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E 11 DE JANEIRO DE 1978
gundo quais procedimentos e com quais �feitos. Logo, só de uma maneira ao mesmo tempo lógica, coerente e válida
poderia ser, no máximo, e só pretende ser, no máximo, um o conjunto dos mecanismos de poder e apreendê-los no
início de teoria, não do que é o poder, mas do poder, con que po�em ter de específico num momento dado, durante
tanto que se admita que o poder não é, justamente, uma um penodo dado, num campo dado.
substância, um fluido, algo que decorreria disto ou daquilo, � terceiro lu�ar, a análise dessas relações de poder
mas simplesmente na medida em que se admita que o po pode, e claro, se abnr para, ou encetar algo como a análise
der é um conjunto de mecanismos e de procedimentos que global de uma sociedade. A análise desses mecanismos de
têm como papel ou função e tema manter - mesmo que não �oder também pode se articular, por exemplo, com a histó
o consigam - justamente o poder. É um conjunto de proce na das transformações econômicas. Mas, afinal de contas, o
dimentos, e é assim e somente assim que se poderia enten que �aço, não digo aquilo para o que sou feito, porque dis
der que a análise dos mecanismos de poder dá início a algo so nao tenho a menor idéia, enfim o que faço não é, afinal
como uma teoria do poder. de contas, nem história, nem sociologia, nem economia. É
Segunda indicação de opção: as relações, esse conjun �a coisa que, de uma maneira ou de outra, e por razões
to de relações, ou antes, melhor dizendo, esse conjunto de srmplesmente de fato, tem a ver com a filosofia, isto é, com
procedimentos que têm como papel estabelecer, manter, a política da verdade, porque não vejo muitas outras defini
transformar os mecanismos de poder, pois bem, essas rela ções para a palavra "filosofia" além dessa. nata-se da políti
ções não são autogenéticas "", não são auto-subsistentes ,.,., ca da verdade. Pois. bem, na medid.a em que se trata disso, e
não são fundadas em si mesmas. O poder não se funda em não de sociologia, não de história nem de economia, vocês
si mesmo e não se dá a partir de si mesmo. Se preferirem, vêem que a análise dos mecanismos de poder, essa análise
simplificando, não haveria relações de produção mais - ao tem, no meu entender, o papel de mostrar quais são os efei
lado, acima, vindo a posteriori modificá-las, perturbá-las, tos de saber que são produzidos em nossa sociedade pelas
tomá-las mais consistentes, mais coerentes, mais estáveis - lutas, os choques, os combates que nela se desenrolam, e
mecanismos de podeL Não haveria, por exemplo, relações pelas táticas de poder que são os elementos dessa Juta.
de tipo familiar que tivessem, a mais, mecanismos de poder, Quarta indicação: não há, creio, discurso teórico ou sim
não haveria relações sexuais que tivessem, a mais, ao lado, plesmente análise que não seja de uma maneira ou de outra
acima, mecanismos de poder. Os mecanismos de poder sãb percorrida ou emba�ada em algo como um discurso no im
parte intrínseca de todas essas relações, são circularmente o perativo. Mas creio que o discurso imperativo que, na ordem
efeito e a causa delas, mesmo que, é claro, entre os diferen �a teoria, c'?nsi;5te �m �er "goste disto, deteste aquilo, isto
tes mecanismos de poder que podemos encontrar nas rela e bom, aquilo e rwm, seJa a favor disso, cuidado com aqui
Jo", tudo isso me parece ser, em todo caso atualmente nada
ções de produção, nas relações farrúliares, nas relações se mais que um discurso estético que só pode encontr� seu
xuais, seja possível encontrar coordenações laterais, subor fundamento em opções de ordem estética. Quanto ao dis
dinações hierárquicas, isomorfismos, identidades ou analo curso imperativo que consiste em dizer "lute contra isto e
gias técnicas, efeitos encadeados que permitem percorrer d�sta ou daqu�la ?1aneira", pois bem, parece-me que é um
di��o bem ligeiro, quando é feito a partir de uma insti
• autogenéticas: entre aspas no manuscrito. h.tiçao qualquer de ensino ou, até, simplesmente nwna fo
- auto-subsistentes: entre aspas no manuscrito. lha de papel. Como quer que seja, a dimensão do que se
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tem a fazer só pode aparecer, parece-me, no interior de um ção, a mesma lei penal, ainda "não matarás", ainda acom
campo de forças reais, isto é, um campo de forças que nun panhada de certo número de punições se for infringida,
ca um sujeito falante pode criar sozinho e a partir da sua pa mas desta v,e� o coi:1J�to .é enquadrado, de um lado, por
!avra; é um campo de forças que não se pode de maneira ne toda uma sene de vigilanoas, controles, olhares, esquadri
nhuma controlar nem fazer valer no interior desse discurso. nhamentos diversos que permitem descobrir, antes mesmo
Por conseguinte, o imperativo que embasa a análise teórica de o ladrão roubar, se ele vai roubar, etc. E, de outro lado,
que se procura fazer - já que tem de haver um-, eu gosta na outra extremidade, a punição não é simplesmente esse
ria que fosse simplesmente um imperativo condicional do momento espetacular, definitivo, do enforcamento, da multa
gênero deste: se você quiser lutar, eis alguns pontos-chave, ou do desterro, mas será uma prática como o encarcera
eis algumas linhas de força, eis algumas .travas e alguns blo mento, impondo ao culpado toda uma série de exercícios,
queios. Em outras palavras, gostaria que esses imperativos de trabalhos, trabalho de transformação na forma, simples
não fossem nada mais que indicadores táticos. Cabe a mim mente, do que se chama de técnicas penitenciárias, traba
saber, é claro, e aos que trabalham no mesmo sentido, cabe lho obrigatório, moralização, correção, etc. Terceira modula
a nós por conseguinte saber que campos de forças reais to �ão a partir da mesma matriz: seja a mesma lei penal, sejam
mar como referência para fazer uma análise que seja eficaz igualmente as punições, seja o mesmo tipo de enquadra
em termos táticos. Mas, afinal de contas, é esse o circulo da mento na forma de vigilância, de um lado, e correção, do
luta e da verdade, ou seja, justamente, da prática filosófica. ou':º· Mas, desta vez, a aplicação dessa lei penal, a organi
Enfim, um quinto e último ponto: essa relação, creio, sé zaçao da prevenção, da punição corretiva, tudo isso vai ser
ria e fundamental entre a luta e a verdade, que é a própria di comandad� por �a série de questões que vão ser pergun
mensão em que há séculos se desenrola a filosofia, pois bem, t� d� sE:gwnte genero, por exemplo: qual é a taxa média da
essa relação séria e fundamental entre a luta e a verdade, cnnunalidade desse [tipo] ,. ? Como se pode prever estatisti
creio que não faz nada mais que se teatralizar, se descarnar, camente que haverá esta ou aquela quantidade de roubos
perder o sentidq e a eficácia nas polêmicas internas ao discur num momento dado, numa sociedade dada, numa cidade
so teórico. Portanto proporei em tudo isso um só imperativo, dada, na cidade, no campo, em determinada.camada social,
mas que será categórico e incondicional: nunca fazer política2 • etc.? Em segundo lugar, há momentos, regiões, sistemas
Bem, gostaria agora de começar este.curso. Ele se cha penais tais que essa taxa média vai aumentar ou diminuir?
