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Doutrina

Contornos Constitucionais da Investigação


Criminal no Contexto do Ciberespaço

Lenice Kelner
Pós-Doutorado em Direito pelo Programa de Pós-Graduação
em Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
– UERJ; Doutora em Direito Público pelo Programa de
Pós-Graduação em Direito da Universidade do Vale do Rio
dos Sinos – Unisinos; Mestre em Ciências Jurídicas pela
Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI; Especialista
em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade
Regional de Blumenau – FURB; Especialista em Direito
Civil pela Universidade Regional de Blumenau – FURB;
Professora Permanente do Programa de Mestrado em
Direito e da Graduação em Direito da FURB; Membro
dos Grupos de Pesquisa “Constitucionalismo, Cooperação e
Internacionalização – CONSTINTER” (CNPq-FURB)
e “Direitos Fundamentais, Cidadania e Justiça” (CNPq-
FURB); Coordenadora do Projeto de Extensão da FURB
– “Acesso à Justiça e Assistência Jurídica aos Encarcerados na
Comarca de Blumenau”; Advogada; e-mail: kelner@furb.br.

Alejandro Knaesel Arrabal


Doutor em Direito Público pelo Programa de Pós-Graduação
em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos –
Unisinos; Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade
do Vale do Itajaí – UNIVALI; Especialista em Direito
Administrativo pela Universidade Regional de Blumenau
– FURB; Professor Colaborador do Programa de Mestrado
em Administração da FURB; Professor da Universidade
Regional de Blumenau – FURB e do Centro Universitário de
Brusque – UNIFEBE; Líder do Grupo de Pesquisa “Direito,
Tecnologia e Inovação – DTIn” (CNPq-FURB); Membro
dos Grupos de Pesquisa “Constitucionalismo, Cooperação e
Internacionalização – CONSTINTER” (CNPq-FURB)
e “Estado, Sociedade e Relações Jurídicas Contemporâneas”
(CNPq-FURB), com estudos em Direito de Propriedade
Intelectual, Desenvolvimento Tecnológico e Inovação; Membro
do NIT – Núcleo de Inovação Tecnológica da Universidade
Regional de Blumenau – FURB; e-mail: arrabal@furb.br.

Léo Mathias Hang


Bacharel em Direito pela Universidade Regional de Blumenau
– FURB; Pesquisador na área de Direito, com ênfase em
Direito Processual Penal; e-mail: mathiashang@yahoo.com.br.
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 104 – Out-Nov/2021 – Doutrina
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RESUMO: Este trabalho aborda os pressupostos de ordem constitucional


que devem orientar as práticas e técnicas dirigidas à investigação criminal no
ciberespaço. Realizado a partir de revisão bibliográfica e análise interpretativa
jurisprudencial, o estudo revela que a investigação criminal é um procedimento
comprometido com os fundamentos do Estado Democrático de Direito, de modo
que a legalidade deve nortear as condições procedimentais. Cumpre garantir os
Direitos Fundamentais, como a proteção do Direito à Intimidade (art. 5º, X,
da CF/88) que se integra a outras diretrizes constitucionais, como o sigilo dos
dados, das correspondências e das comunicações, bem como a inadmissibilidade
de provas obtidas por meios ilícitos. Considerando o ciberespaço como um lugar
“constituído por” comunicações, cabe ao magistrado verificar a existência de
indícios razoáveis da prática do delito bem como da autoria, porquanto o grau
de excepcional mitigação de um direito fundamental – que não diz respeito
aos dados “em si”, mas à intimidade do investigado –, impõe cautelosa análise
quanto à admissibilidade da prova.

PALAVRAS-CHAVE: Estado de Direito. Investigação Criminal. Ciberespaço.


Garantias Constitucionais. Direitos Fundamentais.

SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Investigação Criminal e as Garantias Constitucio-


nais. 3 Caracterização do Ciberespaço. 4 Investigação Criminal no Ciberespaço.
5 Considerações Finais. 6 Referências.

1 Introdução
O combate à atividade criminal demanda assertividade nos atos e proce-
dimentos de investigação. A par disso, considerando o primado do Estado de
Direito, as prerrogativas das instâncias inquisitoriais não devem se sobrepor
à liberdade garantida aos cidadãos.
Contudo, em uma sociedade hiperconectada, como aduz Lipovetsky
(2004), as expectativas sociais são pautadas pela celeridade e resultados ime-
diatos, colocando o Estado sob o desafio de encontrar meios adequados e
eficientes para lidar com a criminalidade.
Soluções tecnológicas, por vezes, são acompanhadas de problemas
desconcertantes. O ciberespaço incorporou ao cotidiano um poder escalar
de comunicação, cujo impacto pode ser exponencialmente maior que a ação
comunicativa praticada. Soma-se a esse aspecto o sentimento de privacidade
nutrido pela leitura de que, ao usar um computador ou smartphone (em rede),
se está dispondo de recursos particulares.
Assim, a concepção instrumental predominante sobre a rede global
de computadores, não só dilui a diferença entre o público e o privado, como
estende a ideia de licenciosidade arbitrária, comum à dimensão privada de
cada sujeito, a um ambiente comunicativo difuso. Resulta dessa realidade que
a persecução criminal no ciberespaço representa um grande desafio.
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Considerando esses fatores, o presente artigo aborda os pressupostos


de ordem constitucional que devem orientar as práticas e técnicas dirigidas à
investigação criminal no ciberespaço. Realizado a partir de revisão bibliográ-
fica e análise interpretativa jurisprudencial, o texto encontra-se estruturado
em quatro unidades. A primeira corresponde a esta introdução. A segunda
trata da incidência das garantias constitucionais na investigação criminal. A
terceira unidade explora o conceito e caracterização do ciberespaço. Na quarta
e última unidade, são apresentados os contornos constitucionais relacionados
à investigação criminal no ciberespaço.

