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ROBERTO LYRA FILHO

O DIREITO
QUE SE ENSINA
ERRADO

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CENTRO ACADÊMICO DE DIREITO DA UNB
ROBERTO LYRA FILHO
PROFESSOR TITULAR DO DEPARTAMENTO DE DIREITO DA UNB

O DIREITO
QUE SE ENSINA
ERRADO
(Sobre a Reforma do Ensino Jurídico)

Brasília
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CENTRO ACADÊMICO DE DIREITO DA UNB
1980

Pedidos para:
CENTRO ACADÊMICO DE DIREITO
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Departamento de Direito
Campus Universitário – Universidade de Brasília (UNB)
Brasília – DF

Aos estudantes de direito da UNB


Que encomendaram este trabalho.

Feci quod potui, faciant meliora potentes

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“Uma vez que a coesão ideológica de uma sociedade de
classes superpõe-se a inconciliáveis conflitos classistas, criados pelas relações
de produção, as classes dominadas, ou grupos específicos dentro delas,
tendem a desenvolver subculturas legais que, em certas circunstâncias,
podem estar ligadas a uma práxis como legal e esse direito como direito
paralelo (isto é, caracterizar a situação como pluralismo legal) e adotar uma
perspectiva teórica julgando esse direito não inferior ao direito do Estado –
envolve uma opção, tanto científica, quanto política. Ela implica a negação do
‘monopólio radical’ de produção e circulação de direito pelo Estado moderno”
(SANTOS, 1977:9).

“A Sociologia do Direito, na medida em que nãos e


resolve unicamente em pesquisas empíricas, nem tampouco, é claro, em
teoria sociológica, permite entender que o problema do ensino do direito (e
também o da ciência jurídica) não estriba simplesmente em lograr uma
aproximação maior em direção à prática, ao direito vivo. O ensino do direito
em nossas faculdades necessita, igualmente, e de maneira muito básica,
duma teoria rigorosa, não dogmática (...); e, na elaboração dessa nova teoria,
a Sociologia deverá desempenhar uma função relevante” (ATIENZA, 1978:13).

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1. Vocês me convidaram para falar, aqui, sobre um tema de minha
escolha, e, diante disso, resolvi tratar do ensino jurídico.
Recentemente, quando completei trinta anos de professor, dizia,
num discurso, que “meu caminho é o do ensino, modelado segundo os reclamos e
expectativas dos estudantes, e não de acordo com tradições mortas e rotinas de robô.
A cultura, a experiência, a maturidade do professor de nada valem, se não podem
sintonizar, nas ansiosas interrogações do aluno, a fonte dum saber que vem das lutas
sociais e se organiza para servir ao progresso” (LYRA FILHO, 1980:5).
Esta conferência pretende, agora, desenvolver o posicionamento ali
delineado, a propósito dum tema que lhes interessa particularmente. É, por assim
dizer, o confronto entre a insatisfação que vocês todos sentem, como estudantes de
direito, e o que resultou das pesquisas e reflexões dum professor, que também não
está satisfeito com a organização e funcionamento do ensino jurídico.
A meu ver, este ensino ainda não corresponde às exigências da atual
etapa do processo histórico, em que estamos envolvidos.
O Direito que se Ensina Errado pode entender-se, é claro, em, pelo
menos, dois sentidos: como o ensino do direito em forma errada e como errada
concepção do direito que se ensina. O primeiro se refere a um vício de metodologia; o
segundo, à visão incorreta dos conteúdos que se pretende ministrar.
No entanto, as duas coisas permanecem vinculadas, uma vez que não
se pode ensinar bem o direito errado; e o direito, que se entende mal, determina, com
essa distorção, os defeitos da pedagogia.
Vou falar, segundo o meu hábito, com total franqueza; e, portanto,
vocês me permitirão que, desde logo, faça uma ressalva. A minha crítica não concerne,
especialmente, à Universidade de Brasília, mas à situação geral dos cursos jurídicos, no
Brasil e no estrangeiro.
Por outro lado, a atitude crítica é, aqui, de todo impessoal. Há
excelentes professores de direito; há muitos Departamentos e Faculdades que
procuram melhorar o sistema de ensino. Cada qual faz o que pode, nas condições em
que se encontra. Mas o importante a destacar é outra coisa: parece-me que existe um
equívoco generalizado e estrutural, na própria concepção do direito que se ensina. Daí
é que partem os problemas; e, desta maneira, o esforço deste ou daquele não chega a
remediar uma situação globalmente falsa.
É preciso chegar à fonte, e não às conseqüências. É preciso tentar
convencer a todos – vocês mesmos e os meus colegas, professores de que temos de
repensar o ensino jurídico, a partir de sua base: o que é direito, para que se possa
ensiná-lo?
Noutras palavras: não é a reforma de currículos e programas que
resolveria a questão. As alterações que se limitam aos corolários programáticos ou
curriculares deixam intocado o núcleo e pressuposto errôneo.
Se principiamos com a idéia redutora do direito, no chamado
ordenamento jurídico – único, hermético e estatal - , já teremos estabelecido, neste

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primeiro passo, o engano que vai gerar tudo o mais. Nem traria remédio a invocação
de vagos princípios idealistas ou de fontes suplementares, no uso, costume ou
jurisprudência, desde que o direito estatal permanece, como estalão que regula, com
suas normas, a admissão ou rejeição desses acréscimos. Além disso, o costume ou
coleção de arestos, geralmente invocados, são os provenientes dos mesmos grupos e
classes que produzem o direito legislado.
Numa sociedade que assim se divide em classes e grupos, de
interesses conflitantes, o direito não pode ser captado, em sua inteireza, sob a
exclusiva ótica da classe dominadora. Nem há, em todo caso, um só conjunto de
normas sociais, sem contradições. Há, pelo contrário, uma pluralidade de
ordenamentos que aspiram a definir o que é propriamente jurídico, isto é, o direito
válido, eficaz e corretamente formalizado. Esses ordenamentos lutam pela hegemonia,
cujas condições de triunfo ou legitimidade sempre dependem da natureza dos
posicionamentos e interesses que as normas refletem. “No mesmo espaço geopolítico,
vigora (oficialmente ou não) mais de uma ordem jurídica” (SANTOS, 1980:109).
Ademais, considerar que o Estado é o organismo que arbitra,
mediante seus poderes exclusivos, toda essa disputa social – é esquecer que, antes de
tudo, ele participa também do processo que deseja controlar; e, de sua posição, neste
processo, é que emerge a legitimidade, constituída e funcional, daqueles poderes. Em
todo o caso, a formação mesma de Estado pertence a órbita dos fenômenos jurídicos.
Se ele não se apresenta jamais, embora às vezes seja, um instrumento de crua
dominação, apela, até nisto, para aspectos, de avaliação jurídica antecedendo à sua
estruturação. Dizer, depois, que do Estado organizado, emano todo direito válido é,
então, de um ilogismo flagrante. Não se pode admitir como fonte de todo direito o que
se pretende juridicamente formado. Ademais, a referência a Estado, em abstrato,
mascara diferenças fundamentais entre modelos diversos, fundados em infra-
estruturas diferentes e com quotas, por isso mesmo, variadas, de legitimação. Um
Estado capitalista e um Estado socialista não se constituem da mesma forma, nem
servem aos mesmos fins.
No plano internacional, encontram-se, inclusive, critérios de
estimativa jurídica supra-estatal. Refiro-me aos direitos humanos, que “longe de
nascerem duma concessão da sociedade política, hão de ser por esta consagrados e
garantidos” (TRUYOL, 1974:11).
Aqui, todavia, é necessário evitar que se concebam tais direitos como
explicitação de conteúdos perenes, ligados a alguma “essência” metafísica. Os direitos
humanos representam a conquista, que não poderia dissimular toda luta social e
histórica para estabelecê-los, seja como princípio e parâmetro de avaliação jurídica,
seja como elenco de garantias a que se terá de oferecer efetiva substância e eficiência,
em toda legislação e aplicação de leis, ou até mesmo contra elas, se preciso for.
No plano interno, a pluralidade dos ordenamentos resulta, já disse,
da infra-estrutura, geradora de uma divisão em classes e grupos conflitantes, uns
dominadores, outros dominados. Numa comunidade primitiva, não ocorre tal
pluralidade, exatamente porque inexiste aquela divisão, e as normas sociais, portanto,
ganham aspecto maciço, unificado e coerente. Nem aparece o Estado, embora exista
um tipo de direitos. Este ponto, bastante polêmico, é muitas vezes desfocado, a partir
duma certa visão do direito, que os vincula a Estado. Mas, indago: o que eram as