ma, portanto, "segurança, território, população''\ As cri.�s, a fome! � guerras, as punições rigorosas ou, ao
Primeira questão, claro: o que se pode entender por "se c:>ntrano, as puruçoes brandas vão modificar essas propor
gurança"? É a isso que gostaria de consagrar esta hora e tal çoes? Outra.s perguntas mais: essa criminalidade, ou seja, o
vez � próxima, enfim, conforme a lentidão ou a rapidez do roubo portanto, ou, dentro do roubo, este ou aquele tipo
que direi. Bem, um exemplo, ou melhor, uma série de exem de roubo, quanto custa à sociedade, que prejuízos produz,
plos, melhor ainda, um exemplo modulado em três tempos. que perdas, etc.? M� outras perguntas: a repressão a esses
E simples, é infantil, mas vamos começar por aí e creio que roubos custa quanto? É mais oneroso ter uma repressão se-.
isso me permitirá dizer um certo número de coisas. Seja vera e rigorosa, uma repressão fraca, uma repressão de tipo
uma lei penal simplíssima, na forma de proibição, digamos,
"não matarás, não roubarás", com sua punição, digrunos, o
enforcamento, ou o desterro, ou a multa. Segunda modula- • M.F.: gênero,
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exemplar e descontínua ou, ao contrário, uma repres são estudar ago ra. Dispositivo de segurança que vai, para dizer
contínua? Qual é o custo comparado do roubo e da sua re as coisas de maneira absolutamente global, inserir o fenô
pressão? O que é melhor, relaxar um pouco com o roubo ou meno em questã o, a saber, o roubo, numa série de aconte
relaxar um pouco a repressão? Mais outras perguntas: se o cimentos prováveis. Em segundo lugar, as reações do poder
culpado é encontrado, vale a pena puni-lo? quanto cus�a ante esse fenôme novão ser inseridas num cálculo que é um
ria puni-lo? O que se deveria fazer para puru-lo e, purun cálculo de custo. Enfim, em terceiro lugar, em vez de instau
do-o, reeducá-lo? Ele é efetivamente reeducável? Ele repre rar uma divisão binária entre o permitido e o proibido, vai
senta, independentemente do ato que cometeu, um perigo se fixar de um lado urna média considerada ótima e, depois,
permanente, de sorte que, reeducado ou não, ren _i cidiria, e�tabelec�r os limites d o aceitável, além dos quais a coisa
etc.? Demaneira geral, a questão que se çoloca sera a desa nao deve ir. É portanto toda uma outra distribuição das coi
ber como, no -fundo, manter um tipo de criminalidade, ou sas e dos mecanismos que assim se esboça.
seja, o roubo, dentro de limites que sejam social e economi Por que tornei esse exemplo tão infantil? Para logo res
camente aceitáveis e em torno de uma média que vai ser saltar duas ou três coisas que gostaria que ficassem bem
considerada, digamos, ótima para um funcionamento social claras para vocês todos e, antes de mais nada, para mim, é
dado. Pois bem, essas três modalidades me parece m carac claxo. Aparentemente, eu lhes ofereci aqui, por as sim dizer,
terísticas de diferentes coisas queforam e studadas [e daque- um.a espécie de esquema histórico totalmente descarnado.
las] que eu gostaria de estudar agora. O sistema legal é o funcionamento penal arcaico, aquele
A primeira forma, vocês conhecem, a que consiste �m que se conhece da Idade Média aos séculos XVIl-XVIlI. O
criar uma lei e estabelecer uma punição para os que a m segundo é o que poderíamos chamar de moderno, que é
fringirem, é o sistema do código legal com divisão bipária �plantado a partir do século XVIIl; e o terceiro é o sistema,
entre o permitido e o proibido, e um acoplamento, que e pre digamos, contemporâneo, aquele cuja problemática come
cisamente no que consiste o código, o acop�amento en�e çou a surgir bem cedo, mas que está se organizando atual
um tipo de ação proibida e um tipo de puruçao. � portant� mente em torno das novas formas de penalidade e do cál
o mecanismo legal ou jurídico. O segundo mecanismo, a lei culo do custo das penalidades: são as técnicps americanas6,
enquadrada por mecanismos de vigilância e. de co�e!ã<:>, mas também européias que encontramos agora. De fato,
não voltarei a isso, é evidentemente o mecanismo disapli caracterizando-se as coisas assim - o arcaico, o antigo, o mo
na.r'. É o mecanismo disciplinar que vai se caracterizar pelo derno e o contemporâneo -, creio que se perde o essencial.
fato de que dentro do sistema binário do código aparece Perde-�e o essen?al, primeiramente, é claro, porque essas
um terceiro personagem, que é o culpado, e ao mesmo �e�- modalidades antigas de que eu lhes falava implicam, evi
po, fora, além do ato legislativo que cria a le! � do at? J1:1di dentemente, as que se manifestam como mais novas. No
cial que pune o culpado, aparece toda uma sene d: tecrucas sistema juríctico-Iegal, aquele que funcionava, em todocaso
adjacentes, policiais, médicas, psicológicas, que sao do do aquele que dominava até o século XVIll, é absolutamente
mínio da vigilância, do diagnóstico, da eventual transfor evidente que oaspecto disciplinar estava longe de estar au
mação dos indivíduos. Tudo isso nós já vimos. A terceira sente, já que, afinal de contas, quando se impunha a um
forma é a que caracterizaria não mais o código legal, não ato, mesmo que e sobretudo se esse ato fosse aparentemen
mais o mecanismo disciplinar, mas o dispositivo de segu te �e pouca importância e de pouca conseqüência, quando
rança5, isto é, o conjuntodos fenômenos que eu gostaria de se nnpunha uma punição dita exemplar, era precisamente
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porque se pretenrua obter um efeito corretivo, se não- sobre na ordem- penal, nessa ordem da segurança. O conjunto das
o culpado· propriamente - porque se ele fosse er:1for.cad0- a medidas legislativas, dos decretos, dos regulamentos, das cir
correção era pouca para. ele -, [pelo menos sobre o] ,. resto culares que permitem implantar os mecanismos de seguran
�população.Nessa medida,.pod�-s� dizer qu� a prá�c� d_o ça, esse conjunto é cada·vez mais gigantesco. Afinal de con
suplício como exemplo era uma tecruca corretiva. e disapli tas, o código legal referente ao roubo era relativamente mui
nar. Do mesmo modo que no mesmo sistema, quando se to simples na tradição da Idade Média e da época clássica.
punia o roubo doméstico de maneira extraordinariamente Retomem agora todo o conjunto da legislação que vai dizer
severa - a pena de morte para um roubo de pequeníssima respeito não apenas ao roubo, mas ao roubo cometido pelas
monta, caso tivesse sido cometido. dentro de uma casa, por crianças, ao estatuto penal das crianças, às responsabilidades
alguém que era recebido nesta ou empregado· como do por razões men�, t�do o conjunto legislativo que diz res
méstico -, era evidente que se visava com isso, no fund0, peito ao que é chamado, justamente, de medidas de seguran
um crime que só. era importante por sua probabilidade, e çar a vigilância dos indivíduos depois de sua instituição: vo
podemos dizer que aí também se havia instaurado algo como cês vão ver que há uma verdadeira inflação legal, inflação do
um mecanismo de segurança. Poderíamos. [dizerJ-• ames c?di�· jurídico-legal para fazer esse sistema de segurança
ma coisa a propósito do· sistema disàplinar, que também funconar. Do mesmo modo, o corpus disciplinar também é
comporta toda uma· série de dimensões que são propria� amplamente ativado e fecundado pelo estabelecimento desses
mente da ordem da segurança. No fundo, quando se pro mecanismos de segurança. Porque, afinal de contas, para de
cura. corrigir um detento, um condenado, procura-se corri �ato garantir essa segurança é preciso apelar, por exemplo, e
gi-lo em função dos riscos de recidiva, de-reirlcidência que e apenas um exemplo, para toda uma série de técnicas de vi
ele apresenta, isto é, em função do· que se· chamará, bem gilância, de vigilância dos indivíduos, de diagnóstico do que
cedo, da sua periculosidade - ou seja, aqui também, meca eles s_ão, d� �assi.ficação da sua estrutura mental, da sua pa
nismo de segurança. Logo, os mecanismos disciplinares nã0 tologia propna, etc., todo wn conjunto disciplinar que viceja
aparecem simplesmente a partir do séculoXVIlL elesjá es sob os mecanismos de segurança para fazê-los funcionar.
