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As salvaguardas da Apostille de la Haye, a Responsabilidade Civil

e as traduções certificadas
Alan de Macedo Simões1
RESUMO
A tradução pública é um documento que possui particularidades muito interessantes. Ela
é um documento que passa por um processo de elaboração a partir de um outro
documento já existente e do qual todos os trâmites legais já foram realizados, portanto,
já sendo um ato jurídico perfeito e produzindo seus efeitos legais. Mesmo assim, ela é
um documento que possui uma formalidade como qualquer outro documento público.
Dessa forma, as traduções oficiais, ou traduções públicas estão no escopo da afixação da
Apostila da Convenção de Haia nos países signatários. Diante disso, procede-se a
verificação em várias dessas apostilas, colacionadas ao final, analisando se as
salvaguardas nelas encontradas são adequadas para a natureza peculiar das traduções
públicas.

Palavras-chave: Tradução juramentada, tradução pública, serviço notarial,


responsabilidade civil.

INTRODUÇÃO
As fronteiras são construções humanas. Algumas obedecem a limites naturais,
outras são estabelecidas por distinções culturais e históricas e algumas podem ser
derivadas de tratados, armistícios e qualquer outro fator.
Seja qual for a origem de uma fronteira, ela delimita a presença de um Estado.
Há situações em que essa representação é unificada a circunscrição de uma nação, de
uma cultura. Algumas vezes não é assim. A Bolívia, por exemplo, deixa claro, em seu
nome oficial ao denominar-se Estado Plurinacional de Bolívia. Como não é o escopo
central a delimitação de tais conceitos, mas é necessário pontuar que a diversidade é
uma questão cogente.
Isso deve ser pontuado ladeando o fato da Soberania Nacional e de cada país tem
a possibilidade de reunião de um sistema próprio de verificação de autenticidade e
publicidade de seus documentos. Dessa forma, são necessários alguns padrões para
trazer segurança jurídicas às relações internacionais.
Jean Bodin, ainda no século XVI, define Soberania ao analisar o Estado francês.
Há dois conceitos evocados do renascentista francês pelo contratualista patrício. O
primeiro é de que “Soberania é o poder absoluto e perpétuo de um Estado-Nação.” E

1
Doutorando em Estudos Literários (Universidade de Aveiro) e em Teologia (PUCPR), Mestre em
teologia, graduado em Línguas Português e Espanhol e Teologia.
esse conceito é complementado com a ideia de que Soberania “se estabelece na
mutualidade de Estados Soberanos restringindo-se um ao outro”.
Dessa forma, nota-se que o conceito de Soberania está ligando, em sua essência
relações entre Estados, em um processo de separação e de restrição. Hoje, a
independência de um país, sua Soberania e suas relações internacionais. Isso deve ser
permeado com a natural mobilidade humana.
É na busca de meios para e por essa mobilidade que surgem demandas como a
da Convenção da Apostila de Haia, de 1961, cujo nome oficial é Convenção Relativa à
supressão da Exigência dos Atos Públicos Estrangeiros. Acordo estabelecido pela
Conferência de Haia de Direito Internacional Privado.
Desse modo, sopesando a teoria da Responsabilidade Civil, faz-se pertinente
analisar as apostilas coletadas para a verificação das ressalvas encontradas no
documento e a análise se elas trazem alguma proteção ao tradutor.

