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A SOCIOLOGIA DA CAPACIDADE CRÍTICA'

Luc Boltanski* *
Laurent Thévenot* * *
Uma primeira versão
deste texto foi uma con­
ferência dada por Luc
Boltanski no Institute
for Advanced Study,
Este artigo defende que várias situações na vida social
Princeton, e beneficiou- podem ser analisadas em seu requisito de justificação
se da leitura atenta, co­
mentários e assistência
da ação. E particularmente em situações de disputa
de Terry Nardin. O ar­ que surge uma necessidade de esclarecer as bases nas
gumento apresentado
quais é distribuída a responsabilidade pelos desvios e
aqui de forma resumi­
da foi desenvolvido em novos acordos podem ser alcançados. A partir do fato
Boltanski e Thévenot
de que existe uma pluralidade de modos dejustificação
(1987, 1991) e em Bol­
tanski (1990). Tradução mutuamente incompatíveis, as disputas podem ser
de Marcos de Aquino entendidas como desacordos acerca da violação ou
Santos, a partir do artigo
“T he sociology o f criti­ cumprimento da regra dejustificação aceita, ou ainda
cai capacity”, publicado como desacordos sobre qual é o modo de justificação
em European Journal of
Social Theory, v. 2, n. 3, que deve ser empregado. 0 artigo desenvolve uma
p. 359-377 Copyright © gramática dos referidos modos dejustificação, chamados
1999 Sage Publications:
London, Thousand de ordens de grandeza (grandeur), e sustenta a hipótese
Oaks, CA and New Delhi. de que a capacidade crítica humana se torna visível na
* Professor na École des
flautes Études en Scien­ ocorrência cotidiana de disputas sobre os critérios da
ces Sociales e diretor do justificação. Ao mesmo tempo, é sublinhado que nem
Groupe de Sociologie
Politique et Morale. Suas todas as situações sociais podem ser interpretadas com
obras mais recentes in­ o recurso a este senso de justiça, que reside em uma
cluem Le nouvel esprit
du capitalisme, com Eve
noção de equivalência. Regimes de amor, violência ou
Chiapello, e La condi- familiaridade são sistematicamente distintos dos regimes
tion foetale: une socio­
logie de 1’engendrement
de justificação.
et de 1’avortement. [e-
mail: boltanski@ehess.ff]
"Professor na École de.s
Palavras-chave: ação; coordenação; crítica; disputa;
Hautes Études en Scien­ justificação.
ces Sociales, diretor do
Groupe de Sociologie
Politique et Morale e pes­
quisador sênior no Cen­
tre d’Études de 1’Emploi,
Paris. Dentre suas pu­
blicações mais recentes
destacam-se De la justi-
fication: Ies économies
de la grandeur, com Luc
Bolltanski, e Laction au
pluriel: sociologie des ré-
gimes d’engagement. [e-
mail: thevenot@ehess.frl
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N ota d o tradutor

Procuramos oferecer ao leitor uma amostra daquilo que vem sendo


produzido em matéria de teoria social no âmbito do Groupe de Sociologie
Politique et Morale, da Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, de Paris,
formado por pesquisadores em Sociologia, Antropologia, Ciência Polí­
tica e Filosofia. Para tanto, este artigo se nos afigura assaz exemplar a
respeito do posicionamento comum que une as diferentes pesquisas ali
realizadas. Publicado originalmente em 1999, sua finalidade era a de
apresentar de maneira concisa a linha de argumentação desenvolvida em
De lajuslification, de 1991, a volumosa obra que aglutina e pormenoriza o
conjunto de idéias do grupo. Trata-se de uma ciência social - de grande
repercussão na França que aos poucos, vem-se tornando eminente em
diversas outras partes do mundo, aí incluindo o Brasil - que destaca o
desempenho pragmático de tipos gerais mobilizados pelos atores nas
disputas sobre a adequação dos seus posicionamentos ou na coordenação
das suas ações; um arcabouço teórico que busca compreender as gramá­
ticas sobre as quais repousam as reivindicações de justiça e as denúncias
de injustiça nos arranjos coletivos.
Até o presente momento não havia tradução para o português de ne­
nhum documento expositivo que articulasse os principais fundamentos
desse quadro teórico, formulado como divergência da “sociologia crítica”,
em favor de uma “sociologia da crítica”, mais aparelhada à observação
de como as pessoas, em situações específicas, recorrem às “ordens de
grandeza” (cités) como sustentáculo da legitimidade de suas operações
críticas. Assim, ao publicar este artigo, acreditamos contribuir para o
preenchimento da não-desprezível lacuna de inteligibilidade que subjaz
no nosso debate acadêmico quando este se dá em torno de vocábulos
pertencentes a outro idioma. Todavia, sem pretender determinar em
definitivo os correspondentes nacionais às expressões integrantes da
vertente teórica aqui presente, a tradução que ora vem a lume pode ser
igualmente colocada como objeto de discussão, visto que não há ainda
consenso sobre a melhor maneira de transportar o alcance de significado
de alguns conceitos, sendo o de cité o mais notório deles. Nossa prefe­
rência por “ordem de grandeza” é condizente com o termo em inglês
order o f worth, utilizado no texto.
Sem mais demora, entregamos à comunidade científica este que deverá
ser o primeiro de muitos artigos de Luc Boltanski e Laurent Thévenot
no Brasil.
Marcos de Aquino Santos

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O MOMENTO CRÍTICO

Este texto focalizará a análise de determinadas ocasiões que desempe­


nham um papel importante na vida social1. A fim de nomear tais ocasiões,
usaremos o termo momentos críticos (moments critiques), que faz referência,
ao mesmo tempo, à atividade crítica das pessoas e à raridade de um mo­
mento de crise. O que é pertinente para o argumento é a refiexividade
desse momento crítico. A situação inicial é mais ou menos a seguinte: as
pessoas, envolvidas em relações costumeiras, fazendo coisas juntas - a
saber, em política, trabalho, sindicalismo - e tendo que coordenar suas
ações, dão-se conta de que há algo errado; que elas não conseguem mais
conviver; que algo mudou.
Dar-se conta de algo possui uma dupla significação. O termo aponta ao
mesmo tempo para um movimento reflexivo interior e para uma per­
formance no mundo exterior. No processo de se dar conta de que algo
está errado, deve-se tomar distância do momento presente e retroceder
ao passado. Coisas antigas, palavras esquecidas, atos concluídos, voltam
à mente da pessoa or meio de um processo seletivo que os relaciona a
fim de produzir uma narrativa que faça sentido. Essa volta retrospectiva
interrompe o curso da ação.
Porém, essa quebra no curso da ação possui também outro motivo. A
pessoa que se dá conta de que algo não está funcionando raramente
permanece em silêncio. Ela não guarda os seus sentimentos para si. O
momento em que se dá conta de que algo não está funcionando é, na
maioria das vezes, aquele em que percebe não poder mais suportar esse
estado de coisas. A pessoa deve, por essa razão, expressar desconten­
tamento em relação às outras com quem estivera desempenhando, até
então, uma ação conjunta.
A demonstração desse descontentamento pode terminar em um “escân­
dalo”. O escândalo propriamente dito assume diferentes formas, e pode
facilmente se converter em violência, contudo, não investigaremos tal
possibilidade.
Mais freqüentemente, o escândalo torna-se uma discussão na qual críticas,
acusações e queixas são trocadas. Assim, ele se desdobra em uma con­
trovérsia. A palavra “escândalo” sugere querelas domésticas, e a palavra
“controvérsia” litígio judicial. O primeiro é visto como informal, enquanto
que a segunda é conduzida pelo sistema judicial. No entanto, há uma
profusão de casos intermediários, como, por exemplo, as discussões em
lojas ou repartições, entre clientes e funcionários, ou os desentendimentos
na rua, entre motoristas. Investigamos os traços comuns destas situações