2 Investigação Criminal e as Garantias Constitucionais


Sob o império da lei, o Estado de Direito consagra constitucionalmente
o limite para o exercício do poder. A par disso, a liberdade individual é am-
plamente garantida de modo que a lei incidirá na vida de cada cidadão, apenas
em circunstâncias específicas (BRASIL, CF/88, art. 5º, II). Assim, evidencia-se
um tratamento normativo necessariamente assimétrico. O constrangimento
legal para o Estado é a regra, para o cidadão é a exceção.
Sustenta Andrade (2016, p. 72) que o Estado de Direito “sedimentou um
conceito restrito de cidadania porque traz em seu bojo um conceito também
restrito do poder, da política e da democracia”. Para a autora, “identificado
o poder com o poder político estatal, a política é vista como uma prática
específica, cujo lugar de manifestação só pode ser o Estado e as instituições
estatais e cujo objetivo só pode ser a ocupação do poder estatal (Governo/
Parlamento)”. E, por fim, considera que o “Estado detém, o monopólio do
poder, da política e da democracia e a cidadania aparece como instrumento
para a materialização deste tripé” (ANDRADE, 1996, p. 72).
É nesse contexto que se instala a dicotomia entre prerrogativas de Es-
tado e garantias civis do cidadão investigado. Ora, enquanto o Estado possui
a prerrogativa indelegável de investigar as condutas tidas como infrações pe-
nais (crimes e contravenções), os cidadãos, de outro lado, possuem direitos
e garantias individuais que devem ser preservados em razão do mandamento
constitucional (intimidade, inviolabilidade de domicílio, sigilo bancário, etc.).
Imperioso frisar que ambos os lados da dicotomia nascem em razão de
previsão constitucional. O constituinte originário previu que as polícias civis
dos estados da federação e a polícia federal têm por função precípua a realização
de investigações criminais (CF/88, art. 144, §§ 1º e 4º), como também previu
garantias e direitos fundamentais que obstarão, em algum grau, a ação estatal.
É por esses motivos que a investigação criminal não é apenas um ins-
trumento na busca de elementos indiciários de um crime. Trata-se de um
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procedimento comprometido com o princípio da legalidade, de modo que


o Estado tem o dever de respeitar as condições procedimentais estabeleci-
das, restringindo-se a mitigar os direitos e garantias individuais dentro dos
estritos limites da lei, ou seja, embora seja a investigação um procedimento
informal, todas as vezes que garantias individuais dos suspeitos investigados
e indiciados estiverem envolvidas, são os limites legais que balizarão a atuação
da autoridade investigadora.
No mesmo sentido, Luigi Ferrajoli (2014, p. 572) salienta que a validade
das provas deve estar condicionada ao “método legal” de sua formação, pois
os limites legais são a garantia contra o arbítrio:

“(...) as provas, sendo livre sua valoração, sejam assumidas como método
legal; e que seja então rechaçada a máxima male captum est bene retentum, que
no método inquisitório, postula o contrário a indiferença dos meios relati-
vamente aos fins da prova, vinculado que está ao invés à sua valoração legal.”

Por outro lado, considerando sua natureza elucidativa, a investigação


demanda, sob certas condições, mitigação das garantias constitucionais con-
feridas aos indivíduos. Dentre aquelas elencadas no art. 5º da Constituição
Federal, destaca-se a intimidade, sobretudo porque o ato investigativo cujo
objeto seja a participação de qualquer indivíduo em uma prática criminosa,
necessariamente ingressa de algum modo no campo da intimidade.
Toda e qualquer apuração criminal deve estar alicerçada em preceitos
democrático-constitucionais, em razão de sua dupla finalidade. Essa é a razão
jurídica do Estado de Direito, como aponta Ferrajoli: “o respeito às regras”, e não
admitir exceções a elas “senão como fato extra ou antijurídico, dado que as regras
– se são levadas a sério, como regras, e não como simples técnicas – não podem
ser deixadas de lado quando for cômodo”. Diante disso, o autor esclarece que:

“(...) na jurisdição o fim não justifica os meios, dado que os meios, ou seja,
as regras e as formas, são as garantias de verdade e de liberdade, e como
tais têm valor para os momentos difíceis, assim como para os momentos
fáceis; enquanto o fim não é mais o sucesso sobre o inimigo, mas a verdade
processual, a qual foi alcançada apenas pelos seus meios e prejudicada por
seu abandono.” (FERRAJOLI, 2014, p. 767)

A colheita preambular de elementos tem por função identificar e apre-


sentar fontes de provas, aptas a ensejar a deflagração da ação penal, demons-
trando a existência da materialidade e indícios de autoria, bem como garantir
a proteção aos bens jurídicos tutelados pelo Direito Penal, condenando os
culpados na medida de sua culpabilidade.
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Já sob o ponto de vista das garantias individuais, a investigação deve


resguardar a presunção de inocência do suspeito/investigado, porquanto é
fundamental instrumento de elucidação da materialidade e autoria delitivas,
reduzindo, em alto grau, a possibilidade de acusações levianas sem qualquer
fundamento indiciário.
É o que observa Renato Brasileiro de Lima (2020, p. 176):

“A partir do momento em que determinado delito é praticado, surge para o


Estado o poder-dever de punir o suposto autor do ilícito. Para que o Estado
possa deflagrar a persecução criminal em juízo, é indispensável a presença
de elementos de informação quanto à autoria e quanto à materialidade da
infração penal. De fato, para que se possa dar início a um processo criminal
contra alguém, faz-se necessária a presença de um lastro probatório mínimo
apontando no sentido da prática de uma infração penal e da probabilidade
de o acusado ser o autor. (...) Daí a importância do inquérito policial, ins-
trumento geralmente usado pelo Estado para a colheita desses elementos
de informação, viabilizando o oferecimento da peça acusatória quando
houver justa causa para o processo (fumus comissi delicti), mas também con-
tribuindo para que pessoas inocentes não sejam injustamente submetidas
às cerimônias degradantes do processo criminal.”