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instituições reguladoras da vida social, naquelas comunidades, em seu mais intenso
teor imperativo, senão o direito? “O direito, tal como existe nas organizações políticas
complexas, ainda que importante, dentro do conjunto de dados etnográficos” (DAVIS,
1973:10).
Por outro lado, na sociedade internacional, o processo histórico,
donde emergem os direitos humanos, também será subordinado, como resultante, à
infra-estrutura do relacionamento entre as nações, algumas imperialistas, outras
colonizadas ou semi-colonizadas. Quero dizer, com isto, que os direitos humanos
propriamente ditos só nascem ou vigem, na medida em que a sua legitimidade
constitutiva e eficácia funcional se polariza no sentido da evolução histórica, em
condições propícias das correlações de forças internacionais. E estas só podem ser a
situação, em cada etapa, do processo de eliminação das dominações minoritárias e
classistas, internamente, e dos imperialismos de nações ou blocos de nações, no plano
externo. Daí a constante reformulação daqueles direitos, à medida que novas e mais
amplas quotas de libertação conscientizam-se, lutam pelo reconhecimento e se
estabelecem, historicamente. Isto resulta claro, se compararmos, por exemplo, as
declarações de direitos de ascensão capitalista, como a Revolução Francesa, e as
declarações do segundo pós-guerra, já incorporando uma tímida, mas característica,
nota social, senão socialista. No aspecto de diretiva interna, é a superação do
contratualismo burguês, com a ficta igualdade dos sócio-economicamente desiguais.
No plano internacional, é a superação da associação de nações, real ou supostamente
soberanas, ante povos e nações colonizados ou semi-colonizados, numa igualdade
apenas formal de países imperialistas e, outros mais, independentes (mas não no
sentido econômico). Hoje, o pólo da legitimidade jurídica é a igualdade real, sócio-
econômica, dos cidadãos e grupos de cidadãos, nas sociedades políticas, assim como
das nações, na comunidade dos povos. A liberdade de contratar, de um lado, e o pacta
sunt servanda (que é o contratualismo internacional), de outro, não poderiam
funcionar (e, efetivamente, não podem), se os contratantes são o lobo e cordeiro. Daí,
portanto, as compensações jurídicas, pedindo uma substância maior para aquela
igualdade ficta, enquanto se desenvolve o processo que as poderá transformar em
igualdade real.
Tudo isso exige que se reflita sobre o direito, no que ele é; pois, sem
tal reflexão, acabaríamos preconizando um ensino jurídico, o tradicional, que só se
transmite a lei do mais forte e chama de não jurídico o direito dos oprimidos (SANTOS,
1977: passim), para afinal negar o que já se chamou “direito natural” de combate
(MIALLE, 1978: 123).
Nem nos satisfazem determinadas “modernizações” de ensino, cuja
finalidade é agilizar o currículo, para servir à ideologia tecnocrática ou ao
desenvolvimento capitalista, dependente e atado à dominação multinacional. Isto
apenas produz “mão de obra” especializada, para o staff do Estado ou do bi business,
na mesma estrutura. Quero dizer que esse tipo de ensino aliena o estudante e paralisa
o esforço de pensar o direito da independência econômica e da liberdade político-
social (LYRA FILHO, 1980 B: 20-21).
Para maior clareza, ordenarei a minha exposição em tópicos,
forçosamente abordados num síntese muito apertada. Não há tempo, numa

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conferência para tratar, em profundidade, dos assuntos que, só em muitas horas,
poderia rever, sob todos os aspectos.
Creio, porém, que isso não inutiliza o meu esforço, por há certa
utilidade em recortar o campo a ser explorado, num convite a pesquisas, meditações e
propostas ulteriores.
Caminharei, dos sub-temas de raio mais dilatado, para o mais
restrito, com o propósito de fundamentar a minha tese: a questão de ensino jurídico
não pode ser, já não digo resolvida, mas sequer colocada, sem a percepção de que ela
está ligada à correta visão do direito. A esterilidade das reformas do ensino, que se
vêm, processando, deriva-se de que movimentam, em arranjos diversos, o mesmo
equívoco fundamental.
Tudo depende do que referimos, quando se trata de direito. Ele
admite várias abordagens e o erra está em imaginar que o discurso, feito sobre uma
delas, abrange o fenômeno em sua totalidade. Ainda que se pretenda isolá-las, apenas
metodologicamente, dá-se a mutilação, pois nisto se perde o vínculo com o devenir e a
totalidade; isto é, a transformação constante e o conjunto dos fenômenos, histórico-
sociais, em cujo seio emergem os aspectos diversos do mesmo processo jurígeno.
Nesta separação, nem se pode entender o recorte do setor escolhido para análise
especial (LYRA FILHO, 1980 A: 13-20). Assim, de nada serve acrescentar o estudo da
Sociologia Jurídica, da Antropologia Jurídica ou da Economia ao currículo, se as
disciplinas “dogmáticas” permanecem dogmáticas; a Sociologia Jurídica postula a
concepção restrita, que considera apenas os “fenômenos jurídicos primários” – isto é,
em substância, as “fontes formais” (CARBONIER, 1979: 166-167); a Antropologia
Jurídica segue o relativismo cultural (FARACO, 1979: 56-84); e a Economia ministrada
esconde o jogo estratégico do imperialismo e corporações multinacionais, em sua
intimidade com o Estado (DOS SANTOS, 1977: 37ss e passim).
O ponto em foco é que o significante – direito – representa um
entroncamento de significados, que designam a realidade complexa, dialética e global
do fenômeno jurídico. Um perspectivismo, à GARCÍA MAYNEZ, por exemplo, perde o
fio da meada (MAYNEZ, 1977: 36-50), e torna impraticável, não só a correta visão do
direito, como um todo, mas inclusive a exata colocação de cada um dos aspectos que
se pretenda considerar isoladamente. Não basta reconhecer que vários aspectos do
direito existem; é preciso vê-los, no seu entrosamento, sendo esta a única maneira de
identificar e esclarecer cada um deles, em especial (LYRA FILHO, 1977: 32).
2. É preciso, portanto, manter em vista o direito, em devir e sob todas
as suas formas.
Não se trata, porém, de rever o que, historicamente e no conjunto
das idéias e instituições jurídicas, formou a série de apresentações concretas, do
direito existente e da forma de concebê-lo. Trata-se, ao revés, de extrair desse
material as conclusões, em que o reexame particular fica submerso, numa síntese,
mostrando o relevo emergente, como o topo do iceberg, no mar das normas,
aplicações de normas e doutrinas sobre elas desenvolvidas.
O roteiro, a que me referi, é de natureza sociológica, o que, em si,
representa uma condensação de dados históricos. Se a Histórica registra fatos sociais,
a Sociologia estuda os modelos de fatos, que a História exemplifica. Assim, a análise da
Revolução Francesa, em suas causas e peripécias, propõem-se ao historiador, que

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enriquece, com esta amostra, o patrimônio comum das ciências. Mas, por outro lado,
registrando o fenômeno da revolução em concreto, o historiador há de aplicar os
modelos que, na análise das revoluções, em geral, a Sociologia lhe ministra: as duas
abordagens que são complementares e se escoram, reciprocamente. Daí a conhecida
formulação de DURKHEIM, segundo a qual a Sociologia é uma generalização da
História. Por isso mesmo, toda História, realmente científica, é História Social e toda
Sociologia, não formalista, é Sociologia Histórica, isto é, uma sociologia genética, bem
consciente da origem e desenvolvimento dos fatos sociais em exame. GILBERTO
FREYRE, muito insupeitadamente, dado o seu talhe conservador e as simpatias
decorrentes da sua formação americana, já apontava, naquele ponto, uma deficiência
da Sociologia tradicional, nos Estados Unidos. Isto é, a falta “duma perspectiva
histórica que nos transmite o estudo das origens, antecedentes e desenvolvimento das
formas sociais presentes (...)” (FREYRE, 1975: 496).
Aplicando-se ao direito uma abordagem sociológica, seria talvez
possível esquematizar os pontos de integração do fenômeno jurídico na vida social
verificar, então, como transparecem os ângulos de entrosamento dos diferentes
aspectos.
Mas, antes convêm assinalar que é imprecisa a menção dum ponto
de vista sociológico, pois há diferentes orientações, nesta ciência – como em todas as
outras; e estas orientações corresponde, nas suas linhas gerais, ao posicionamento do
cientista, no processo histórico-social, em que e, simultaneamente, ator e observador.
A análise deste vínculo e suas mediações, desde a situação do sociólogo até o reflexo
desta na teoria sociológica, incumbe à Sociologia do Conhecimento. Ela mostra que a
participação do sociólogo no processo (o seu implícito ou expresso engajamento) pode
gerar ideologia, em vez de ciência, ou aproximar-se da objetividade possível, que
SCHAFF denomina verdade-processo (SCHAFF, 1970: 69). A Sociologia do
Conhecimento, já o afirmei noutro escrito, é uma espécie de Sociologia ao quadrado
(LYRA FILHO, 1972: 16).
Será, fundamentalmente, possível distinguir duas visões sociológicas,
dois tipos básicos da teoria, a que se prendam os demais subgrupos.
DAHRENDORF pretendeu delineá-lo como Sociologia “de
estabilidade, harmonia e consenso” e Sociologia “de mudança, conflito e coação”
(DAHRENDORF, 1974: 150). Mas está visto que, sendo fundamentalmente um idealista
(no sentido até de militantemente antidialético), DAHRENDORF constrói os seus
modelos abstratamente, isto é, desligando-os da infra-estrutura, quer enquanto
consideração dos fenômenos sociais, quer como elaboração doutrinária (que
obscurece, inclusive, as determinações relativas, desvendadas pela Sociologia do
Conhecimento).
Apesar de tudo, os modelos de DAHRENDORF poderiam constituir
um ponto de partida, com o cuidado de logo se retificar o que apontam, enquadrando-
se numa perspectiva dialética.
Os dois modelos talvez pudessem apresentar-se neste esquema:

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(A) + (B)

Eixo DAHRENDORF

Firme controle social


Validado e aceito
(mudança limitada) Precário controle social
Sob constante desafio
Anônimo (mudança ilimitada)

Organização social legítima

Organização social pela


Coerção ilegítima

Instituições sociais
Cultura (subculturas contidas)

Sistema de contra-instituições
em oposição

Contraculturas irredutíveis
Bloco único e consensual de
normas sociais válidas
Vários blocos de normas sociais
disputando a validade

Formação de usos, costumes


Folkways e Mores uniformes
Formação de usos, costumes
Folkways e Mores competitivos

Relações estáveis de grupos


Tendendo à harmonia
Relações instáveis de grupos
Tendendo ao conflito

Processos associativos
Predominantes
Processos associativos
Predominantes

Espaço Social

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Assim, os dois modelos principais da teoria sociológica idealista – (A)
e (B) – com a pretensa solução aditiva (DAHRENDORF), através duma espécie de eixo,
que polarizaria os elementos centrípetos e centrífugos (tática de remanejamento da
teoria sociológica de índole conservadora).

Vou explicar, brevemente, o que tentei exibir aí.