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bem diversas e assim tentamos delinear uma estrutura geral para a análise
dos processos de disputa em uma sociedade complexa.
Uma primeira característica que se pode observar nessas situações é que
as pessoas nelas envolvidas estão sujeitas a um imperativo de justificação.
Aquela que critica as outras precisa produzir justificações a fim de dar
suporte a suas críticas, assim como a pessoa alvejada precisa justificar suas
ações para defender sua causa. Tais justificações precisam seguir regras
de aceitabilidade. Não podemos dizer, por exemplo: “Eu não concordo
contigo porque não vou com a sua cara”. E não há razão para pensar
que estas regras de aceitabilidade sejam diferentes para aquele que cri­
tica e para aquele que deve responder às críticas. Assim, um quadro de
análise da atividade de disputa deve, com as mesmas ferramentas, ser
hábil em ocupar-se das críticas, a qualquer ordem, social ou situacional,
assim como da sua justificação.
Além disso, essas situações são necessariamente provisórias porque que­
bram o curso corriqueiro da ação. Ninguém pode viver constantemente
em um estado de crise. Logo, um dos modos de sair de uma crise é re­
tornar a um acordo. O quadro de análise deve, portanto, ser capaz de
manejar o acordo e o desacordo com as mesmas ferramentas.
Finalmente, estas disputas não são meramente uma questão de lingua­
gem. Disputas envolvem não apenas seres humanos, mas também um
grande número de objetos: em uma disputa profissional, por exemplo,
um computador cujos dados foram apagados; em uma disputa entre
herdeiros, uma casa ou um terreno; ou, em um bate-boca doméstico,
os pratos que devem ser lavados, e assim por diante. O quadro deve ser
delineado de modo que possa lidar com disputas no mundo real, isto
é, deve ser capaz de descrever a maneira pela qual as disputas associam
pessoas e coisas.

O ESTABELECIMENTO DE EQUIVALÊNCIA

Vamos focalizar o momento em que as pessoas entram em clisputa. Um


aspecto importante desse momento diz respeito ao estabelecimento de
equivalência. A fim de criticar e esclarecer a alguém o que é que está
ocorrendo de errado, é preciso mentalmente reunir diferentes grupos
de pessoas e objetos e fazer conexões entre eles. E preciso, por exemplo,
conectar eventos e detalhes retirados do passado para exibir as caracterís­
ticas pertinentes por eles partilhadas. A operação de aproximar diferentes
itens ou fatos deve ser justificada com a referência a um princípio de
equivalência que esclareça o que eles têm em comum.2

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Mas o próprio acordo é baseado na mesma espécie de operações. Para


tornar possível um acordo, pessoas particulares necessitam despir-se de
sua singularidade e convergir na direção de uma forma de generalidade
que transcenda as pessoas e as situações nas quais elas se relacionam.
Logo as pessoas, ao buscar o acordo, precisam pôr em evidência uma
convenção de equivalência que lhes é externa.
Consideremos, por exemplo, uma discussão entre dois motoristas depois
de uma batida. A indignação furiosa cio primeiro pode ser proveniente
de uma série heterogênea de aborrecimentos que ele sofrerá naquele
dia: sua mulher adoecera; seu filho tirara péssimas notas no colégio;
ele fora humilhado pelo chefe; ele está preocupado com uma dor na
garganta (que talvez seja câncer) e, somado a isso, este estúpido bate em
seu belo carro novo. Aí já é demais! Porém, o segundo motorista também
há de possuir uma série de razões pessoais para se queixar contra um
mundo torpe: sua mãe morrera justo no dia anterior; seus impostos
aumentaram; seu último livro fora recusado pelo editor e, além do mais,
há este idiota, no meio do caminho. Aí já é demais! Caso eles queiram
escapar da violência, precisam ser capazes de abolir, como “privados”,
a maioria dos motivos de descontentamento, e convergir na direção de
uma definição comum dos objetos pertinentes à situação - tais como as
leis do trânsito, o estado dos pneus etc. Não obstante, para convergir
nessa classificação dos itens pertinentes e não pertinentes, eles devem
compartilhar uma capacidade comum de enxergar o que cabe na situação
e sob que relação. Eles necessitam, por isso, de uma definição comum
da forma de generalidade que permite conectar esta situação a outras
identificadas como similares.
A possibilidade de fazer referência a um princípio de equivalência é
também um pré-requisito para qualquer cálculo. Para acusar ou criticar
de maneira consistente é preciso, portanto, munir-se de certa habilidade
de calcular. Se você quer, por exemplo, dizer numa voz zangada aos co­
legas com quem está escrevendo um livro: “sou sempre eu quem tem de
xerocar e fazer todas as tarefas, enquanto vocês lêem livros estimulantes
sentados confortavelmente em suas poltronas”, você precisa reunir e pôr
sob equivalência várias operações completamente espalhadas e heterogê­
neas. Diremos que a necessidade de realçar a equivalência é um aspecto
essencial do método ou regime seguido pelas pessoas quando precisam
conduzir-se em uma disputa. A tal regime de justificação daremos o
nome de regime de justiça.
Ao contrário, no curso habitual da ação comum as equivalências não
estão sujeitas à reflexão deliberada. Em vez disso, as equivalências que

ANTROpÕufiCA Niterói, n. 23. p. 121-144, 2. se m T2007]


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mantém a coordenação das ações podem estar, por exemplo, encapsu-


ladas nos objetos ou presentes em regras objetivadas. O exemplo mais
freqiientemente citado provavelmente é a estandardização do tempo e
dos calendários.
Em outro modo de coordenação, que chamaremos de um regime afetivo
(•régime d ’agapè) (BOLTANSKI, 1990), as pessoas cooperam ativamente
no processo de deixar de lado as equivalências, cie modo a tornar difíceis
as operações de acumulação e cálculo requeridas para culpar e criticar.
Um bate-boca emocionalmente intenso, que envolve pessoas conectadas
por laço afetivo, está situado precisamente na fronteira entre um regime
de ação que se dirige a recusar a medição de equivalência e, do outro
lado, um regime de ação em que as pessoas trazem à tona medidas de
equivalência e põem ênfase nelas. Cenas assim foram freqiientemente
apresentadas em obras literárias. Mas, na maioria dos casos, os escritores
introduzem tal cena na descrição de relacionamentos amorosos. Contu­
do, como mostra o trabalho de campo, essa espécie de cena fronteiriça é
também muito íf eqüente entre pessoas envolvidas em relações profissio­
nais. A pessoa que se desloca de um regime a outro olha para os eventos
passados de forma desencantada: “Como era possível que eu fosse tão
tolo; quanta ingenuidade a minha; que fantasias eu alimentara! Eu batera
xérox nos últimos 20 anos ou (em outro contexto) eu lavara pratos etc.,
sem receber nada em retribuição. Agora, eu me dou conta [...]”. Porém,
esse momento de desassossego não é, como freqiientemente reivindicado
por aqueles que o experimentam, a hora da verdade. O regime no qual
se faz cálculos não é mais verdadeiro, não é mais real, do que o regime
no qual as pessoas inibem suas habilidades de cálculo. E a mudança
na percepção de mundo originada cie um rápido deslocamento de um
regime a outro que dá a ilusão de uma verdade evidente.
O regime de justificação, que requer convenções coletivas de equivalência,
somente é imperioso quando regimes de coordenação mais locais basea­
dos tanto em “comodidade pessoal” quanto em “utilização costumeira”
não estão sendo suficientes para lidar com a adversidade da situação e
determinar o que é conveniente ou ajpropriado (THEVENOT, 1990b).
No “regime de familiaridade” (THEVENOT, 1994) uma pessoa está
intimamente ajustada a um ambiente familiar, seja a sua casa ou local de
trabalho. As dinâmicas de tal ajustamento são altamente dependentes
de traços pessoais e locais que não estão claramente disponíveis para
um observador não familiarizado. Todos os maneirismos parecerão bi­
zarros a qualquer observador desprovido do conhecimento íntimo que
constitui o caráter da personalização como decorrência de um caminho

