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Lenice Kelner
Pós-Doutorado em Direito pelo Programa de Pós-Graduação
em Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
– UERJ; Doutora em Direito Público pelo Programa de
Pós-Graduação em Direito da Universidade do Vale do Rio
dos Sinos – Unisinos; Mestre em Ciências Jurídicas pela
Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI; Especialista
em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade
Regional de Blumenau – FURB; Especialista em Direito
Civil pela Universidade Regional de Blumenau – FURB;
Professora Permanente do Programa de Mestrado em
Direito e da Graduação em Direito da FURB; Membro
dos Grupos de Pesquisa “Constitucionalismo, Cooperação e
Internacionalização – CONSTINTER” (CNPq-FURB)
e “Direitos Fundamentais, Cidadania e Justiça” (CNPq-
FURB); Coordenadora do Projeto de Extensão da FURB
– “Acesso à Justiça e Assistência Jurídica aos Encarcerados na
Comarca de Blumenau”; Advogada; e-mail: kelner@furb.br.
1 Introdução
O combate à atividade criminal demanda assertividade nos atos e proce-
dimentos de investigação. A par disso, considerando o primado do Estado de
Direito, as prerrogativas das instâncias inquisitoriais não devem se sobrepor
à liberdade garantida aos cidadãos.
Contudo, em uma sociedade hiperconectada, como aduz Lipovetsky
(2004), as expectativas sociais são pautadas pela celeridade e resultados ime-
diatos, colocando o Estado sob o desafio de encontrar meios adequados e
eficientes para lidar com a criminalidade.
Soluções tecnológicas, por vezes, são acompanhadas de problemas
desconcertantes. O ciberespaço incorporou ao cotidiano um poder escalar
de comunicação, cujo impacto pode ser exponencialmente maior que a ação
comunicativa praticada. Soma-se a esse aspecto o sentimento de privacidade
nutrido pela leitura de que, ao usar um computador ou smartphone (em rede),
se está dispondo de recursos particulares.
Assim, a concepção instrumental predominante sobre a rede global
de computadores, não só dilui a diferença entre o público e o privado, como
estende a ideia de licenciosidade arbitrária, comum à dimensão privada de
cada sujeito, a um ambiente comunicativo difuso. Resulta dessa realidade que
a persecução criminal no ciberespaço representa um grande desafio.
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“(...) as provas, sendo livre sua valoração, sejam assumidas como método
legal; e que seja então rechaçada a máxima male captum est bene retentum, que
no método inquisitório, postula o contrário a indiferença dos meios relati-
vamente aos fins da prova, vinculado que está ao invés à sua valoração legal.”
“(...) na jurisdição o fim não justifica os meios, dado que os meios, ou seja,
as regras e as formas, são as garantias de verdade e de liberdade, e como
tais têm valor para os momentos difíceis, assim como para os momentos
fáceis; enquanto o fim não é mais o sucesso sobre o inimigo, mas a verdade
processual, a qual foi alcançada apenas pelos seus meios e prejudicada por
seu abandono.” (FERRAJOLI, 2014, p. 767)
3 Caracterização do Ciberespaço
Ao pesquisar o papel das mensagens como meio de governar o compor-
tamento dos seres humanos e das máquinas, em 1948 o matemático Norbert
Wiener (1978, p. 15) adotou a palavra grega kubernetes para atribuir à sua teoria
o nome de cibernética. Vinculada ao contexto das Tecnologias de Informação
e Comunicação da segunda metade do século XX, o diminutivo ciber ingressa
no imaginário social como signo de uma nova realidade, tornando-se prefixo
para conferir caráter tecnológico a qualquer coisa. Na década de 1980, o ro-
mancista de ficção científica William Gibson empregou o termo “ciberespaço”
na obra Neuromancer, referindo-se a uma “alucinação consensual” vivenciada
por usuários futuristas de redes de computadores (KOEPSELL, 2004, p. 24).
Meios de comunicação como o rádio, a TV, ou mesmo a telefonia, não
foram tradicionalmente associados à noção de “espaço”. A ideia de um “lugar
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1 A expressão Black Box é empregada na teoria cibernética para designar sistemas em razão de suas entradas (inputs) e
saídas (outputs), sem que seja necessário conhecer o seu funcionamento interno (BERTALANFFY, 2012).
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2 Essa questão pode ser reconhecida sob o conceito de “aprisionamento tecnológico” descrito por Lanier (2012, p.
25) nos seguintes termos: “O filósofo Karl Popper estava certo quando afirmou que a ciência é um processo que
desqualifica pensamentos à medida que progride – não é mais possível, por exemplo, acreditar em um planeta plano
que surgiu do nada alguns milhares de anos atrás. A ciência elimina ideias empiricamente por um bom motivo. O
aprisionamento tecnológico, contudo, elimina opções de design com base na facilidade de programação, no que é politicamente viável,
no que está na moda ou no que é criado por acaso”.
3 Entende-se por Registro de Conexão “o conjunto de informações referentes à data e hora de início e término de
uma conexão à internet, sua duração e o endereço IP utilizado pelo terminal para o envio e recebimento de pacotes
de dados” (BRASIL, Lei nº 12.965/2014, art. 5º, VI).
