportar.

Portanto, nós nos achamos de antemão, envolvidos por esta ordem social (sentido
amplo), já existente (criada por nós – por força das instituições, das suas regras), onde,
em princípio, se verifica um ajustamento, em larguíssima medida espontâneo, da
conduta dos indivíduos, a estruturas de ordem em sentido estrito 59 ou a padrões de
comportamento que os envolvem em certo sentido e os dirigem em todas suas relações
sociais.

(8) O direito, como parte integrante da realidade social

Na nossa vida, todos os dias praticamente, nós entramos em contato com o Direito, já
que observamos espontaneamente muitas de suas normas: (por intermédio de um jurista
ou não, se formos nós mesmos juristas)

-Ao conduzir nossas viaturas -Entrar num autocarro

-Comprar/vender um objeto -Respeitar a propriedade alheia

-Viver num apartamento arrendado

Mas a verdade é que, é sobretudo quando a vida jurídica apresenta aspetos patológicos –
Há uma violação que gera ou não um litígio entre sujeitos de direito – que tomamos
mais aguda consciência da realidade jurídica, pensando então em coisas, tal como os
códigos, as leis, decretos-lei, administração-pública, tribunais, polícia penitenciárias
etc.60

58
Que como vimos são um produto Histórico-Cultural, muito variado consoante os casos. As regras nelas
contidas, são um produto Histórico-social!
59
Dentro da ordem social, vamos ter: A ordem jurídica, a ordem de trato-social (cortesia), a ordem
religiosa, a ordem moral etc

39
No entanto, importa acrescer que em nossa vida do dia-dia, observamos também de
forma espontânea uma grande variedade de normas/regras de conduta -Hábitos
alimentares, formas de vestir, modos de saudar, preceitos religiosos – que não são
decerto, normas jurídicas!

Ora, daquela ordem social em sentido amplo, fazem parte integrante todas as
normas/regras/princípios jurídicos e os ditos “não jurídicos”.

Pode-se igualmente dizer que, o direito, e assim, a ordem jurídica, constitui uma parte
integrante – e necessariamente complementar – da ordem social global! Participa,
portanto, da ordem social global, e é co-constitutivo dela.

Onde quer que hajam fenómenos humanos, estaremos já dentro de uma ordem
social. O desaparecimento subitâneo das instituições (= colapso institucional),
deixar-nos-ia completamente desorientados, prisioneiros do terror e caos
anómico, em crise de desrealização, de identidade e realidade. O humano estar
em relação com os outros, pressupõe uma realidade social historicamente
instituída!

(9) As diferentes ordens normativas

No contexto desta ordem social, podemos distinguir várias ordens normativas, sendo
que por ordem normativa devemos entender:

Aquela que é composta por regras tendentes a regular e disciplinar


antecipadamente as condutas homanas, condicionando a vontade do homem,
moldando-a, sendo, todavia, suscetível de violação.

De entre as diversas ordens normativas, podemos encontrar: a ordem religiosa, a ordem


de trato social, a ordem moral e a ordem jurídica.

5.1 Ordem Religiosa

60
O que é perfeitamente normal. Ao menos para um “não jurista” claro. É o que acontece também com
o exército, apenas lembramos da importância quando há guerra. Ou da saúde. Preocupamo-nos mais
quando ficamos doentes.

40
A ordem religiosa visa apenas as relações entre os crentes e Deus ou outras divindades e
baseiam-se sempre na fé de cada indivíduo. A violação das regras pertencentes à ordem
religiosa61 implicam uma sanção divina62, mas não jurídica.

Não se poderá, porém, confundir estas regras com as que compõem o Direito Canónico
que, entre outros aspetos, regula a hierarquia interna e organização da Igreja. Estas
regras são elaboradas pelo homem e têm certa relação com a ordem jurídica, na medida
em que apesar da ordem jurídica não estar sequer subordinada ao Direito Canónico, para
ele remete por vezes63.

Mas a independência entre ordem religiosa e ordem jurídica é indiscutível, desde logo
visível na liberdade de culto religioso que a ordem jurídica garante64.

5.2 Ordem de Trato social

As normas de conduta social ou de trato social visam disciplinar a convivência social,


pertencendo aqui também os ritos sociais65.

O conjunto destas regras são apelidadas muitas vezes como regras de cortesia ou de
urbanidade66. A sua violação não acarreta consequências jurídicas, somente trará
consequências sociais, designadamente a reprovação social do comportamento adotado,
o que poderá levar à exclusão social do indivíduo de 5 certos grupos ou à sua
marginalização67.

Existe alguma pressão da sociedade para o cumprimento destas regras na medida em


que a integração indivíduo no contexto de grupo é mais facilmente aceite se forem
seguidas, daí existir uma certa tendência para se afirmar que há nestas regras um

61
Como por exemplo, os Dez Mandamentos de Deus.

62
“ida para o inferno” ou a excomunhão

63
Art. 1625.º do Código Civil.

64
Art. 41.º da Constituição da República Portuguesa.

65
rituais académicos.

66
saudar um conhecido sempre que com ele nos cruzamos ou encontramos, oferecer um presente de
aniversário quando somos convidados para a festa.

67
Muitas vezes, a falta de educação é apontada pela sociedade como causa justificativa da violação
destas regras.

41
carácter vinculativo no seu cumprimento, mas seguramente que é uma vinculação de
cariz social e não jurídico

5.3 Ordem Moral

A ordem moral visa o aperfeiçoamento interior do homem, a sua consciência, a


valorização pessoal segundo princípios éticos. A violação destas normas conduz a uma
auto-reprovação, sendo que a aplicação da sanção68 e os seus efeitos são sentidos pelo
próprio infrator.

5.4 A ordem Jurídica (“Ubi Societas, Ibi Jus”69)

A. Análise da estrutura da Ordem Jurídica – Construção da Juridicidade

Apesar de serem perigosas estas figurações, J.Bronze (Apegando-se a uma tradição que
remonta já a Aristóteles e a S.Tomás de Aquino) considerará que a ordem jurídica
apresenta 3 grandes linhas estruturais, que juntas, configuram como que um (mais ou
menos isóceles/ou escaleno…) triângulo.70

O triângulo tem a propriedade de ser adaptável para descrever sociedades distintas,


geograficamente e culturalmente!

Pode mudar de formato consoante ao crescimento ou decrescimento de uma das linhas,


sendo escaleno, isóceles etc

Uma sociedade mais liberal é uma sociedade em que boa parte das relações
juridicamente relevantes são as que se estabelecem entre sujeitos particulares!

68
Exemplos de sanções em virtude da violação de regras pertencentes à ordem moral pode indicar-se a
existência de remorsos, pesos na consciência, desassossego interno.
69
Onde existir sociedade, existirá aí um direito.

70
Alegoria que o Direito é uma arte (Exemplo de uma árvore que se divide em ramos do Direito pelos
galhos = ramificações)

42
Relações Particulares - Sociedade Relações Sociedade - Particulares

Relações Inter Particulares

 O 1º dos lados/linhas – Linha Base – “ORDO PARTIUM AD PARTES”

Consideremos a linha de base (do tal triângulo) – estão aqui, as relações juridicamente
relevantes que estabelecemos uns com os outros, na veste de sujeitos de direito privado
(em paridade para com o outro), em que todos pretendemos fazer atuar a designada
autonomia privada71, para a realização dos mais diversos fins.72

Nesta mesma linha, a ordem jurídica define nossas autonomias (delimitando-as, até pq a
liberdade que temos, é relativa) permitindo a cada um, a realização/prossecução de seus
interesses, tutelados pela mesma73!