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de acomodação duradoura e parcialmente mútua com o entorno. Agora


imaginem que a pessoa, ao partir, deve deixar o lugar a um recém-
chegaclo não familiarizado. Há uma necessidade de pôr em ordem o
lugar a fim de dar a ele a condição apropriada a um regime inteiramente
diferente de ajustamento, alicerçado em uma ação regular e metódica
baseada em propósitos e funcionalidades. Isto envolve destruir uma
porção considerável do conteúdo familiar do complexo emaranhado de
um habitat. Equipamentos altamente “personalizados” não se encaixam
no formato de propósitos regulares e anônimos, a partir de artefatos
funcionais. Necessita-se que os objetos satisfaçam propósitos normais e
que sejam restauradas a seu estado normal as coisas saturadas pelo uso.
A linguagem comum, com sua denominação concisa das ações e dos
objetos, é suficiente para dominar este regime de ajustamento. Isto está
em acentuado contraste com a comodidade pessoal (na qual a linguagem
é altamente gestual e corporal) e também com as convenções coletivas
(na qual a linguagem é estritamente convencionalizada). Funcionem as
coisas incorretamente e uma disputa ganhe forma, as pessoas em discus­
são rejeitam a admissão implícita da normalidade de uma ação ou das
boas condições de um objeto. Elas agora farão referência a princípios
de eficiência, ou de segurança, por exemplo, que sejam gerais, para
justificar sua reclamação. E irão ancorar seus argumentos em requisitos
convencionais mais amplos, requisitos estes que os entes, tanto humanos
quanto não-humanos, devem preencher para serem qualificados. Elas
irão submeter as qualificações a uma prova referente às convenções.
No curso de uma disputa, a referência a um princípio de equivalência
é também uma operação básica executada necessariamente a fim de
levantar uma reivindicação de justiça, revelar uma injustiça e demandar
uma reparação. A fim de afastar a violência da situação, os descontentes
precisam demonstrar os seus motivos associando-os a comprovações e ju s­
tificações e precisam fazer isso de tal modo que possam ser atendidos.
É possível associar casos bem diferentes se se aceita a idéia de que as
disputas sobre o justo sempre dizem respeito a um desacordo cujo objeto
é a importância ou a grandeza (la grandeur) relativa dos diferentes seres
presentes na situação.
Ocupemo-nos de um problema bem comum: o de como, no decorrer de
uma refeição, distribuir a comida entre os convidados. Quando a mesa
é grande, os convidados não podem se servir sozinhos, como fazem em
um buffet meai. No decorrer da refeição, a questão da ordem do serviço
não pode ser evitada. E esta questão deve ser apresentada publicamen­
te. Pode-se, é claro, tentar escapar do problema, escolhendo amoldar a

a n t r o Ip o l ít ic a Niterói, n, 23, p. 121-144, 2. sem. 2007


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ordem temporal a lima ordem espacial que neutraliza o significado social


de ser servido primeiro. Este é o caso quando, abandonando qualquer
conceito de servir algumas pessoas antes de outras, o anfitrião faz circula­
rem despreocupadamente as travessas na mesa. Mas em todos os outros
casos, a ordem temporal do serviço é suscetível de ser interpretada como
uma ordem de precedência de acordo com a importância ou a grandeza
relativa dos convidados.
Porém, o cumprimento dessa ordem pode ser dificultado, particularmen­
te quando surge a possibilidade da existência simultânea de diferentes
ordens de grandeza. É melhor apresentar as iguarias primeiro à avó ou
ao chefe do anfitrião? A possibilidade de protesto origina-se da presença,
na mesma situação, de diferentes ordens possíveis. Um acordo tácito entre
os participantes acerca da espécie de qualidades que deve ser enfatizada
pela ordem do serviço é a condição de um evento harmonioso e sem
dificuldades. Mas a pré-condição desse acordo é um reconhecimento
comum de uma equivalência convencional que possa sustentar um ju ­
ízo acerca da importância ou grandeza relativa das pessoas envolvidas.
Mesmo que a referência a essa convenção não seja explícita, ela deve
ser clara o suficiente para produzir uma situação que pareça repousar
numa ordem natural.

A POSSIBILIDADE DE UM ACORDO LEGÍTIMO

Uma das principais características da espécie de acordo que temos em


mente é a sua exposição à crítica e a confrontação com ela, de modo real
ou potencial. Eis a razão pela qual ele deve ser justificado: para ser capaz
de opor-lhe uma resistência, caso atacado. Nosso objeto não é, portanto,
um acordo mútuo e circunstancial entre indivíduos (que poderia ser
considerado indefensável e, assim, logicamente inconsistente), e sim um
acordo justificado que almeja enfrentar a crítica e cuja compatibilidade
com um requisito de generalização pode ser observada.
Por enfatizar o processo de justificação, queremos considerar seriamente
a questão da legitimidade do acordo, em vez de excluí-la em favor de uma
explanação arranjada exclusivamente em termos de casualidade, conluio
ou força. Certamente não subestimamos a importância da dominação,
da força, dos interesses e até mesmo do artifício, da fraude e da enga­
nação na vida social. No entanto, uma representação do mundo social
completamente baseada na dissimulação e na fraude deixaria de gozar
da capacidade de explicar as experiências dos próprios atores sociais.

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0 principal problema da sociologia crítica é a sua inabilidade em enten­


der as operações críticas empreendidas pelos atores. Uma sociologia que
deseja estudar tais operações - uma sociologia que se debruça sobre a
crítica como seu objeto de estudo específico - deve, portanto, abandonar
(se não, temporariamente apenas) a postura crítica, a fim de reconhecer
os princípios normativos que sustentam a atividade crítica das pessoas
comuns. Se quisermos levar a sério as reivindicações dos atores quan­
do estes denunciam a injustiça social, criticam as relações de poder ou
desvelam as razões ocultas de seus adversários, devemos concebê-los
como dotados de uma habilidade para diferenciar maneiras legítimas
e ilegítimas de apresentar críticas e justificações. E, mais precisamente,
esta competência caracterizadora do sentido ordinário de justiça que
as pessoas cumprem em suas disputas. Tentaremos delinear agora a
análise dessa competência. Nosso objetivo é descrever o senso de justiça
dos atores - ou, mais precisamente, seu senso de injustiça - e construir
modelos de competência com os quais os atores devem estar equipados
para enfrentar situações críticas comuns. Esta abordagem afasta-se, assim,
da tarefa da filosofia moral, que é descobrir alguns procedimentos e eixos
normativos que conduzem à justiça, embora seja possível construir um
modelo normativo de justiça a respeito do senso de justiça do ator, fato
que explicitaremos.3
Pode-se dar a conhecer o requisito de legitimidade por meio de uma
afirmação bem prática: uma crítica ou uma justificação pode ser tida
como legítima em uma situação concreta quando o seu formulador
puder mantê-la,quaisquer que sejam as características sociais que os
seus interlocutores recém-chegados puderem apresentar. O efeito do
requisito de legitimidade é, portanto, pôr em movimento um processo
de generalização.