tão presentes no interior do código-jurídico-legal. Os meca Portanto, vocês não têm urna série na qual os elemen
nismos de segurança também são antiqüíssimos como me tos vão se suceder, os que aparecem fazendo seus predeces
canismos. Eu também poderia dizer, inversamente, que, se so_res desapar�cerem. Não há a era do legal, a era do disci
tomarmos. os mecanismos de segurança tais como se tenta plinar, a era da segurança. Vocês não têm mecanismos de
desenvolvê-los na época contemporânea, é absolutamente segurança .que �ornam o lugar dos mecanismos disciplina
evidente que isso não constitui de maneira nenhuma uma res, os quais tenarn tomado o lugar dos mecanismos jurídi
colocação entre parênteses ou wna anulação das estruturas co-legais. Na verdade; vocês têm uma série de edifícios com
j�dico-legais ou dos mecanismos disáplinares.. Ao contrá p�exos nos g_uais o que :'ai mudar, claro, são as próprias téc
rio, tomem por exemplo o que acontece' atualmente, ainda rucas que vao se aperfe1çoar ou, em todo caso, se complicar,
mas o que vai mudar, principalmente, é a dominante ou
mais exatamente, o sistema de correlação entre os mecanis�
• M: Foucault díz: em compensação, a ,correção; o efeito corretivo mos jurídico-legais, os mecanismos disciplinares e os me
dirigia�se evidentemente ao canisl!1os de segurança. Em outras palavras, vocês vão ter
- M.F.: tomar uma história que vai· ser uma história das técnicas propria-
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mente ditas. Exemplo: a técnica celular, a detenção em ce se vê é que essa problemática trouxe tal inflação nas técni
las é uma técnica disciplinar. Vocês podem perfeitamente cas disciplinares, que no entanto estavam estabelecidas fa
fazer a história dela, que remonta a bem longe. Vocês já a zia muito tempo, que o ponto em que, se não o escândalo,
encontram muito empregada na era do jurídico-legal. En pelo menos o atrito apareceu - e a ferida foi bastante sensí
Gont:ram-na empregada no caso de pessoas que têm dívi vel para provocar reações, reações violentas e reais -, foi
das, encontram-na empregada sobretudo na ordem religio, essa multiplicação disciplinar. Em outras palavras, foi o dis
sa. Vocês fazem então a história dessa técnica celular (isto e, ciplinar que, na própria época em que os mecanismos de
[a história de] seus deslocamentos, [de] sua utilização), vêem segurança estão se estabelecendo, foi o disciplinar que pro
a partir de que momento a técnica celular, a disciplin_a _celu vocou, não a explosão, porque não houve explosão, mas
lar é empregada no·sistema penal comum, que conflitos ela pelo menos os conflitos mais manifestos e mais visíveis.
suscita, como ela regride. Vocês também poderiam fazer a Então, o que eu gostaria de tentar lhes mostrar durante este
análise da técnica, nesse caso de segurança, que seria por ano é em que consiste essa tecnologia, algumas dessas tec
exemplo a estatística dos crimes. A estatística, do� crime� é nologias [de segurança]•, estando entendido que cada uma
coisa qu� não data de hote, mas tampouco e c.º1:iª ,�wto delas consiste em boa parte na reativação e na transforma
antiga. Na França, são os celebres Balanços do Ministeno da ção das técnicas jurídico-legais e das técnicas disciplinares
Justiça que possibilitam, a partir de 18�6\ � estatística_ d�s de que lhes falei nos anos precedentes.
crimes. Vocês podem portanto fazer a histona dessas tecru Outro exemplo que vou simplesmente esboçar aqui,
cas. Mas há uma outra história, que seria a história das tec mas para introduzir outra ordem de problemas ou para real
nologias, isto é, a história muito mais global, mas, é claro, çar e generalizar o problema (aqui também são exemplos
também muito mais vaga das correlações e dos sistemas de de que já falei n vezes ,.,.. ). Ou seja, podemos dizer, a exclu
dominante que fazem com que, numa sociedade dada e para são dos leprosos na Idade Média, até o fim da Idade Médiaª .
este ou aquele setor dado - porque não é necessariamente É uma exclusão que se fazia essencialmente, embora tam
sempre ao mesmo passo que as coisas vão evoluir neste ou bém houvesse outros aspectos, por um conjunto mais uma
naquele setor, num momento dado, numa sociedade dada, vez jurídico, de leis, de regulamentos, conjunto religioso
num país dado -, se instale uma tecnologia de segurança, também de rituais, que em todo caso traziam uma divisão,
por exemplo, que leva em conta e faz funcionar no int�ri�r e uma divisão de tipo binário entre os que eram leprosos e os
da sua tática própria elementos juádicos, elementos disa que não eram. Segundo exemplo: o da peste (deste também
plinares, às vezes até mesmo multiplicando-os. Temos atual já lhes havia falado9, logo tomo a ele rapidamente). Os re
mente um exemplo bem nítido disso, ainda a propósito gulamentos relativos à peste, tais como os vemos formula
desse donúnio da penalidade. É certo que a evolução con
dos no fim da Idade Média, no século XVI e ainda no sécu
temporânea, não apenas da problemática, da maneira co�o lo XVII, dão uma impressão bem diferente, agem de uma
se reflete sobre a penalidade, mas igualmente [da] maneira
como se pratica a penalidade, é claro que por enquanto, faz maneira bem diferente, têm uma finalidade bem diferente
anos, bem uns dez anos pelo menos, a questão se coloca es e, sobretudo, instrumentos bem diferentes. Trata-se nesses
sencialmente em termos de segurança. No fundo, a econo
mia e a rel�ção econômica entre o custo da repressão e o • M.F.: disciplinares
custo da delinqüência é a questão fundamental. Ora, o que .., M. Foucault acrescenta: e que são [palavra inaudfvel]
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regulamentos relativos à peste de quadrilhar literalmente as quanto parecida, transformações mais ou menos do mesmo
regiões, as cid.ades no interior- das quais existe a peste, com tipo nas sociedades, digamos, como as nossas, ocidentais.
uma regulamentação indicando às pessoas quando poçie-m Trata-se da emergência de tecnologias de segurança no in
sair, como, a que horas, o que devem fazer em casa, que terior, seja de mecanismos que são propriamente mecanis
tipo de alimentaçã.o devem ter, proíbindo-lhes este_ ou mos de cor:1trole social, como no caso da penalidade, seja
aquele tipo de contato, obrigíUldo-ç1s a se apres�ntar a ins dos �ec�m_os que tê� _por �ção _modificar em algo o
petores, a a,brir a casa é;l.OS inspetores. Pode-se cUzer que te destino b1ologico da espeae. Entao, e e essa a questão cen
mos, aí,� si$tema que é de tipo disciplinar, Tei;ceiro exem tral do que eu gostaria de analisar, poderiamas dizer que
plo: o q\le estudamos atualrr\en�e no serajnário, i,sto é, a em nossas sociedades a economia geral de poder está se
varíola ou, a partir do século XVTII, as prática,s de inocul� tomando da ordem da segurança? Eu gostaria portanto de
ção1º. O·problema se coloç:a de maneirç1·bem diferente: não fazer aqui uma espécie de história das tecnologias de segu
tanto impor urna disciplina, emba.ra çl disci,pl,ina [�ja]• çha rança e tentar ver se podemos efetivamente falar de uma
mada em auxílio; o problema fundç1.mental vai ser o c;ie sç1- sociedade de segurança. Em todo caso, sob o nome de so
ber quantas pessoas pegaram varíol�, co� q__ue idade, �om ci�dad� de segurança eu gostaria simplesmente de saber se
quais efeitos, qual a mortalidade, quélls as lesoes ou qu�s as ha efetivamente uma economia geral de poder que tenha a
seqüelas, q�e riscos s� corre fazendo-se inocular, qu� a forma [de] ou que, em todo caso, seja dominada pela tec
pro.babilid�qe de um indivícluo vir a morrer ou pegar vano nologia de segurança.