 Segundo o Autor, a função que o direito desempenha aqui é, sobretudo, a de


garantir a atuação das autonomias74 reciprocamente delimitadas!

71
“Poder reconhecido aos particulares de autorregulamentarem sua esfera jurídica, conforme os
interesses que bem lhes aprouverem. (Se manifesta, livre celebração de negócios jurídicos/Exercício de
DS/Livre gozo de bens)

72
Aqui, não existe, em princípio, nada que venha estabelecer uma prioridade/superioridade entre as
partes! Releva aqui, portanto, o princípio da autonomia da vontade/autonomia privada.

73
O tem de ser, já que não raros são os casos de interesses conflituantes nestas relações
(credor/devedor por exemplo)

74
Essencialmente uma função de as garantir, pois autonomia – de “auto + nomos” – significa
precisamente dar-se cada um a si próprio, a norma do seu comportamento – auto reger-se.

43
O direito, reconhecendo/e confiando na autodeterminação das pessoas para realizarem
seus objetivos, se propõe a garantir, em primeiro ponto, a atuação desta autonomia, isto
é, que as partes são realmente autónomas, que sua autonomia privada funciona
efetivamente.

Por outras palavras, o direito quer garantir que as partes possam constituir entre si,
direitos e deveres os quais valem juridicamente!

Noutros termos, o direito admite/ quer garantir que as partes estabeleçam entre si, de
forma livre (veja-se o artigo 405º – liberdade contratual + conjugado com o 219º CC),
direitos e deveres recíprocos, seja através de um contrato de compra e venda ou outro!
Mas chama atenção para o facto de que apenas serão válidos juridicamente, se tiverem
sido constituídos de forma válida, segundo a lei, dentro dos limites desta.

 Mas também, de fornecer um critério de resolução dos conflitos de interesses


que possam surgir (e que surgem diversas vezes)

-Assim, é exemplo a responsabilidade civil, em qualquer de suas modalidades


(extracontratual/contratual/pelo risco/ou mais raramente, por factos lícitos).

Imagine, por hipótese, a responsabilidade civil (mas não é o único caso em que o direito
surgirá nesta linha, com a função de solução de conflitos entre partes)

Um sujeito X, empurra um sujeito B no chão, deixando-o com sérios danos. Este ficou
impossibilitado de ir trabalhar por bastante tempo (cerca de um mês – sendo que
dependia deste dinheiro para seu sustento – vivia sozinho).

Então o que vai acontecer, é que vamos ao regime da responsabilidade civil – neste caso
extracontratual – 483º. Ao sujeito X, iria surgir a obrigação de indemnizar, e ao B, o
correspetivo direito à indemnização.

Poder-se-iam acrescer aqui temas dispostos na secção VIII, do capítulo III (modalidades
das obrigações), do Livro II do código civil, como por exemplo, a reconstituição natural
(=tornar indemne), que é o princípio regra, 562º CC, Nexo de causalidade 563º, os
danos avaliáveis em termos de cálculo da indemnização, 564º, indemnização em
dinheiro75, substituta da reconstituição natural, 566º, culpa do lesado, no 570º, e ainda
75
Que poderá ser posta em 1º lugar, sempre que a reconstituição natural for impossível/excessivamente
onerosa para o devedor, ou quando estiver em causa danos não patrimoniais – Mas aí, surge sob o título

44
poderiam relevar, embora não neste contexto sistemático do código, disposições sobre a
culpa do agente – 487º/488º etc.

Direito surge como um critério de solução de controvérsias entre as partes! – E não só


nesta modalidade, mas em todas as outras. Podemos falar de outras normas que o direito
aparece nesta função, como por exemplo, legítima defesa, ação direta, estado de
necessidade, colisão de direitos etc

 RESPONSABILIDADE CRIMINAL

- Enquanto que a responsabilidade civil se dirige à restauração dos interesses individuais


lesados (Surgidos de um conflito)

-A responsabilidade criminal vai visar satisfazer interesses da coletividade, ofendida


pelo facto ilícito criminal.

A responsabilidade criminal manifesta-se na aplicação determinadas sanções: Penas e


medidas de segurança. As penas, diferentemente do que acontece na responsabilidade
civil, não visam restabelecer os interesses privados da pessoa ofendida! Tem
finalidades diferentes como veremos (prevenção geral (integração) / e especial – re
(ssocialização)

NOTA: A responsabilidade civil e criminal, podem coexistir (na verdade como muitas
vezes acontecerá) e ser inclusivamente desencadeadas pelo mesmo facto (que
logicamente terá de ser analisado da perspetiva civil e criminal)

Exemplo: SUJEITO A mata B

de compensação. Ver apontamentos de teoria geral 1

45
-É um homicídio – analisar penalmente o facto, conduta do agente, culpa para ver se
houve crime

-Civil – Obrigação de indemnizar danos (imagine todas as despesas feitas para tentar
salvar a vida de B, ou então, danos não patrimoniais sofridos pela família de B)

Certos factos serão apenas ilícitos civis (como o não cumprimento de uma dívida)
enquanto outros são apenas ilícitos criminais (mera tentativa ou frustração de um
crime).

 RESONSABILIDADE PELA PRÁTICA DE ILÍCITOS DE MERA


ORDENAÇÃO SOCIAL – RESPONSABILIDADE
CONTRAORDENACIONAL

Esta responsabilidade resulta igualmente da violação de regras de conduta. No entanto,


estas possuem um caráter predominantemente administrativo e não possuem toda aquela
relevância axiológico-social, característica das violações criminais.

Por tudo isto, é esta a linha em que se consideram as relações das partes, para com as
partes (relações paritárias). No fundo, encontra-se a sociedade, mas ela não é aqui
sujeito da relação – é apenas sua condição! Sujeitos serão apenas os particulares!

 Nesta linha, avultam-se dois valores:

a. Liberdade

-Relativa (E não individual) – Pois as autonomias de cada um, ao se encontrarem (ao


relacionarem) relativizam-se mutuamente76; É uma liberdade marcada pela circunstância
76
Daí se falar, a minha liberdade termina quando começa a do outro. Não tenho o direito de invadir a
propriedade de alguém, estou a invadir sua esfera de liberdade.

46
de existirmos em relação com os outros, na medida em que outras pessoas também são
livres; e esta é uma nota muito importante, já que nos permite desde já compreender a
insuficiência do conceito moderno-iluminista de liberdade 77 - que acabou por concorrer
para que se irrelevassem ou não fossem tão bem compreendidas, categorias normativas
tão fundamentais como a culpa e a responsabilidade.

b. Igualdade/Paridade –

-Desde que se verifiquem os respetivos pressupostos, todos podem realizar os


interesses. Os particulares, são considerados, pelo direito, como iguais.

Esta primeira linha, está preponderantemente relacionada com um certo tipo específico
de justiça, que Aristóteles já mencionava a muito tempo 78 – Justiça
Comutativa/também designada justiça corretiva – ou diortótica.

 Contexto – Justiças – Mascaro – Filosofia do direito

A grande excecionalidade da filosofia do direito aristotélica se revela pela sua


sistematização filosófica da Justiça. As partes mais iniciais do Livro V da sua Ética a
Nicômaco, voltam-se para esta questão. Logo no início, Aristóteles separa dois granes
campos de compreensão sobre a justiça: Justiça tomada no sentido Particular e no
sentido Universal.

a. Justiça Universal

Neste sentido, a Justiça é tanto entendida como a manifestação geral da virtude, como a
apropriação do justo à lei, que no geral é tida por justa. Vejamos:

-Por um lado, segundo Aristóteles, a lei produzida na polis, a partir dum princípio ético,
é diretamente relacionada ao justo – E não por conta de sua forma, mas em razão de seu

77
Mero poder de agir de outra maneira, mediante a opção arbitrária por uma dentre várias
possibilidades.
78
Embora, noutros termos, que ainda viriam a ser alvo de desenvolvimentos posteriores, principalmente
na idade média por autores como S.tomás de Aquino.