Segundo a perspectiva idealista, haveria dois modelos,
correspondendo a duas visões da sociedade, com expressão teórica em antítese.
Num determinado espaço social – isto é, em certa base geográfica,
onde se estabelecem as relações sociais - , o modelo A enxerga a fixação dos padrões
de relacionamento estável entre grupos. Esse relacionamento se exprime em bloco
único e consensual de normas sociais válidas, agrupando usos (práticas reiteradas),
folkways (costumes tradicionais, definidoras da típica forma de satisfazer, naquela
sociedade, as necessidades da vida) e mores (o setor mais vigoroso dos costumes,
acarretando, na hipótese do descumprimento, as sanções mais severas) (PIERSON,
1979: 292).
O arcabouço de normas se firma, em travejamento de instituições
(armação estabilizada e sistemática das práticas normadas). O padrão das instituições
define o tipo de organização social, revestido pelo controle global que o dinamiza, em
garantia da estrutura. No ângulo cultural, encontram-se os princípios que visam a
justificar a praxis de convivência, mediante o amparo dum sistema de crenças,
consideradas válidas, úteis e eminentemente saudáveis. Nesse contexto, a mudança é
minimizada, pois, ou cede ao processo de homeostase (recomposição do organismo,
com respeito às suas variedades funções), ou enfrenta os desvios de comportamento
e princípios discrepantes (subculturas), como “patologias” e “aberrações” (deviant
behaviour). A “resolução” desses problemas sociais reclama, é claro, o parâmetro do
que está instituído. Eis, em síntese, o modelo A, que é fortemente centrípeto.
A oposição, encontrada no modelo B, desenha uma antítese, em
perfeita simetria. Aí temos a predominância dos elementos centrífugos, de tal sorte
que toda aglutinação é, em última análise, uma violência ao constante impulso
dissociativo, gerado pelo contraste de grupos, cada qual com o seu ordenamento de
usos, costumes, folkways e mores, em blocos múltiplos e hostis. Nesta ordem de
apresentação, as instituições são, antes, contra-instituições, enquanto se formam,
sempre, em pé de guerra e desafiando outras tantas. Por via de conseqüência, uma
organização social só pode estabelecer-se precariamente e mediante a coerção sem
consenso, dados os padrões opostos de legitimação, com que se defronta. O controle
social que exercer permanecerá sob constante ataque anômico, sendo este, porém, à
guisa de contestação das normas que se impuseram como dominantes, sob coação
(DUVIGNAUD, 1973: 33-37).
O modelo A é muito favorecido pelas condições de vitalidade e
equilíbrio da estrutura. Não à toa ele aparece como o mais antigo, na Sociologia
burguesa. Esta nasceu, como se sabe, na crista do capitalismo recém-chegado ao
poder. Foi uma espécie de digestão científica dos princípios sociais que à burguesia
convêm, e que na sociedade firmara, com pretensões à eterna duração.
O agravamento das contradições sociais, na estrutura posta, logo
gerou a crise generalizada, consistente em surtos desorganizadores, que preocupam o

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poder e os sociólogos conformistas. Em nosso tempo, os sintomas emergem com a
clareza que já não cabe negar (BALANDIER, 1970: 13-37). Daí a propagação do modelo
B.
Em ambos, todavia, notam-se aspectos que evidenciam a
escamoteação dos elementos básicos. Em síntese, pode-se dizer que o modelo A é a
resposta triunfalista da burguesia assente, sob o aspecto de teoria sociológica. O
modelo B traduz, teoricamente, a inquietação de superfície da pequena-burguesia.
O que há de comum é a tentativa constante de afastar o modelo
dialético, seja otimizado o que ele apontara, na ligação com a infra-estrutura, seja
tentando dissolver os mais agudos instrumentos conceituais que a dialética
movimenta. Exemplo disto é o esforço para desatar a noção de classe das oposições
geradas, pelo estabelecimento de um modo de produção: o capitalista
(SWINGEWOOD, 1975: 121). Em DAHRENDORF e outros a estratégia é a mesma: o
neo-capitalismo teria desfeito o conflito radical (SWINGEWOOD, 1975: 119 e ss).
A escaramuça, em certos tópicos, logo se avoluma, à medida,
também, que as coordenadas da crise social traçam ameaças, cada vez mais
perigosas, ao contraforte estabelecido.
A argúcia de DAHRENDORF está a liderar uma predisposição teórica
geral, cooptando o modelo B, devido à vantagem de absorver o lado-conflito, sem
reconduzi-lo às determinantes infra-estruturais, que parecem contidas. Trata-se, por
assim dizer, da teoria do conflito barulhento, mas dispersado e desdentado
(DAHRENDORF, 1969: 213-226).
A verdade é que a cooptação tem todas as largas facilidades
inerentes ao superficialismo do modelo B. Assim, os sociólogos conservadores, na
aparência de modernidade, não têm receio de cravar mais este prego, na ferradura
teórica: ele facilita a cavalgada da estrutura dominante. Tudo não passa, entretanto,
duma operação plástica, na teoria burguesa, em que o capitalismo é, agora,
apresentando como um selvagem que se “civilizou” e está cedendo alguns dos mais
luzentes anéis dos seus dedos ávidos. O conceito de classe é, então, levado ao moinho
caviloso, para que seus grãos incômodos se transformem no fubá da esquerda
domesticada.
A operação se consuma no que chamei de “eixo DAHRENDORF” –
um socorro do centro à direita em apuros, pondo à ilharga uma esquerda que não
assusta ninguém.
Todavia, a questão, assim determinada, não poderia, obviamente,
servir à visão dialética. Esta logo repõe a infra-estrutura, cortada nos dois modelos
idealistas, e daí resulta um modelo bem mais complexo, para superar todo ardil. Nele,
incorporam-se os ângulos centrípetos – conservador e centrífugo – anarquista, que
estão, sem dúvida, presentes, em toda sociedade, sob pena de não se apresentar
estrutura nenhuma, desde que o esquema A é desmentido pelos fatos e o esquema B,
ou se dissolve no primeiro, ou dissolve uma ordem social, mais ou menos estável,
forte e, apesar de tudo existente. Mas o essencial é que se delineia a posição da infra-
estrutura. Num esquema global, a visão dialética poderia surgir, talvez, com esta
disposição.

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MODELO PARA ANÁLISE DIALÉTICA SOCIAL DO DIREITO

DIREITOVIII
Controle social global
DIREITO IV Atividade anômica
(Espontânea ou organizada)
DIREITO VII
Organização Social
DIREITO III Processos de desorganização social
DIREITO VI

Instituições Sociais
Dominantes Contra-instituições
Cultura da classe (grupos) dominante

Cultura da classe (grupos) dominados


Bloco de normas sociais da classe
(grupos) dominantes (tendendo) ao Blocos de normas sociais da classe
homogêneo apesar das contradições) (grupos) dominada (pluralidades
DIREITO II grupais) DIREITO V

Usos, costumes, folkways, mores da


classe (grupos) dominante Usos, costumes, folkways, mores da
classe (grupos) dominada
Superestrutura

Luta de classes (grupos)


Classes sociais (grupos)
Relações de produção

Modo de produção DIREITO


IX

Espaço social delimitado


DIREITO I

Sistema aberto: contato -> mudança; comunidade internacional;


dominações e libertações

Infra-estutura internacional
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Proposto o esquema, vou analisá-lo, brevemente, com a ressalva de
que este exame sumário não supre outras considerações, mais extensas, profundas e
matizadas, que não tenho, aqui e agora, o vagar para desenvolver.
Partirei de um ponto de vista, que toma, inicialmente, o direito, em
sentido (aliás, pluralidade de sentidos) apenas nominal, na ligação com a substância das
relações sociais que essa faixa semântica reveste. Quero dizer que aparecerão, assim,
todos os aspectos que sociólogos, antropólogos, psicólogos, historiadores, juristas e até
filósofos possam designar com o rótulo direito. Esta primeira abordagem, com a sua
amplitude, leva, parece-me, a vantagem de não reduzir o fenômeno jurídico a um de
seus ângulos apenas, de acordo com preconceitos doutrinários e postulações
arbitrárias.
Começo observando que um modelo dialético há de ser aberto e com
a preocupação constante de encarar os fatos, dentro duma perspectiva que enfatiza o
devir (a transformação constante) e a totalidade (a ligação de todos os segmentos da
realidade, em função de conjunto).
Disse modelos aberto, pois, embora focalize, em particular, o que
ocorreria dentro duma estrutura social, logo fica apontada a coligação com os
fenômenos inter-societários, da comunidade internacional, que não se limitam a
tangenciar o sistema; ao revés, penetram nele, seja por via de dominações diretas ou
indiretas (como na ação imperialista e colonialista ou semi-colonialista), seja no tipo de
influência mais suave, do contato e assimilação, que gera mudança (assim na
conscientização de aspectos da luta de libertação dos outros povos, que pode auxiliar a
dinâmica de classes e grupos, internamente) (LYRA FILHO, 1980 A: 21).
Advirto logo que o esquema se refere às sociedades de classes, não à
comunidade primitiva, de organização bem mais simples e homogênea, ou a alguma
espécie de comunidade final, que seria, por enquanto, projeção futurológica. Nenhuma
sociedade existente sequer pretende haver atingido essa etapa. O ponto é mencionado,
en passant, tão-só porque alguns autores, do marxismo ortodoxo, admitem o
desaparecimento do Estado e do direito, que a ele equivocadamente vinculam, como se
o direito estatal fosse o único a merecer a qualificação de propriamente jurídico (LYRA
FILHO, 1980 A:12, 18-20, 25).
De todas as observações, que passo a fazer, tenha a esperança de que
resulte claro: a) que o direito é um fenômeno bem mais complexo do que se postula,
ainda hoje, no debate sobre o seu estudo e ensino; b) que as contrações, baseadas
nessa camisa de força, desfiguram o direito, não só em termos gerais, mas até na reta
compreensão de cada uma dos seus aspectos, sempre isolados, como se fossem
compartimentos estanques (LYRA FILHO, 1977:32).
A discussão da reforma didática há de assentar, portanto, na revisão
do conjunto.
Já expliquei que o elemento, referido como espaço social, diz com a
base geográfica sobra a qual se estabelecem as relações sociais. Em se tratando de
esquema aberto, entretanto, fica destacado que a estrutura aí implantada conserva
aquele tipo de vínculos externos interiorizados, que sublinhei como não apenas
tangenciais ao sistema. Repito que as dominações interiorizam influxos de poderosa
organização, que podem chegar, por exemplo, à desestabilização jurídico-política e ao