OS SISTEMAS JURÍDICOS E A APOSTILLE DE LA HAYE


As relações internacionais no plano econômico, tecnológico e informativo
suplantam as limitações das fronteiras. Isso, indubitavelmente, produz efeitos e reflexos
jurídicos. Dessa forma, cabe aos Estados buscar adaptações teórico-práticas em relações
aos fenômenos que ocorrem e ocorrerão. Fato é que as pessoas manterão seus fluxos
migratórios e negociais e os Estados, nessa égide, terão que buscar meios de interação e
integração de suas formalidades, a fim de respeitar suas leis e sistemas.
Nessa busca, os Estados buscam estratégias de regularizar os movimentos
humanos. Para isso, convenções, tratados e instrumentos jurídicos são estabelecidos e
normatizam conflitos e questões que naturalmente surgem nessas mobilidades. Para
compreender isso, é preciso entender o que é a Soberania para fins de relações sociais.
Ao consultar o Dicionário de Relações Internacionais, o verbete Soberania o
define como sendo:
Governação política sem contestação de um Estado sobre determinado
território.
O direito exclusivo do Estado de exercer todos os seus poderes sobre o
território, como o monopólio de legislação, regulamentação e jurisdição.
[...]
É o poder dos poderes, aquilo a que Bodin chamava o poder supremo e
independente dos Estados. Supremo na ordem interna e independente na
ordem externa, ou seja, no plano internacional.
Depreende-se desse verbete trechos interessantes. O fato de ser a determinação
de um sistema com o escopo de não ter contestação de um terceiro estado, ou a
exclusividade sobre todos os poderes em seu território. Ou seja, um processo total de
independência em relação ao outro Estado. Ou, como citado poder supremo e
independente. Ou seja, a priori, pode haver a rejeição total de qualquer documento
estrangeiro.
O exemplo clássico da Soberania é o Tratado de Tordesilhas, de 1494, quando
dois estados soberanos, Portugal e Espanha, reconheceram mutuamente sua soberania,
inclusive de terras além do território primeiro. Evidentemente, essa não é a
manifestação inicial de um Estado Soberano. Ainda em Portugal, é assaz salientar o
Tratado de Zamora, de 1143, protocolo entre os Reinos de Portucale e Leão. Mas estes
ainda eram reinos em um arranjo composicional medieval, já Tordesilhas representa
melhor a Soberania por dois motivos bem evidentes, o primeiro é que Portugal e
Espanha já representavam o Estado Moderno, em que o Soberano está adstrito à ordem
jurídica estabelecida. Há uma subserviência legal (ainda que parcial) do soberano. O
segundo aspecto é que Tordesilhas representa, de certa forma, um fim da soberania
hegemônica da fé, representada pelo papado. Até então, tal poder era universalista,
pleno. Agora, reconhecia-se o poder de monarcas nacionais, ainda que fossem reinos
católicos.
Contudo, o conceito de Soberania não pode ser visto isolado. Dentro das
Relações Internacionais, há o princípio da Reciprocidade, que basicamente é o
direito/dever de tratamento igualitário entre Estados Soberanos. Ou seja, um Estado
Soberano pode flexibilizar seus direitos coercitivos na proporção que outro Estado
também flexibilize o direito dele. Usando a mesma fonte, o Dicionário de Relações
Internacionais, vê-se que Reciprocidade:
Significa a necessidade de reconhecimento mútuo e obrigação recíproca
dos actores no sistema internacional. A base de todas as Relações
Internacionais gira em torno da noção de reciprocidade. O conceito de
soberania não pode ter qualquer significado, a não ser que implique uma
obrigação recíproca de todos os Estados de respeitarem a soberania e
integridade territorial de cada um. Se esta norma fundamental não
existisse, a organização do mundo seria bastante diferente. Talvez fosse
um império universal ou um mundo composto por multidões de cidades-
Estado.
Em qualquer caso, a humanidade escolheu neste estádio da história
organizar-se na base de Estados distintos. E para um sistema estadual
sobreviver, a noção de reciprocidade é essencial.
Interessante observar que o próprio verbete faz uma referência cruzada
demonstrando que a Reciprocidade não impede a Soberania e a Soberania não anula a
Reciprocidade, mais bem são permeadas e vistas em. ponderação uma à outra. Assim,
cada Estado, em nome da Soberania, tem o direito de estabelecer sua estrutura jurídica
como entender melhor. Assim, cada Estado pode atribuir a autoridade para chancela,
reconhecimento, emissão, outorga, conferência, registro, lavratura publicidade ou
qualquer ato cujo documento será internacionalizado.
Da mesma forma, por serem sistemas jurídicos autônomos, o Estado receptor
emissor não precisa ter a mesma estrutura administrativa do Estado receptor. Uma
autoridade que, em um Estado Soberano, tenha capacidade jurídica para a emissão de
um documento pode ser restrita no Estado receptor.
Desse modo, em que pese já haver uma longa trajetória, no ambiente da teoria
política, de que a reciprocidade e a soberania são conceitos conciliáveis e dialogais.
Porque a Soberania é o poder de mando em última instancia em uma sociedade política.
Ou seja, a racionalização jurídica do poder no sentido de dar plena formalidade aos atos,
tornando-se um ato jurídico perfeito.
O ato jurídico perfeito é previsto na Constituição da República Federativa do
Brasil como uma das garantias pétreas. Trata-se de um instituto jurídico onde os atos
com repercussão no mundo jurídico quando realizados em toda a formalidade necessária
naquele momento são respeitados em outro local ou em outro tempo. Houve tempos
remotos os nascimentos eram registrados nos templos religiosos da cidade. Hoje há
cartórios, notarias e juntas de Registro Civil. Contudo, mas eventualidades em que são
necessárias comprovações da origem das pessoas, não se pode considerar aqueles
registros como com qualquer irregularidade, porque, à sua época, eles cumpriam as
determinações práticas e consuetudinárias da época.
Do mesmo modo, o local em que o ato jurídico é realizado, se ato jurídico
perfeito lá, é perfeito em qualquer lugar em que a soberania do local seja reconhecida.
Assim, se em um país, o ato jurídico se torna perfeito, em homenagem à reciprocidade,
ele produzirá efeitos no outro território soberano, ainda que ali o trâmite seja distinto.