47
conteúdo. Para ele, uma má lei, não era lei. Lei, era somente aquela que era justa
(apropriação do justa a lei).

-Por outro lado, a justiça, ainda no sentido universal, seria entendida como a virtude que
está subjacente a todas as demais virtudes. Concretizemos este segundo caso:

A caridade ou paciência por exemplo. Estas e todas as virtudes, demandam um certo


conteúdo específico, que as tipifica.

A caridade, se tipifica num ato de dar! Mas atenção! Aquele que dá ao mais poderoso,
simplesmente por medo de ser violentado, e não dá ao necessitado, por lhe ser superior
em poder, não está a ser caridoso. E porque?

-Porque ao mero ato de dar, deve acrescer-se a justiça do ato!

Mesmo se passa com a paciência. Alguém que seja paciente com seu superior
hierárquico, mas atue como um ditador para com o seus inferiores, não detém paciência,
na medida em que esta presume seu agir com justiça.

NOTA: No fundo, nenhuma virtude é completa, em si mesma – todas carecem de ser


complementadas pela virtude da Justiça. A caridade presume a justiça, a Paciência
também, mas uma pessoa poderá ser justamente caridosa e impaciente.

Em suma: A justiça, é a virtude superior a todas as virtudes – Por isto virtude universal.

b. Justiça Particular

Ao mesmo tempo que se configura como uma justiça universal, a justiça é a única que é
uma virtude em si mesma. Somente ela possui um conteúdo específico que não
demanda acréscimo de outra virtude.

Segundo Aristóteles, estudar o que vem a ser a justiça em si mesma, é então tomá-la no
seu sentido particular. Tal ideia de justiça particular, será um dos momentos
culminantes da reflexão aristotélica sobre o Justo. Este chama a atenção para duas
grandes manifestações da justiça no seu sentido Particular: Justiça distributiva e Justiça
Corretiva79
79
Haveria ainda um caso particular, designado de reciprocidade. Não estava diretamente elencada junto
da justiça distributiva e corretiva, mas não se confunde com elas, é algo a parte.

48
-Justiça Distributiva80

Segundo Aristóteles, a justiça distributiva trata da distribuição (o dar a cada um) de


riquezas, benefícios e honrarias, utilizando como parâmetro, o seu mérito – ainda que
Aristóteles considerasse que este critério de mérito, é variável.81

A justiça distributiva, apresentava-se como a mais alta ocupação da justiça, sendo


também a mais sensível.

Esta justa distribuição dos bens, riquezas, benefícios e honrarias, conforme o critério do
mérito, é uma proporção. A proporcionalidade caracterizava o justo, e “a contrario”, a
sua falta, era traço marcante do injusto.

Vislumbremos por meio de um exemplo, a justiça distributiva. Um professor, quando


aplica uma prova a uma turma de alunos, será considerado justo em sua correção,
sempre quando distribuir as notas segundo uma proporção, tendo em vista o mérito 82.
Assim, de uma prova com 5 questões, cada uma 2 pontos, o aluno que acertar quatro
merece nota 8. Qualquer nota diferente, romperá com a proporção entre seus méritos e
suas notas, e, portanto, a distribuição meritória de notas demonstra a justiça do
professor.

Também na distribuição de bens, poderíamos vê-la! Exemplo: Consideremos que um


Sujeito X produz 10p por mês, e ganha por isto, 20y. O trabalhador que produzir 11p
por mês deverá receber, por tal produção, 22y. Proporção entre os seus méritos (trabalho
duro) e salário.

E na distribuição dos cargos e funções! Exemplo: Ao cargo de presidente da república,


correspondem certas honrarias, poderes e incumbências. Ao cargo de vereador, outras
honrarias, poderes e incumbências.

80
É bem mais complexa do que a corretiva, já que envolve o arranjo dos bens e dos poderes na pólis. A
proporção que busca contruir envolve dar, aumentar, diminuir, portanto, uma ação distributiva que
invade a esfera dalguns para manter o mérito e a proporção na relação com os demais.

81
Assim dizia ele: Para um democrata, o mérito presume a condição livre. Para um oligarca, o critério do
mérito é a nobreza do nascimento.

82
A nota tem ser proporcional ao seu mérito na prova.

49
- Justiça Corretiva (E aqui, já explicitando o tipo de justiça típico da 1ª linha da ordem
jurídica de que nos fala José Bronze)

A justiça corretiva/Comutativa do latim commutare que significa trocas ) – também


chamada de diortótica – é bem menos complexa do que a distributiva. Ao contrário da
justiça distributiva, que trata daquela distribuição de bens, honrarias, riquezas,
benefícios, conforme o critério do mérito, nesta vertente, a justiça é tratada como a
reparação do quinhão que foi, voluntária ou involuntariamente, subtraído de alguém
por outrem.

“Uma das espécies de Justiça em sentido estrito (particular) é a que se


manifesta na distribuição de funções elevadas de governo, ou de dinheiro, ou
das outras coisas que devem ser divididas entre os cidadãos que compartilham
dos benefícios outorgados pela constituição da cidade, pois em tais coisas, uma
pessoa poderá ter uma participação desigual ou igual à de outra consoante o
mérito; A outra, é a que desempenha uma função corretiva, nas relações entre
pessoas, subdividindo-se esta em duas modalidades: Algumas relações são
voluntárias e outras involuntárias: V - Compra-venda, empréstimo a juros, o
penhor, o empréstimo sem juros, depósito, locação. I – Algumas são sub-
reptícias (furto, adultério, envenenamento, lenocínio, assassínio traiçoeiro, falso
testemunho) e outras são violentas, como o assalto, a prisão, o homicídio, o
roubo, a mutilação, a injúria e o ultraje.
Podemos ver que a justiça corretiva manifesta-se, assim:

-Em questões de ordem penal83 – Nestas, mais do que a pena/ou medida de segurança
em si, a justiça corretiva trata da reparação civil dos danos provocados pelo crime (e aí
já adentramos em questões de ordem civilística, como a responsabilidade civil).

-Também matérias como os contratos, a troca, podem ser pensados sobre a forma de
justiça corretiva.

83
Na medida daquilo que representou a perda (provocada pelo comportamento danoso) e o ganho.

50
Esta modalidade de justiça se trata apenas da reparação daquilo que foi, voluntária ou
involuntariamente, retirado de alguém. Se na justiça distributiva, temos uma proporção
entre pessoas e coisas (bens, honrarias, riquezas, benefícios), na justiça
corretiva/comutativa, apenas há uma proporção entre coisas, porque as pessoas são
tomadas como formalmente iguais:

“Com efeito, como nos lembra Aristóteles, é irrelevante se uma pessoa boa
lesar uma pessoa má, ou se uma pessoa má lesa uma pessoa boa, ou se é uma
pessoa boa ou má que comete adultério; A lei contempla somente o aspeto
distintivo da justiça, e trata as partes como iguais, perguntando somente se uma
infligiu e se a outra sofreu um dano. O juiz tenta reestabelecer a igualdade”.

Portanto, a justiça corretiva tem como objetivo a correção das situações entre as partes,
trazendo de volta a igualdade! Traduzirá uma ideia de equivalência, no exato sentido de
que, o justo, será o que as partes (ou o juiz – se o caso, porventura for a tribunal)
entenderem que se equivalem (este preço equivale a este bem – troca)

Em princípio, são as partes que definem o que acham justo, e assim, os direitos e
deveres que nascem entre das relações entre eles.