O MODELO DO SENSO DE JUSTIÇA

Em situações sob requisito de justificação, as pessoas devem basear suas


posturas em uma grandeza legítima. Porém, tal afirmação não implica
que todas as formas de comportamento devam ser reunidas sob um único
princípio de equivalência. Nosso trabalho objetiva construir uma estraté­
gia de investigação no campo sociológico - como fez Michael Walzer na
filosofia da justiça - que possa nos habilitar a escapar de ter de escolher
entre um universalismo formal e a espécie de pluralismo ilimitado que
tem sido freqüentemente a reação das disciplinas empíricas, como história
ou sociologia, a posições transcendentais.

ANTROfOLÍTICA Niterói, n. 23, p. 121-144, 2. sem. 2007


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Para a sociologia clássica, a pluralidade de valores é um efeito da plu­


ralidade de grupos sociais. Não obstante, em tal estrutura, é difícil de
responder a questão do acordo entre pessoas que pertencem a grupos
diferentes sem o recurso a uma explicação baseada sobretudo na do­
minação, no poder ou na força. Teorias morais devotadas à análise das
pré-condições de uma sociedade justa são, ao contrário, na maioria das
vezes dedicadas à busca de um método universal capaz de dar suporte à
fundação de uma convenção geral. A utilidade de tais construções para
o trabalho sociológico depende essencialmente de que elas se tornem
sistemáticas e consistentes. No entanto, elas podem ser vistas como uto­
pias quando confrontadas com a diversidade de situações nas quais os
membros de uma sociedade complexa estão envolvidos.
Podemos escapar da alternativa entre universalismo formal e pluralismo
ilimitado, considerando a possibilidade de um pluralismo limitado de
princípios de equivalência possíveis de serem usados para dar suporte
a críticas e acordos (BOLTANSIÍI; THÉVENOT, 1991). A referência a
diferentes espécies de bem-comum é que torna possível classificar di­
ferentes maneiras de decidir a respeito do estado de grandeza de uma
pessoa. Neste modelo, então, as diferentes formas de equivalência não
são relacionadas a diferentes grupos - como o são na sociologia clássica -
mas a diferentes situações. Segue-se que uma pessoa deve - a fim de agir
de maneira normal - ser hábil em se deslocar, durante o espaço de um
dia ou mesmo de uma hora, entre situações que pertencem a diferentes
formas de equivalência. Os diferentes princípios de equivalência são
formalmente incompatíveis entre si, desde que cada um deles seja reco­
nhecido na situação na qual sua validade é estabelecida como universal.
Decorre que as pessoas, quando estão em uma dada situação, devem ter
a habilidade de ignorar, ou esquecer, os princípios nos quais basearam
suas justificações quando estiveram envolvidas em outras situações.
A fim de descobrir a grandeza legítima disponível para as pessoas quando
estas devem, nas situações costumeiras, explicitar seus fundamentos e
produzir justificações, a nossa estratégia foi a que se segue. Iniciamos a
partir de dois pontos diferentes, aparentemente bem distantes um do
outro, entre os quais retrocedemos e avançamos. Mais precisamente, usa­
mos três corpora de dados. Dados empíricos recolhidos em nosso trabalho
de campo acerca do processo de disputa constituíram o primeiro corpus.
Essa linha de pesquisa (realizada com um grupo de estudantes de gra­
duação e coordenada em um seminário) municiou-nos com um grande
conjunto de argumentos e dispositivos situacionais dos quais podemos
extrair justificações usadas freqüentemente no cotidiano. Lembremos de
uma situação muito familiar no nosso próprio meio, por exemplo, uma
ANTROpÔLÍTÍCA ~ Niterói, n. 23, p . l2 1 -144, 2. sem. 2007]
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controversa discussão a respeito da importância de um livro recentemen­


te publicado por um colega. Pode-se argumentar que este livro é muito
bem conhecido ou que ele está vendendo muito bem. Mas é possível
contrapor-se a estes elogios argumentando, por exemplo, que tal livro não
é o resultado de um trabalho realmente sistemático ou, sob outro ponto
de vista, que ele não é muito criativo. As grandezas ou os patamares de
importância atribuídos às pessoas ou objetos tornam-se especialmente
salientes quando a situação se torna uma disputa, de modo que o estudo
de tais situações é uma ocasião muito boa para detectá-los.
O segundo corpus utilizado é feito cie um conjunto de textos clássicos
oriundos do campo da filosofia política. Essa escolha foi motivada pelo
fato de que, durante o curso de disputas empiricamente observadas, as
pessoas não necessariamente desenvolvem cálculos sistemáticos dos quais
o analista poderia derivar os princípios de equivalência que sustentam o
processo de avaliação e qualificação. Tais exigências de sistematicidade,
que levam a uma clarificação de princípios, ao contrário, encontram-
se justamente no âmago de filosofias políticas que devem, para serem
convincentes, demonstrar que o bem-comum no qual elas se baseiam é
apropriadamente fundamentado. Então, comparando diferentes cons­
truções filosóficas de natureza política, identificamos diferentes princípios
de equivalência e construímos um modelo da maneira pela qual eles
podem sustentar legítimas reivindicações de justiça.
Usamos, então, este caminho indireto pela filosofia política a fim de aper­
feiçoar o nosso entendimento das competências que os atores cumprem
quando devem justificar suas ações ou críticas. O processo cie disputa
não pode ser reduzido a uma expressão direta de interesses egoístas,
nem a uma confrontação anárquica e incessante de visões de mundo
heterogêneas. Observando o curso das disputas, ou, mais precisamente,
de disputas nas quais a violência está excluída, não se podem deixar de
observar os requisitos comuns que formam o comportamento das pes­
soas envolvidas. Por exemplo, elas devem basear seus argumentos numa
forte evidência, expressando, desse moclo, a sua vontade de convergir
na direção de uma resolução do seu desacordo. Construções políticas
podem ser usadas como ferramentas poderosas para elucidar tais re­
quisitos e revelar as premissas que na maioria das vezes encontram-se
encapsuladas nos argumentos intercambiados no curso da ação. A leitura
que fazemos dos textos canônicos tem sido, portanto, instrumental e, por
isso, agudamente, desvia-se da tradição filosófica. Não estudamos estes
textos por si mesmos, nem como resultantes de um contexto social ou
histórico, mas como gramáticas gerais do vínculo político.

