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DA NECESSÁRIA OBSERVAÇÃO DO SISTEMA PROCESSUAL PENAL PARA A

CONSECUÇÃO DOS OBJETIVOS DA CIÊNCIA DO DIREITO

“Cada um chamava democracia àquilo que


mais lhe convinha. E aos que pensavam de modo
diferente acusava-os de conspirarem contra a
democracia” – Américo Costa Ramalho, em nota da
tradução de Pluto ou A Riqueza, de Aristófanes.

Ciência, segundo a definição exposta em dicionário, é a “reunião dos


saberes organizados e obtidos por observação, pela pesquisa ou pela
demonstração de certos acontecimentos, fatos, fenômenos, sendo
sistematizados por métodos racionais.”1
A classificação do Direito como ciência, ou o reconhecimento da Ciência
do Direito, como preferem alguns que fazem a distinção entre a ciência e o objeto
do estudo, remonta ao período do iluminismo.
A ânsia revolucionária de se elevar a razão como meio de libertação do
homem dos grilhões da religiosidade supersticiosa, meio de dominação de
clérigos e governantes, alçou o direito de mero feixe de fatos aleatórios e
normas/valores subjetivistas a uma ciência social, hermenêutica e axiológica.
Como salientado acerca do conceito de ciência, se faz necessário que
cada uma delas seja sistematizada por métodos racionais. Não é diferente com
a Ciência do Direito.
Não é a intenção deste texto discutir os sistemas e métodos que regem
os ‘saberes’ jurídicos, teorias que regem o Direito como ciência, e que vêm
ocupando os estudiosos desde antanho.

As teorias do delito, por exemplo, foram indispensáveis ao estudo e


aplicação prática desta ciência, para, ao final, definir-se o crime como fato típico,
antijurídico e culpável, com as peculiaridades de entendimento de cada uma
delas, acerca do tipos penais, dolo, culpa, ilícito etc., como integrantes objetivos
e subjetivos do conceito de “delito”.

1
https://www.dicio.com.br/ciencia/
Da mesma forma, temos os sistemas processuais penais, sobre os quais,
em especial o sistema acusatório, vamos no deter de forma não tanto
perfunctória.

Segundo o professor Mauro Fonseca Andrade, sistema é “a reunião,


conscientemente ordenada, de entes, conceitos, enunciados jurídicos, princípios
gerais, normas ou regras jurídicas, fazendo com que se estabeleça, entre os
sistemas jurídicos e esses elementos, uma relação de continente e conteúdo,
respectivamente”2
Os sistemas processuais penais, portanto, são, segundo conceito do
professor Rodrigo da Silva Brandalise “subsistemas jurídicos, formados a partir
da reunião, ordenada e justificada, de elementos fixos e variáveis de natureza
processual penal.”3
Assim, temos que os sistemas processuais podem ser classificados em
inquisitório, acusatório e misto.
A diferença fundamental entre os sistemas se dá em relação à posição do
órgão julgador que, de forma suscinta, confunde-se com o acusador, no sistema
inquisitório.
A despeito de, muitas vezes, poder-se imaginar que o sistema inquisitório
ficou para trás em certo período histórico, os sistemas atuais não são, em sua
maioria, puramente acusatórios, mas mantêm elementos daquele primeiro
mencionado. São, portanto, a maioria, sistemas mistos.
Hodiernamente, a análise dos sistemas processuais penais na aplicação
prática do direito, no âmbito do processo penal, é indispensável para que se
mantenha o que, cremos, é o seu objetivo principal: a imparcialidade do julgador,
sob pena de se estar perdendo de vista o conjunto de regras que regem a Ciência
do Direito para a promoção da aplicação de um feixe de princípios ideológicos e
subjetivistas, com finalidades deveras sombrias.
Há muito vemos um movimento dos nossos tribunais, infelizmente
capitaneado pelo Supremo Tribunal Federal, de decisões meramente
principiológicas, em total detrimento da dogmática jurídica.

2
Mauro Fonseca Andrade, Sistemas Processuais Penais e seus princípios reitores, Curitiba:
Juruá, 2013, p. 38-39.
3
Conceito disponibilizado em “Power Point” da aula “Sistemas Processuais”, ministrada no Curso
de Especialização em Processo Penal da FMP/RS.
Hoje, tal movimento se agrava, na medida em que percebemos, pelo
mesmo Tribunal Máximo, a relegação do sistema processual acusatório, e
injustificável e inconstitucional adoção de um verdadeiro sistema processual
inquisitivo.
Caso que merece análise, à luz dos elementos essenciais do sistema
processual penal acusatório, é o do inquérito n° 4.781, instaurado em 14 de
março de 2019, pelo então presidente do Supremo Tribunal Federal.
Sabe-se que é elemento essencial do sistema acusatório a separação dos
diversos órgãos de investigação e processuais. Não podem os mesmos órgãos
ou seus representantes fazerem o papel de investigador/acusador e juiz. Tal
separação de funções é essencial para que se leve à efetividade a garantia
constitucional do devido processo legal.
Ora, quando o Presidente do Tribunal Máximo do país procede a
instauração de inquérito, instrumento de investigação, e, ainda mais, designa o
juiz que vai presidi-lo na mesma portaria, sem que (mesmo se considerássemos
constitucional a instauração) procedesse à distribuição que garantiria a atuação
de juiz natural e competente para a jurisdição, fere de morte o princípio do devido
processo legal, na medida que compromete a imparcialidade do julgador. Afinal,
quando (e se) este inquérito encontrar um termo, serão os próprios Ministros que
irão julgar a ação penal dele decorrente.
Note-se, outrossim, que, além da confusão de papéis entre juiz e
investigador/acusador, temos a identificação entre investigador/acusador/juiz e
vítima, uma vez que, segundo a portaria de instauração, o inquérito n° 4.781 visa
“apurar notícias fraudulentas (fake news) denunciações caluniosas, ameaças e
infrações revestidas de animus calumniandi, diffamandi e injuriandi que atingem
a honorabilidade a segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros
e familiares.”
Não se pode olvidar da total usurpação de funções, tendo em vista que
até o indeferimento da promoção de arquivamento do inquérito referido já foi
determinado pelo juiz/investigador/julgador, que, ao que parece, quer se arvorar,
inclusive, a titular da ação penal pública.
O que se percebe é que, como dantes mencionado, tais ofensas ao
sistema acusatório, bem como às garantias constitucionais por ele protegidas,
são justificadas, ao que parece, pela menção a princípios e entes vagos e
incorpóreos, tais como “defesa da democracia”, “atos subversivos”, “atos
antidemocráticos”.
Não é de hoje que as decisões eminentemente
principiológicas/subjetivistas são publicadas por aquela Corte, sem qualquer
atenção ou equilíbrio com as normas legais, constitucionais, afastando-se dos
sistemas, normas e princípios dogmáticos que caracterizam a Ciência do Direito
e garantem a imparcialidade do julgador e impedem que o Direito seja aplicado
em benefício de poderosos, ou das ideologias que professam. É preciso que os
cientistas jurídicos se manifestem frontalmente contra tais decisões, sob pena
da ruína do Estado Democrático de Direito.

REFERÊNCIAS
ANDRADE, Mauro Fonseca, Sistemas Processuais Penais e seus
princípios reitores, Curitiba: Juruá, 2013.

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