Esta é uma modalidade de justiça que, no fundo, significa a composição 84 válida das
nossas relações ou então o modo como vemos nossa situação relativa – de uns perante
os outros e perante a comunidade que todos constituímos – Por mediação de certos
valores ou exigências, em referência aos quais nos auto-compreendemos, e que por isto
procuramos regulativamente projetar na ordem comunitária entretecida pelas
mencionadas relações sociais.

José Bronze Acresce ainda mais duas notas a esta primeira linha da ordem jurídica:

-1ª NOTA: Vem sublinhar a sua grande importância! Nesta linha, impera como parece
bem claro, o direito privado – “direito do meu e do teu85”. Aí temos vários campos: O
tão importante direito civil, chamado de direito privado comum ou geral, o direito
comercial, direito agrário, direito do consumidor, direito do trabalho etc

-2ª NOTA: Esta análise da ordem jurídica corresponde a desintegração dum todo.
Portanto, ao analisar-se de forma privilegiada uma linha, não significa que as outras

84
Forma como os elementos de um todo se organizam; organização, disposição
85
Kant – Metafísica dos costumes

51
desapareçam! Podem esbater-se apenas momentaneamente, mas (desde que instituídas e
subsistentes…) não se evolam! Seja um exemplo bem simples:

-Falamos que agora pouco que a primeira linha, é onde reina o direito privado.
Consideremos os sub-ramos do direito civil (direito da família, das sucessões, das
obrigações das coisas etc). Ora se é verdade que estes disciplinam, essencialmente,
questões de direito privado, não é menos correto afirmar que possuem uma dimensão
publicística.86

 Para compreender, basta pensar na SUMMA DIVISIO do direito, nos seus três
critérios:

E importa desde logo proceder/ou melhor relembrar a separação entre os ramos de


direito público e ramos de direito privado! Summa divisio

Como bem se sabe, são 3 critérios essenciais de divisão que ao longo do tempo foram
sendo desenvolvidos pela doutrina: A) CRITÉRIO DO INTERESSES B) CRITÉRIO
DA SUPRA/INFRA ORDENAÇÃO C) CRITÉRIO DA QUALIDADE DOS
SUJEITOS

A. Estaríamos perante uma norma de direito público quando o fim dessa norma
fosse a tutela de um interesse público, e perante uma norma de direito privado
quando a norma viesse tutelar ou satisfazer interesses individuais.

POSSUI CRÍTICAS!

-Todo o direito - público e privado - visa proteger simultaneamente interesses públicos e


privados! Vejamos:

Artigo 875º do código civil (direito privado) – que nos coloca perante um requisito de
validade!

Está em causa com ela não só a tutela dos interesses particulares, no sentido de defender
as partes contra uma eventual ligeireza. Temos aqui, sobretudo, interesses públicos!

86
O que se passa, é que nos ramos privatísticos, a sua dimensão privada é muito mais importante. É
fundamental. O inverso se passando com os ramos de direito público.

52
Importa nesta disposição realizar os interesses públicos da segurança do comércio
jurídico/tráfico jurídico negocial de bens.87

De uma forma geral, o mesmo se poderá dizer relativamente a todas as restantes


disposições que exijam requisitos de forma para determinados actos, ou então que
tornem dependente de registo a eficácia dos actos jurídicos relativamente a terceiros
(413º e 421º)

Também as normas de direito público vão tutelar, para além do interesse público,
interesses privados!

EXP: Normas que definem as condições de promoção dos funcionários públicos/ou de


acesso à função pública!

São disposições que tem em vista para além da tutela do interesse público, do eficaz
funcionamento dos serviços públicos, a tutela de interesses particulares, nomeadamente
uma proteção justa dos legítimos interesses das pessoas singulares a que se dirigem.88

NOTA: Todas as normas jurídicas, por cima de seus interesses específicos e


determinados, vão mirar sempre um fundamental interesse público: O da realização do
direito!

Atualmente, face as críticas mais que certeiras, a teoria dos interesses apenas poderia
tentar se manter de pé, exprimindo uma vertente tendencial, isto é: O direito público
tutelaria predominantemente interesses da coletividade e o direito privado tutelaria
predominantemente interesses dos particulares.

Ainda assim, os autores consideram não ser uma posição passível de aceitação, por
outra razão:

87
Interessa fortemente à toda a sociedade sujeitar aos negócios de alienação de bens de valor elevado,
como são os imóveis, a um regime que permita ter em qualquer momento a certeza sobre se o ato se
realizou ou não, bem como sobre as condições em que se realizou. Daí negócios assim sejam
submetidos ao formalismo – representado pela escritura pública – formalismo sem o qual o padecerá o
negócio do vício de nulidade. Ora o receio desta sanção vai levar as partes a fazerem a escritura, pelo
que assim se dará um tráfico de bens seguro sem risco de dúvidas ou surpresas, que muito
possivelmente existiriam na eventualidade do negócio de alienação poder ser celebrado via verbal (o
que em termos práticos muito acontece em certas regiões do país)

88
É assim que o particular vai poder se dirigir à jurisdição administrativa para obter a reintegração de
seu interesse, sempre que se entender lesado em razão da violação das referidas normas.

53
-Muitos são os casos em que não se consegue determinar com precisão, qual o interesse
predominantemente tutelado pela norma! Muitos seriam os casos de incerteza, o que
não poderia ser, principalmente na distinção entre direito público e privado!

B. O direito público seria aquele que disciplina as relações onde há uma entidade
numa posição de supremacia e uma outra numa posição de subordinação (uma
entidade numa posição de supra-ordenação/outra numa posição de infra-
ordenação). O direito privado, seria aquele que regularia todas as relações em
que as entidades estão numa posição de igualdade ou equivalência (=paridade)

POSSUI IGUALMENTE CRÍTICAS:

a) Também o direito público por vezes regula relações em que as entidades estão
numa situação de igualdade (relações entre autarquias locais)

b) Direito privado, por vezes, disciplina relações onde os indivíduos estão numa
posição de infra e supra ordenação (Poder paternal/tutela/ relações entre as
associações e sociedades com seus membros ou a relação laboral emergente dum
contrato de trabalho)89

Relativamente a este critério, apenas poderíamos considerar que no direito privado, a


paridade/igualdade entre os sujeitos é, em regra, a mais característica das relações,
enquanto que no direito público, a supremacia e subordinação são características
normais das relações.

 O critério que vai restar, e que também é o utilizado atualmente na “summa


divisio”, reunindo a maioria dos sufrágios, é o da posição dos sujeitos! Recebe
este nome em virtude de assentar na qualidade dos sujeitos 90 das relações

89
Em ambas as hipóteses, considera-se a relação laboral ou a relação entre o sócio e a associação como
já constituídas! Quanto a sua constituição, vigora a igualdade de partes/equivalência jurídica.

90
Ou melhor, na posição em que estes intervêm nestas mesmas relações!

54
jurídicas, disciplinadas pelas normas a qualificar como de direito público ou de
direito privado!

ASSIM TEMOS:

O Direito privado seria composto por todas as normas e princípios que regulam as
relações jurídicas estabelecidas entre particulares, ou entre os particulares e o estado
(entenda-se estado como a estrutura complexa, englobando todos os mecanismos que o
põe a funcionar) sempre que este intervenha despido do seu ius imperii (atuando em
igualdade de meios para com o particular)! (EXP: Contratos administrativos – um
município compra/ou arrenda um determinado bem para lá instalar um novo serviço!)