A CONVENÇÃO DE HAIA E SUA APOSTILLE

É nessa esfera que a Diplomacia celebra, quando possível, Acordos, Protocolos,


Convenções e Tratados. Em que pese haver distinções claras entre tais institutos, para os
efeitos deste estudo, podem ser tomadas como sinônimos, no momento em que são
manifestações de relações internacionais e interacionais entre nações soberanas.
Dentro de tais relações internacionais, como exposto, é natural haver ressalvas
ou salvaguardas. As salvaguardas têm função específica, se dispõem a colocar travas em
interpretações elásticas de textos. Constituem-se de anotações que podem ser parte
integrante ou anexas ao texto. Podem ser inseridas dentro do mesmo parágrafo ou
colocadas como notas de rodapé, de fim ou até uma sessão específica ou texto anexo.
Ou seja, a estilística dos tratados permite que as ressalvas sejam dinâmicas e atendam a
natureza do documento em que serão colocadas.
Isso porque o texto, seja o original ou o traduzido ou versado, é dinâmico e,
assim, pode gerar mais de uma interpretação. Por meio das salvaguardas, reforça-se qual
a interpretação deve imperar. As salvaguardas são marcações extras do texto original e,
no caso analisado, aparecem em várias apostilas. Isso porque, ao traduzir, as palavras
são negociadas, tanto na língua de origem quanto na de destino.
Na de origem porque, embora não seja o autor do documento, ele será o primeiro
intérprete, na segunda, porque deverá fazer uma série de escolhas para selecionar o
sentido a prescindir que seja dito de tal forma. Por isso, cada tradução é uma série de
opções escolhidas de modo não aleatório pelo tradutor. Diante disso, as salvaguardas
trazem uma proteção restritiva ao tradutor, de tal modo aquele ele não permita
interpretações distintas daquela por ele intencionada.
As Convenções Internacionais recebem, de praxe, a denominação da cidade em
que são firmados. Como algumas cidades costumam receber vários encontros
internacionais, há situações em que são adicionados o ano em que é assinado. Na
convenção em análise, é preciso citar o ano, já que a cidade tem forte tradição
diplomática.
A cidade é sede da Organização das Nações e Povos Não Representados
(UNPO) e da Organização para a Proibição das Armas Químicas (OPAQ). Em 1899 e
1907 foi sede das Conferências de Haia que, conjuntamente com as Convenções de
Genebra são os primeiros tratados internacionais sobre leis e crimes de guerra. A
Convenção de 1899 e de 1907 tem como nome oficial “Convenção sobre a Resolução
Pacífica de Controvérsias Internacionais”. Lá, também estão sediados quatro tribunais
internacionais: O Tribunal Permanente de Arbitragem, o Tribunal Internacional de
Justiça, o Tribunal Penal Internacional para a ex-Iuguslávia e a Corte Penal
Internacional. Sendo sede, também da Europol e do Instituto Europeu de Patentes.
Ainda em Haia foram celebradas as convenções “Convenção de Haia para a Proteção de
Propriedade Cultural em Caso de Conflito Armado”, de 1954; “Convenção sobre a
proteção das crianças e sobre a cooperação em matéria de adoção internacional”, de
1995 e “Convenção de Paz de Haia”, de 2915.
A cidade tem tanta importância diplomática que chega a ser adjetivada pelo
Secretário-Geral das Nações Unidas da época. Van Krieken (2005) relembra o fato:
"na década de 1990, durante seu termo como Secretário-General das Nações Unidas,
Boutros Boutros-Ghali começou a chamar A Haia a capital jurídica do mundo"