la é\pesar da inoculaçã,o, ql\aiS os efeitos estatísticos sobre.� Então, algumas características gerais desses dispositi
população em. gei:al, em suma, todo um problema que Jª vos de se�ança. Gostaria de �essaltar quatro, não sei quan
não é o da ex;clusão, como na lepra, qµe já não é o claqua to� ... , �nfim, vou come�ar analisando alguns para vocês. Em
rentena, como na peste, que vai ·ser o problema das epide pnmeiro lugar, gostana de estudar um pouquinho, assim
mias e das campanhas médicas por meio das quais se ten por alto, o que poderíamos chamar de espaços de seguran
tart:). jugular os fenômenos, tanto os epidêmicos quanto os ça. Em segundo, estudar o problema do tratamento do alea
tório. -�m terceiro, estudar a forma de nonT,alização que é
endêmicos.
·
Aqui tampém, por sinal, basta ver o conjunto le�lati
?ª
esp ecífica s:gur�n�a � que não ':1e parece do mesmo tipo
da normalizaçao_disoplmar. E, enfim, chegar ao que vai ser
vo, as obrigações disciplinares que os. i:necan}smos de se�
o problema preaso deste ano, a correJaçã.o entre a técnica
rança modernos incluem, p�a ver qye r\�O ha uma sucessé;l.o:. de s.e�ança e a população, ao mesmo tempo como objeto
lei, depois disciplina, depois segurança. A segurança é uma e_suJe!to desses mecanismos de segurança, isto é, a emergên
certa maneira de acrescentar, de fazer funcio[\ar< além dos a� nao apenas da noção, mas da realidade da população.
mecanismos· propriamente de segw:aJ;lça, as velhas es�tu Sao, no fundo, uma idéia e uma realidade sem dúvida ab
ras da lei e da disciplina. Na ordem do direito, portanto, na s�lutamente m<;>demas em relação ao funcionamento polí
ordem da. medicina, e poçieria multiplical' os �xemplos. -{oi tico, mas tambem em relação ao saber e à teoria políticos
por isso qu� lhes citei este outro -,. vo.cês estão veo.do. que anteriores ao século XVIII.
encontramos apesai: de t:udo uma evolução um tanto ou Então, em primeiro lugar, em linhas gerais, as questões
de espaço. Poderíamos dizer, à primeira vista e de uma ma
• MP.: será neira um tanto esquemática: a soberania se exerce nos limi-
16 SEGURANÇA. TERRITÓRIO, POPUIAÇÃO _ AUIA DE 11 DE JANEIRO DE 1978 25
disposição do espaço, com o escoamento das águas, com as ro x de passantes, número x de ladrões, número x de mias
ilhas, com o ar, etc. Logo, ela trabalha sobre algo dad?. [Em mas, etc.* Série indefinida dos elementos que se produzem:
segundo lugar,] não se trata, para ela, de reconstruir _e:se tantos barcos vão atracar, tantas carroças vão chegar, etc.
.dado de tal modo que se atingisse um ponto de perfe1çao, Série igualmente indefinida das unidades que se acumu
como numa cidade disciplinar. Trata-se simplesmente de lam: quantos habitantes, quantos imóveis, etc. É a gestão
maximizar os elementos positivos, de poder circular da me dessas séries abertas, que, por conseguinte, só podem ser
lhor maneira possível, e de minimizar, ao contrário, o que é controladas por uma estimativa de probabilidades, é isso, a
risco e mconveniente, como o roubo, as doenças, sabendo · meu ver, que caracteriza essencialmente o mecanismo de
perfeitamente que nunca serão sup�dos. Trab:tlha-se segurança
portanto não apenas com dados naturais, mas_ t�bem com . Digamos para resumir isso tudo que, enquanto a sobe
quantidades que são relativamente compress1ve1S, mas que rania capitaliza um território, colocando o problema maior
nunca o são totalmente. Isso nunca pode ser anulado, logo da sede do governo, enquanto a disciplina arquiteta um es
vai-se trabalhar com probabilidades. Em terceiro lugar, o paço e coloca como problema essencial uma distribuição
que se vai procurar estruturar nesses pl�ej�ent'?s são os hierárquica e funcional dos elementos, a segurança vai pro
elementos que se justificam por sua po�c1onalid:'1 de. O curar criar um ambiente em função de acontecimentos ou
que é urna boa rua? É uma rua na qual vai haver, e claro, de séries de acontecimentos ou de elementos possíveis, sé
uma circulação dos chamados miasrnas, logo das doenças, ries que vai ser preciso regularizar num contexto rnultiva
e vai ser necessário administrar a rua em função desse pa lente e transformável. O espaço próprio da segurança re
pel necessário, embora pouco desejável, da rua. A rua vai mete portanto a uma série de acontecirn.entos possíveis,
ser também aquilo por meio do que se levam �s merca�o remete ao temporal e ao aleatório, um temporal e um alea
rias, vai ser também aquilo ao longo do que vai haver loJas.