O Direito Público, contrariamente, seria composto por todas as normas e princípios que
estruturam o estado e outros entes menores dotados de prerrogativas de poder público e
que disciplinam as relações daqueles, entre si ou com um particular, mas, sempre que,
neste caso, intervenham dotados de seu jus imperii (portanto estando numa posição de
autoridade relativamente ao particular)

EXP:

Função jurisdicional- Relações entre os tribunais e cidadãos é direito público. Tribunais


estão revestidos são órgãos públicos dotados de poderes de autoridade!

Aplicação de impostos – Tributação!

Expropriação por utilidade pública (autoestradas aeroportos e outras estruturas que o


estado as vezes tem de fazer sobre os interesses particulares, mas sob certas condições)

NOTA ESSENCIAL: Apesar das diferenças entre o direito público e o direito privado,
são dois setores do direito objetivo que não se separam de forma absoluta e completa,
tal como sucede numa maça cortada ao meio. Não podemos ter em mente esta ideia.

Temos como exemplo o domínio do direito do trabalho, onde por vezes, é contravertida
a forma como deve ser feita a distinção ou, melhor, onde deverá passar a linha divisória!

 Ainda neste ponto, importa dizer que muitas vezes deparamo-nos com uma
crítica acentuada da distinção, a qual assentaria em pressupostos ideológicos

55
ultrapassados, chegando mesmo a falar-se numa possível superação da summa
divisio, da dicotomia direito público-direito privado.

-Exemplo: I seminário Ítalo-Íbero-Brasileiro, decorrido no auditório do STJ, em


brasília, de 26 a 28 de agosto de 2004.

 Outros setores da doutrina defendem mesmo, abertamente, a ideia de


constitucionalização do direito civil, recorrendo direta e extensamente à
constituição para solucionar problemas típicos de direito civil91

Os autores consideram, de forma conclusiva, que a distinção entre o direito público e o


direito privado é uma tarefa de classificação e arrumação sistemática e, nesta medida,
uma tarefa da ciência do direito, que deve ser despida de quaisquer conotações
ideológicas!

 ALCANCE PRÁTICO DESTA DISTINÇÃO

-Qual o interesse prático de tal distinção entre direito público e direito privado?

A divisão efetuada segundo o critério mais aceite, e a exata integração de cada norma na
categoria correspondente, além de satisfazerem um interesse de ordem científica (na
sistematização e no lógico agrupamento e separação de grandes grupos) revestem
interesse no próprio plano de aplicação do direito! Vejamos dois exemplos:

-VIA JUDICIAL

Muitas vezes, será esta distinção que vai determinar as vias judiciais a que o particular
que se considera lesado pelo estado ou por uma entidade menor, deve recorrer!

-RESPONSABILIDADE CIVIL (Dos órgãos, agentes ou representantes do estado)

Esta responsabilidade civil esta sujeita a um regime diverso, consoante os danos são
causados no exercício de uma atividade de gestão pública ou de gestão privada!

91
É uma tendência que tem se feito sentir principalmente no Brasil! Embora também encontre adeptos
noutros direitos, designadamente em Itália, onde avulta, a este respeito, a posição de Pietro Perlingieri

56
Em suma (Continuando aquela segunda nota de José Bronze), na análise feita, não quer
dizer que os outros sejam menos importantes, mas sim, que estamos a relevar o
fundamental. O que comporta certos perigos já que, as linhas da ordem jurídica, apenas
analiticamente são discrimináveis!

Na realidade, elas estão sempre todas presentes, ainda que, consoante o caso (a
perspetiva analítica como estamos a fazer) venha a se avultar uma ou outra. E há mais:
Existem entre elas, Graus diversos, na maior ou menor relevância que se reconhece a
esta ou àquela linha. Concretizemos de forma bem simples:

-Uma sociedade dita mais liberal, tenderá sublinhar mais a 1ª linha – de base.

 2º dos lados/Linha Ascendente – ORDO PARS AD TOTUM

Nós não somos apenas indivíduos/particulares. Somos um agrupado, estamos reunidos


em sociedade – “Socii”! Portanto, esta segunda linha da ordem jurídica, vai
regulamentar as relações estabelecidas entre os sujeitos de direito e a sociedade no seu
todo! (= sociedade enquanto composta por bens e valores jurídicos, fulcrais à
integração)

Diferentemente do que acontece no primeiro caso, nesta linha da ordem jurídica, a


sociedade não aparece meramente “como um pano de fundo”: Surge já como um
verdadeiro sujeito das relações que com ela estabelecemos

Ora com efeito, é preciso já considerar os valores e interesses próprios que a


sociedade se propõe a garantir, que nos dirige e cujo cumprimento nos impõe92: Se
violarmos – estes valores/interesses/bens jurídicos fundamentais que a sociedade
compreende e pretende preservar93 - Ela, vai nos “pedir” /impor certas
responsabilidades!94

92
Ius imperii – Poder de autoridade. Para integrar uma comunidade, é preciso necessariamente assumir-
se certas responsabilidades, que limitam ainda mais aquela liberdade das pessoas. Em nome do bem
coletivo.

93
Pense no âmbito do direito constitucional, direito fiscal, ou direito militar. No âmbito do direito penal,
podemos falar em bens jurídicos - Figueiredo Dias – Bem Jurídicos – Unidade de aspetos ônticos e
axiológicos, através da qual se expressa o interesse, da pessoa ou da comunidade, na manutenção ou
integridade de um certo estado, objeto ou bem em si mesmo socialmente relevante e por isto valioso.

94
Valor da responsabilidade comunitária/social – Todos somos responsáveis pela proteção e realização
dos valores, bens jurídicos fundamentais que a sociedade nos impõe.

57
 Portanto a sociedade surge aqui, nas relações que conosco vai estabelecer, sem
dúvida em primeiro plano! Numa posição de superioridade. Sem prejuízo do que
se dirá a seguir:

-É também no âmbito da segunda linha da ordem jurídica que os sujeitos de direito se


dirigem à sociedade, formulam certas exigências. Possuem todo interesse em fazer valer
diante dos poderes públicos certas defesas: Direitos fundamentais, posições jurídicas
subjetivas em geral que tenham (direitos positivos e negativos), a lei penal, a fiscalidade
etc

Em termos concretos, se é verdade que os ramos de direito localizados nesta segunda


linha da ordem jurídica (direito constitucional, penal, fiscal, militar) visam todos, mais
ou menos transparentemente, regulamentar as exigências que a sociedade nos dirige –
Aqueles interesses que referimos acima; não é menos correto, que visam eles também,
de certo modo, institucionalizar, legitimar e limitar o poder, direito constitucional que o
diga, também o próprio direito penal, afinal as penas e medidas de segurança servem
para todos.

E sendo de nosso total interesse, reivindicar perante “os poderes” certas defesas (este
tem de ser necessariamente um poder limitado/que se disponha a reconhecer estas
defesas).

Portanto, a sociedade pode sem dúvidas exigir-nos certas prestações/ou


responsabilidades - os impostos, as penas, as medidas de segurança, serviço militar, etc)
– O fazendo como algo necessário para a boa integração da sociedade. Só não podem o
fazer, de forma arbitrária!

 Quais as funções então, que desempenha o direito nesta segunda linha da ordem
jurídica?

O papel do Direito é definir quais são os bens e valores fundamentais que devem ser
respeitados para se viver em sociedade e então, protege-los e tutela-los (= estabelecer
critérios que podem ser mobilizados em caso de violação)

Só a sociedade na sua globalidade (= e aqui referimo-nos ao estado) tem o poder – ius


imperii – capaz de fazer isto.