Logo, investigação deve balizar-se nos princípios fundantes do Estado


Democrático de Direito, de modo que, para além de um instrumento que
fundamenta a pretensão acusatória a ser deduzida em juízo, seja um instru-
mento de garantia dos direitos fundamentais dos investigados, das vítimas e
dos demais indivíduos envolvidos no processo.

3 Caracterização do Ciberespaço
Ao pesquisar o papel das mensagens como meio de governar o compor-
tamento dos seres humanos e das máquinas, em 1948 o matemático Norbert
Wiener (1978, p. 15) adotou a palavra grega kubernetes para atribuir à sua teoria
o nome de cibernética. Vinculada ao contexto das Tecnologias de Informação
e Comunicação da segunda metade do século XX, o diminutivo ciber ingressa
no imaginário social como signo de uma nova realidade, tornando-se prefixo
para conferir caráter tecnológico a qualquer coisa. Na década de 1980, o ro-
mancista de ficção científica William Gibson empregou o termo “ciberespaço”
na obra Neuromancer, referindo-se a uma “alucinação consensual” vivenciada
por usuários futuristas de redes de computadores (KOEPSELL, 2004, p. 24).
Meios de comunicação como o rádio, a TV, ou mesmo a telefonia, não
foram tradicionalmente associados à noção de “espaço”. A ideia de um “lugar
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ciber” evoluiu a partir de um hibridismo cultural de atributos da informática


com as expectativas sociais sobre modos e lugares alternativos de vida, difun-
didos a partir da década de 1960. A característica básica de todo computador
é funcionar como Black Box1, ou seja, corresponde a uma unidade que opera
sob a lógica: entrada, processamento, armazenamento e saída, na qual os atri-
butos específicos do processamento e do armazenamento são desconhecidos.
O que ocorre “dentro” dessas máquinas é uma questão que invadiu o
imaginário cultural e, somada ao desenvolvimento dos jogos eletrônicos, foi
explorada em filmes como Tron (1982) e Matrix (1999). Assim, o ciberespaço
se tornou uma referência popular a um “ambiente cibernético” cujas “virtudes”
assemelham-se aos atributos de seres, objetos e eventos do mundo real, sem
que se considerem as condicionantes objetivas que estruturam as máquinas.
O conceito de espaço facilmente resgata categorias dimensionais cuja
percepção é predominantemente visual e tátil. Os espaços que correspondem
às delimitações físicas de uma casa e seus aposentos, de um terreno, de um
bairro, de uma cidade, estado ou país, são tidos e percebidos como lugares.
Observa-se, então, que esses ambientes apresentam contornos físicos (territo-
riais) que os caracterizam. Ocorre que o processo de digitalização, que implica
constituir (e transmutar) objetos e eventos em códigos binários, produz um
“lugar” com atributos ontológicos distintos.
A “natureza”, por assim dizer, do ciberespaço é informacional e comuni-
cativa, de modo que suas possibilidades e limites dizem respeito às qualidades
dos processos de comunicação. Na esteira de Ted Nelson, Johnson (2001)
afirma que os computadores digitais são “máquinas literárias”, reportando-
se ao fato de a estrutura lógico-funcional desses equipamentos ser composta
basicamente de códigos e símbolos. Nesse sentido, o ciberespaço corresponde
a um lugar “constituído por” comunicações, o que é distinto da noção de um
lugar “onde” as comunicações operam.
É notável na caracterização do ciberespaço a diluição da fronteira entre
o público e o privado, em grande parte decorrente das condições proporcio-
nadas pela mediação tecnológica. O fato de a comunicação operar a partir
de computadores e smartphones, vistos como instrumentos para benefícios
pessoais, incorpora ao imaginário um censo de apropriação.
Em verdade, a experiência imediata de todo usuário conectado é, em
muitos sentidos, uma experiência individual de controle exercido sobre pla-
taformas tecnológicas. Para a perspectiva de mercado, a internet e os recursos

1 A expressão Black Box é empregada na teoria cibernética para designar sistemas em razão de suas entradas (inputs) e
saídas (outputs), sem que seja necessário conhecer o seu funcionamento interno (BERTALANFFY, 2012).
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dedicados à conectividade evidenciam o seu caráter de produto. Assim, a di-


mensão do privado assume relevo. Prova disso é a ampla confusão estabelecida
entre os conceitos de privacidade e anonimato.
O privado diz respeito aos elementos de caráter patrimonial objetivos
e subjetivos que pertencem à cada indivíduo, de modo que se considera le-
gítimo, a cada um, privar ou não os demais do acesso a esses elementos. Por
sua vez, o anonimato corresponde ao trânsito livre em espaço público sem ser
identificado, neutralizando a imputação de méritos ou de responsabilidades.
Na experiência objetiva de cada usuário, computadores em rede são
percebidos predominantemente como unidades de entrada e saída (comando
e resposta), a partir da qual a experiência privada se destaca, em contraposição
ao Black Box de processamento e armazenamento. Assim, a troca de recursos
entre máquinas que suporta a dimensão pública não é percebida como tal. O
desconhecido torna-se o inseguro, legitimando paradoxalmente o emprego
do anonimato como forma de garantir a privacidade.
A rede global de computadores, em sua estrutura de base, foi concebida
sob os pressupostos de uma topografia distribuída, diametralmente oposta a
modelos estruturais centralizados. Ao passo em que a configuração distribuída
da rede global denota eficiência técnica em relação ao seu alcance e capilaridade,
do ponto de vista ideológico, este desempenho é assumido como argumento
contrário a modelos hierárquicos, vistos como estruturas de controle e opressão.
Um dos efeitos colaterais desse quadro reside na precária compreensão
dos sujeitos conectados sobre a responsabilidade inerente aos seus atos comu-
nicativos. Em certo grau, a mediação tecnológica institui no imaginário coletivo
a licenciosidade para agir de modo inconsequente. É dizer, a licenciosidade
técnica em relação à autodeterminação dos usuários conectados, não raro é as-
sumida como condição de legitimidade para o emprego de pseudoidentidades
e técnicas de anonimização, a fim de impossibilitar respostas que maculem
suas pretensões individuais (sejam estas lícitas ou ilícitas).
Evidentemente que, para o Direito, o lícito é acolhido e o ilícito é inad-
mitido. Considera-se também o livre-arbítrio como pressuposto da vida em
sociedade e a constrição das leis como exceção (art. 5º, II, da CF/88). Contudo,
as TICs foram desenvolvidas predominantemente sob os valores da liberdade
de expressão e do acesso à informação, porém, muito tímida (ou mesmo ine-
xistente) é a materialização de condições de responsabilidade (equivalentes às
previstas em lei) no plano funcional das plataformas tecnológicas de mediação.
Vale destacar que o argumento naturalizante que procura caracterizar as
TICs como estruturas intrinsicamente livres e democráticas carece de funda-
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mento no campo estritamente técnico. Estruturas tecnológicas são instâncias