ANTROPOLÍT1CA Niterói, n. 23, p. 121-144, 2. sem . 2 0 0 7j


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É claro que não sugerimos que os membros habituais de nossa socieda­


de na realidade leram as obras que usamos para delinear os modelos
de competência que as pessoas cumprem quando estão envolvidas em
disputas. Mas as ordens de grandeza elucidadas e formalizadas nessas fi­
losofias políticas encontram-se também corporificadas nos dispositivos de
objetos que compõem as situações cotidianas. Elas estão neste momento
encapsuladas no âmago de um grande número de instituições comuns
e dispositivos sociais, como eleições, sindicatos, mídia, apresentações
artísticas e cerimônias familiares.
Enfocando a operação de justificação e crítica, nosso interesse recai me­
nos sobre as filosofias políticas que enfatizam o poder ou a força, do que
sobre aquelas dedicadas a assentar um equilíbrio social e político. Tais
construções têm em comum o fato de imaginar um mundo no qual os
seres humanos são claramente separados cios outros seres e se reúnem
pela virtude de uma igualdade fundamental. São filosofias políticas que
podem, portanto, ser caracterizadas pela ênfase que depositam em uma
humanidade comum. Nas diferentes construções que usamos como re­
cursos para elucidar o sentido ordinário de justiça, as pessoas são iguais
quanto ao seu pertencimento comum à humanidade. Mas, conforme a
comparação de textos de diferentes tradições demonstra, cada uma dessas
construções propõe um princípio específico de ordem ou equivalência
que possa ser executado, a fim de especificar em que consiste a grandeza
dos grandes (lesgrands) e, conseqüentemente, em que basear uma ordem
justificável entre as pessoas.
Uma pessoa envolvida na crítica deve ser dotada da habilidade de se
transportar de uma forma de justificação a outra, mantendo-se fiel a
esses mesmos requerimentos. A tentativa de explicitar tais requerimen­
tos, comuns a diferentes ordens, leva-nos a trazer à tona um modelo
comum [modele de citè) compartilhado por todas as ordens de grandeza
e que explica a possibilidade de deslocamento de uma a outra ou a de
construção de compromissos. A presença, no centro do modelo, de dois
diferentes requisitos básicos - primeiro, um requisito de humanidade
comum e, segundo, um requisito de ordem - produz certa tensão, uma
vez que as pessoas são iguais quanto a seu pertencimento à humanida­
de, ao mesmo tempo em que são colocadas dentro de uma hierarquia,
de acordo com um princípio de ordem específico. Segue-se que, neste
modelo, a distinção entre pessoas (os seres humanos em seus estados
antes de qualquer forma de qualificação) e estados de pessoas (que se
referem ao processo de qualificação) é crucial. Uma concepção na qual
os estados de pessoas - sua grandeza ou importância - são definitivos
deve, portanto, estar em desacordo com o princípio cie humanidade
ANTROjPOLÍTICA Niterói, n. 23, p. 12 1-144, 2. sem. 2007]
133

comum.'1 O momento crítico é precisamente o momento em que uma


discordância acerca cio estado de grandeza das pessoas se manifesta.
Alguém, por exemplo, fará a seguinte crítica: “O melhor computador
não foi destinado ao melhor programador”. Ou, em outra situação: “O
filho mais velho, aquele que tem direito às terras dadas como herança,
na verdade não é o que possui as qualidades morais requeridas para
administrá-las”. A manifestação dessa discordância cria uma incerteza
acerca da grandeza relativa dos seres envolvidos, o que produz inquie­
tude. Afim de resolver tal incerteza, um juízo, enraizado na situação, é
necessário. Para entender como este juízo se consuma, devemos pres­
tar atenção às condições pragmáticas de atribuição de grandeza a uma
pessoa. Alcançaremos, então, a questão acerca dos objetos e da relação
entre seres humanos e coisas. Para analisar o caso do programador cuja
competência profissional foi posta de lado, ou o do primogênito cujas
qualidades morais foram refutadas, temos de investigar as correlações
entre as pessoas e uma pluralidade de objetos, materiais ou não, tais como
máquinas, programas de computador, regulamentos, credenciais, leis de
herança, atributos do solo etc. Não queremos lidar com tais objetos como
meros suportes de significado simbólico, como freqiientemente fazem
os sociólogos. Queremos, pelo contrário, mostrar o caminho pelo qual
as pessoas, para enfrentar a incerteza, dispõem das coisas, dos objetos,
dos dispositivos usados como referentes estáveis, nos quais podem ser
baseados testes de realidade ou provas. Provas que permitem aos juízos
alcançar um acordo fundamentado e legítimo e, que, portanto, fornecem
a possibilidade de finalizar disputas.
A fim de demonstrar os mundos de objetos à disposição para a realização
de uma prova de realidade, examinamos um terceiro corpus, constituído
de algumas obras contemporâneas que pretendem servir de manuais ou
“cartilhas” do comportamento correto em empresas contemporâneas.
Estes guias são escritos por leigos e reivindicam uma função pedagógica.
Posto que se designam a ensinar às pessoas a maneira correta de organizar
novas situações e enfrentar as atuais, eles fazem referências a um grande
número de objetos informais que estão, é claro, ausentes dos tratados
filosóficos sobre política. Era importante, para nós, escolher guias diferen­
tes, cada um deles dedicado à demonstração de uma maneira particular
de definir a grandeza, mas todos consagrados ao uso no mesmo espaço
social, que, nesse caso, é o espaço da empresa contemporânea. A razão
é a seguinte. Como dito anteriormente, levantamos a hipótese de que as
mesmas pessoas devem, no mesmo dia e no mesmo espaço social, utilizar
diferentes dispositivos de fixação de valor, incluindo a referência a tipos
diferentes de grandeza, quando se deslocam de uma situação a outra.

ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 23, p. 121-144, 2. sem. 2007


134

As empresas são atualmente uma esfera bastante adequada para testar


essa hipótese. A co-presença, na empresa contemporânea, de recursos
heterogêneos, levando a diferentes formas de coerência e baseada em
diferentes princípios de justiça, é particularmente impressionante. Si­
tuações próximas no espaço e no tempo são justificadas de acordo com
diferentes princípios. E as mesmas pessoas precisam atravessar essas
situações. Tomemos o caso, por exemplo, de um engenheiro aeronáu­
tico que no mesmo dia pode ter de projetar um teste experimental de
um novo protótipo; conduzir uma discussão com gerentes comerciais
sobre os melhores argumentos técnicos que podem ser usados para
vender uma nova máquina; participar de um almoço para o qual foi
convidado um senador (i e, como um dispositivo de relações públicas),
e, no fim do dia, despir o paletó e comparecer ao encontro do sindicato
dos executivos do CFDT local. O mesmo indivíduo pode mais tarde
voltar à casa, ser repreendido por sua mulher por ter chegado tarde e,
depois de tudo, assistir a um concerto de um jovem pianista inspirado
e recém-descoberto.
Escolhemos guias de práticas cotidianas contemporâneos que poderiam
ser equiparados aos textos políticos clássicos dos quais extraímos os
princípios de orclem desempenhados em diferentes situações diárias.
Executamos, então, esta operação bastante desrespeitosa de processar
esses guias mundanos de ação prática juntamente com as obras imortais
dos filósofos políticos.

OS MUNDOS COMUNS

Ofereceremos agora uma curta descrição desses mundos comuns, mos­


trando para cada um deles: primeiro, os diferentes princípios de ordem
subjacentes obtidos dos textos clássicos; e, segundo, os seres (pessoas ou
coisas) que habitam estes mundos, descritos nos correspondentes guias
práticos. Em De la justification (1991) tratamos de destacar seis mundos
(ver Tabela 1), os quais supomos serem suficientes para descrever as
justificativas que funcionam na maioria das situações ordinárias. Con­
tudo, este não é um número mágico, evidentemente. Estes mundos são
construções históricas e alguns deles são cada vez menos capazes de
fundamentar justificações, enquanto outros estão emergindo. Pode-se
perguntar, por exemplo, se uma grandeza ambiental, ou uma grandeza
comunicacional não estariam vindo à tona no momento.