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genocídeo cultural (LYRA FILHO, 1980 A:21). Ademais, a comunidade internacional
engloba um feixe de relações – estruturas dominantes e estruturas dominadas -,
gerando exteriormente normas que exprimem essa dominação, tanto quanto normas
que a contestam. A dinâmica jurídica externa delineia, assim, uma resultante, em que,
cada momento, se afere, seja o avanço das conquistas libertárias, seja o estado das
dominações renitentes. Aí é que se propõem “aspirações, necessidades, exigências dos
oprimidos”, sob o ponto de vista ecumênico, tal como acontece, por exemplo, no
“direito à independência” (MIALLE, 1978:123). Noutros termos, o direito internacional,
considerado em toda amplitude e profundidade, e não apenas como descrição de
instituições, torna-se um campo dialético em que as forças progressistas e
conservadoras desenvolvem projeções jurídicas de sua oposição. Nesse aspecto é que
surge o DIREITO I, com todas as suas contradições, o que não é destacado, via de regra,
pelos internacionalistas, presos a um esquema conservador ou a complexo de
inferioridade, perante o acabamento “dogmático” do direito estatal.
As condições de permeabilidade, favorecidas pelo contato, podem
constituir o rastilho, através do qual se comunica a conscientização e inspiração de
ações fundadas no direito de libertação. Este passa a atuar, então, no plano interno,
como sensação do atraso da estrutura, em relação às conquistas emergentes, noutros
setores da comunidade internacional. Basta pensar, a respeito, na difusão dos
posicionamentos anticolonialistas, que se propagaram pelo mundo e vão alentando os
esforços libertários setoriais. Esse anticolonialismo já se organiza, inclusive, em termos
institucionais, no seio do próprio direito internacional adquirido. Vejam algumas de
suas repercussões na resenha de GONZÁLEZ CAMPOS (GONZÁLEZ, 1976: 128-146), uma
importante contribuição que merece destaque especial.
Consideremos, agora o que ocorre no interior do sistema abstraindo,
momentaneamente, a correlação de forças internacionais.
O espaço social recebe, em sua base, a moldagem, cujo substrato é o
modo de produção, isto é, o tipo de organização das forças de produtivas, gerando
relações, de acordo com modelos variados (GANDY, 1978: 11ss). Na infra-estrutura é
que aparecem as classes, definidas pelo papel desempenhado no processo produtivo,
quando as relações de propriedade estabelecem monopólios dos meios de produção,
afetos ao controle de alguns, a que os demais apenas servem (GANDY, 1978: 163ss). A
oposição de interesses, entre dominantes e dominados, deste modo aglutina os pólos
da cisão, pondo-os na atitude conflitiva.
Assinalo, desde logo, que, em tal de condicionamento, se abre um
leque de mediações; e as superestruturas nunca se firmam numa derivação mecânica,
de efeito e causa com as infra-estruturas. Um dos mais persistentes equívocos, na
leitura da síntese de MARX, no Prefácio da Crítica à Economia Política, nasce de um erro
de tradução. A palavra bedingt é geralmente transposta como “determina”, “quando a
única versão correta é – condiciona –, o que sugere uma idéia mais ampla” (CUVILLIER,
1975:20).
Por outro lado, a vinculação do conceito de classe à propriedade e às
relações nela delineadas, sugere que o arranco do fenômeno jurídico (e a contraposição
dos direitos opostos, invocados pelas classes) emerge na infra-estrutura mesma, se por
direito entendemos o que ele mais amplamente designa, e não uma das RESULTANTES
da cisão classística, isto é, apenas a que vai dar no direito estatal e faz caso e tábua rasa

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dos direitos dos dominados. Se estes não são direitos, que são afinal? Insto, sem contar
que também se formalizam em normas paralelas e antitéticas.
De toda sorte, cabe sublinhar a contradição, surgida na própria infra-
estrutura, e que forma o núcleo de toda dialética do direito, seja no seu acabamento,
em sistemas normativos (plurais e conflituais), seja na influência de retorno que as
resultantes normadas possam ter sobre a infra-estrutura mesma; isto é, a
wechselwirkung (ação circular, envolvendo o retorno sobre a infra-estrutura, o que não
pode ser negado, nem foi, sequer pelos marxistas ortodoxos) (MARX, K & ENGELS, F. ,
1977:44).
Ademais, o esquema de relações, entre infra-estrutura e
superestrutura, não será, hoje, exclusivo ponto de vista dos marxistas, com atesta o
sociológo-antropólogo BALANDIER, notando que “conserva inegável alcance teórico”,
no próprio campo da antropologia política, e que nela “se inspiram certos
antropólogos, frequentemente de maneira inconfessada” (BALANDIER, 1969:184). Eu
mesmo devo declarar lisamente que não sou marxista, embora, segundo anotou o
pensador católico ARANGUREN, esteja, “como todo homem que realmente pertença ao
nosso tempo, sob a influência do marxismo” (ARANGUREN, 1968:12-13).
Para marxistas ou não marxistas, parece-me que a visão correta duma
uma estrutura social não pode prescindir do reconhecimento de que o modo de
produção gera relações básicas e a divisão em classes determina um pluralismo
cultural-contracultural. Nesse contexto é que se propõe em pluralismo jurídico,
também. E aí radica, por igual, o impulso de toda a dialética social e histórica do direito.
A militância crítica à doutrina fechada, que tivesse o fenômeno
jurídico enquanto simples norma de classe dominante, substrairia, por outro lado, a
dialética mesma, tal como ocorre em muitas direções do marxismo ortodoxo. As
simples derivações infra-estruturais encurtam a visão, tornando-a simplista e unilinear
(LYRA FILHO, 1972 A: 98). É, numa palavra, e mecanismo. Além disso, importa assinalar
que esse vezo despreza uma das mais significativas páginas o próprio ENGELS. Nela vêm
apontadas, não só as contradições do sistema jurídico estatal, mas também o fato de
que a “expressão brutal, intransigente e autêntica da supremacia de uma classe” iria
“por si só contra o ‘conceito’ de direito” (MARX, K. & ENGELS, F., 1977: 37-41,
especialmente, 38). (o grifo é meu); e aqui pouco importam as aspas do autor, que se
referem à rejeição dos conceitos “puros” (PRESTIPINO, 1977:221).
Até alguns autores russos, de nítida posição dogmática e dentro do
chamado “legalismo socialista”, já acentuaram que “cada classe social, esteja ou não no
poder, tem a sua própria concepção do direito, concepção que não pode ser, e
geralmente não é, a que se extrai do direito positivo em vigor” (GOLOUNSKY &
STROGOVITCH, 1965: 257). Diante disso, cabe perguntar: em que o direito dos
oprimidos, inspirando uma praxis diferente e real (SANTOS, 1977: passim) é menos
positivo do que o outro, estatal, que atenderia, embora não sem contradições, à
consciência jurídica da classe dominante? Positividade é eficácia social (que falta, às
vezes, ao direito estatal); e a presença de juridicidades contrastantes é um fato que
vige, no sentido sociológico e histórico da palavra.
O problema não é a existência, ou não, de ordenamentos, em
pluralidade, cada um aspirando a definir (formalizar em normas, que efetivamente
aparecem) o corretamente jurídico. O que cabe indagar é, ao revés, qual o

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posicionamento exato, diante desse fenômeno inegável, pois obviamente “a
consciência jurídica da classe dominante não é igual à da classe dominada; sendo justa
para uma, é injusta a outra” (GOLOUNSKY & STROGOVITCH, 1965: 257). Por outros
termos, dado o pluralismo jurídico (dialética social do direito), a questão fundamental é
de estimativa e opção.
Parece-me também óbvio que tal opção há de orientar-se pelo critério
estimativo, que não se prende às pretensões de um certo direito formalizados, por um
certo poder instituído (o “direito positivo” do jurista tradicional), mas pela legitimidade
ou ilegitimidade dos ordenamentos contrastantes, tal parâmetro só pode ser achado na
linha do processo histórico-evolutivo global (não, certamente, linear, mas polarizado,
em avanços e, às vezes, recuos terríveis, no rumo do progresso democratizador). Uma
bela intuição desse pólo teve, entre nós, RUI BARBOSA, quando escreveu que estamos
diante dum “sopro de socialização que agita o mundo” (BARBOSA, 1980: 15).
A partir da infra-estrutura, as relações que dela emanam e a disputa
das classes, é que se arma a modelagem social concreta. Daí, como sugiro, no esquema,
os conjuntos contrapostos de usos, costumes, folkways e mores, como gradações das
normas sociais emergentes, seja na série ligada à classe dominante, seja, ao contrário
em séries que promanam da classe e grupos dominados.
Já sugeri que o direito se prende ao elenco de mores (PIERSON, 1970:
285-292). Mas logo ressalvo que o direito não é o que, no elenco de mores, aparece em
forma de peculiar e máxima intensidade: isto, pela simples razão de que as normas
jurídicas visam a exprimi-lo, com maior ou menor correção, o que nem sempre
conseguem, seja por vício de apreensão, seja pelo obscurecimento ideológico, seja pela
condicionante desse obscurecimento, que é a posição classística do órgão produtor das
normas. O direito mesmo é a mola propulsora de todo o processo normativo especial (a
produção de normas jurídicas), na mesma linha de toda ética social legítima. Para
valoração das formulações opostas, é preciso, indeclinavelmente, captar a direção do
processo histórico, onde reside o parâmetro atual (nunca fixo, não derivado de
conteúdos perenes, mas aparecendo, por assim dizer, num vetor, que indique o estado
da consciência jurídica de vanguarda que se torne possível, dentro daquela conjuntura).
Em síntese, direito é aquilo que, como resultante do processo global (e, não da colheita
em cavernas platônicas) transparece, como possibilidade da concretização de justiça
social, em normas de peculiar intensidade coercitiva. Terei algo a dizer, adiante, sobre a
especificidade do jurídico, enquanto venha a estabelecer-se, em confronto com a
estimativa ética geral. De qualquer sorte, ele se põe, socialmente, com ligação à
natureza de estabelecimento do justo. E aí estaria a tentativa de não oposição ao que
lhe constitui o conceito, segundo a sugestão, já referida, de ENGELS. Por isto sempre
reivindica a própria legitimidade e autenticidade, ainda quando, de fato, a contraria,
por desfocalização ideológica ou má-fé. Ninguém, mesmo formalizando o antidireito,
proclama que o faz. Antes, procura resguardo nalgum apelo à vontade popular, à
inspiração divina ou que critério lhe ocorra, inclusive o da divindade própria de algum
potentado, que assim pretende normar, não por si, mas através de si. Nem o mais
descarado ditador se arroga o simples e próprio voluntarismo, exceto na medida em
que tal voluntarismo seja por ele identificado como o critério exato de orientação
jurídica. Acha, então, que He knows Best, isto é, que, melhor do que outrem, sabe que
é justo. Essa barretada, honesta ou hipócrita, eleva o direito à sua posição enquanto