cuja concepção intelectual e materialização são orientadas dialogicamente por
fatores objetivos (condicionantes materiais) e subjetivos (valores e pretensões).
Assim, o conjunto de instruções (códigos algorítmicos) que governam as
máquinas compreende um constructo resultante do diálogo entre possibili-
dades técnicas e interesses e, na medida que assume efetiva forma e aplicação,
apresenta-se como realidade positivada2.

4 Investigação Criminal no Ciberespaço


O desenvolvimento das Tecnologias de Informação e Comunicação
promoveu a emergência do conceito de ciberespaço. O caráter libertário con-
ferido às comunicações mediadas por tecnologias, somado a sua capilaridade
global e velocidade, oportunizou um “ambiente” favorável à realização de
condutas de toda ordem, inclusive práticas criminosas por parte de indivíduos
e grupos de forma organizada ou mesmo difusa, o que representa um grande
desafio para a persecução penal.
Contudo, ainda que o ciberespaço seja considerado por muitos um
plano imaterial, bem verdade o que se apresenta é justamente o contrário.
Com o crescente processo de digitalização, além dos bens expressos na forma
de textos, imagens e sons, também a ação comunicativa foi binariamente codifi-
cada, conferindo materialidade informacional a todos os fluxos de atividades
humanas mediadas por tecnologia.
Nesse sentido, cumpre observar que o Marco Civil da Internet (BRA-
SIL, Lei nº 12.965/2014) exige que os provedores de conexão mantenham pelo
prazo de um ano (ou superior, a partir de requerimento cautelar da autoridade
policial ou administrativa ou do Ministério Público) os registros de conexão3, sob
sigilo, em ambiente controlado e seguro, para estrita apuração de condutas
ilícitas (art. 13). Obrigação semelhante incide sobre os provedores de aplicação,
os quais deverão manter “os respectivos registros de acesso a aplicações de internet4,

2 Essa questão pode ser reconhecida sob o conceito de “aprisionamento tecnológico” descrito por Lanier (2012, p.
25) nos seguintes termos: “O filósofo Karl Popper estava certo quando afirmou que a ciência é um processo que
desqualifica pensamentos à medida que progride – não é mais possível, por exemplo, acreditar em um planeta plano
que surgiu do nada alguns milhares de anos atrás. A ciência elimina ideias empiricamente por um bom motivo. O
aprisionamento tecnológico, contudo, elimina opções de design com base na facilidade de programação, no que é politicamente viável,
no que está na moda ou no que é criado por acaso”.
3 Entende-se por Registro de Conexão “o conjunto de informações referentes à data e hora de início e término de
uma conexão à internet, sua duração e o endereço IP utilizado pelo terminal para o envio e recebimento de pacotes
de dados” (BRASIL, Lei nº 12.965/2014, art. 5º, VI).
4 Entende-se por registros de acesso a aplicações de internet “o conjunto de informações referentes à data e hora de uso
de uma determinada aplicação de internet a partir de um determinado endereço IP” (BRASIL, Lei nº 12.965/2014,
art. 5º, VIII).
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sob sigilo, em ambiente controlado e de segurança, pelo prazo de 6 (seis)


meses” (art. 15).
Portanto, a materialidade probatória no ciberespaço pressupõe o acesso
a informações digitais que comprovem a conduta delitiva. Os dados digitais
são componentes constitutivos de diversos bens juridicamente tutelados, a
exemplo de informações relacionadas à personalidade de indivíduos, organi-
zações, direitos de propriedade intelectual, entre outros.
Essa materialidade probatória corresponde aos dados armazenados em
dispositivos e em trânsito na rede, sujeitos a condições quanto à possibilidade
de busca e consulta para fins de investigação. Considerando esses aspectos,
a obtenção de quaisquer dados demanda expedientes técnicos que evitem ao
máximo macular garantias fundamentais.
Os dados que constituem o ciberespaço, quanto à sua disponibilidade,
podem ser categorizados em dois grupos. O primeiro diz respeito aos dados
de fontes abertas, assim entendidas em razão de não apresentarem qualquer
restrição de ordem técnica. Em regra, são admitidos como públicos ou
disponíveis a um contingente de usuários, sem que estes pertençam a uma
organização pública ou privada específica. Um exemplo desses dados são os
que constituem as redes sociais (fotos, informações a respeito do usuário,
preferências, declarações, seus familiares, amigos, etc.). Segundo Barreto e
Wendt (2020, p. 15), “são as informações disponíveis ao público e que não
exigem nenhuma espécie de restrição ao seu acesso”.
O outro grupo diz respeitos aos dados restritos. Trata-se daqueles cujo
acesso pressupõe autorização, indisponíveis à maioria dos usuários. Em re-
gra, são armazenados e transitam na rede por meio de recursos e técnicas de
segurança. Barreto e Wendt (2020, p. 11) ressaltam que “para termos acesso
aos dados em fontes fechadas necessitamos de autorização especial para tal,
pois o dado disponível é de caráter restrito a entidades públicas e/ou privadas”.
Esse grupo de dados, do ponto de vista jurídico, pode ainda ser divido em
duas categorias. Uma na qual os dados estão sujeitos à reserva de jurisdição
e, outra em que não há reserva de jurisdição, porém, os dados podem sofrer
restrições quanto ao método de obtenção.
O princípio da reserva de jurisdição, diante do Estado Democrático
de Direito e do novo constitucionalismo, ressalta a separação e harmonia de
poderes, reservando ao Poder Judiciário dizer o direito na defesa das garantias
fundamentais dos cidadãos. Para Paulo Castro Rangel, o espaço material da
reserva de jurisdição já não coincide necessariamente com o da reserva da lei,
e, portanto, a reserva de jurisdição não é mais um simples instrumento ou
garantia da reserva de lei. Para o autor:
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“Na verdade, ao solucionar os conflitos que lhe deparam, ao resolver os