ANTROjPÕLÍTICA Niterói, n. 2 3 , p. 121-14 4 , 2. sem . 2007]


135

T abela 1 - O rdens de grandeza


Inspirada Doméstica Cívica da Opinião Mercantil Industrial
Modo de
Graça, não-
avaliação Estima, Interesse Produtividade,
conformismo, Renome Preço
(grandeza) reputação coletivo eficiência
criatividade

Formato da
Oral, Mensurável:
informação
Emocional exemplar, Formal, oficial Semiótico Monetário critérios,
pertinente
anedótico estatísticas
Relação
elementar Vínculo
Paixão Confiança Solidariedade Reconhecimento Troca
funcional

Qualificação
Desejo, Competência
humana Criatividade,
Autoridade Igualdade Celebridade poder profissional,
ingenuidade
aquisitivo perícia

O MUNDO DA INSPIRAÇÃO

A construção desse mundo é baseada em d cidade de Deus, de Santo Agos­


tinho, e em seu tratado dedicado ao problema da graça. Nesse mundo a
grandeza é vista como uma relação imediata com uma fonte externa da
qual irrompe toda grandeza possível. Esta grandeza repousa na obtenção
de um estado de graça e é, portanto, completamente independente do
reconhecimento por outros. Ela surge, particularmente, no corpo físico
quando preparado pelo ascetismo, e especialmente por meio das emo­
ções. Suas expressões são diversas e multiformes: santidade, criatividade,
sensibilidade artística, imaginação etc. A referência a este mundo é feita,
não obstante, a cada vez que as pessoas alcançam a grandeza sem se in­
comodar com as opiniões dos outros. E, por exemplo, o caso dos artistas.
Os artistas não necessariamente rejeitam os símbolos de reputação ou
o reconhecimento financeiro, mas devem, para serem aceitos, estabele­
cer um compromisso, sempre difícil de cumprir, com outra espécie de
grandeza, digamos, por exemplo, a do renome ou a mercantil. Mesmo
quando alcançam reconhecimento, eles nunca enxergam em seu sucesso
a base real do valor de sua obra ou deles mesmos.
A fim de apresentar os objetos do mundo inspirado utilizamos um guia
prático dedicado ao desenvolvimento da criatividade dos executivos
escrito por um “consultor em criatividade”, cujo título é L a créativité en
pratique. Assim como no tocante aos outros guias que mencionaremos
mais tarde, pode-se extrair dessa obra uma lista de termos referentes
a pessoas, objetos, qualidades e modos típicos de travar relações. Sem
entrar em detalhes, pode-se mostrar que, no mundo da inspiração, os
seres pertinentes são, por exemplo, espíritos, loucos, artistas, crianças.

a n t r o ,Po l ít ic a Niterói, n. 23, p. 121-144, 2. sem. 2007


136

Estes seres são conceituados e grandes quando são peculiares, extra­


ordinários, emocionantes. Seu modo típico de agir é sonhar, imaginar,
rebelar-se, ou ter experiências estimulantes.

O mundo doméstico
O mundo doméstico foi extraído de um comentário na obra de Bossuet
Lapolitique tirée des propres paroles de VÉcriture sainte. Em um mundo do­
méstico, a grandeza das pessoas depende de uma hierarquia de confiança
baseada em uma cadeia de dependências pessoais. O elo político entre
os seres é visto como uma generalização do parentesco e é baseado nas
relações face-a-face e no respeito à tradição. A pessoa não pode, neste
mundo, deixar de pertencer a um grupo, uma família, uma linhagem,
uma posição. Na construção política de Bossuet, o rei, considerado o
maior ser, é comparável a um pai, que se sacrifica por seus subordinados.
Neste modelo deve-se, para avaliar a grandeza de alguém, conhecer seu
lugar na rede de dependências da qual esta pessoa retira sua própria
autoridade.
A fim de descrever os objetos do mundo doméstico na atualidade, uti­
lizamos um guia prático que ensina boas maneiras e relações humanas
dentro da empresa, endereçado a trabalhadores expostos à mobilidade
social e promovidos a posições de maior responsabilidade (intitulado Sa-
voirvivre etpromotion). Nesse livro, as pessoas importantes e conceituadas
são chefes, patrões, ou mesmo parentes. Suas principais qualidades são
aquelas que lhes fazem distintas, francas, leais e de caráter. Os objetos
típicos são, por exemplo, os cartões de visita, os presentes, as heranças,
as casas, os títulos. Entre as maneiras apropriadas de estabelecer relações,
anotamos o ato de recomendar alguém, a geração de descendentes, a
educação, a reprodução ou a apresentação de um convite.

O mundo do renome
O mundo do renome foi extraído do Leviatã, de Hobbes, particularmente
do capítulo dedicado à honra. Se em um mundo doméstico a grandeza
tem valor apenas em uma cadeia hierárquica de seres, no mundo do re­
nome a grandeza é unicamente o resultado da opinião das outras pessoas.
A medida da grandeza das pessoas depende de sinais convencionais de
avaliação pública. Esta espécie de grandeza é baseada nada mais do que
no número de indivíduos que concedem seu reconhecimento. E, por isso,
inteiramente não-relacionada ao domínio das dependências pessoais, e
sem ligação com a impressão que as pessoas fazem de si mesmas. Por

ANTRO^ÕLITICA Niterói, n. 2 3 , p. 121-144, 2. sem. 2007]


137

essa razão, podem nascer disputas quando vem à luz uma divergência
entre a auto-imagem e o reconhecimento dos outros: nesse mundo, o
reconhecimento das outras pessoas é a realidade.
Como guia, utilizamos um livro de treinamento em relações públicas,
Príncipes et techniques des relations publiques. As pessoas pertencentes a
este mundo são as bem conhecidas celebridades, as estrelas, os líderes
de opinião, os jornalistas. Elas são conceituadas e grandes quando são
famosas, reconhecidas, de sucesso, ou convincentes. Os objetos correntes
nesse mundo são as marcas, os emblemas, os transmissores e receptores
de mensagens, os press releases e os booklets. O modo correto de travar
relações é, então, influenciar, identificar-se com alguém, causar a simpatia
de alguém ou falar sobre ele, ou bisbilhotar e disseminar rumores.

O mundo cívico
Provavelmente nenhuma obra apresenta melhor explicação sobre o que
um mundo cívico, ao menos em sua versão francesa, deva ser, do que
o Contrato social de Rousseau. No sistema cívico, como na comunidade
doméstica de acordo com Bossuet, a paz civil depende da autoridade de
um soberano cuja posição, acima da luxúria egoísta dos indivíduos, asse­
gura o bem-comum. Porém, o soberano de Rousseau é incorpóreo. No
mundo cívico, um soberano é formado pela convergência das vontades
dos homens, que, na qualidade de cidadãos, abandonam seus interesses
particulares e se conduzem exclusivamente na direção do bem-comum.
Esta grandeza cívica contrapõe-se às dependências pessoais, nas quais
a grandeza doméstica é baseada, bem como às opiniões dos outros, que
constituem a grandeza do renome. No mundo cívico, as pessoas são
pequenas se vistas como particulares, seguidoras dos ditames de uma
vontade egoísta, e, ao contrário, relevantes e dignas se percebidas como
membros da soberania incorpórea, que diz respeito exclusivamente ao
interesse geral. Para listar os principais objetos, pessoas e dispositivos
de um mundo cívico, e descrever as situações empresariais erigidas de
acordo com esta lógica, utilizamos dois guias de sindicato, editados pelo
CFDT, que se complementam um ao outro, Pour élire ou désigner les délégués
(Como eleger ou nomear representantes) e La section syndicale (O setor
sindical). O modo pelo qual é organizada a força de trabalho é regulado
por leis sociais que resultam do esforço, no século X IX , por satisfazer a
um princípio de equivalência cívico.
A peculiaridade do mundo cívico está em pôr o acento nos seres que não
são individuais, mas sim coletivos. Os seres humanos individuais podem
ser vistos como relevantes e valorosos apenas enquanto pertencentes a um
ANTROàOLÍTICÃ Niterói, n. 23, p. 121-144, 2. sem. 2007
138

grupo ou enquanto representantes de uma personalidade coletiva. Nesse


mundo, as pessoas importantes são, portanto, federações, comunidades
públicas, representantes ou responsáveis. Suas qualidades lhes conferem
um caráter oficial ou estatutário. Os objetos pertinentes são tanto ima-
teriais, tais como leis, códigos, processos, quanto materiais, como sedes
de sindicatos ou urnas, por exemplo. As relações dignas são aquelas que
envolvem ou mobilizam as pessoas para uma ação coletiva.