A rua vai ser também aquilo pelo que vão poder transitar tório que vai ser necessário inscrever num espaço dado. O
os ladrões' eventualmente os amot inados, etc. Portanto são espaço em que se desenrolam as séries de elementos alea
.. i tórios é, creio, mais ou menos o que chan1amos de meio. O
todas essas diferentes funções da cidade, umas positvas,
outras negativas, mas são elas que vai ser preciso impl�tar meio é uma noção que, em biologia, só ªP-arece - como vo
no planejamento. Enfim, o qu�o P?nto �port�te e. que cês sabem muito bem - com Lamarck36 • E uma noção que,
vai se trabalhar com o futuro, 1Sto e, a odade nao vai ser em compensação, já existe em física, que havia sido utiliza
concebida nem planejada em função de uma p�r:epção es da por Newton e os newtonianos37 • O que é o meio? É o que
tática que garantiria instantaneamente _a perfe1çao da fun é necessário para explicar a ação à distância de um corpo so
ção, mas vai se abrir para um futuro nao exatam�nte con bre outro. É, portanto, o suporte e o elemento de circulação
trolado nem controlável, não exatamente medido nem de uma ação38 • É portanto o problema circuJação e causali
mensurável, e o bom planejamento da cidade vai ser preci dade que está em questão nessa noção de meio. Pois bem,
samente: levar em conta o que pode acontecer. Enfim, acre creio que os arquitetos, os urbanistas, os primeiros urbanis
dito que possamos falar aqui de uma técnica _que �e vincu tas do século XVIII, são precisamente os que, não diria uti-
la essencalm
i ente ao problema da segurança, isto e, no fun
do, ao problema da série. Série indefinida dos elern�ntos • M. Foucault repete: Série indefinida dos elementos que se des
que se deslocam: a circulação, número x de carroças, nume- locam
AUU\ DE 11 DE. JANEIRO DE 1978 29
28 SEGURANÇA., TERRITÓRlO, POPULAÇÃO
em que se fala do vinho que gela nos tonéis e diz: será que
veríamos hoje, na Itália, o vinho gelar nos tonéis? º Pois
bem, se houve tanta mudança, não é que o clima mudou, é
que as intervenções políticas e econômicas do govem.o mo-
. d.i.fi.cararn o curso das coisas a tal ponto que a própria natu
reza constituiu para o homem, eu ia dizendo um outro meio,
só que a palavra "meio" não está em Moheau. Em conclu
são, ele diz: "Se do clima, do regime, dos usos, do costume
de certas ações resulta o prinápio desconhecido que forma
o caráter e os espíritos, pode-se dizer que os soberanos, por
leis sábias, por instituições sutis, pelo incômodo que trazem
os impostos, pela conseqüente faculdade de suprimi-los,
enfim por seu exemplo, regem a existência física e moral dos
seus súditos. Talvez um dia seja possível tirar partido desses
meios para matizar à vontade os costumes e o espírito da
nação." 42 Como vocês estão vendo, voltamos a encontrar
aqui o problema do soberano, mas desta vez o soberano não
é mais aquele que exerce seu poder sobre um território a par
tir de uma localização geográfica da sua soberania política, o
soberano é algo que se relaciona com uma natureza, ou an
tes, com a interferência, a intrincação perpétua de um meio
geográfico, climático, físico com a espécie humana, na me
dida em que ela tem um corpo e uma alma, uma existência
física [e] moral; e o soberano será aquele que deverá exercer
seu poder nesse ponto de articulação em que a natureza no
sentido dos elementos físicos vem interferir com a natureza
no sentido da natureza da espécie humana, nesse ponto de
articulação em que o meio se toma determinante da nature
za. É aí que o soberano vai intervir e, se ele quiser mudar a
espécie humana, só poderá fazê-lo, diz Moheau, agindo so
bre o meio. Creio que temos aí um dos eixos, um dos ele
mentos fundamentais nessa implantação dos mecanismos
de segurança, isto é, o aparecimento, não ainda de uma no
ção de meio, mas de um projeto, de uma técnica política que
se dirigiria ao meio.
58 SEGURANÇA. TERRITÓRlO, POPUUÇÃO AUV. DE 18 DE JANEIRO DE 1978 59
os dispositivos de segurança tratam dele. A disciplina tem modelo de saturação disciplinar a vida monástica que foi, de
essencialmente por função impedir tudo, inclusive e princi fa�o, o ponto de partida e a matriz, na vida monástica per
palmente o detalhe. A segurança tem por função apoiar�se feita o que o monge faz é inteiramente regulado, dia e noi
te, : a única coisa indeterminada é o que não se diz e que é
nos detalhes que não vão ser valorizados como bons ou �
em si, que vão ser tomados como processos necessanos, ermbid?·. No sistema da lei, o que é indeterminado é o que
e perm_1hdo; 1;0 sistema da regulação disciplin ar, o que é
inevitáveis, como processos naturais no sentido lato, e vai detemunado e o que se deve fazer, por conseguinte todo o
se apoiar nesses detalhes que são o que são, mas· que não resto, sendo indeterminado, é proibido.
vão ser considerados pertinentes, para obter algo que, em No dispositivo de segurança tal como acabo de lhes ex
si, será considerado pertinente por se situar no nível da po- por, parece-me que se tratava justamente de não adotar nem
pulação. o ponto de vista do que é impedido, nem o ponto de vista do
Terceira diferença. No fundo, a disciplina, e aliás os sis que é obrigatório, mas distanciar-se suficientemente para po
temas de legalidade também, como é que procedem? Pois der apreender o ponto em que as coisas vão se prod uz ir, se
bem, eles dividem todas as coisas de acordo com um códi j� elas desejáveis ou não. Ou seja, vai-se procurar reapreen
go que é o do permitido e do proibido. Depois, no interior d:-la� no plan� da sua natureza ou, digamos - essa palavra
desses dois campos - do permitido e do proibido -, vão es n��; tinha� no se�o XVIIl, o sentido que lhe damos hoje em
pecificar, determinar exatamente o que é proibido, o que é dia -, vai-se toma-las no plano da sua realidade efetiva. E é
permitido, ou melhor, o que é obrigatório. E pode-se d_izer a partir dessa realidade, procurando apoiar-se nela e fazê-la
que, no interior desse sistema geral, o sistema de legalida atuar, fazer seus elementos atuar uns em relação aos outros,
de, o sistema da lei tem essencialinente por função deter que o mecanismo de segurança vai [funcionar]"". Em outras
minar sobretudo as coisas proibidas. No fundo, o que a lei pal��' a lei proibe, a disciplina prescreve e a segurança, sem
diz, essencialmente, é não fazer isto, não fazer tal coisa, não proibir nem prescrever, mas dando-se evidentemente al gun s
fazer também taJ outra, etc. De modo que o movimento de instrumentos de proibiç_ão e de prescrição, a segurança tem
especificação e de determinação num sistema de legalidade essencialmente por função responder a urna realidade de ma
incide sempre e de modo tanto mais preciso quando se tra neira que essa resposta anule essa realidade a que ela respon
ta do que deve ser impedido, do que deve ser proibido. Em de - anule, ou limite, ou freie, ou regule. Essa regulação no ele
outras palavras, é tomando o ponto de vista da desordem mento da realidade é que é, creio eu, fundamental nos dis
que se vai analisar cada vez mais apuradâmente, que se vai positivos da segurança.
estabelecer a ordem - ou seja: é o que resta. A ordem é o que , . P<_=>;leríamo� _dize� tamb�rn que a lei trabalha no imagi
resta quando se houver impedido de fato tudo o que é proi nano, Jª que a l:1 unagma e so pode ser formulada imaginan
bido. Esse pensamento negativo é o que, a meu ver, caracte do todas as coisas que poderiam ser feitas e não devem ser
riza um código legal. Pensamento e técnica negativos. feitas. Ela imagina o negativo. A disciplina trabalha, de cer
O mecanismo disciplinar também codifica perpetua ta forma, no complementar da realidade. O homem é malva
mente em permitido e proibido, ou melhor, em obrigatório do, o homem é ruim, ele tem maus pensamentos, tendên
e proibido, ou seja, o ponto sobre o qual um mecanismo cias más, etc. Vai-se constituir, no interior do espaço disci-
disciplinar incide são menos as coisas a não fazer do que as
coisas a fazer. Uma boa disciplina é o que lhes diz a cada
• M.F.: atuar
instante o que vocês devem fazer. E, se tomarmos como
62 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AUl.A DE 18 DE JANEIRO DE 1978 63
plinar, o complementar. dessa recl.idade, prescrições, obri volva e vá, siga seu caminho, de acordo com as leis, os prin
gações, tanto mais artificiais e tanto mais coercitivas por ser cípios e os meca.rtlsrnos que são os da realidade mesma. De
a realidade o que é e por ser ela insistente e difícil de se do modo que esse problema da liberdade [sobre o qual] torna
brar. Enfim, a segurança, ao contrário da lei que trabalha no rei, espero, da próxima vez29, creio que podemos considerá
upaginário e da disciplina que trabalha no complementar lo, reapreendê-lo de diferentes formas. Claro, pode-se dizer
da realidade, vai procurar trabalhar na realidade, fazendo os - e acho que isso não seria errado, não pode ser errado -
elementos da realidade atuarem uns em relação aos outros, que essa ideologia da liberdade, essa reivindicação da liber
graças a e através de toda uma série de análises e de dispo dade foi wna das condições de desenvolvimento de formas
sições específicas. De modo que se chega, a meu ver, a esse modernas ou, se preferirem, capitalistas da economia. É ine
ponto que é essencial e com o qual, ao mesmo tempo, todo gável. O problema é saber se, efetivamente, na implantação
o pensamento e toda a organização das. sociedades políti dessas medidas liberais, corno por exemplo vi.mos a propó
cas modernas se encontram comprometidos: a idéia de que sito do comércio de cereais, era de fato isso que se visava ou
a política não tem de levar até o comportamento dos homens se buscava em primeira instância. Problema, em todo caso,
esse conjunto de regras, que são as regras impostas por que se coloca. Em segundo lugar, disse em algum lugar que
Deus ao homem ou tomadas necessárias simplesmente por não se podia compreender a implantação das ideologias e
sua natureza má. A política tem de agir no elemento de uma de uma política liberais no século XVIIl sem ter bem presen
realidade que os fisiocratas chamam precisamente de a físi te no espírito que esse mesmo século XVIII, que havia rei
ca, e eles vão dizer, por causa disso, que a política é uma fí vindicado tão alto as liberdades, as tinha no entanto las .:.