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não confunde o critério de formalização, a dição jurídica, e o que ele é. O direito estará,
se bem captado, na norma, porém, não é a norma, que apenas o diz.
Daí a existência de legalidades opostas, desde a non scripta Lex,
natural, divina ou costumeira, até as leis do Estado ou as normas contratuais que se lhe
opõem. A pretendida hegemonia do direito estatal é um artifício político, mediante o
qual o poder instituído aspira a eliminar as próprias contradições jurídicas da sociedade
em que emerge, dando-se por árbitro da justiça social, numa “expressão coerente em si
mesma” (MARX & ENGELS, 1977: 38). Mas as contradições subsistem, seja na ordem da
própria formalização normativa estatal, seja no substrato sócio-econômico, que ela
deseja moldar. Daí a disputa de ordenamentos. O estado sempre vê frustrada a sua
pretensão, pois não logra erguer-se acima das contradições de que ele próprio emerge,
nem pode esgotar o jurídico, em sua produção normativa, sem apelar para um
sobredireito, que lhe desse tal legitimidade constitutiva e funcional, de órgão único da
expressão normativa. E ainda existe a considerar, sem dúvida, que o Estado assim se
apresenta, nos graus duma legitimidade que oscila, desde a mais ampla quota
democrática até a feroz imposição autoritária. Também isto é um problema jurídico,
pois o “direito positivo”, naquele sentido restrito do jurista conservador, postula um
“metajurídico-positivo” que a tal positivação juridicamente legitime. Toda dição, além
de carregar o ônus da legitimação do órgão jurígeno (que, em si, é jurídica), terá de se
apresentar como projeto de dição, sujeita a desvios e subordinada ao corretivo, seja
mediante processos autoregulados, seja por critérios “não positivos” (no sentido de
não ínsitos num ordenamento). Pois tal regulação e o conteúdo mesmo das normas
eventualmente ferem o direito, em globo, a que se reportou, fatalmente, o órgão
normante, dando início ao pretendido monopólio.
No esquema, acrescentei, sempre, ao termo – classe –, a palavra mais
ampla – grupo. É que a dialética dos normas sociais, em geral, e, em particular, das
normas jurídicas não se reduz inteiramente à oposição de classes (SANTOS, 1977:9). Ela
pode inserir-se na reivindicação de legitimidade, como posicionamento de grupos que
não representam diretamente o contraste de classes, entendidas estas últimas como o
posto ocupado no modo de produção. Assim, por exemplo, como nota MIALLE, certas
minorias étnicas, regionalistas, sexuais, “que exigem o direito à diferença” (MIALLE,
1978: 123).
O ângulo mais geral será, todavia, aquele a que estão, em última
análise, ligados os processos secundários, isto é, a reivindicação das classes dominadas
para indicarem outro tipo de Estado” (MIALLE, 1978: 124), que realize o modelo mais
justo, no sentido em que o define a etapa do processo histórico democratizador. Aí,
sem dúvida, fica revelada, ademais, a ambigüidade do conceito de Estado; pois ele
pode ser visto, de um lado, como estrutura de dominação e, por outro, emergir como
veículo para estabelecer a alternativa efetivamente democrática (LYRA FILHO, 1972:
103). Isto parece claro; pois, de outra forma, que razão haveria para falar num Estado
socialista? Nenhum Estado, afinal, paira acima das lutas sociais, como árbitro isento. O
Estado sempre será inserido nelas.
Quando existe, ele é apenas um sistema diversificado de órgãos, com
aspiração a monopolizar o poder social; e, portanto, a sua eficácia, tanto quanto a
legitimação, constitutiva e funcional, depende da maneira por que se ajuste, num
momento dado, ao processo social. Isto é, depende da sua vinculação ao movimento da

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História para frente, ou de seu comprometimento com formas de paralisação ou
retrocesso.
Neste perspectiva, a cultura, que imanta com princípios as formas de
controle social, é apenas um aspecto do mesmo processo. Ela engloba, na sua
pluralidade efetiva, governada pela pluralidade de grupos e classes, confessos ou
incontestáveis, quanto a consciência reta e possível, a exata orientação no rumo do
conhecimento objetivo e dos valores polarizados pelo progresso social, num momento
dado (CUVILLIER, 1975: 14-30).
Continuará, decerto, presente uma clivagem, entre cultura como
projeção das diretrizes que guiam a classe dominante e contraculturas; isto é,
subculturas, no sentido de que não chegaram ao poder social mais difundido,
realizando a sua pretensão de generalizar-se. Assim, desafiam o que está posto, no
stablishment. Nessa acepção é que falo de comportamento anômico, isto é, a posição
militante que nega uma parte ou todo o conjunto de normas do poder social instituído,
assim como a série de princípios em que se lastreia e com os quais pretende justificar-
se.
É evidente que a presença de contraculturas exprime a existência das
classes em oposição ou, secularmente, de grupos contrapostos. Aqui, a referência a
grupos volta ao fenômeno, já assinalado, de contradições não diretamente vinculadas à
divisão de classes. Deste modo é que se concebe, por exemplo, a pesquisa de
comportamento anômico em qualquer estrutura social, capitalista ou socialista. Vejam-
se, por exemplo, as investigações de PODGORECKI, sobre coeficientes de anomia na
sociedade polonesa (PODGORECKI, 1996: 212).
Dentro desse quadro, o processo jurídico geral vai desvendando seus
aspectos. O DIREITO II seria a formalização de normas, ainda não instrumentalizadas
em leis e correspondente ao DIREITO V, enquanto este éa produção correlata, nas
classes e grupos dominados, e aquele, a formação do elenco, em última análise,
vinculado a classes ou grupos dominantes (a ressalva – em última análise – tende a
destacar as contradições de cada série, uma vez que o DIREITO II, como toda produção
normativa da faixa dominadora, não é, mecanicamente, e tão-só, a tradução de seus
interesses e posicionamentos). O DIREITO III representa o substrato das normas de pré-
constituição que governam a formação do aparelho estatal. Nenhuma constituição,
como nenhum poder constituinte, pretende autoregular-se arbitrariamente, mas extrai
de modelos prévios o que se lhe afigura como assento da própria legitimidade. Ao
DIREITO III corresponde obviamente o DIREITO IV, na medida em que este compendia
modelos diferentes de pré-constituição, exprimindo o teor de propostas do “outro
Estado”, isto é, de substrato diferente.
O DIREITO IV é o ÚNICO geralmente focalizado, na organização
tradicional dos cursos jurídicos, inclusive quando se abre espaço para os princípios de
direito “não positivo” ou costumes (da mesma classe ou grupo); pois, ainda assim,
igualmente se reconhece ao DIREITO IV, na visão conservadora, o poder de aniquilar
princípios e costumes, e até legalidades, que contrastem com suas normas expressas.
ESTA, A GRANDE DETURPAÇÃO. Ela faz de um incidente, sem dúvida relevante, mas
parcial, a imagem da totalidade do fenômeno jurídico. O reverso é, evidentemente, a
ação anônima, espontânea ou organizada (DIREITO VII), de classes e grupos que
desafiam algum aspecto ou, mesmo, a totalidade do sistema instituído; e desemboca

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no DIREITO VIII, em que se aperfeiçoa todo um sistema alternativo, para substituição
global do que está em função.
O DIREITO IX, que fica no entroncamento dos processos internos e
externos, isto é, entre o DIREITO I e tudo o que se processa nos demais, seria a
formulação, perfectível, em progresso, em devenir, da totalidade na dialética externa-
interna do direito, abrangendo o que se possa delinear, para qualquer direito
emergente, num dos aspectos parciais, setoriais (LYRA FILHO, 1972 A: 111-112). Nesse
âmbito, aparecem os chamados direitos humanos, com pretensão ecumênica. Note-se
que não me refiro às declarações de direitos humanos, que desejam exprimir o DIREITO
IX, porém a este mesmo, que nelas aproximadamente se reflete. Por outro lado, não se
trata da cristalização de qualquer “essência” metafísica, mas do vetor histórico-social,
indicando o que se pode ver, a cada instante, como direção do progresso da
humanidade, na sua caminhada histórica. Essa resultante final (final, não no sentido
perene, mas no de síntese abrangedora do processo jurídico em sua totalidade e
devenir) se reinsere, de imediato, no processo, uma vez que a história não pára. O
DIREITO IX seria, então, a chave de abóbada para todo o ensino jurídico, arrimado em
uma Antropologia Filosófica de base (GOULIANE, 1968: passim) e na coordenada de
estudos históricos e sociológicos, inclusive econômicos. Estes, torno a ressaltar,
também não visariam ao estabelecimento da grande mixórdia de contribuições
interdisciplinares: a Antropologia Filosófica retoma o esquema antropológico de base
(LYRA FILHO, 1972 A: 32; 45-68), evitando que a “autonomia” de saberes parcelados
criem, pela simples adição, a confusão de direções, posicionamentos e doutrinas, que a
Sociologia do Conhecimento leva à sua raiz e a Filosofia Jurídica se dedica a re-pensar
em sua totalidade (LYRA FILHO, 1972 A: 44-45), na perspectiva crítica.
Como não temos, atualmente, senão cursos do DIREITO IV, com raros
orifícios curriculares onde se possa inserir a visão coerente (quando aparecem, é no rol
das disciplinas “facultativas”), o DIREITO IX jamais emerge, no desenvolvimento do
curso jurídico “normal”, seja isoladamente, seja na integração em todo exame de
conjuntos normativos. O próprio DIREITO I, desdenhado, relegado para a franja
descritiva de instituições “imperfeitamente jurídicas”, não costuma focalizar a infra-
estrutura, as contradições, a inserção no processo jurídico, em termos globais. Deste
jeito, o ensino do direito não tem pé (um suporte de reta focalização histórica,
econômica e sociológica), nem cabeça (uma filosofia jurídica), mas apenas mão, para o
soco alienante do DIREITO A, que não admite contraste.
3. Antes de encarar o roteiro que nos vai oferecendo uma visão nova do
problema do ensino jurídico, resta uma questão, que é talvez a mais delicada e sutil.
O positivismo, em abordagem que se concentra no DIREITO IV, não
tem grandes dificuldades para definir a órbita do jurídico, segundo a sua perspectiva.
Ele a liga, fundamentalmente, ao Estado e vê, portanto, o Direito, entre as normas
sociais, como algo que se distingue, na medida em que vem assentado,
fundamentalmente, no sistema de leis e princípios que os órgãos estatais recortam,
formalizam e impõem. Ou pretenderão impor, já que nem sempre o conseguem.
O grande erro desta redução está num duplo corte mutilador. Seu
primeiro aspecto é a confusão entre as normas que enunciam o direito e o direito
mesmo, que nelas é enunciado. O segundo aspecto do mesmo erro é o que, a pretexto
de melhor assinalar o que é, afinal, jurídico, nega vários aspectos e setores do direito.