4 Entende-se por registros de acesso a aplicações de internet “o conjunto de informações referentes à data e hora de uso
de uma determinada aplicação de internet a partir de um determinado endereço IP” (BRASIL, Lei nº 12.965/2014,
art. 5º, VIII).
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No mesmo sentido, Aury Lopes Júnior (2018, p. 57) aduz que “o fun-
damento da legitimidade da jurisdição e da independência do Poder Judiciário
será no reconhecimento da sua função de garantidor dos direitos fundamentais
inseridos ou resultantes da Constituição”. É imprescindível, sustenta o autor,
que o processo penal passe por uma constitucionalização, e como decorrência
“o fundamento legitimante da existência do processo penal democrático é sua
instrumentalidade constitucional, o processo enquanto instrumento a serviço da
máxima eficácia de um sistema de garantias mínimas” (LOPES Jr., 2018, p. 57).
Por outro lado, Canotilho (1998) contempla a Reserva de Jurisdição,
distinguindo entre Reserva de Juiz e Reserva de Tribunal. Para o autor, “reserva
de juiz” significa que “em determinadas matérias cabe ao juiz não apenas a
última, mas também a primeira palavra”. Já a Reserva de Tribunal denota que
“relativamente a algumas situações é legítima a intervenção de outros poderes
(notadamente administrativos) desde que seja assegurado depois o direito de
acesso aos tribunais”. Portanto, verificamos que Canotilho contempla a Re-
serva de Jurisdição, de forma ampla, conceituando-a como a “reserva de um
conteúdo material funcional típico da função jurisdicional” (CANOTILHO,
1998, p. 622-624).
É nesse aspecto que reside uma das grandes controvérsias sobre os con-
tornos constitucionais da investigação criminal no ciberespaço. Isso, porque
não é simples definir quando há ou não reserva de jurisdição quanto ao dado
acessado ou ao método de sua obtenção. Inclusive, nota-se que há poucos anos
o STJ foi instado a decidir como deveriam ser realizadas as extrações de dados
dos celulares que são apreendidos quando da prisão em flagrante. Veja-se:
“(...) 5. Cumpre assinalar, portanto, que o caso dos autos difere da situação, com
legalidade amplamente reconhecida pelo Superior Tribunal de Justiça, em que, a
exemplo de conversas mantidas por e-mail, ocorre autorização judicial para a ob-
tenção, sem espelhamento, de conversas já registradas no aplicativo WhatsApp, com
o propósito de periciar seu conteúdo. 6. É impossível, tal como sugerido no acórdão
impugnado, proceder a uma analogia entre o instituto da interceptação telefônica (art.
1º da Lei nº 9.296/96) e a medida que foi tomada no presente caso. 7. Primeiro: ao
contrário da interceptação telefônica, no âmbito da qual o investigador de polícia atua
como mero observador de conversas empreendidas por terceiros, no espelhamento via
WhatsApp Web o investigador de polícia tem a concreta possibilidade de atuar como
participante tanto das conversas que vêm a ser realizadas quanto das conversas que
já estão registradas no aparelho celular, haja vista ter o poder, conferido pela própria
plataforma online, de interagir nos diálogos mediante envio de novas mensagens
a qualquer contato presente no celular e exclusão, com total liberdade, e sem deixar
vestígios, de qualquer mensagem passada, presente ou, se for o caso, futura. (...) 9.
Segundo: ao contrário da interceptação telefônica, que tem como objeto a escuta de
conversas realizadas apenas depois da autorização judicial (ex nunc), o espelha-
mento via Código QR viabiliza ao investigador de polícia acesso amplo e irrestrito a
toda e qualquer comunicação realizada antes da mencionada autorização, operando
efeitos retroativos (ex tunc). 10. Terceiro: ao contrário da interceptação telefônica,
que é operacionalizada sem a necessidade simultânea de busca pessoal ou domiciliar
para apreensão de aparelho telefônico, o espelhamento via Código QR depende da
abordagem do indivíduo ou do vasculhamento de sua residência, com apreensão de
seu aparelho telefônico por breve período de tempo e posterior devolução desacompa-
nhada de qualquer menção, por parte da Autoridade Policial, à realização da medida
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constritiva, ou mesmo, porventura – embora não haja nos autos notícia de que isso
tenha ocorrido no caso concreto –, acompanhada de afirmação falsa de que nada foi
feito. (...)” (BRASIL, STJ, RHC 99.735/SC, grifou-se)
para Lopes Jr. (2018, p. 393), “a forma dos atos é uma garantia, na medida
em que implica limitação ao exercício do poder estatal de perseguir e punir”.
Ou seja, o processo penal deve ser um instrumento que visa respon-
sabilizar os culpados na medida de sua culpabilidade, bem como garantir o
respeito aos direitos fundamentais de todo e qualquer acusado. Com acerto,
sustenta Khaled Jr. (2013, p. 591) que “a sentença condenatória somente pode
ser legitimada caso as regras do devido processo legal sejam estritamente
respeitadas, o que permite maximizar as possibilidades de redução de danos
decorrentes de condenações equivocadas”.