sica, que a economia é uma física28 • Quando dizem isso, não treado com uma técnica disciplinar que, pegando as crian
visam tanto a materialidade, no sentido, digamos assim, pós ças, os soldados, os operários onde estavam, limitava consi
hegeliano da palavra matéria, visam na verdade essa reali deravelmente a liberdade e proporcionava de certo modo
dade que é o único dado sobre o qual a política deve agir e garantias ao próprio exercício dessa liberdade30 . Pois bem,
com o qual ela deve agir. Colocar-se sempre e exclusiva
mente nesse jogo da realidade consigo mesma - é isso, creio que me equivoquei. Nunca estou completamente
creio eu, que os fisiocratas, que os economistas, que o pen equivocado, claro, mas, enfim, não é exatamente isso. Creio
samento político do século XVIII entendiam quando di que o que está em jogo é algo bem diferente. É que, na ver
ziam que, como quer que seja, permanecemos na ordem da dade, essa liberdade, ao mesmo tempo ideologia e técnica
física e que agir na ordem política ainda é agir na ordem de governo, essa liberdade deve ser compreendida no inte
da natureza. rior das mutações e transformações das tecnologias de po
Vocês vêem ao mesmo tempo que esse postulado, que der. E, de uma maneira mais precisa e particular, a liberda
ro dizer esse princípio fundamental, de que a técnica polí de nada mais é que o correlativo da implantação dos dispo
tica nunca deve descolar do jogo da realidade consigo mes sitivos de segurança. Um dispositivo de segurança só poderá
ma, é profundamente ligado ao princípio geral do que se funcionar bem, em todo caso aquele de que lhes falei hoje,
chama liberalismo. O liberalismo, o jogo: deixar as pessoas justamente se lhe for dado certa coisa que é a liberdade, no
fazerem, as coisas passarem, as coisas andarem, laisser-fai sentido moderno [que essa palavra]* adquire no século XVIII:
re, laisser-passer e laisser-aller, quer dizer, essencial e funda
mentalmente, fazer de maneira que a realidade se desen- • M.F.: que ela
64 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO
técrúcas de transfonnação, contanto que esses agentes e es nal de contas, essa população é evidentemente feita de incti
sas técnicas de transformação sejam ao mesmo tempo es víduos, de indivíduos perfeitamente diferentes uns dos ou
clarecidos, refletidos, analíticos, calculados, calculadores. É tros, cujo comportamento, pelo menos dentro de certos li
necessário, evidentemente, não apenas levar em conta a mites, não se pode prever exatamente. Apesar disso existe, de
mudança voluntária das leis, se as leis são desfavoráveis à acordo com os primeiros teóricos da população no século
população; mas principalmente, se se quiser favorecer a po XVIII, pelo menos uma invariante que faz que a população
pulação ou conseguir que a população esteja numa relação tomada em seu conjunto tenha um motor de ação, e só um.
justa com os recursos e as possibilidades de um Estado, é Esse motor de ação é o desejo. O desejo - velha noção que
necessário agi.r sobre toda uma série de fatores, de elemen havia feito sua aparição e que havia tido sua utilidade na di
tos que estão aparentemente longe da própria população, reção de consciência (poderíamos eventualmente tomar so
do seu comportamento irnectiato, longe· da sua fecunctida bre esse ponto) 23 -, o desejo faz aqw, pela segunda vez ago
de, da sua vontade de reprodução. É necessário, por exem ra, sua aparição no interior das técnicas de poder e de gover
plo, agir sobre os fluxos de moeda que vão irrigar o país, sa no. O desejo é aquilo por que todos os indivíduos vão agir.
ber por onde esses fluxos de moeda passam, saber se eles Desejo contra o qual não se pode fazer nada. Como diz
irrigam de fato todos os elementos da população, se não Quesnay: você não pode impedir as pessoas de virem morar
deixam regiões inertes.Vai ser preciso agir sobre as exporta onde consideraram que será mais proveitoso para elas e
ções: quanto mais houver demanda de exportação, mais onde elas desejam morar, porque elas desejam esse provei
haverá evidentemente possibilidades de trabalho, logo pos to. Não procure mudá-las, elas não vão mudar24 . Mas - e é
sibilidades de riqueza, logo possibilidades de população. aqui que essa naturalidade do desejo marca a população e se
Coloca-se o problema das importações: importando, bene toma penetrável pela técnica governamental - esse desejo,
ficia-se ou prejudica-se a população? Se se importa, tira-se por motivos sobre os quais será necessário tomar e que
trabalho das pessoas daqui, mas, se se importa, dá-se tam constituem um dos elementos teóricos importantes de todo
bém comida. Problema, portanto, capital no século XVIII, o sistema, esse desejo é tal que, se o deixannos agir e con
da regulamentação das importações. Em todo caso, é por tanto que o deixemos agir, em certo limite e graças a certo
todos esses fatores distantes, pelo jogo desses fatores que número de relacionamentos e conexões, acabará produzin
vai efetivamente ser possível agir sobre a população. $ por do o interesse geral da população. O desejo é a busca do in
tanto uma técnica totalmente diferente que se esboça, como i
teresse para o indvíduo. O indivíduo, de resto, pode perfei
vocês vêem: não se trata de obter a obediência dos súctitos tamente se enganar, em seu desejo, quanto ao seu interesse
em relação à vontade do soberano, mas de atuar sobre coi pessoal, mas há uma coisa que não engana: que o jogo es
sas aparentemente distantes da população, mas que se sabe, pontâneo ou, em todo caso, espontâneo e, ao mesmo tem
por cálculo, análise e reflexão, que podem efetivamente po, regrado do desejo permitirá de fato a produção de um
atuar sobre a população. É essa naturalidade penetrável da interesse, de algo que é interessante para a própria popula
população que, a meu ver, faz que tenhamos aqui uma mu ção. Produção do interesse coletivo pelo jogo do desejo: é o
tação importantíssima na organização e na racionalização que marca ao mesmo tempo a naturalidade da população e
dos métodos de poder. a artificialidade possível dos meios criados para geri-la.