casos da vida, o tribunal pode ser chamado – e, porventura, sê-lo-á sempre,
atento o imperativo da unidade do sistema jurídico – a actuar critérios nor-
mativos que estão fora da mão do legislador e a controla a conformidade
das disposições legislativas a tais critérios.” (RANGEL, 1997, p. 21-22)

No mesmo sentido, Aury Lopes Júnior (2018, p. 57) aduz que “o fun-
damento da legitimidade da jurisdição e da independência do Poder Judiciário
será no reconhecimento da sua função de garantidor dos direitos fundamentais
inseridos ou resultantes da Constituição”. É imprescindível, sustenta o autor,
que o processo penal passe por uma constitucionalização, e como decorrência
“o fundamento legitimante da existência do processo penal democrático é sua
instrumentalidade constitucional, o processo enquanto instrumento a serviço da
máxima eficácia de um sistema de garantias mínimas” (LOPES Jr., 2018, p. 57).
Por outro lado, Canotilho (1998) contempla a Reserva de Jurisdição,
distinguindo entre Reserva de Juiz e Reserva de Tribunal. Para o autor, “reserva
de juiz” significa que “em determinadas matérias cabe ao juiz não apenas a
última, mas também a primeira palavra”. Já a Reserva de Tribunal denota que
“relativamente a algumas situações é legítima a intervenção de outros poderes
(notadamente administrativos) desde que seja assegurado depois o direito de
acesso aos tribunais”. Portanto, verificamos que Canotilho contempla a Re-
serva de Jurisdição, de forma ampla, conceituando-a como a “reserva de um
conteúdo material funcional típico da função jurisdicional” (CANOTILHO,
1998, p. 622-624).
É nesse aspecto que reside uma das grandes controvérsias sobre os con-
tornos constitucionais da investigação criminal no ciberespaço. Isso, porque
não é simples definir quando há ou não reserva de jurisdição quanto ao dado
acessado ou ao método de sua obtenção. Inclusive, nota-se que há poucos anos
o STJ foi instado a decidir como deveriam ser realizadas as extrações de dados
dos celulares que são apreendidos quando da prisão em flagrante. Veja-se:

“PENAL E PROCESSO PENAL. RECURSO EM HABEAS CORPUS.


(...) 3. APARELHO TELEFÔNICO APREENDIDO. VISTORIA REA-
LIZADA. CHAMADAS EFETUADAS E RECEBIDAS. FOTOS DOS
CORRÉUS. AUSÊNCIA DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. VIOLA-
ÇÃO DO SIGILO DE DADOS TELEFÔNICOS. PROVA ILÍCITA.
ART. 157 DO CPP. 4. RECURSO EM HABEAS CORPUS PROVIDO
EM PARTE. (...) 3. Embora a situação retratada nos autos não esteja protegida pela
Lei nº 9.296/96 nem pela Lei nº 12.965/2014, haja vista não se tratar de quebra sigilo
telefônico por meio de interceptação ou de acesso a mensagens de texto armazenadas,
ou seja, embora não se trate violação da garantia de inviolabilidade das comunicações,
prevista no art. 5º, inciso XII, da CF, houve sim violação dos dados armazenados
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no celular do recorrente. De fato, deveria a autoridade policial, após a apreensão do


telefone, ter requerido judicialmente a quebra do sigilo dos dados armazenados, haja
vista a garantia, igualmente constitucional, à inviolabilidade da intimidade e da
vida privada, prevista no art. 5º, inciso X, da CF. Dessa forma, a análise dos dados
telefônicos constantes dos aparelhos do recorrente e dos corréus, verificando-se a lista
de chamadas efetuadas e recebidas, bem como a existência de fotos dos investigados
juntos, sem prévia autorização judicial devidamente motivada, revela a ilicitude da
prova, nos termos do art. 157 do CPP. 4. Recurso em habeas corpus provido
em parte, para reconhecer a ilicitude da colheita de dados dos aparelhos
telefônicos do recorrente e dos corréus, sem autorização judicial, devendo
mencionadas provas, bem como as derivadas, serem desentranhadas dos
autos.” (BRASIL, STJ, RHC 61.754/MS, grifou-se)

Observa-se no julgado que os dados armazenados não são protegidos


pela cláusula da reserva de jurisdição. Em verdade, é a intimidade do inves-
tigado que está sujeita ao controle jurisdicional. A autorização judicial, tanto
em correspondências, comunicações telegráficas e telefônicas é obrigatória,
conforme regulamenta o art. 5º, XII, da CF/88 e nos termos do parágrafo
único do art. 1º da Lei nº 9.296, de 24 de julho de 1996, quando a finalidade
for para formação de conjunto probatório em investigação criminal ou ins-
trução processual penal.
Sobre a garantia constitucional à intimidade (art. 5º, X, da CF/88), Za-
ffaroni (2007, p. 15) alerta que é impossível ignorar que a situação mundial
mudou e que atinge a discussão no campo do penal e político- criminal, para
o autor:

“(...) o potencial tecnológico de controle informático pode acabar com toda


intimidade; o uso desse potencial controlador não está limitado nem existe
forma de limitá-lo à investigação de determinados fatos; as condições do
planeta se deterioram rapidamente e a própria vida se encontra ameaçada.”