O mundo mercantil
A Riqueza das Nações (principalmente os primeiros capítulos, que descre­
vem como um mercado funciona), de Adam Smith, apresenta argumentos
que baseiam no mercado um sistema político harmonioso. O laço mer­
cantil coordena os indivíduos por meio da mediação de bens escassos,
cuja aquisição é pretendida por todos. Esta competição entre apetites
individuais subordina aos desejos dos outros o preço relativo à posse de
uma mercadoria. “O desejo sereno de riqueza”, como Albert Hirschman
escreve em As paixões e os interesses (HIRSCHMAN, 1981), citando Francis
Hutcheson, permite a construção de uma ordem harmoniosa que trans­
cende a confusão de interesses individuais.
O mundo mercantil não deve ser confundido com a esfera das relações
econômicas. Tentamos mostrar, pelo contrário, que as ações econômicas
são baseadas em pelo menos duas formas de coordenação, uma pelo
mercado e a outra por uma ordem industrial, cada uma delas servindo
de apoio a uma prova de realidade diferente.
Não pudemos encontrar um guia francês contemporâneo que pudesse
ser utilizado para descrever os objetos concernentes ao mundo mercantil
de hoje. Por esse motivo, recorremos a uma tradução francesa de um
livro estadunidense que ensina a arte dos negócios a um público vasto,
What they don’t teachyou at Harvard Business School. Para os nossos objetivos
esse livro é de particular interesse, pois atribui o êxito nos negócios a
uma experiência visivelmente desconectada da produção industrial: o
autor fez uma fortuna vendendo nomes de pessoas famosas a agências
de publicidade.
Em um mundo mercantil, as pessoas importantes são os compradores
e os vendedores. Eles são grandes quando são ricos. Suas principais
qualidades os apresentam como oportunistas em detectar e aproveitar
as oportunidades do mercado, desvinculados de qualquer laço pessoal e
emocionalmente sob controle. Eles se conectam um ao outro mediante
relações de competição.

ANTROjPOLÍTICÃ Niterói, n. 23, p. 121-144, 2. sem. 2007)


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O mundo industrial
O princípio de equivalência industrial foi extraído da obra de Saint-
Simon, fundador da sociologia francesa. Neste mundo, a grandeza é
baseada na eficiência. Ela pode ser medida em uma escala de capacida­
des profissionais. Conectada à produção de bens industriais, a grandeza
industrial é conservada na maneira pela qual dispositivos organizacionais
orientam para o futuro o planejamento e os investimentos.
Para descrever os objetos do mundo industrial utilizamos um guia cie
produtividade, Productivité et conditions de travail. Em um mundo industrial
os grandes são os especialistas. As palavras usadas para descrever suas
qualidades pessoais também poclem ser utilizadas para qualificar coisas.
Elas, pessoas e coisas, são estimadas quando são eficientes, produtivas,
operacionais. Elas empregam ferramentas, métodos, critérios, projetos,
valores, gráficos, etc. Suas relações podem ser tidas como harmoniosas
quando organizadas, mensuráveis, funcionais, padronizadas.

C ríticas e C o m pr o m isso s

A crítica pode ser interna a um mundo quanclo são percebidas falhas


ou defeitos, e seres são re-qualificados ou descobertos como pertinentes.
Ou ela pode ser mais radical e baseada em uma exterioridade. Nesse
caso, a avaliação crítica vem de fora e se fia em um mundo alternativo. E
precisamente porque as pessoas, ao contrário das coisas, podem existir
em uma pluralidade de mundos que elas sempre poderão denunciar
uma situação como injusta (mesmo que a crítica seja frouxa em relação
aos requisitos que devem ser preenchidos). No modelo que delineamos,
uma capacidade crítica pode, portanto, ser considerada uma disposição
caracteristicamente antropológica.
Pode-se demonstrar empiricamente que a maior parte das críticas hoje
costumeiras viabiliza-se por relacionar dois (ou mais) dos diferentes
mundos que esquematicamente descrevemos. Porém, o objetivo da crítica
pode ser mais ou menos raclical. Podemos, portanto, fazer uma distinção
entre duas formas de crítica baseadas em exterioridade.
Uma primeira forma de crítica consiste em denunciar uma prova de
realidade concernente a determinado mundo, revelando a presença,
dentro do próprio dispositivo de prova, de seres exógenos (ou intru­
sos), pertinentes a outro mundo. Consideremos, por exemplo, um
exame escolar estabelecido para medir as capacidades de um aluno,
e que, portanto, pode ser tido como industrial, principalmente. Pode-
se denunciar o aluno por ele ter demonstrado, durante o teste, o seu
ANTROjPOLÍTICÃ Niterói, n. 23, p. 121-144, 2. sem. 2007
140

prestígio e riqueza de família por meio de suas roupas, seus modos, sua
pronúncia distinta, seu paletó elegante e assim por diante. E pode-se,
ao mesmo tempo, denunciar o professor acusando-o de ter, consciente
ou inconscientemente, considerado em seu julgamento esses sinais de
opulência que não deveriam pertencer à avaliação escolar. A situação é
então criticada como injusta porque uma grandeza concernente a um
mundo foi deslocada a outro. A esta forma, denominaremos transporte
de grandeza. O princípio básico no qual a prova é baseada não é contes­
tado. Nesse caso, a denúncia é exclusivamente focada no desvelamento
da grandeza, própria a outro mundo, que as pessoas são acusadas de ter
introduzido na situação de prova. O processo de reparação consistiria,
então, em realizar uma nova e purificada prova.
Mas a crítica pode ser muito mais radical. Delinearemos agora uma segun­
da forma, na qual o alvo da crítica é o próprio princípio cie equivalência
no qual a prova de realidade é baseada. Nesse caso, o objetivo cia crítica
é substituir a prova corrente por outra, pertinente a outro mundo. A
disputa, então, não está mais direcionada aos rumos que a prova deve
seguir a fim de ser justa, e sim à questão de saber que espécie de prova,
concernente a que mundo, seria realmente cabível na situação. Imagine­
mos novamente a situação de um exame escolar. Mas desta vez a prova
acontece num dia em que os estudantes estão lá fora em protesto por
direitos civis. A polícia foi trazida. O alvoroço toma conta da rua diante
das janelas. Um professor poderia denunciar a maneira pela qual seus
colegas continuam a administrar o teste enquanto os estudantes estão do
lado de fora sendo espancados pela polícia. Ele pode dizer algo como:
“O que realmente importa agora não é que aconteça o exame, mas que
demonstremos nossa solidariedade com os estudantes”.
Como sugere este último exemplo, quanto mais impura uma situação
(no sentido de conter objetos concernentes a diferentes mundos), mais
fácil denunciá-la. Isso significa, na nossa estória, falar, por um lado, em
professores, quadros-negros, horários etc., e, por outro, em protesto,
direitos, pôsteres com lemas políticos, reivindicações de solidariedade etc.
Tais situações serão denominadas situações ambíguas (situations troubles).
Estas espécies de situações, que contém objetos de vários mundos, são
particularmente suscetíveis à crítica. Provavelmente esta é a razão pela
qual as situações nas quais importantes provas de realidade são realizadas
geralmente são aparelhadas de modo a serem tão puras quanto possível.
Os objetos de outros mundos são removidos a fim de desencorajar a
crítica e tornar difícil a contestação da prova. Do intercruzamento dos
seis mundos mencionados acima, retiramos uma matriz a partir da qual

ANTROjPOUTIGA Niterói, n. 23, p. 121-144, 2. sem. 2007]


141

pudemos traçar as críticas legítimas mais freqüentes em nossa sociedade.