No caso, a Convenção analisada será a “Convenção relativa à supressão da


exigência da legalização dos atos públicos estrangeiros”, de 1961. Acordo estabelecido
pela Conferência de Haia de Direito Internacional Privado. A nomenclatura já
demonstra a razão de existência da Convenção. Ou seja, a Apostila se refere a suprimir,
evitar que seja exigida a legalização de documentos públicos que sejam direcionados a
país estrangeiro.
Nesse viés, conforme os princípios de Soberania e Reciprocidade, que foram
analisados anteriormente, os documentos públicos passam a ser aceitos no país receptor
sem maiores formalidades, sendo um processo de legalização no país de origem. Por
meio deste processo de lavratura da apostila, os países signatários aceitam os
documentos estrangeiros com o status de que estes “cumpriram as exigências de trâmite
legal” no país onde o documento foi expedido.
Para compreender a Convenção, é necessário compreender os procedimentos
anteriores. O introito do texto da Convenção demonstra como seriam os procedimentos.
Diz o texto:
Os Estados signatários da presente Convenção,
Desejando suprimir a exigência da legalização diplomática ou consular dos actos
públicos estrangeiros,
Resolveram celebrar uma convenção com aquela finalidade e concordaram com as
disposições seguintes

Portanto, antes da Convenção, era necessário que o serviço diplomático ou


consular do país emissor do documento localizado no país receptor deveria proceder o
referendo sobre o documento público (ou particular que tenha passado por um aval
público, como o reconhecimento de firma ou registro em um serviço notarial). A
questão principal é que os serviços consulares e diplomáticos costumam ter um número
efetivo de pessoas reduzido e, principalmente, há dificuldades na verificação de
autenticidade, de verificação de nome e cargo do signatário a ser referendado e/ou a
autenticidade do selo ou do carimbo que constam no ato, de acordo com o artigo 2º da
Convenção.
Para isso, afixa-se no documento uma espécie de formulário cujos itens são
padronizados em dez pontos, determinados pelo anexo da Convenção, exposto a seguir
e que pode sofrer adaptações de tamanho e acréscimos de outras informações, mas não
ocorrer a supressão dos itens. A esse documento, dá-se o nome de “Apostila”. Como se
poderá observar nas apostilas acostadas, há inserção de brasões, escudos, textos de
instrução e, objeto desse estudo, salvaguardas.
Diante disso, foram coletadas várias apostilas para análises das que trazem
salvaguardas. No processo de colheita, algumas curiosidades foram constatadas. Um
exemplo é que os Estados Unidos da América é signatário, mas não padroniza sua
apostila, sendo cada Estado responsável por emitir sua apostila com formato e
salvaguardas que achar pertinente. Isso se justificaria pela ideia de serem “estados
unidos”, ou seja, a união de estados. Contudo, os Estados Unidos Mexicanos, país com
a nomenclatura e organização jurídica semelhantes e possui uma apostila única, ainda
que emitida por cada estado. Outra curiosidade é que algumas apostilas apresentam seu
texto padrão já em língua estrangeira, ao tempo que outras apostilas apenas se
encontram no idioma do país emissor.
Nas 31 apostilas analisadas, percebe-se que as salvaguardas giram em torno de
três assuntos somente. O primeiro é a limitação da apostila e a responsabilidade sobre o
documento. A segunda é sobre o sistema de verificação da autenticidade da apostila e o
terceiro, de que a apostila é um documento exterior, ou seja, que não produz efeitos para
o território do país emissor. Todas silentes quanto à tradução.
Acontece que a Apostila é afixada em documentos públicos, ou seja, em
documentos que passaram pela formalização de sua autenticidade perante alguma
autoridade que possuía capacidade para fazê-lo. Como dito acima, a capacidade de cada
ente dependerá da organização jurídica de cada país e a afixação da apostila
demonstrará o registro desse procedimento público. Evidentemente que o cenário
perfeito seria aquele em que o documento cumprisse todos os princípios e formalidades
legais no país de origem e sua tradução fizesse o mesmo no país de destino. ASENSIO
(2005) fala de um cenário ideal para a tradução dessas:
El ideal — inalcanzable — de la traducción jurídica sería que el documento traducido
recogiera exactamente los mismos significados potenciales que el documento original.
Tanto para deducir el significado documental como el jurídico es necesario saber
derecho, aunque en diferentes proporciones.
Definitivamente, o autor sabe ser impossível haver tais equivalências e tratados
assim auxiliam, justamente para o preenchimento de lacunas dessa natureza.