E assim, conclui o autor:
5 Considerações Finais
As investigações no ciberespaço deparam-se com uma espécie de hibri-
dização entre o público e o privado. Sendo assim, não só dados de interesse
criminal podem estar tecnologicamente acessíveis como também informações
da vida privada dos investigados.
Nesse contexto, a preservação dos direitos fundamentais assume re-
levância, de modo que eles fundamentam as regras e os limites do “jogo”
investigativo, conferindo significado ao fair play. Investigações que transpassem
os parâmetros instituídos para o “jogo” violam à Constituição e, portanto,
merecem descarte.
Investigações tecnologicamente instrumentalizadas sugerem um poten-
cial cenário de vigilância sobre a vida cotidiana. Nesse contexto, a salvaguarda
judicial das garantias individuais é determinante, respaldada pela Constituição
em razão do que institui sobre o monopólio estatal da investigação, o direito
à intimidade, a submissão da supressão de direitos ao controle do Poder Ju-
diciário (reserva de jurisdição), a necessidade de que as provas sejam obtidas
por meios lícitos e a estrita obediência à legalidade.
Enquanto detentor do verdadeiro poder jurisdicional (art. 5º, XXXV,
da CF/88), cumpre ao judiciário exercer o controle a priori e a posteriori das
investigações. Se em meios abertos o acesso às informações (dados) não é
restrito ou pode ser facilmente obtido, o controle será, em regra, exercido a
posteriori. Toda mitigação da intimidade operada por um agente estatal só se
justifica quando fundada na supremacia do interesse público.
Já em relação aos dados de fontes fechadas, o controle será sempre du-
plo. A priori, quando necessária a autorização para a extração ou consulta dos
dados, viabilizando-se o uso de determinado meio de obtenção de prova. A
posteriori, mediante a verificação da obediência à cadeia de custódia, a garantia
de integridade dos dados e a divulgação e utilização das informações que digam
respeito somente ao objeto da investigação.
A jurisprudência do STJ aponta no sentido do respeito às regras cons-
titucionais, como a garantia da inviolabilidade das comunicações, prevista no
art. 5º, XII, da CF/88, bem como, à inviolabilidade da intimidade e da vida
privada, prevista no art. 5º, X, da CF/88 e a inadmissibilidade de provas obtidas
por meios ilícitos conforme art. 5º, LVI, da CF/88.
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Implica dizer que uma investigação só será legítima e apta aos fins que
se destina quando atender aos comandos constitucionais e estiver subordinada
à análise (anterior e/ou posterior) do Poder Judiciário, diante da reserva de
jurisdição e da inafastabilidade jurisdicional.
Não se pode admitir, para qualquer fim que seja, a utilização de provas
ilícitas no âmbito processual penal. O ciberespaço é um ambiente volátil que
não comporta os conceitos tradicionais de integridade. Não basta que a prova/
indício seja aparentemente íntegra, é preciso que, do ponto de vista técnico,
sua integridade seja passível de comprovação. A Constituição também prote-
ge de forma enfática o contraditório (art. 5º, LV, da CF/88), de modo que só
se considera válida a prova que possa ser contraposta pelas partes. Assim, as
informações colhidas no ciberespaço devem ser dotadas de integridade para
que possam ser contraditadas.
Como já mencionado por Ferrajoli (2014), na jurisdição o fim não
justifica os meios, de modo que toda investigação criminal deve respeitar as
regras, a obtenção de provas somente pode ser realizada por meios lícitos e
deve estar alicerçada, sobretudo, em preceitos democrático-constitucionais,
especialmente os direitos e garantias fundamentais.
ABSTRACT: This paper addresses the constitutional assumptions that should guide the practices and
techniques aimed at criminal investigation in Cyberspace. Conducted from a bibliographic review and
interpretative jurisprudential analysis, the study reveals that criminal investigation is a procedure commit-
ted to the foundations of the Democratic State of Law, so that legality must guide procedural conditions.
Fundamental Rights must be guaranteed, such as the protection of the Right to Privacy (article 5, X, of
the CF/1988) that is integrated with other constitutional guidelines, such as the confidentiality of data,
correspondence and communications, as well as the inadmissibility of evidence obtained by unlawful
means. Considering Cyberspace as a place “made up of ” communications, it is up to the magistrate to
verify the existence of reasonable evidence of the offense as well as the authorship, since the degree of
exceptional mitigation of a fundamental right – which does not concern the data “itself ”, but to the privacy
of the investigated –, imposes a careful analysis as to the admissibility of the evidence.
6 Referências
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo x cidadania mínima: códigos da violência da era
da globalização. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2016.
BARRETO, Alessandro Gonçalves; WENDT, Emerson. Inteligência e investigação criminal em fontes abertas.
Rio de Janeiro: Brasport, 2020.
BERTALANFFY, Ludwig von. Teoria geral dos sistemas: fundamentos, desenvolvimento e aplicações. Trad.
Francisco M. Guimarães. 6. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2012.
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