Poderíamos dizer também que a naturalidade da popu É importante, porque vocês vêem que com essa idéia
lação aparece de uma segunda maneira no fato de que, afi- de uma gestão das populações a partir de uma naturalida-
96 SEGURANÇA, TERRJTÓRJO, POPULAÇÃO AULA DE 25 DE JANEIRO DE 1978 97
de do desejo delas e da produção espontânea do interesse plexas e modificáveis, a naturalidade da população aparece
coletivo pelo desejo, que com essa idéia tem-se algo que é de uma terceira maneira. Ela aparece na constância dos fe
o exato oposto do que era a velha concepção ético-jurídica nômenos que se poderia esperar que fossem variáveis, pois
do governo e do exerácio da soberania. Pois, o que é o so dependem de acidentes, de acasos, de condutas individuais,
berano para os juristas, e isto para os juristas medievais, mas de causas conjunturais. Ora, esses fenômenos que deve
também para todos os teóricos do direito natural, tanto riam ser irregulares, basta observá-los, olhá-los e contabili
para Hobbes como para Rousseau? O soberano é aquele zá-los para perceber que na verdade são regulares. Foi essa
que é capaz de dizer não ao desejo de todo indivíduo, sen a grande descoberta, no fim do século XVII, do inglês Graunt28,
do o problema o de saber como esse "não" oposto ao dese que, justamente a propósito dessas tabelas de mortalidade,
jo dos indivíduos pode ser legítimo e fundado na própria pôde estabelecer não apenas que a cada ano havia, de qual
vontade dos indivíduos. Enfim, esse é um enorme proble quer modo, um número constante de mortos numa cidade,
ma. Ora, vemos formar-se, através desse pensamento eco mas que havia uma proporção constante dos diferentes aci
nômico-político dos fisiocratas, uma idéia bem diferente, dentes, variadíssimos porém, que produzem essas mortes.
gue é a seguinte: o problema dos que governam não deve A mesma proporção de pessoas morre de consumpção, a
ser absolutamente o de saber como eles podem dizer não, mesma proporção de pessoas morre de febres, ou de pedra,
até onde podem dizer não, com que legitimidade eles po ou de gota, ou de icterícia29 • E o que evidentemente deixou
dem dizer não; o problema é o de saber como dizer sim, Graunt totalmente estupefato foi que a proporção de suicí
como dizer sim a esse desejo. Não, portanto, o limite da dios é exatamente a mesma de um ano para o outro nas ta
concupiscência ou o limite do amor-próprio, no sentido do belas de mortalidade de Londres30 • Vêem-se também outros
amor a si mesmo, mas ao contrário tudo o que vai estimu fenômenos regulares, como, por exemplo, que há mais ho
lar,. favorecer esse amor-próprio, esse desejo, de maneira mens que mulheres no nascimento, mas que há mais aci
que possa produzir os efeitos benéficos que deve necessa dentes diversos que atingem os meninos do que as meni
riamente produzir. Temos aí portanto a matriz de toda uma nas, de modo que, ao fim de certo tempo, a proporção se
filosofia, digamos, utilitarista25 • E como creio que a Ideologia restabelece31 • A mortalidade das crianças é, em todo caso,
de Cond.illac26, enfim, o que se chamou de sensualismo, era sempre maior que a dos adultos32 • A mortalidade é sempre
o instrumento teórico pelo qual se podia embasar a prática mais elevada na cidade do que no campo33, etc. Temos aí,
da d.isciplina21, direi que a filosofia utilitarista foi o instru portanto, uma terceira superfície de afloram_ento para a na
mento teórico que embasou esta novidade que foi, na épo turalidade da população.
ca, o governo das populações*. Não é portanto uma coleção de sujeitos jurídicos, em
Enfim, a naturalidade da população que aparece nesse relação individual ou coletiva, com uma vontade soberana.
benefício universal do desejo, que aparece também no fato A população é um conjunto de elementos, no interior do
de que a população é sempre dependente de variáveis com- qual podem-se notar constantes e regularidades até nos
acidentes, no interior do qual pode-se identificar o univer
• Manuscrito, p. 17: "O importante, também, é que a 'filosofia sal do desejo produzindo regularmente o benefício de todos
utilitarista' é um pouco para o governo das populações o que a Ideolo e a propósito do qual pode-se identificar certo número de
gia era para as disciplinas." variáveis de que ele depende e que são capazes de modifi-
98 SEGURANÇA, TE.RRJTÓRIO, POPWÀÇÃO AULA DE 25 DE JANEIRO DE 1978 99
!=á-lo. Com a tomada em consideração ou, se preferirem, a ção, das campanhas, dos convencimentos. A população é
pertinentização de efeitos próprios à população, creio que portanto tudo o que vai se estender do arraigamento bioló
temos um fenômeno muito importante: é o ingresso, no gico pela espécie à superfície de contato oferecida pelo pú
campo das técnicas de poder, de uma natureza* que não é blico. Da espécie ao público: temos aí todo um campo de
aquilo a que, aquilo acima de que, aquilo contra o que o so novas realidades, novas realidades no sentido de que são,
berano deve impor leis justas. Não há natureza e, depois, para os mecanismos de poder, os elementos pertinentes, o
acima da natureza, contra ela, o soberano e a relação de obe espaço pertinente no interior do qual e a propósito do qual
diência que lhe é devida. Tem-se uma população cuja natu se deve agir.
reza é tal que é no interior dessa natureza, com ajuda des Poderíamos acrescentar ainda o seguinte: quando falei
sa natureza, a propósito dessa natureza que o soberano da população, havia uma palavra que voltava sem cessar -
deve desenvolver procedimentos refletidos de governo. Em vocês vão me dizer que fiz de propósito, mas não totalmen
outras palavras, no caso da população tem-se algo bem di te talvez-, é a palavra "governo". Quanto mais eu falava da
ferente de uma coleção de sujeitos de direito diferenciados população, mais eu parava de dizer "soberano". Fui levado
por seu estatuto, sua localização, seus bens, seus cargos, seus a designar ou a visar algo que, aqui também, creio eu, é re
ofícios; [tem-se]** um conjunto de elementos que, de um lativamente novo, não na palavra, não num certo nível de
lado, se inserem no regime geral dos seres vivos e, de outro, realidade, mas como técnica nova. Ou antes, o privilégio
apresentam uma superfície de contato para transformações que o governo começa a exercer em relação às regras, a tal
autoritárias, mas refletidas e calculadas. A dimensão pela ponto que um dia será possível dizer, para limitar o poder
a
qual população se insere entre os outros seres vivos é a do rei, que "o rei reina, mas não govema" 36, essa inversão
que vai aparecer e que será sancionada quando, pela pri do governo em relação ao reino e o fato de o governo ser no
meira vez, se deixará de chamar os homens de ''gênero hu fundo muito mais que a soberania, muito mais que o reino,
mano" e se começará a chamá-los de "espécie humana"J.I. muito mais que o imperium, o problema político moderno
A partir do momento em que o gênero humano aparece creio que está absolutamente ligado à população. A série:
como espécie, no campo de determinação de todas as espé mecanismos de segurança- população - governo e abertu
cies vivas, pode-se então dizer que o homem aparecerá em ra do campo do que se chama de política, tudo isso, creio eu,
sua inserção biológica primeira. A população é portanto, de constitui uma série que seria preciso analisar.
um lado, a espécie humana e, de outro, o que se chama de Queria lhes pedir mais cinco minutos para acrescentar
público. Aqui também a palavra não é nova, mas seu uso uma coisa, e vocês vão compreender por quê. Está um pou
sim35 • O público, noção capital no século XVIII, é a popula co à margem de tudo isso37• Emergência portanto dessa coi
ção considerada do ponto de vista das suas opiniões, das sa absolutamente nova que é a população, com a massa de
suas maneiras de fazer, dos seus comportamentos, dos seus problemas jurídicos, políticos e técnicos que levanta. Agora,
hábitos, dos seus temores, dos seus preconceitos, das suas se pegarmos outra série de domínios, [a] do que podería
exigências, é aquilo sobre o que se age por meio da educa- mos chamar de saberes, perceberemos - e não é uma solu
ção que lhes proponho, mas um problema - que em toda
• natureza: entre aspas no manuscrito, p. 18 uma série de saberes esse mesmo problema da população
-M.F.:mas aparece.