DA RESPONSABILIDADE CIVIL E DAS SALVAGUARDAS DA APOSTILA


A responsabilidade civil é um instituto do direito civil, comum nos sistemas
jurídicos nacionais pelo qual se resolvem questões de natureza não-criminal entre
pessoas, sejam elas jurídicas ou físicas. Esse nome possui um sentido polissêmico.
Nesse sentido, pontua José Aguiar Dias acerca da elasticidade que se pode conferir ao
tema em voga:

“Várias são, pois as significações. Os que se fundam na doutrina do livre-arbítrio,


pondera o eminente Pontes de Miranda, sustentam uma acepção que repugna à ciência.
Outros se baseiam na distinção, aliás, bem vaga e imprecisa, entre psicologia normal e
patológica. Resta, rigorosamente sociológica, a noção da responsabilidade como aspecto
da realidade social. Decorre dos fatos sociais, é o fato social. Os julgamentos de
responsabilidade (por exemplo: a condenação do assassino ou do ladrão, do membro da
família que a desonrou) são ‘reflexos individuais, psicológicos, do fato exterior social,
objetivo, que é a relação de responsabilidade. Das relações de responsabilidade, a
investigação científica chega ao conceito de personalidade. Com efeito, não se
concebem nem a sanção, nem a indenização, nem a recompensa, sem o indivíduo que as
deva receber, como seu ponto de aplicação, ou seja, o sujeito passivo ou
paciente’”(Pontes de Miranda, in Paulo Lacerda (Manual do Código Civil, XVI, 3ª
parte. Direito das Obrigações, “Das obrigações por atos ilícitos” p. 7 e segs. Apud: José
Aguiar Dias, Da Responsabilidade Civil, 12ª Edição, Editora Lumen Juris, Rio de
Janeiro, 2011, pag. 1).

É preciso entender que a própria ideia de Justiça deriva de um dever social de


que todos devem responder por seus atos, sendo tal concepção o próprio fundamento da
responsabilidade civil. E para tanto, importante é o papel da responsabilidade moral,
extraída da consciência pessoal e do estado de alma do agente, com a finalidade de se
alcançar o dever de reparação do mal causado e prevenção de futuros prejuízos.
Os eventos de natureza civil, assim como os criminais, buscam a harmonização
do convívio social. Contudo, sua diferenciação está na índole. Nos eventos amparados
pelo direito criminal, o caráter delitivo é avaliado e considerado pelo Poder Judiciário.
Nos eventos criminais, há a intensão deliberada de descumprir o ditame legal e a
consciência delitiva pelo autor.
Na esfera civil, isso não acontece, já que não há tal consciência da ação delitiva.
Importante ressaltar que não há conflito entre os dois institutos. Dessa forma, é possível
haver uma condenação de determinada conduta na esfera civil e a absolvição da mesma
conduta na esfera criminal, a absolvição em ambas ou até a condenação em ambas.
Judith Martins Costa sustenta, sobre a responsabilidade civil e sua vinculação
com a culpa, que:
O antigo fundamento da culpa já não satisfaz, outros elementos vêm concorrer para que
a reparação se verifique, mesmo em falta daquela. Daí o surto das noções de assistência,
de previdência e de garantia, como bases complementares da obrigação de reparar: o
sistema da culpa, nitidamente individualista, evolui para o sistema solidarista da
reparação do dano” (...) Sob esse prisma, razão de ser da própria Justiça, atrelada à idéia
de equilíbrio, o que ensejaria uma justiça distributiva voltada a um critério de
equivalência de prestações (suum equique tribuere), sem nenhuma ressonância da idéia
de culpa. Isto porque “o sistema de reparação ou repressão de danos repousa,
precisamente, na noção de justiça enquanto equilíbrio, relação harmoniosa entre o todo
e as partes. A distribuição igual, vale dizer, harmoniosa da justiça é, para aquele
sistema, um dos objetivos do direito” (COSTA, Judith Martins. Os Fundamentos da
Responsabilidade Civil. Revista Trimestral de Jurisprudência dos Estados. Ano 15 –
Outubro 1991. V. 93. p. 35).

Dessa forma, uma a responsabilidade civil é um instituto que poderia ser


definido pelas palavras de José de Aguiar Dias, ao expor que:
Responsabilidade Civil é a situação de quem, tendo violado uma norma qualquer, se vê
exposto às consequências desagradáveis decorrentes dessa violação, traduzidas em
medidas que a autoridade encarregada de vela pela observação do preceito lhe imponha,
providências essas que podem, ou não, estar previstas” (Da Responsabilidade Civil. 10ª
ed, 2ª tir, rev. e aument. Rio de Janeiro: Forense, 1995, v. I, p.3.).