Assim, por exemplo, pode-se contar com um princípio de equivalência
cívico para denunciar as associações pessoais do mundo doméstico. Tal é o
caso quando, por exemplo, os sindicalistas denunciam o paternalismo no
local de trabalho. Mas pode-se também, inversamente, criticar do ponto
de vista do mundo doméstico o modo cívico de relacionar pessoas e, como
se diz, denunciar o efeito totalitário das relações jurídicas, que destroem
as relações genuínas, humanas e calorosas entre os indivíduos.
A exploração empírica dessa matriz pode também revelar quais de seus
elementos são os mais sobrecarregados. Na França, por exemplo, o des-
velamento, a partir de um ponto de vista cívico, de ligações domésticas
encobertas, é extremamente freqiiente. E essa estimativa feita pelas pes­
soas que lhes serve, por exemplo, para sustentar as numerosas denúncias
de escândalos. E esse o caso quando, por exemplo, alguém descobre a
relação de parentesco ou amizade que une secretamente o prefeito, com
a insígnia de seu ofício, ao investidor a quem a assembléia legislativa da
cidade reservou o direito de construir a nova área de lazer.
Quando uma crítica radical desafia o próprio princípio no qual a situação
é baseada, a disputa se transforma numa competição entre duas diferen­
tes provas de realidade. As pessoas envolvidas, caso queiram encerrar
tal disputa, devem buscar retornar a uma prova unitária.
Mas pode-se considerar outro modo de encerrar uma disputa e obter
um acordo: assinalando um compromisso entre os dois mundos. Em um
compromisso, as pessoas conservam, intencionalmente, uma inclinação
ao bem-comum pela cooperação em manter presentes seres relaciona­
dos a diferentes mundos, sem buscar esclarecer o princípio no qual seu
acordo é baseado.5
No entanto, compromissos são fáceis de denunciar. Quando as pessoas
firmam um compromisso, elas agem como se pudessem contar com um
princípio superior no qual basear uma equivalência entre objetos de
diferentes mundos. A referência, por exemplo, aos direitos dos trabalha­
dores, é um compromisso entre o mundo cívico (onde cidadãos possuem
direitos) e o industrial (onde os trabalhadores são respeitáveis e grandes,
na medida em que se opõem aos ociosos). Nesse caso, os direitos das
pessoas como cidadãos em um mundo cívico são especificados em relação
à sua participação no mundo industrial. Estas vulneráveis construções
argumentativas (visto que tal aproximação não sobreviverá quando sua
consistência for questionada) podem ser fortalecidas por meio de sua
concretização em objetos ou instituições, feitas das coisas concernentes
aos mundos associados pelo compromisso (como na França, por exemplo,
ANTRO]POLÍfÍCA Niterói, n. 23, p. 121-144, 2. sem. 2 0 0 7]
142

o Conseil économique et social, que reúne em uma instituição objetivada


elementos dos mundos cívico, industrial e, até mesmo, doméstico).

O TÉRMINO DA DISPUTA

As duas possibilidades que mencionamos - a prova de realidade e o


compromisso - não são os únicos caminhos possíveis de serem seguidos
a fim de abandonar o momento crítico e retornar ao curso habitual da
ação. Freqüentemente, as pessoas desistem da disputa sem estabelecer
um novo acordo confirmado por uma prova de realidade. Se quisermos
compreender esses intrincados desfechos, provavelmente devemos deixar
o domínio da justiça, que depende de um princípio de equivalência, e
voltar o leme a outras lógicas de ação que, como no caso das relações
afetivas, põem de lado a referência a uma equivalência. E em tais lógicas
que o perdão se baseia (BOLTANSKI, 1990). Mencionar a perda do
interesse na disputa e o perdão não é evadir-se das ciências sociais. As
espécies de relação travadas sem nenhuma referência à equivalência po­
dem, também, com toda a certeza, ser explicadas através de uma análise
sociológica, e até mesmo empírica, assim como a ausência de crítica não
é meramente negativa, muito menos o simples resultado de dominação e
alienação. Freqüentemente é exigida das pessoas uma participação ativa
e uma capacidade especial para não perceber ou, ao menos, não tornar
manifesto aquilo que esteja funcionando mal. Sem esta capacidade, as
relações humanas cotidianas seriam simplesmente impossíveis.

A bstract
This article argues that many sitmtions in social life can be analyzed by their
requirementfor thejustification of action. It is in particular in sitmtions of
dispute that a need avises to explicate the grounds on which responsibility
for errors is distributed and on which new agreement can be reached. Since
aplurality of mutmlly incompatible modes of justification exists, disputes
can be understood as disagreements either about whether the accepted rule
of justification has not been violated or about which mode of justification to
apply at all. The article develops a grammar of such modes of justification,
called orders of worth (grandem), and argues that the human capacityfor
criticism becomes visible in the daily occurrence of disputes over criteria for
justification. At the same time, it is underlined that not all social sitmtions
can be interpreted with the help ofsuch a sense of justice, which resides on
a notion of equivalence. Regimes oflove, ofviolence or of familiarity are
systematically distinctfrom regimes of justification.

Keywords: Action; Coordination; Criticism; Dispute; Justification.


ANTROjPOLÍTICA Niterói, n. 23, p. 121 -144, 2. sem. 2007]
143

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N otas
1 Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Jan eiro, orientado pelo professor doutor José Ri­
cardo Ramalho c financiado com bolsa de estudos pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
NívelSuperior.doCoverno Federal. re-mail:aquinol 980@ vahoo.com .br: tels: 2269-8722:9316-44341.
2 A respeito desse estabelecimento de equivalência, ver, em inglês, Boltanski (1987); Bol-
tanski; Thévenot (1983); Thévenot (1984).
a Para uma comparação deste senso de justiça com as teorias da justiça de John Ra-
wls e Michael Walzer, ver Thévenot (1992) e o artigo “Justification et Compromis” no
Dictionaire d’éthique et de philosophie morale (CANTO-SPERBER, 1996, p. 789-94). Paul
Ricoeur comparou os modelos de justiça de Walzer e o nosso em relação ao lugar des­
tinado à política (RICOEUR, 1995).
A Ver, nesta perspectiva, a tentativa de Alexis Carrel de construir uma “cité eugénique" e
suas conseqüências na história da demografia e da estatística (THÉVENOT, 1990a).
5 Nesta perspectiva, podemos considerar as organizações como compromissos organiza­
dos e relativamente duráveis entre mundos diferentes. As organizações diferem entre
si no que diz respeito à espécie de mundos que elas envolvem, e à espécie de compro­
missos que lhes dão suporte.

ANTROjPOLITICA Niterói, n. 23, p. 121-144, 2. sem. 2007]

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