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Vamos ver, ligeiramente, em que se concretizam tais deturpações.
Se dizemos, a propósito do direito, que este é as normas estatais,
além de contrair-se, arbitrariamente, a dialética do jurídico, fica em aberto o que mais
normas pretendem veicular. Isto é, o passageiro é definido pelo automóvel e tudo que
nele transita é o passageiro. Se o motorista põe ali um saco de batatas, este saco passar
a ser batata jurídica pelo simples fato do depósito. Isto, ainda que batata não seja
direito e a batata juridicamente, podre e inedível. A escamoteação, assim consumada,
já se chamou “toque de Midas”, pois, como no caso do rei lendário, tudo o que ele toca
se transforma em ouro. Mais: como, por outro lado, ao aparelho estatal, e só a ele, é
deferido o poder seletivo do que se insere na proceituação jurídica, o direito, com
aquela seleção, passa a ser a vontade do Estado nua e crua. Aí não se atenta para a
conseqüência fatal: é que a ótica positivista “desjuridiciza” o Estado, de vez que ele
passa a ser metajurídico, enquanto produtor de todo direito. Mas, se o Estado não é
jurídico e, sim, jurígeno (pois, em tal caso, até as normas jurídicas reguladoras de sua
constituição e funcionamento são estatais), em nome de que direito ele se arroga o
poder jurígeno mesmo? Trata-se, então, dum ato puro e simples de dominação
ilimitada.
Essa perspectiva, que não admite um direito supra-estatal, seja qual
for a modalidade do legalismo, que ali se implante e tenha por jurídica, já foi
denunciada pelo sociólogo polonês, PODGORECKI, no traçado de um círculo vicioso:
“advogados e juristas, educados no espírito do legalismo dogmático, nas esferas civil,
penal ou administrativa, acreditam que o direito é definido por sua validez, ou por sua
produção pelos órgãos estatais autorizados. Não parecem preocupar-se com a natureza
obviamente tautológica de tal posição. De fato, se direito é o válido, e o não-válido não
é direito, surge uma questão: em que princípio se baseia a própria validade? Os que
dispõem a desprezar a tautologia responderiam que o válido o é, por ser jurídico.
Alguns advogados dogmáticos mais escrupulosos modificariam ligeiramente essa
posição, dizendo que o que é válido o é, porque um poder autorizado assim o gerou.
Mas, autorizado por que princípio? Um princípio legal, é a resposta. Assim reaparece a
tautologia, embora em círculo maior” (PODGORECKI, 1973: 65).
A outra face do mesmo erro leva o positivista a negar “positividade”
ao que não é o direito estatal, que se propõe como dogma. Neste caso, temos o leito de
Procusto. Se existem, como vimos, direitos não-estatais, na dialética global do jurídico,
afirma-se que na verdade tais direitos não são um direito direitinho, pois que o são
impropriamente, insuficientemente, ou de todo não o são. Como no caso do famoso
bandido, se a cama é curta, deita-se ali a vítima, para esticá-la e, dessa maneira, levá-la
à morte. Se a vítima é mais comprida do que a cama, nenhum problema: corta-se o
que sobrar...
Com isso, desaparece todo e qualquer direito que não seja de fonte
estatal, como o direito de resistência às suas determinações antijurídicas, até os
direitos que se estabelecem acima dos Estados como o direito internacional. Este será,
pelo jurista dogmático, entendido como um “menor desamparado”, a não ser que, um
dia, apareça o mítico Estado Universal.
De outra parte, dois fatos óbvios são negados. O primeiro é a
existência de normação jurídica nas sociedades em que não há Estado – o que qualquer
antropólogo demonstra ser inexato. O segundo é que fatos jurídicos, tais como o poder

22
constituinte, para que apela o Estado em sua origem, passam a ser algo não-jurídico.
Sobretudo, não há falar em direitos humanos, ou coisa que os valha, pois direito não
são. E aí chegamos à anedota da nave, que era maior por dentro do que por fora, uma
vez que os princípios de pré-constituição do direito estatal não seriam jurídicos e o
Estado, como órgão jurídico, então, concebe de si mesmo a dá à luz, ante nós todos, à
jurisdicidade que se arroga e as derivadas jurídicas por ele mesmo produzidas. Neste
caso, é no ventre do filho que surgem o pai e a mãe...
Que visão mais ampla corrigiria esse parto monstruoso?
Consideremos a realidade, tal como ela é.
A interação humana de classes, grupos, povos exige que a liberdade
de atuar, em cada sujeito, individual e coletivo, se limite por algo mais do que o bel
prazer dos agentes. O controle espontâneo é anárquico e já tive ocasião de satirizá-lo,
falando na cirandinha social, dançada por uma coletividade de anjos (LYRA FILHO, 1980
A: 12). Se não há controle espontâneo dos agentes, mas, ao invés, normas coercíveis,
ou estas descobrem a própria medida e estalão, ou se tornam oposto da anarquia, isto
é, a opressão arbitrária, enquanto pretenderiam legitimar-se pelo simples fato de
existirem. A aberração, no caso, gera uma outra dificuldade, pois nem sequer há um só
conjunto de normas na sociedade, e, sim, conjuntos em oposição, sendo o produzido
pelo Estado apenas um deles. Nesta obstrução, e admitindo-se que atinássemos com
qual dos conjuntos teríamos de haver-nos (seria com todos eles?), só restaria o dilema
de nos submetermos ao que desse e viesse, ou negarmos tudo, sonhando com um
paraíso em que, de norma, só houvesse a Norma Benguel...
Ao revés, parece óbvio que é preciso confrontar todos aqueles
conjuntos com critérios de legitimidade, na medida em que eles se apresentam como
normas coercíveis e afetam a liberdade de indivíduos, grupos, classes e povos.
Nesse plano é que o pensamento idealista estabelece a sua tendência
ao dualismo. A moral se biparte entre o tipo ideal, absoluto, superior e perene e o tipo
comum, real, variável e inconsistente, de morais contrapostas. Isto deixa cada um
perante o relativismo, que de novo aceita o que der e vier (contrariando a índole de
toda norma que é preceituar o que se acha cabível, justificável e conveniente), para
desembocar no amoralismo, pois tanto vale dizer que valem todas as normas eficazes,
como dizer que não há mais do que valores sem estalão, que seriam, desta maneira,
valores que não valem nada. O modelo absoluto, que confortaria os demais, fica lá
longe, numa caverna platônica; aqui, na planície em que vivemos, só se distinguiriam
certas imposições convencionais, que nada justifica, a não ser o argumento
inconveniente e perigoso de que se justificam porque a nós se apresentam.
Assim, a cisão idealista acaba entregando o que é válido à impotência,
e o que é coercível, sendo carente de legitimação, termina relegando á violência da
imposição arbitrária. Isto, quando as duas coisas não se conjugam; pois aquela moral
absoluta do idealismo é, muito frequentemente, com a aparência de coisa que caiu do
céu, por graça de Júpiter, ao invés de ter sido gerada na terra, por malícia de Creonte.
Não vou estender-me nesse tema, senão para lembrar que uma
concepção dialética do que é moral já enfrentou o dualismo solerte. O parâmetro está,
de novo, no processo histórico (VAZQUEZ, 1970: 40-47 e passim). Não se trata de duas
ordens de princípios – uns, absolutos; outros, históricos; uns, sacados a modelos
eternos; outros safados pela conveniência de grupos, classes padrões de convivência,

23
de ordenamentos diversos, coexistentes, obedecendo, em última análise, a divisão da
infra-estrutura em classes e, secundariamente, em grupos, cuja posição social gera
interesses e propósitos conflitantes. A resultante de legitimidade obviamente
dependerá, então, do posicionamento das normas oriundas dessas classes e grupos, ou
até povos, no processo histórico, entre liberdade e opressão, minorias dominadoras,
minorias oprimidas e maiorias desamparadas.
Dessa forma, no direito, a oposição entre um direito natural, fixo,
eterno, e os direitos que classes, grupos e povos geram e opõem. “A deficiência maior
do iurisnaturalismo clássico é separar os objetivos sociais e os juízos de valor, ou os
valores mesmos, atribuindo-lhes uma existência como que acima do que ocorre no
processo histórico-social” (LYRA FILHO, 1980 A: 18). Nesse contexto, o “conflito entre o
direito eventualmente formalizado e o projeto progressista (desenvolvimento rumo ao
modelo superador) há de ser deslindado, segundo o parâmetro da continuidade
histórica e das rupturas (na substituição, também histórica, de modelos). Isto, sem que
o direito formalizado se ponha de um lado (direito “positivo”) e o direito “justo” de
outro (direito “natural” idealista). Ao limite, cumpre assinalar que a justiça é
meramente a concretização das quotas de libertação, na ultrapassagem e dentro do
processo histórico” (LYRA FILHO, 1980 A: 19). Em síntese, o parâmetro está no DIREITO
IX, enquanto ele propõe a síntese, em cada momento, do que significa o movimento
progressista, nas suas projeções jurídicas.
O que cabe perguntar, entretanto, nesta altura da exposição, é o que
pode, nos conjuntos de normas sociais, emergir como propriamente jurídico. As séries
de normas, contraditórias, opostas, em pugna, sejam elas jurídicas ou morais, estão
imersas no mesmo processo e podem ser avaliados, na medida em que o estalão
legitimamente, para toda opção, é o apex, designado pela direção daquele processo e
seu estado, na presente etapa. Nisto, indaga-se, que poderá distinguir as normas
jurídicas?
O critério mais difundido, para esse fim, destaca algumas
características. As normas jurídicas seriam heterônomas, coercíveis, mediante sanções
organizadas, e bilateralmente atributivas. Eu mesmo já utilizei esses elementos (LYRA
FILHO, 1972 A: 121 e passim). Mas, em reflexão posterior, eles me pareceram mais
frágeis do que imaginava.
Em primeiro lugar, queria repetir que, procurando os elementos do
direito, nas características da norma jurídica, há uma inversão consistindo em buscar o
que nelas se vaza, no veículo expressivo e comunicativo que elas são. Advirto que esta
ênfase nada tem a ver, porém, com a concepção do direito como alguma essência
extraterrena, metahistórica e metafísica. É apenas a distinção entre o que chamei de
veículo e passageiro.
Em segundo lugar, as próprias características formais, assim
propostas, não se revelam muito precisas e consistentes.
A heteronomia sugere a índole de coercibilidade externa, com que se
confunde, pois heteronomia é o oposto de autonomia e significa a sujeição a um querer
alheio. Assim, o direito, exterior, e como norma coercível, nos afetaria, enquanto
imposição a que cumpre obedecer, sem que isto dependa de interiorização e de íntimo
convencimento. A cisão, que é de origem kantiana, desmente, no seu individualismo
ético (“a lei moral dentro de mim” e a lei jurídica a mim pro-posta e im-posta), a