 E que valores encontramos nesta segunda linha da ordem jurídica?

58
-Acima de todos, o valor da salvaguarda de certas defesas, ainda mais em momentos
que estejam em causa nossa liberdade pessoal.

 Qual o tipo de Justiça Predominante aqui?

As justiças relevantes, nesta segunda linha da estrutura da ordem jurídica, são as


chamadas:

- Justiça geral (ou se quisermos, na terminologia do autor medieval S. Tomás de


Aquino – Justiça Legal –) – que se deixa caracterizar como, aquilo que em nome de
todos pode se exigir a cada um, ou como aquilo que cada um pode exigir ao todo;

-Justiça protetiva, já que o direito é aqui chamado a institucionalizar, limitar e a


controlar o poder e, consequentemente, a garantir a situação dos particulares que com
ele se confrontem.

 3ª Linha da Ordem Jurídica - ORDO TOTIUS AD PARTES

Nesta linha, que vem como que fechar o triângulo a que se aludiu, a sociedade é
considerada uma entidade atuante, dinâmica, porque possui programas estratégicos
(políticas de saúde, educação, transportes, assistência social, fiscalidade) e que quer
atuar para atingir os fins a que se propõe = Atuar sobre os cidadãos com estes
programas promovendo o bem-estar social.

NOTA: Surge já no século XX, com os estados sociais, proativos, que atuam de forma
preocupada em corrigir injustiças, desigualdades etc na realidade social.

E estes objetivos, poderão ser-nos favoráveis, mas também, poderão visar o benefício da
própria sociedade (globalmente considerada), por exemplo:

- No direito à previdência ou da assistência social. Em casos destes, ainda que, por um


lado sejamos beneficiários, por outro, é verdade que temos de contribuir para
determinados fundos sociais!

-Na taxação. Temos de contribuir com impostos, mas cada um de nós é beneficiários
das obras feitas com eles.

 Os ramos de direito típicos aqui: Direito administrativo, direito fiscal, direito


constitucional também, direito da previdência social, direito do ambiente etc

59
 Funções que o direito desempenha nesta linha

Por aqueles motivos é que se diz que o direito surge aqui como um estatuto de ação (da
sociedade), mas também de limitação. A sociedade vai atuar o seus programas, mas nos
exatos termos em que o direito o permita! O Papel deste, é fundamentar/legitimar,
regular e limitar este grande projeto de desenvolvimento da própria sociedade, em
sentido político, económico e social.

 Valores mais relevantes nesta linha da ordem jurídica:

(1) Solidariedade/responsabilidade solidária

Este valor da solidariedade, não raras vezes vai impor, uma atuação em termos
desiguais, de modo a se atingir no fim, a igualdade material (ou, pelo menos, a
diminuição das desigualdades).

A igualdade aqui, não é critério, mas surge como um objetivo – é a linha de chegada,
não o ponto de partida, pelo que muitas das vezes, neste âmbito, vai se tentar aproximar
da igualdade pelo caminho da desigualdade. Concretizemos:

a. Existem pessoas mais ricas, menos ricas, medianas, pobres etc. Isto para
expressar o que: Desigualdade social. Existe, é incontestável.

Por outro lado, nem todos pagamos os mesmos impostos. Quem possui mais
rendimentos paga, em princípio, impostos mais elevados 95. E o valor que justifica
esta “igualizante” desigualdade de tratamento, é precisamente o da solidariedade, à
sombra do qual as mais das vezes atua, em comunidades do tipo da nossa, “o estado
Robin Hood, cuja latente norma de vida (e razão de viver) é o princípio “tirar aos
ricos para dar aos pobres”.

 Igualdade Material – Como um objetivo ser perseguido!

95
Considerando o horizonte dos estados fiscais de nossos tempos, e atentos ao princípio da capacidade
contributiva – segundo o qual se paga na medida daquilo que se tem – medida esta expressa, seja pelo
rendimento que se aufere, seja pelo que se gasta.

60
Ideia de atingir uma igualdade material entre todos os cidadãos (ou de pelo menos,
tentar chegar mais próximo possível dela), atenuando, de todo modo, as desigualdades
sociais que possam ser sentidas entre sujeitos, de modo a que todos tenham igual acesso
à saúde, educação, cultura, etc. Para a realização de certas políticas publicas, poderá ser
exigida uma atuação em termos de desigualdade para que, a longo prazo, todos estejam
no mesmo pé de igualdade.

b. É também a perseguição desta igualdade material, que poderá implicar uma


efetiva desigualdade das propinas devidas pelos diversos estudantes do ensino
superior – Atentas não somente às condições económicas, mas também ao
estatuto de estudante internacional, às específicas características da
Universidade/faculdade/curso.

 Modalidade (s) de Justiça que se afirmam nesta linha? Que se visa alcançar?

Parece-nos claro ser a Justiça distributiva, de que já nos falava Aristóteles (Ver os
apontamentos feitos mais acima sobre isso)

Uma das espécies de Justiça em sentido estrito (particular) é a que se manifesta


na distribuição de funções elevadas de governo, ou de dinheiro, ou das outras
coisas que devem ser divididas entre os cidadãos que compartilham dos
benefícios outorgados pela constituição da cidade, pois em tais coisas, uma
pessoa poderá ter uma participação desigual ou igual à de outra.

Justiça esta que radicava já em ideias platónicas – A república, Sócrates, num diálogo
com Adimanto:

“Não ser a justiça […] de um só indivíduo [, mas] também de toda a cidade”, e


mostra “não ser [cada um de nós] autossuficiente, mas sim necessitado de muita
coisa”, de muitos outros.

Nesta modalidade, a sociedade intervém, recolhendo e (re) distribuindo determinados


recursos, para corrigir/atenuar problemas do foro económico e social, na vida dos
cidadãos, segundo o critério da “igualdade proporcional”96 (ou, um critério de equidade
social, conforme as maiores necessidades que nesta forem sentindo)
96
A quantia do que se vai distribuir, deveria ser proporcional ao mérito -esta era a ideia de Aristóteles.
Mas aqui não se fala de mérito neste sentido. Melhor se dizer, a quantia a distribuir, é igualmente
proporcional consoante um critério de equidade social.

61
Exemplo de nosso tempo: Um genuíno tratamento genético relacionado com a saúde,
deverá ser, muito provavelmente, comparticipado pelo SNS. Mas e um estrito
melhoramento genético, não relacionado com a saúde, também o será?

 Em conclusão quanto a análise formal d ordem jurídica

Dito tudo isto, temos o todo estrutural (a estrutural formal – roupagem) da ordem
jurídica.

As três linhas, como que delimitam o espaço do triângulo a que se aludiu, de geometria
variável97. Na sua linha base, estamos uns perante os outros; na linha seguinte,
ascendente, vimo-nos perante a sociedade; depois, na última linha, descendente, é ela a
atuar sobre nós – A seu próprio favor/ou/e em nosso benefício… - O respetivo
programa de fins.

97
A extensão concreta de cada uma das mencionadas e interrelacionadas linhas, vai depender da
relevância que circunstancialmente se lhes atribuir.

62
A pressuposição de que o estado, tende a ocupar os lados convergentes no vértice
superior de cada um dos triângulos, e os particulares, as respetivas linhas de base, a
dimensão (tamanho) e acentuação dos diversos lados das mencionadas figuras
geométricas, a maior ou menor importância relativa dalgum (ou alguns) deles –
simbolizados, estes últimos dois aspetos, pela sua espessura e extensão e pelo seu
traçado a cheio (mais ou menos carregado) ou a tracejado – bem como a setas (e a sua
espessura; a ausência delas em alguns dos lados a tracejado significa que à muito menor
relevância comparada destes lados, se associa a indisfarçável volatilidade das relações
que neles possam, eventualmente, ter lugar) que assinalam o sentido dominante das
relações que neles se estabelecem, são decisivos nesta variabilidade gráfica.