O âmbito de proteção constitucional, quando trata-se de investigação


no ciberespaço, não está necessariamente vinculado ao dado em si, mas à
intimidade do investigado. Em analogia, podemos comparar as análises de
dados com uma busca e apreensão; isso, porque a constituição não protege,
por exemplo, o local de trabalho do investigado, mas sua intimidade, neces-
sitando a autoridade policial de autorização para o uso do meio de obtenção
da prova (busca e apreensão).
Partindo-se de outra perspectiva, se os dados fossem protegidos, quando
da quebra do sigilo, a autoridade policial necessitaria delimitar quais arquivos
seriam acessados, o período, quais aplicativos e outras circunstâncias, a fim de
que o magistrado concedesse acesso. Ao revés, quando há a autorização para a
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investigação do conteúdo informativo de um aparelho celular – autorizando-se


o uso do meio de obtenção de prova, qual seja, a extração e análise de dados –
por exemplo, estão sujeitos à verificação todos os dados que forem passíveis
de acesso e que se relacionem com o objeto da investigação. Caso não fosse
esse o entendimento, seria necessário que a autoridade policial realizasse
dezenas de pedidos a cada novo diálogo, arquivo, interlocutor, mídia ou si-
milar encontrado durante a extração ou análise dos dados, o que inviabilizaria
qualquer investigação realizada no ciberespaço. Para efeito investigativo, não
se pode considerar o ciberespaço como um ambiente sujeito a segmentações
técnicas, mas deve-se concebê-lo como uma verdadeira teia, cujos dados se
interligam, levando a uma sequência de informações necessárias para a per-
secução penal. Como já mencionado neste estudo, o ciberespaço corresponde a
um lugar “constituído por” comunicações, o que é distinto da noção de um lugar “onde”
as comunicações operam.
Cabe ao magistrado, nesse ínterim, verificar se há indícios razoáveis
da prática do delito bem como de autoria, porquanto o grau de mitigação
de um direito fundamental – que não diz respeito aos dados “em si”, mas à
intimidade do investigado –, impõe cautelosa análise da pertinência da prova
a ser produzida.
A proteção do direito à intimidade previsto na norma constitucional (art.
5º, X, da CF/88) diz respeito ao direito à vida privada, e integra-se a outros
princípios e regras constitucionais, como a inviolabilidade da residência (art. 5º,
XI, da CF/88), do sigilo dos dados, das correspondências e das comunicações
(art. 5º, XII, da CF/88), a inadmissibilidade no processo de provas obtidas por
meios ilícitos (art. 5º, LVI, da CF/88) e o habeas data (art. 5º, LXXII, da CF/88).
Em síntese, é inadequada a concepção fragmentária do direito à intimi-
dade a partir de pressupostos estritamente tecnológicos, ou seja, em eventual
extração ou busca de dados, deve-se admitir a cópia de qualquer conteúdo que
se comunica com o objeto da investigação ou que possa ser, eventualmente,
utilizado para fins criminais, descartando-se, a posteriori, aqueles que dizem
respeito à vida privada do investigado.
A mitigação da intimidade deve apresentar objetivo certo e declarado,
tornando a extração legítima e íntegra, inclusive para que não sejam levadas à
juízo ou ao conhecimento público questões não vinculadas ao interesse crimi-
nal. Há, evidentemente, um duplo âmbito de proteção da intimidade: a priori,
evita-se que dados sejam extraídos sem que exista a imprescindibilidade de tal;
a posteriori, evita-se que dados da vida íntima dos investigados sejam expostos.
Entretanto, é preciso que a forma de extração dos dados garanta a in-
tegridade de eventual conteúdo extraído e que possivelmente será utilizado
Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 104 – Out-Nov/2021 129

para fins de persecução, sob pena de violação dos preceitos constitucionais


do art. 5º, incisos LVI e LVI, da CF/88. Aliás, é esse aspecto que possibilita
atestar a licitude de eventual prova obtida.
Nesse ínterim, notável a inserção dos arts. 158-A e seguintes no Código
de Processo Penal, com vistas a garantir a legalidade e integridade das provas,
em estrito cumprimento aos princípios da legalidade, moralidade, devido
processo legal e inadmissibilidade de provas obtidas por meios ilícitos, dando
sustentação, uma vez mais, à necessária aplicação de normas-regra no âmbito
do processo penal e da investigação.
Como já afirmado, embora a investigação tenha um caráter informal,
ao tratarmos de diligências, tais como a extração de dados disponíveis no
ciberespaço, é imprescindível que o modo de obtenção da prova garanta não
só a integridade das informações, bem como a repetibilidade da obtenção,
caso necessário e possível.
Inclusive, a jurisprudência do STJ frisa a necessidade de garantia da
integridade dos meios de obtenção de provas no ciberespaço. Veja-se:

“(...) 5. Cumpre assinalar, portanto, que o caso dos autos difere da situação, com
legalidade amplamente reconhecida pelo Superior Tribunal de Justiça, em que, a
exemplo de conversas mantidas por e-mail, ocorre autorização judicial para a ob-
tenção, sem espelhamento, de conversas já registradas no aplicativo WhatsApp, com
o propósito de periciar seu conteúdo. 6. É impossível, tal como sugerido no acórdão
impugnado, proceder a uma analogia entre o instituto da interceptação telefônica (art.
1º da Lei nº 9.296/96) e a medida que foi tomada no presente caso. 7. Primeiro: ao
contrário da interceptação telefônica, no âmbito da qual o investigador de polícia atua
como mero observador de conversas empreendidas por terceiros, no espelhamento via
WhatsApp Web o investigador de polícia tem a concreta possibilidade de atuar como
participante tanto das conversas que vêm a ser realizadas quanto das conversas que
já estão registradas no aparelho celular, haja vista ter o poder, conferido pela própria
plataforma online, de interagir nos diálogos mediante envio de novas mensagens
a qualquer contato presente no celular e exclusão, com total liberdade, e sem deixar
vestígios, de qualquer mensagem passada, presente ou, se for o caso, futura. (...) 9.
Segundo: ao contrário da interceptação telefônica, que tem como objeto a escuta de
conversas realizadas apenas depois da autorização judicial (ex nunc), o espelha-
mento via Código QR viabiliza ao investigador de polícia acesso amplo e irrestrito a
toda e qualquer comunicação realizada antes da mencionada autorização, operando
efeitos retroativos (ex tunc). 10. Terceiro: ao contrário da interceptação telefônica,
que é operacionalizada sem a necessidade simultânea de busca pessoal ou domiciliar
para apreensão de aparelho telefônico, o espelhamento via Código QR depende da
abordagem do indivíduo ou do vasculhamento de sua residência, com apreensão de
seu aparelho telefônico por breve período de tempo e posterior devolução desacompa-
nhada de qualquer menção, por parte da Autoridade Policial, à realização da medida
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constritiva, ou mesmo, porventura – embora não haja nos autos notícia de que isso
tenha ocorrido no caso concreto –, acompanhada de afirmação falsa de que nada foi
feito. (...)” (BRASIL, STJ, RHC 99.735/SC, grifou-se)

Além disso, a necessidade de que a prova seja reproduzível ou possibilite


a verificação da veracidade, diz respeito à capacidade de garantir, sobretudo, o
contraditório. Embora os atos investigatórios praticados por agentes públicos
possuam presunção juris tantum de legalidade e veracidade, faz-se necessário
que tais atos possam ser verificados pelas partes.

“8. O fato de eventual exclusão de mensagens enviadas (na modalidade


‘Apagar para mim’) ou recebidas (em qualquer caso) não deixar absolu-
tamente nenhum vestígio nem para o usuário nem para o destinatário, e
o fato de tais mensagens excluídas, em razão da criptografia end-to-end,
não ficarem armazenadas em nenhum servidor, constituem fundamentos
suficientes para a conclusão de que a admissão de tal meio de obtenção
de prova implicaria indevida presunção absoluta da legitimidade dos atos
dos investigadores, dado que exigir contraposição idônea por parte do in-
vestigado seria equivalente a demandar-lhe produção de prova diabólica.”
(BRASIL, STJ, RHC 99.735/SC)

A integridade das informações obtidas é, e sempre será, um aspecto-


chave da questão em voga. Sob hipótese nenhuma se pode admitir em um
processo penal prova obtida no ciberespaço sem que se possa confirmar,
aquém de qualquer dúvida, sua veracidade, integridade, integralidade e ori-
gem. Ainda, o monopólio da força e da investigação impõem que, ressalvados
os casos que envolvem fontes abertas ou que os dados sejam fornecidos por
terceiros que participaram de sua criação (diálogos, mensagens, e-mails, etc.),
somente as instâncias de persecução podem obter ou proceder investigações
acerca de dados negados.
A regra contida no art. 157 do Código de Processo Penal é propositiva
ao afirmar que são inadmissíveis as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas
em violação a normas constitucionais ou legais. No mesmo sentido, o art. 5º,
LVI, da CF/88 declara que são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por
meios ilícitos, pois então, como afirma Lopes Jr. (2018, p. 400), “o processo
penal é um instrumento a serviço da máxima eficácia dos direitos e garantias
fundamentais previstos na Constituição”.
Importante destacar, sobretudo, que os direitos e garantias fundamentais
são instrumentos de limitação do poder estatal, todavia, não podem constituir
subterfúgios intransponíveis que protejam indivíduos que cometem condu-
tas tipificadas na legislação penal. Em contrapartida, não é possível violar os
limites constitucionais e processuais da prova, sob pena de sua ilicitude, pois,
Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 104 – Out-Nov/2021 131

para Lopes Jr. (2018, p. 393), “a forma dos atos é uma garantia, na medida
em que implica limitação ao exercício do poder estatal de perseguir e punir”.
Ou seja, o processo penal deve ser um instrumento que visa respon-
sabilizar os culpados na medida de sua culpabilidade, bem como garantir o
respeito aos direitos fundamentais de todo e qualquer acusado. Com acerto,
sustenta Khaled Jr. (2013, p. 591) que “a sentença condenatória somente pode
ser legitimada caso as regras do devido processo legal sejam estritamente
respeitadas, o que permite maximizar as possibilidades de redução de danos
decorrentes de condenações equivocadas”.
E assim, conclui o autor:

“(...) quando o juiz forma a sua convicção e a externaliza narrativamente


na sentença, há fundamentalmente algo de novo sendo produzido, o que
está para além de uma noção de verdade correspondente; a verdade não
tem como ser a expressão de uma adequação entre o juízo do sujeito e seu
objeto, que não podem sequer mais ser concebidos dessa forma, pois o juiz
é um ser-no-mundo, acompanhando de toda uma tradição jurídico penal
que conforma seu horizonte compreensivo, ao qual soma-se uma imagina-
ção criativa, produzindo uma hipótese fundamentalmente nova, ainda que
referente ao objeto com o qual é contrastada.” (KHALED JR, 2013, p. 596)

O processo e, consequentemente, a investigação, só se tornam legíti-


mos quando todas as partes que compõem o processo (autoridade policial,
investigadores, acusação, defesa, réu e julgador) respeitam as “regras do jogo”.
Nesse sentido, Alexandre Morais da Rosa (2018, on-line) aduz, que embora
toda decisão se sujeite às suas contingências, o jogo processual penal tem regras
(normatividade), às quais nem aos jogadores nem ao julgador é dado trapacear:

“O jogo a ser jogado que aqui se fala é o jogo democrático, na perspectiva


do fair play. O devido processo legal substancial, como diretriz, nada mais
é do que a exigência da observância das regras do jogo, isto é, atribuir sentidos
autênticos dentro de uma tradição na qual tanto os jogadores quanto o
julgador estão inseridos.”