Os notários são, portanto, responsáveis pelos atos que praticam, isso acontece na
legislação brasileira (art. 22 da lei 8935/94), bem como na portuguesa (art. 798 do CC).
Nos dois casos, as responsabilidades se restringem ao caso de danos patrimoniais que
sejam causados por terceiros, decorrentes exclusivamente de ações ou omissões no
exercício profissional da atividade notarial. São responsáveis, também, pelos custos de
reparação em documentos e dados, as despesas decorrentes da reparação, renovação,
reconstrução ou reelaboração de arquivos, certidões, recibos, faturas, contratos,
escrituras, testamentos ou quaisquer outros documentos ou até informações magnéticas
do lesado.
Do mesmo modo, o tradutor possui a responsabilidade sobre seus atos, não por
força de legislação específica, mas por legislação geral. Esta previsão legal também se
aplica a seu ofício e neste não está isento de sua responsabilidade. Contudo, é
necessário, nesse ambiente, caracterizar o dano ocorrido, uma mera diferenciação de
vocábulo escolhido ou um erro formal sobre o qual não ocorra nenhum dano, como uma
data trocada ou um erro de digitação menor e em um ponto sem grande relevância
(como um substantivo próprio principiado com uma letra minúscula), ou um erro claro
de digitação, nenhum desses casos, ou até em um erro maior, como um erro no nome,
mas que possa ser sanado ou comprovado ser erro de mera digitação (a pessoa se chama
Roberto e o documento consta como Robertp, sendo que a tecla o fica ao lado da tecla
p) e a pessoa apresenta uma série de documentos em que todos, inclusive no original,
aparece o nome Roberto.
Isso porque pequenos equívocos assim não trazem insegurança jurídica. São
facilmente verificáveis e podem facilmente ser remediados e pormenorizados. É
desnecessário que o tradutor seja um advogado ou um graduado em direito.

CONCLUSÃO

Em que pese as traduções e os documentos originais devam ser devidamente


apostiladas, para que possam produzir os plenos resultados jurídicos no país estrangeiro
em que serão apresentadas, neste processo de investigação, não se vislumbra qualquer
proteção jurídica ao texto traduzido. Muito pelo contrário. As salvaguardas utilizadas
pelos emissores das apostilas são, justamente, em sentido contrário.
A Apostila de Haia poderia ser um momento adequado para que se
apresentassem salvaguardas ou referências à tradução, isso não acontece. Contudo,
sendo o Poder Público, no sem aspecto amplo, o responsável pela regulamentação e
consequente verificação dos entes competentes para traduções oficiais, há uma visível
negligência nesse momento.
Isso porque, ao inserir a Apostila de Haia, o Poder Público referenda que os
trâmites legais de expedição daquele documento, inclusive a capacidade da pessoa
signatária, foram cumpridos, conforme o campo 2 e 3 da Apostila. Dessa forma, ao
apostilar uma tradução pública, reconhece-se que o tradutor signatário possuía a
capacidade para fazê-lo no âmbito daquele ordenamento jurídico.
Ao mesmo tempo, ao observar a teoria da Responsabilidade Civil, percebe-se
que tal referendo não traria à autoridade emissora da apostila a responsabilidade sobre o
documento emitido, tendo em consideração que ela recebe o caráter pessoal do executor
da tradução. Há, portanto, considerando tal análise, um agrave falha de vácuo por não
trazer a salvaguarda em relação ao conteúdo da apostila quanto às traduções. Ademais
por ser um texto que é emitido em língua estrangeira. Isso porque, tomando como
exemplo o Estado Português, um documento público deve ser lavrado na língua
portuguesa. Ao apostilar um documento em língua estrangeira, o estado não referenda
seu conteúdo, mas estabelece uma lacuna perigosa.
A proposta, diante do hiato constatado, seria de que as apostilas trouxessem, no
momento de registrar a tradução pública, que ela se referiria tal documento em língua
pátria, demonstrando assim sua vinculação. Já que o Poder Público, especialmente o
servidor que emitirá a apostila, não precisa ter, necessariamente, domínio da língua na
qual a tradução é lavrada, mas tem o dever de declarar que o documento foi apresentado
como sendo o equivalente em língua destino ao documento em língua pátria que foi
apresentado. Isso porque a Tradução em si não produz efeitos, nem o documento
original, por ser em língua estranha ao receptor. O que lhe dá plena validade é a junção
do documento original (com seus trâmites internos no país emissor até a lavratura da
Apostila), conjuntamente apresentada com a tradução (que deve também cumprir
determinados trâmites, inclusive o da Apostila).

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