NOTA: É absolutamente fundamental, compreender-se estes esquemas, não como


figurações de pré-definíveis e compartimentáveis posições estáticas, mas como a
tradução de historicamente cunhadas e reciprocamente imbricadas situações dinâmicas,
com combinações infinitas, que apenas o instante correspondente à analiticamente
artificial suspensão do movimento permite fixar.

NOTA: Cada uma das linhas, como se pode ver, aliás, nos gráficos, não se afirmou em
termos historicamente sincrónicos (ao mesmo tempo). Vejamos:

63
-Durante muitos séculos (grosso modo, no decorrer de toda a era pré-moderna) a ordem
jurídica resumia-se à linha de base.

- Apenas com o estado de direito pós-revolucionário (cerca de dois séculos atrás) se


tematizou e juridicizou o poder (começou a instituir formalmente, controla-lo/limitá-lo)
e decorrentemente, começou a autonomizar-se a segunda linha.

-A terceira linha da ordem jurídica, vem chegar com os estados providência (Welfare-
States =Estados de bem-estar social), é já no século XX, pelo menos naquilo que possui
de mais relevante.

NOTA+:

Manifestaram-se certas dimensões axiológicas, algo que não devemos estranhar – não
somente pois a forma e o conteúdo se implicam reciprocamente, mas também, pois estes
valores são constitutivos/fundamentantes do direito (grande parte do conteúdo da ordem
jurídica)

As modalidades de justiça, analiticamente descriminadas por referência a cada uma das


três linhas da estrutura da ordem jurídica, levam-nos a reconhecer que ela, enquanto um
referente polar do direito, é afinal, uma categoria complexa, constituída por diversas
dimensões, que desembocam noutros tantos princípios – igualdade, adequação social,
segurança e paz jurídicas etc

Lição 3 – Continuação da análise da ordem jurídica

 Funções da ordem jurídica

Olhamos já para a estrutura da ordem jurídica. Agora é preciso olhar em que termos
(como) é que o conteúdo/substância da mencionada ordem (eventualmente o direito, na
maioria) se poderá dizer meio normativo de atuação – o que nos remete para as funções
da ordem jurídica.

64
A título preliminar, dizer que são duas: Uma função principal, chamada de função
prescritiva e outra, secundária, auto-organizatória.

-Na primeira delas, a ordem jurídica vai prescrever (escreve antes) critérios de ação,
dirigindo-nos tais modelos de comportamento.

-Na segunda, vai cuidar precipuamente de si mesma.

A. Função Primária/Prescritiva

Nesta função, a ordem jurídica vai nos surgir como um critério de ação, mas também
como um critério de sanção.

Como critério de ação, a ordem jurídica vem definir prescritivamente os


nossos direitos subjetivos e nossas responsabilidades e valorar judicativamente nossos
comportamentos como lícitos ou ilícitos, válidos ou inválidos etc.

Este conjunto de prescrições e valorações, constitui um princípio de ação, já que


nosso comportamento será condicionado pelos referidos critérios! A ordem jurídica visa
com isto, nos influenciar, ou melhor, influenciar nossa conduta, levando-nos a proceder
em consonância com os critérios por ela prescritos.

 Ora, mas, ainda dentro desta 1ª função, temos mais a dizer! A ordem jurídica
não poderia apenas se limitar a esta atividade prescritiva, influenciando nossas
condutas e porque?

-Porque, se realmente só o fizesse, não passaria de um “apelo” dirigido à consciência de


cada um. E aí só impropriamente poder-se-ia chamar ordem jurídica! Melhor seria, uma
pura ordem moral (normas religiosas e morais etc)

Nestes dois exemplos, muito facilmente se percebe. Temos normas de conduta – normas
morais e religiosas. O que elas tem em comum é o aspeto da sua não coercibilidade e
das suas específicas sanções.

-Um preceito, manda-nos amar a Deus com o todo o coração e ao próximo como a nós
mesmos – Mas e se não o fizermos? O que acontece, é que não há um tribunal terreno
que imponha a sua realização. Os mandamentos, dirigem um apelo a nossa consciência

65
(que com certeza, será mais atendido por certos homens do que outros). O mesmo se
podendo dizer para os preceitos morais.

A ordem jurídica não pode situar-se neste plano da consciência dos indivíduos! É
absolutamente decisiva, a relevância de uma normatividade (ordem jurídica) que
atenda ao plano do mundo terreno, das relações sociais! E porque?

-Porque é neste campo, que se alguém interfere sem fundamento suficiente no acesso do
outro ao mundo comum – está a abusar de sua posição, a colocar-se como um obstáculo
a fruição do mundo por parte dos outros, pelo que, compreende-se a necessidade da
existência de certos meios que viabilizem uma fruição conjunta e adequada do mundo
que todos compartilhamos (como veremos, as sanções, passíveis de coerção)

Portanto, se por um lado a ordem jurídica prescreve aqueles critérios de ação, critérios
que nos permitem fruir o mundo (enquanto princípio de ação, na sua globalidade), por
outro lado, concorre também para que estes mesmos critérios sejam realizados
praticamente (relevando-se igualmente como critério de sanção!).

-Se é verdade que uma pessoa pode ser insensível ao nível da sua consciência (no
exemplo do unilateral imperativo religioso; O mesmo podendo se dizer mutatis
mutandis, relativamente aos imperativos da amizade, cortesia etc) já é, todavia,
sensibilizável, relativamente às responsabilidades/obrigações/deveres que lhes sejam
juridicamente impostos – e por isto, diz-se ser o direito, bilateral.

NOTA: A ordem jurídica não é apenas princípio de ação; É também, igualmente,


critério de sanção.

a.1 SANÇÕES

-As sanções são todos os meios que ordem jurídica mobiliza para tornar eficazes suas
prescrições.

O ato de sancionar, portanto, significa efetivar, consagrar, tornar sérios, dignos de


respeito, autênticos, os imperativos jurídicos.

66
 Mas porque isto? Porque este aspeto mais duro do direito, comparativamente a
moral ou a religião?

-O facto é que, nós compartilhamos o mesmo mundo. E somos muitos. Vivendo em


sociedade, tendo que compartilhar muitas coisas, e podemos (e somos) tentados a abusar
dele, impedindo de forma injustificada os outros de o fruírem, ou dificultando-lhes sem
fundamento essa fruição.

-No horizonte do mundo, estamos numa situação de intersubjetividade social – Quando


qualquer pessoa atua, de determinado modo, está a condicionar os outros. Portanto, é no
mínimo razoável que se instituam certos meios, destinados a evitar (prevenir) ou a punir
(supervenientemente) eventuais abusos.

DE FORMA EXEMPLIFICATIVA:

-A caridade, imposta pela ordem moral, é um ato unilateral. Justamente porque o pobre
não pode exigir a ninguém a esmola. A pessoa que dá, cumpre apenas uma “obrigação”
que sua consciência que lhe impõe – O mesmo se passando com os imperativos
religiosos, ou com as regras de cortesia98

-Por outro lado, no quadro do direito, a relação que se estabelece é bilateral – Porque em
caso do incumprimento de uma norma jurídica, poder-se-á exigir seu cumprimento, de
diversas formas (Exemplo do contrato-promessa do manual)

[as] consciências calam-se mais do que deviam, por isto é que se [criou o
direito]”!...