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heteronomia da moral, enquanto comando de origem social, não subjetivamente
autócne, mas intrasubjetivado (GOLDMANN, 1970: 104 ss). Ademais, o direito,
enquanto reivindicação jurídica, na conscientização dum posicionamento e projeto,
igualmente apresenta aquele aspecto interior, por autores marxistas (SZABO, 1973: 13
e passim).
A moral, vista como perfeitamente autônoma, esquece que o
superego admite ou rejeita o que, em grande parte, é apenas a intrasubjetivação do
que classe social, educação e ideologia inseriram no sujeito. A moral, repito, não é
subjetivamente autóctone; tampouco, é claro, o direito. Numa perspectiva dialética,
ambos são, simultaneamente, “heterônomos” e “autônomos”; e a nossa liberdade de
opção, longe de concretizar-se na negação das intrasubjetivações do social, está na
conscientização de que elas existem, para a libertação de sua modelagem e a visão
mais objetiva.
O direito, assim, como a moral, funciona, exteriormente, como
resultante do processo social de regulação da conduta, na medida em que o captamos
(avaliando as diretrizes contrapostas que estabelece, em pluralidade de normas). Nele,
projeta-se, como opção de indivíduos, grupos, classes, povos a “síntese de
necessidades e liberdade, coligadas à praxis” (LYRA FILHO, 1972 A: 123). Isto é, na
descoberta da “posição relativa”, na estrutura, e na reorientação dela decorrente, em
moral ou em direito, se reinstaura “a dialética do possível subjetivo, diante dos
imperativos das normas objetivas”, para a determinação dos “rumos do processo
histórico” (LYRA FILHO, 1972 A: 62). Daí moral (ou direito) “de realização”, que abre
espaço a novas conquistas, enquanto se opõe à moral (ou direito) dos arranjos
dominantes (LYRA FILHO, 1972 A: 62; GOULIANE, 1968: 210).
Há, portanto, na norma jurídica, tanto quanto na moral,
“heteronomia” e “autonomia”, tanto quanto coercibilidade, pois, ao lado das sanções
jurídicas, funcionam as que não são apenas o mecanismo interior em que se
estabelecem “dores de consciência”, porém muito mais do que isto: sanções externas,
de grande poder e violência, golpeando o comportamento desconforme. Dir-se-á que
as sanções sociais, acompanhando a norma de tipo moral, são menos precisas –
sanções difusas, no vocabulário sociológico –, ao passo que as jurídicas são sanções
organizadas e armam a coercibilidade mais forte. A esse respeito, falarei mais adiante.
Primeiro, entretanto, desejaria examinar a chamada bilateralidade
atributiva. Ela importa em dizer que o direito, ao contrário da moral, é uma relação em
que dois sujeitos se contrapõem, um deles com o poder de reclamar o que ao outro
cumpre fazer ou deixar de fazer. Isto adviria de que a norma jurídica aparelha o direito
com uma referibilidade a sujeitos contrapostos: o que tem o dever jurídico e o que tem
o poder jurídico de exigir o respeito ao padrão de conduta a que o outro está obrigado.
Bem ponderada essa característica, não vejo como se ausente das
normas morais, em que o grupo, classe, até, eventualmente, a sociedade inteira se
investem no “direito” de reclamar o correto procedimento moral e lenta, o
procedimento tido como aberrante. “O ato moral, como ato de um sujeito real, que
pertence a uma comunidade humana, historicamente determinada, não pode ser
qualificado senão em relação a um código moral que nele vigora” (VAZQUEZ, 1970: 65).
Diria, melhor: um dos códigos morais, conforme a pluralidade de ordenamentos que se
estabelece na sociedade dividida em classes e grupos, ou até na comunidade

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internacional, dividida em nações e povos, como variada posição. De qualquer sorte o
ato moral é, sempre, “um ato sujeito a sanção dos demais, isto é, passível de aprovação
ou desaprovação de acordo com as normas comumente aceitas” (VAZQUEZ, 1970: 61).
Se admite um sancionamento, admite-se uma atribuição bilateral, havendo pessoa,
grupo, classe, ou que outro órgão coletivo caiba, para aplicar a sanção.
Dir-se-á que tal sanção é muito menos precisa do que a jurídica; seu
poder de coerção, menos intenso; o órgão aplicador, menos precisamente indicado; o
procedimento para infligi-la, de tipo mais fluido. Por outras palavras, aqui emerge a
questão das sanções morais, enquanto sanções difusas, em oposição às sanções
jurídicas, enquanto sanções organizadas, com órgão bem estabelecido para a aplicação
e procedimento mais claramente regulado. Este aspecto é o mais persuasivo dos que se
apresentam a exame e, por isso mesmo, alguns autores concentram nele a melhor
maneira de separar a norma jurídica. Assim, para o Eminente ELIAS DÍAZ, autor da mais
rica e atualizada obra didática da sociologia e filosofia jurídica, “radicaria aqui o critério
básico diferenciador entre ética e direito” (DÍAZ, 1980: 26).
Com a devida vênia do ilustre colega espanhol, não posso aceitar sem
ressalvas, a afirmação, notadamente porque ele ainda a realça, afirmando que só o
direito é coercível; que a moral, em sentido próprio, exige “condutas não forçadas”
(DÍAZ, 1980: 26), isto é, livremente aceitas. Parece-me que pesa, contra essa afirmação,
mais do que uma divergência teórica; pesa, contra ela, toda a força de análises
psicológicas da intrasubjetivação de padrões alheios à “autonomia” do sujeito; pesa,
contra ela, a existência externa de coercibilidades morais, com sanções difusas e até,
acho eu, organizadas; pesam, contra ela, enfim, as investigações da sociologia, da
antropologia e da história.
Mais aceitável seria a afirmação de que as sanções jurídicas são
propriamente organizadas, naquele sentido técnico já referido; sanções especiais.
Ainda assim, tendo certa dúvida, pois me lembro da organização de formas costumeiras
do sancionamento moral, como o “gelo”, os procedimentos bem precisos de
marginalização, que afastam o moralmente infamado, retirando-lhe privilégios
inerentes às pessoas tidas como “idôneas”, o acesso a locais de recreação ou
apetecíveis e superiores formas de emprego e trabalho. Sanções difusas? E a “bola
preta”?
Essa crítica não tem o propósito de aniquilar totalmente a distinção
consagrada; visa a pô-la num nível mais modesto, que é o de mera gradação. Eu não
hesitaria em afirmar que a norma jurídica é mais intensamente heterônoma; sua
bilateralidade atributiva é mais precisa; a sua coercibilidade mais marcante, sobretudo
nisto que as sanções organizadas são também mais exatas, na determinação dos órgãos
e procedimentos. Apenas isto, entretanto, que nega uma separação essencial entre os
âmbitos moral e jurídico, quanto ao tipo de norma.
Não quero dizer que, por tal motivo, os ordenamentos jurídicos e
morais se confundam em tal medida que, num e outro, o conteúdo das preceituações
seja idêntico. Há, aí, duas coisas que não se deve confundir: a primeira está em que é
preciso convir em que a diferença do tipo de norma não emerge com a nitidez
pretendida. A segunda é que essa fluidez do balizamento formal, não importa na
identidade da preceituação, a cada momento: isto é, podemos ter, simultaneamente,
até no mesmo nível (de classes, grupo, povo ou nação) sistemas de normas morais e de