Complementa Rosa (2013, p. 147) que a função do Poder Judiciário é


o de garantir Direitos Fundamentais do sujeito em face do Estado, e que “as
intervenções na esfera privada somente se justificam se houver relevância cole-
tiva e no caso de investigações criminais, os fundamentos precisam ser firmes”.
Tal pressuposto envolve o respeito às instituições, aos limites do poder,
ao não uso de técnicas ilícitas de obtenção de provas, aos direitos fundamen-
tais e à integridade dos dados, sob pena de um estado ineficaz na prevenção e
Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 104 – Out-Nov/2021 – Doutrina
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punição dos crimes, ou, em sentido contrário, no total desrespeito às garantias


fundamentais que fundam e dão suporte ao Estado Democrático de Direito.

5 Considerações Finais
As investigações no ciberespaço deparam-se com uma espécie de hibri-
dização entre o público e o privado. Sendo assim, não só dados de interesse
criminal podem estar tecnologicamente acessíveis como também informações
da vida privada dos investigados.
Nesse contexto, a preservação dos direitos fundamentais assume re-
levância, de modo que eles fundamentam as regras e os limites do “jogo”
investigativo, conferindo significado ao fair play. Investigações que transpassem
os parâmetros instituídos para o “jogo” violam à Constituição e, portanto,
merecem descarte.
Investigações tecnologicamente instrumentalizadas sugerem um poten-
cial cenário de vigilância sobre a vida cotidiana. Nesse contexto, a salvaguarda
judicial das garantias individuais é determinante, respaldada pela Constituição
em razão do que institui sobre o monopólio estatal da investigação, o direito
à intimidade, a submissão da supressão de direitos ao controle do Poder Ju-
diciário (reserva de jurisdição), a necessidade de que as provas sejam obtidas
por meios lícitos e a estrita obediência à legalidade.
Enquanto detentor do verdadeiro poder jurisdicional (art. 5º, XXXV,
da CF/88), cumpre ao judiciário exercer o controle a priori e a posteriori das
investigações. Se em meios abertos o acesso às informações (dados) não é
restrito ou pode ser facilmente obtido, o controle será, em regra, exercido a
posteriori. Toda mitigação da intimidade operada por um agente estatal só se
justifica quando fundada na supremacia do interesse público.
Já em relação aos dados de fontes fechadas, o controle será sempre du-
plo. A priori, quando necessária a autorização para a extração ou consulta dos
dados, viabilizando-se o uso de determinado meio de obtenção de prova. A
posteriori, mediante a verificação da obediência à cadeia de custódia, a garantia
de integridade dos dados e a divulgação e utilização das informações que digam
respeito somente ao objeto da investigação.
A jurisprudência do STJ aponta no sentido do respeito às regras cons-
titucionais, como a garantia da inviolabilidade das comunicações, prevista no
art. 5º, XII, da CF/88, bem como, à inviolabilidade da intimidade e da vida
privada, prevista no art. 5º, X, da CF/88 e a inadmissibilidade de provas obtidas
por meios ilícitos conforme art. 5º, LVI, da CF/88.
Doutrina – Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal Nº 104 – Out-Nov/2021 133

Implica dizer que uma investigação só será legítima e apta aos fins que
se destina quando atender aos comandos constitucionais e estiver subordinada
à análise (anterior e/ou posterior) do Poder Judiciário, diante da reserva de
jurisdição e da inafastabilidade jurisdicional.
Não se pode admitir, para qualquer fim que seja, a utilização de provas
ilícitas no âmbito processual penal. O ciberespaço é um ambiente volátil que
não comporta os conceitos tradicionais de integridade. Não basta que a prova/
indício seja aparentemente íntegra, é preciso que, do ponto de vista técnico,
sua integridade seja passível de comprovação. A Constituição também prote-
ge de forma enfática o contraditório (art. 5º, LV, da CF/88), de modo que só
se considera válida a prova que possa ser contraposta pelas partes. Assim, as
informações colhidas no ciberespaço devem ser dotadas de integridade para
que possam ser contraditadas.
Como já mencionado por Ferrajoli (2014), na jurisdição o fim não
justifica os meios, de modo que toda investigação criminal deve respeitar as
regras, a obtenção de provas somente pode ser realizada por meios lícitos e
deve estar alicerçada, sobretudo, em preceitos democrático-constitucionais,
especialmente os direitos e garantias fundamentais.

TITLE: Constitutional contours of criminal investigation in the context of cyberspace.

ABSTRACT: This paper addresses the constitutional assumptions that should guide the practices and
techniques aimed at criminal investigation in Cyberspace. Conducted from a bibliographic review and
interpretative jurisprudential analysis, the study reveals that criminal investigation is a procedure commit-
ted to the foundations of the Democratic State of Law, so that legality must guide procedural conditions.
Fundamental Rights must be guaranteed, such as the protection of the Right to Privacy (article 5, X, of
the CF/1988) that is integrated with other constitutional guidelines, such as the confidentiality of data,
correspondence and communications, as well as the inadmissibility of evidence obtained by unlawful
means. Considering Cyberspace as a place “made up of ” communications, it is up to the magistrate to
verify the existence of reasonable evidence of the offense as well as the authorship, since the degree of
exceptional mitigation of a fundamental right – which does not concern the data “itself ”, but to the privacy
of the investigated –, imposes a careful analysis as to the admissibility of the evidence.

KEYWORDS: State of Law. Criminal Investigation. Cyberspace. Constitucional Guarantees. Fundamental


Rights.

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Recebido em: 10.05.2021


Aprovado em: 01.10.2021

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