Por ser assim que as coisas se passam na ordem jurídica, em razão de nos
condicionarmos aí reciprocamente, com nossos comportamentos, é que nós não
podemos limitar a dirigir meros apelos uns aos outros!

Na esfera do direito (que corresponde, em regra, o conteúdo substancial da ordem


jurídica) cada um pode exigir ao outro o cumprimento de deveres/obrigações; Ou por
exemplo, se alguém violar um bem jurídico, criminalmente protegido, a sociedade

98
Só que estes, talvez, derivem duma obrigação que nosso espírito nos impõe, dizendo melhor.

67
poderá mesmo, em certas circunstâncias, privar o transgressor de sua liberdade, impor-
lhe o pagamento de uma multa etc.

É o caráter social das relações jurídicas – vividas no nosso mundo, compartilhado,


situação de intersubjetividade social – que implica a exigibilidade e a coercibilidade a
que a se aludiu – E a sanção abrange tudo o que e acaba de dizer.

É, portanto, da natureza do direito ser sancionatório, precisamente pois ele tem a ver
com o domínio de nossas relações sociais. Por as coisas se passarem do modo a que se
aludiu mais acima, é absolutamente necessária uma ordem que forneça regras destinadas
a permitir solucionar os problemas suscitáveis por este tipo de relações – O direito é
uma destas ordens.

O direito possui caráter societário, e é justamente esta sua característica que implica a
necessidade de sanção!

a.2 Tipos de SANÇÕES

As sanções especificadamente jurídicas, poderão dividir-se em duas grandes categorias


(mais amplas):

i. Sanções Jurídicas Positivas

68
Estas, não temos de estranhar99 – apesar de nem sempre serem reconhecidas – já que,
como já se disse, por sanção entende-se “todos os meios que o direito utiliza para tornar
eficazes seus objetivos práticos (suas prescrições).

Portanto, é fácil entender que se instituam sanções que nos beneficiem – Exemplos não
exaustivos:

- Mais variados subsídios (A este propósito, apenas citar de exemplo a Lei nº 19-A/96,
de 29 de junho, e os D-L nºs 196/97, de 31 de julho, e 84/2000, de 11 de maio, que
instituíram e regulamentaram o rendimento mínimo garantido.

-Isenções fiscais100/outras vantagens concedidas pelo legislador em matéria fiscal (Lei nº


51-A/96, de 9 de dezembro, artigos 2º e 3º)

-Bolsas de estudo

-Apoio judiciário (Lei nº 34/2004, de 29 de julho.)

ii. Sanções Jurídicas Negativas

As mais “usuais” até segundo a evolução histórica das sanções, de que são exemplo
atualmente:

-Penas/MS

-Coimas

99
Ainda mais, levando em consideração que já não vivemos em estado liberais antigos, o estado de
direito atual é interventor, promotor do em estar social.

100
Num estado de direito material, impõe-se decerto que a concessão deste tipo de benefícios seja
inteiramente transparente.

69
-Dissolução/liquidação e extinção de uma S.A

-Dissolução de uma associação

-Declarações de nulidade/anulabilidade

-Exclusão dalguém de uma sociedade a que pertença

-Indemnização101

-Divórcio102

Estas, são normalmente posteriores à prática de (ou a) um determinado facto, ou à


definição de uma certa situação, mas que podem ser de caráter cautelar (=preventivo –
A este título, artigos 1776 nº 3, 2007 do CC). Podem ainda ser subdividas em principais
e acessórias, em todo caso, impondo algo de desagradável a quem as sofre.

NOTA: Nem todas estas sanções negativas vão envolvem o recurso a força, à coação –
Coercibilidade!

-É exemplo a declaração de anulabilidade de certos atos. É um ato jurisdicional


declarativo, que não envolve o recurso a coação. Mesmo se diga, mutatis mutandis,
aquando da decisão de dissolução de uma associação.

Todavia, existem as sanções coativas: Por exemplo, no caso da indemnização, ou no da


aplicação das penas/MS

E suma: A verdade é que o direito mobiliza diversos meios sancionatórios! Mas, em


virtude do que se disse, é compreensível que, SANÇÃO e COAÇÃO não se confundem.
Apenas a primeira revela-se predicativa do direito.

101
A indemnização devida, pode, nos termos do artigo 810º nº1, ser antecipadamente estabelecida por
acordo de partes, mediante a fixação de uma cláusula penal.

102
Divórcio é tradicionalmente compreendido por nosso sistema jurídico como um remédio, e não uma
sanção. Todavia, é possível cumular o divórcio-remédio com uma sanção de caráter indemnizatório,
imposta a um dos cônjuges, por violação culposa de certos deveres conjugais

70
a.3 Outros aspetos – Sanções

É preciso ainda ter em atenção que este caráter sancionatório do direito, implica a
existência duma autoridade, nomeadamente um tribunal103 – o que nos remete para a
consideração das relações do direito com o poder, aludidas na segunda linha da ordem
jurídica.

NOTA: Um poder, será tanto mais eficiente quanto menos utilizar a força e quanto
mais recorrer a uma adequada argumentação para ser societariamente reconhecido como
legítimo (hoc sensu, como fundamentado)

a.4 Evolução Histórica – Tipos de sanções que o direito pode recorrer

Em regra, na doutrina diz-se que a evolução seguiu um caminho: da repressão para a


restituição (DurkHeim).

Outros já falam de uma evolução, no exato sentido da repressão para a persuasão104

M. Foucault, alude a uma como que, evolução do corpo para a alma, deixando o
primeiro de se perfilar como objeto do suplício infligido pelo poder, para se sublimar
em prisão duma interioridade culpada!

Os antigos delinquentes, apenas sentiam a repressão ser exercida sobre seus corpos.
Valia o princípio do Talião (pagar-se na medida do se sofreu. Matou, vai morrer).

Atualmente, não se justifica mais açoitar a aplicar castigos desumanos, brutais a quem
quer que seja. Agora os delinquentes sentem, com a aplicação das respetivas sanções,
um apelo de correção por parte da sociedade, dirigido à sua alma.

B. Função Secundária – Auto-organizatória


103
Mas nem sempre! Existem controvérsias juridicamente relevantes que, por diversas razões, não são
habitualmente decididas pelos tribunais.

104
Como se fosse um sinal, de que o homem vai atingindo estádios duma sensibilidade cada vez mais
avançada ao direito: Ainda no século passado, praticamente conseguiu-se a abolição da pena de morte
(nem todos os países mas muitos deles já – Portugal de forma pioneira)

71
Fora analisado o nível primário ou prescritivo da ordem jurídica. Mas não paramos por
aqui:

-A ordem jurídica – como qualquer criação humana – tende à desorganização: Seu


criador é o homem, um ser naturalmente livre e mutável.

É preciso fazer, assim, um esforço contínuo, no sentido de vencer a anomia/anarquia –


razões pelas quais se justifica que também a ordem jurídica tenha de disciplinar-se e
estabilizar-se!

Por precisar disto, é que dizemos que ao lado daquela função prescritiva/primária, a
ordem jurídica possui esta outra função secundária /auto-organizatória, na qual volta
para si própria, a fim de se auto-organizar para conseguir subsistir.

 A ordem jurídica busca, portanto, reorganizar-se continuamente. Mas porque


isto?

Ora, precisa fazer isto, pois ela integra uma multiplicidade de exigências e elementos
entre os quais podem surgir certas incompatibilidades ou contradições. Vejamos:

Uma das questões particulares suscetível de se manifesta nesse âmbito, é a das


antinomias entre normas, ou entre normas e princípios, ou entre princípios.

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