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normas jurídicas de conteúdo independente e, mesmo, oposto. Essas contradições
existem e podem ser observadas. A unidade do ordenamento jurídico e moral, em que
as normas se aglutinam, não apenas formalmente (pela carência de nitidez do tipo de
normação), mas até substancialmente (pelo sentido maciço, praticamente unívoco, das
preceituações), é evidentemente, a comunidade primitiva. ROGER PINTO sintetiza isto,
embora com o emprego de rótulo impreciso – “sociedades arcaicas”. Nestas, diz ele,
“se verifica que moral e direito não são diferenciados, como também não as normas
sagradas, estéticas ou técnicas” (PINTO, 1969:73). Isto não quer dizer, entretanto, que
aí não exista um direito. Quer dizer, sim, que direito e moral são unívocos; mas
qualquer antropólogo mostraria que direito existe, e até sanções organizadas mais
intensas.
Acrescentarei, no fecho desta meditação e na tentativa de captar o
direito em globo, pretendendo evitar as postulações idealistas ou as reduções do
positivismo, ela aponta um caminho em três etapas.
A primeira é a que tentei expor, numa abordagem do fenômeno
jurídico, em perspectiva sociológica, abrangendo todos os aspectos da manifestação do
direito, a partir dum conceito nominal.
Essas duas etapas constituem os dois tipos de estudos básico e
preliminar. A terceira será, evidentemente, um reencontro global, para que acenei,
como tarefa da filosofia jurídica. A ontologia que aí se esboça, contrapondo-se ao
idealismo, também não é uma simples articulação dos dados empíricos e, sim, uma
reelaboração deles, em busca das “categorias, como formas do ser e determinações da
existência” (cf. LUKÁCS, 1972: passim), isto é, no salto ontológico em que a realidade do
ser é deduzida, geneticamente, de suas formas de transição (LUKÁCS, 1972: 12 e
passim). Seja qual for a crítica feita à realização, aliás fragmentária, de ontologia
lukácsiana, o seu projeto e intenção parecem-me especialmente fecundos e de índole
autenticamente dialética.
A esta altura das minhas reflexões, já sugeri que enxergo o direito, em
globo, como teoria e praxis das possibilidades de concretização da justiça social, em
sistemas de normas cuja intensidade coercitiva é particularmente acentuada. Ele está
obviamente ligado à política, no mais amplo sentido (não sectário, partidário), à praxis
humana, à história e aos pólos do processo histórico. A abordagem filosófica refocaliza
o que o material empírico-científico lhe traz ao moinho da razão histórica e dialética.
Direito, então, assume o aspecto geral de setor da praxis social de maior força
vinculante, que visa, à justiça, através de normas indicando procedimentos e órgãos
mais nitidamente demarcados do que em outros tipos de regulamentação da conduta.
Nesse ângulo, é que o DIREITO IX nos ajudaria a ver que as
contradições de pluralidade de ordenamentos, alguns dos quais flagrantemente
injustos, pertencem à dialética do direito mesmo, que não se reduz a nenhum dos seus
aspectos, seja ele situado na ordem das legalidades estatais ou em quaisquer outras
legalidades competitivas (SANTOS, 1977:9). Não importa que apareçam vários sistemas
jurídicos, realizando falsamente o propósito ontológico; a própria existência de
empanamentos ideológicos e dominações, resguardadas por normas jurídicas,
notadamente no setor do DIREITO IV, sempre faz, em última análise, uma verdadeira
homenagem à ontologia jurídica, na medida em que, produzindo injustiça, ainda assim
reclama, por má-fé ou equívoco, o elemento justiça, no seu procedimento. Nem cabe

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argumentar com a existência de artigos de lei que não parecem manter qualquer
vínculo com a idéia do justo (NOVOA, 1975:74), pois o que está em jogo é o
delineamento geral dos sistemas, em sua finalidade, e não esta ou aquela disposição
que constitui pormenor insignificante. Fixar-se nestes equivaleria a dizer que há
minúcias do processo biológico que não se discerne do vínculo imediato com o que se
possa chamar vida, trocando as leis teleonômicas, que o regem, pelos acidentes
puramente químicos ou enlaces matemáticos. Falar em direitos de contestação, por
exemplo, ainda que se omita a palavra direito, é referir uma parte do processo jurídico
mesmo; e NOVOA, entre outros, poderá desvincular as duas coisas, porque seu
pensamento ainda gira, apesar das melhores intenções, em torno da formação
dogmática, tendendo a registrar, no direito, o simples revestimento do regime
socioeconômico existente (NOVOA, 1975:190). Essa redução, como pretendi
demonstrar a vocês, é de todo arbitrária e insustentável, em seus próprios termos. E o
positivismo de esquerda é apenas o positivismo de direita visto pelo avesso e com
acréscimo não-dialético da infra-estrutura mecanicamente determinante. A deturpação
da justiça advém do posicionamento de classes, grupos, povos e nações dominadores,
segundo um infra-estrutura que os opõe a classes, grupos, povos e nações dominados.
O outro direito, destes últimos oriundo, não é menos direito, ou ajurídico; é pólo
oposto da dialética jurídico-social, donde salta uma centelha de superação, permitindo
a síntese, a cada momento, de que chamei DIREITO IX; isto é, o cadinho em que se
forma o parâmetro de estimativa e, portanto, o guia da praxis humana progressista.
Essa práxis, ademais, envolve: a) o aproveitamento das contradições dos sistemas
normativos estabelecidos (como, por exemplo, voltar as contradições do DIREITO IV
contra ele mesmo; b) a criação de novos instrumentos jurídicos de intervenção, dentro
da pluralidade de ordenamentos. E o produto final, como atesta a história, sempre
emana, enquanto veículo do avanço, das classes, grupos, povos e nações ascendentes
que representam o futuro, porque neles o progresso está.
Um ensino em que tal manifestação jurídica se omita, ou seja negada,
mutila o direito e aliena, repito aqui, o espírito docente e discente, paralisando-o na
descrição do DIREITO IV, para que não se dedique a repensar o direito da
independência econômica e da liberdade político-social.
O que mais urgente necessita ganhar o primeiro plano do direito, em
sua doutrina, fundada na praxis retamente analisada, é precisamente a discriminação,
na pluralidade de ordenamentos e legalidades, do que nelas aponta, encaminha e
dirige a criação duma sociedade nova, sem mais discriminações e privilégios, sem
minorias favorecidas, minorias oprimidas e classes, ou povos desamparados. Neste
aspecto, pode haver, inclusive, como já apontei, uma decisiva contribuição das próprias
normas estatais, dependendo, é claro, de que Estado se cogite, em que direito ele
funde a sua legitimidade invocada e a que infra-estrutura corresponda, tanto quanto a
que fins esta obedece: a democratização constante ou a paralisação e retrocesso.
Não é óbvio que os círculos e programas estão, de forma geral, muito
longe de ensejar uma abordagem dinâmica, totalizadora e progressista do universo
jurídico? Neles, o que adquire relevo é, sempre, o DIREITO IV, ainda assim considerando
como pleno, hermético e sem contradições; isto é, amputando o que, mesmo este,
possa ter de vitalidade, nas contradições gritantes que se pretende negar.

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Talvez seja por isso que se desencanta o jovem estudante de direito.
Talvez seja por isso que, dizem, o curso jurídico atrai os alunos acomodados, os
carneirinhos dóceis, os bonecos que falam com a voz do ventríloquo oficial, os sectários
e Office boys engalanados de um só legislador, que representa a ordem dos interesses
estabelecidos. O uso do cachimbo dogmático entorta a boca, ensina a recitar, apenas,
artigos, parágrafos e alíneas de “direito oficial”. Mas, então, é também uma injustiça
cobrar ao estudante a mentalidade assim formada, como se fosse um destino criado
por debilidade intrínseca do seu organismo intelectual. Sendo as refeições do curso tão
carentes de vitaminas, que há de estranhar na resultante anemia generalizada?
Como professor, peso também as minhas responsabilidades; e digo
que, como tantos outros colegas, estou desperto – não para fazer da cátedra um
veículo de proselitismo, porém a fim de nela mostrar, com a possível objetividade
científica, todos os aspectos da questão essencial, pertinente ao jurídico. O que
constitui o ensino do direito errado aí está, nos dois sentidos correlatos, que defini no
início desta conferência. E, diante dele, cumpre defender a reforma duma antiga
mentalidade, a revisão de todas as mutilações do enfoque do direito, para mudar o que
se tornou rotineiro e, já no tempo de CASTRO ALVES, fazia com que o acadêmico de
direito visse os próprios compêndios como um soporífero: “Pego o compêndio
inspiração sublime pra adormecer inquietações tamanhas. Violei à noite o domicílio – o
crime! Onde dormia uma nação de aranhas” (CASTRO, 1966: 175)...
É evidente que numa reforma global do ensino jurídico, nesses
termos, exigiria condições de viabilidade, que estamos longe de entrever. Porém, ainda
que atuando em campo mais limitado, é preciso ter, sempre, em vista esse
delineamento inteiro. Pois com ele é que discernimos o direito apresentado no sistema
tradicional como verdadeira mutilação, que apresenta as sobras torcidas do que
realmente o direito é. E, aparelhados por tal visão, podemos nutrir aquela utopia
realista no sentido de ERNST BLOCH, isto é, a alma de uma praxis destinada a alargar os
horizontes, dentro das próprias limitações da conjuntura emergente. Com isto,
inserimo-nos dentro dessas limitações, sem o propósito de enguli-las, mas, ao revés,
com o instrumental para debatê-las. E esta já é uma contribuição ao processo geral,
histórico, de superação, que evidentemente transcende a reforma do ensino jurídico,
em si, ou mesmo a concepção global do direito. Elas são, apenas, dois aspectos de
outra totalidade, ainda maior: o que se realiza no itinerário histórico para um futuro de
liberdade, paz, justiça e união fraternal, em vez de dominação do semelhante. O direito
é substancialmente, na sua onto-teleologia, um instrumento que deve (para preencher
o seu fim), propiciar a concretização de justiça social, em sistemas de normas com
particular intensidade coercitiva. No universo jurídico, entretanto, uma dialética se
forma, entre as invocações de justiça e as manifestações de iniqüidade, para a síntese
superadora das contradições. Mas a consumação d projeto, como o de um ensino certo
do direito certo, só pode ocorrer, como direito justo homogeneizado, numa sociedade
justa e sem oposição de dominantes e dominados. Preconizá-la é também um passo,
embora minúsculo, para o seu advento. O único, porém, ao alcance das minhas
deficiências e temperamento; o que realizo, como posso, devolvendo o direito, como
um todo, aos espíritos jovens e inquietos, que o reclamam, E isto é viável, dentro das
condições do próprio ensino atual, desde que os professores de índole progressista o
focalizem, nos seus programas e aulas. Ou assim, no estilo informal deste relatório, em

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(perdoem-me: o tema é vasto e empolgante) uma tão longa conferência. De qualquer
maneira, “o mundo dos juristas, tão calmos, tão bem educados e tão bem-pensantes
não é mais o mesmo. Nem se cogita de rendição à nostalgia. É preciso ver os sinais do
mundo diferente, que está em gestação. (MIALLE, 1978:146).
E, para isso, deixo-lhes, como inspirações e lema, a frase dum jurista
notável, GUSTAV RADBRUCH: “só é bom jurista quem o é, de consciência pesada”
(RADBRUCH, 1954:44).

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