100 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 25 DE JANEIRO DE 1978 101
Mais precisamente, tomemos o caso da economia po- mente pensado como um problema de bioeconomia, en
-litica. No fundo, na medida em que se tratou, para as pes quanto Marx tentou contornar o problema da população e
soas que se ocupavam de finanças - já que era disso que descartar a própria noção de população, mas para voltar a en
ainda se tratava no século XVIl -, de quantificar as riquezas, contrá-la sob a forma propriamente, não mais bioeconômi
de medir sua circulação, de determinar o papel da moeda, ca, mas histórico-política de classe, de enfrentamento de clas
de saber se era melhor desvalorizar ou, ao contrário., valori ses e de luta de classes. É isto mesmo: ou a população, ou as
zar uma moeda., na medida em que se tratava de estabele classes, e foi aqui que se produziu a fratura, a partir de um
cer ou de manter os fluxos do comércio exterior, creio que a pensamento econômico, de um pensamento de economia
"análise econômica'"• permanecia exatamente no plano do política que só havia sido possível como pensamento na me
que poderíamos chamar de análise das riquezas38 • Em com dida em que o sujeito-população havia sido introduzido.
pensação, a partir do momento em que· se pôde fazer en Tomem agora o caso da história natural e da biologia.
trar, no campo não apenas da teoria mas também da práti No fundo, a história natural, como vocês sabem, tinha es
ca econômica, esse novo sujeito, novo sujeito-objeto que é sencialmente por papel e função determinar quais eram as
a população, e isso sob seus diferentes aspectos, aspectos características classificatórias dos seres vivos que possibili
demográficos, mas também como papel específico dos pro tavam reparti-los nesta ou naquela casa da tabela 43 • O que
dutores e dos consumidores, dos proprietários e dos que se [produziu] no século XVIIl e no início do século XIX foi
não são proprietários, dos que criam lucro e dos que reco toda uma série de transformações que fizeram que se pas
lhem o lucro, creio que a partir do momento em que se sasse da identificação das características classilicatórias à
pôde fazer entrar no interior da análise das riquezas o su análise interna do organismo44, depois do organismo em
jeito-objeto que é a população, com todos os efeitos de sub sua coerência anatomofuncional às relações constitutivas
versão que isso pôde ter no campo da reflexão e da prática ou reguladoras desse organismo com o meio de vida. Em li
econômicas, então parou-se de fazer a análise das riquezas nhas gerais, é todo o problema Lamarck-Cuvier4 5, cuja so
e abriu-se um novo domínio de saber, que é a economia lução está em Cuvier, cujos princípios de racionalidade es
politica. Afinal, um dos textos fundamentais de Quesnay é tão em Cuvier"6 • E, enfim, passou-se, e esta é a passagem de
o verbete "Homens" da Enciclopédia39, e Quesnay não parou Cuvier a Darwinº, do meio de vida, em sua relação consti
de dizer ao longo de toda a sua obra que o verdadeiro go tutiva ao organismo, à população, a população que Darwin
verno econômico era o governo que se ocupava da popula pôde mostrar que era, de fato, o elemento através do qual o
ção40 . Mas, afinal de contas, que o problema da população meio produzia seus efeitos sobre o orgarúsmo. Para pensar
ainda é, no fundo, o problema central de todo o pensamen as relações entre o meio e o orgarúsmo, Lamarck era obri
to da economia política até o próprio século XIX, prova-o a gado a imaginar algo corno uma ação direta e como uma
célebre oposição Malthus-Mar:x" 1, porque, afinal de contas, modelagem do organismo pelo meio. Cuvier era obrigado,
onde está a linha que os divide a partir de um fundo ricar por seu ]ado, a invocar toda uma série de coisas aparente
diano<il que é absolutamente comum a ambos? Está em que, mente mais mitológicas, mas que na verdade lidavam mui
para um, Malthus, o problema da população foi essencial- to mais com o campo de racionalidade, que eram as catás
trofes e a Criação, os diferentes atos criadores de Deus, en
fim, pouco importa. Já Darwin encontrou o que era a popu
• M. Poucault acrescenta: entre aspas lação, que era o veículo entre o meio e o organismo, com
1,02 SEGURANÇA, TERRJTÓRJO, POPULAÇÃO AULJ\ DE 25 DE JANEIRO DE 1978 103
todos os efeitos próprios da população: mutações, elimina �o�tt!-_ação e seus fenômenos específicos. É a partir da cons
ção, etc. Foi portanto a problematização da população no tituíçao da população como correlato das técnicas de poder
interior dessa análise dos seres vivos que permitiu passar da que pudemos ver abrir-se toda uma série de domínios de
história naturaJ à biologia.A articulação história naturaJ/bio objetos para saberes possíveis. E, em contrapartida, foi por
logia deve ser buscada na população. que esses �aber:s recortav� s�m cessar novos objetos que
Poder-se-ia dizer, creio eu, a mesma coisa acerca da a populaçao pode se constituir, se continuar, se manter
passagem da gramática geraJ à filologia histórica 48 • Agra como correlativo privilegiado dos modernos mecanismos
mática geral era a análise das relações entre os signos lin de poder.
güísticos e as representações de qualquer sujeito falante ou Daí esta conseqüência: a temática do homem através
do sujeito falante em geraJ. A filologia só pôde nascer a par das ciências humanas* que o analisam como ser vi�o indi
tir do momento em que urna série de pesquisas, que ha víduo tral;>alhador, sujeito falante, deve ser compreendida a
viam sido realizadas em diversos países do mundo, particu partir da err:i,ergência da população como correlato de poder
larmente nos países da Europa central e também da Rússia e como obJeto de saber. O homem, afinal de contas, tal
_
por motivos políticos, conseguiu identificar a relação que como foi pensado, definido, a partir das ciências ditas hu
havia entre uma população e uma lín gu a, e em que, por con manas do século XIX e tal corno foi refletido no humanis
seguinte, o problema foi o de saber de que modo a popula mo do século XIX, esse homem nada mais é finalmente que
_
ção, como sujeito coletivo, de acordo com regularidades pró uma figura da populaçao. Ou, digamos ainda, se é verdade
prias, aliás, não da população, mas da sua língua, podia no que, enquanto o problema do poder se formulava dentro da
decorrer da história transformar a lín gu a que falava. Aqui teoria da soberania, em face da soberania não poctia existir
também foi a introdução do sujeito-população que, a meu o homem� mas apenas a noção jurídica de sujeito de direi
ver, permitiu passar da gramática geraJ à filologia. t�. A partir do momento em que, ao contrário, corno vis-à.
_
Creio que, para resumir tudo isso, poderíamos dizer vis nao da sober�a, m� do governo, da arte de governar,
que, se quisermos procurar o operador de transformação teve-se .ª populaçao, cr:_10 que podemos dizer, que o ho
que fez passar da história natural à biologia, da análise das n:' em foi para a populaçao o que o sujeito de direito havia
riquezas à economia política, da gramática geral à filologia sido para o soberano. Pronto, o pacote está empacotado e 0
histórica, o operador que levou todos esses sistemas, esses nó [dado]**.
conjuntos de saberes para o lado das ciências da vida, do
trabalho e da produção, para o lado das ciências das línguas,
será na população que deveremos procurá-lo. Não da for
ma que consisti.ria em dizer: as classes dirigentes, compreen
dendo por fim a importância da população, lançaram nessa
direção os naturalistas que, com isso, se converteram em
biólogos, os gramáticos que, com isso, se transformaram em
filólogos e os financistas que se tomaram economistas. Não
é dessa forma, mas da forma seguinte: é um jogo incessan
te entre as técnicas de poder e o objeto destas que foi pou • ciências humanas: entre aspas no manuscrito.
co a pouco recortando no real, como campo de realidade, a - Conjectura: palavra inaudível.